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sábado, 25 de março de 2017

O começo do Cristianismo - Marilia Fiorillo


Os primeiros séculos do cristianismo foram marcados pela disputa entre diversos grupos com interpretações diferentes sobre o significado dos ensinamentos de Jesus. Com o crescimento na religião, o racha nas interpretações logo virou uma briga por poder. No recém-lançado "O Deus exilado" (Civilização Brasileira), a professora da USP Marilia Fiorillo conta a história dos perdedores dessa briga, os chamados grupos gnósticos. Como ela explica nesta entrevista ao blog, são grupos que tinham em comum a valorização do conhecimento como caminho para a salvação, e assim, em contraste com os extremismos atuais, procuravam "conciliar o ímpeto pelo sagrado com a autonomia e liberdade de cada indivíduo".

Quando e em que circunstâncias surgem os primeiros movimentos gnósticos? 

Falar em gnosticismo é o mesmo que falar em cristianismo primitivo, pois os cristãos gnósticos surgem com os primeiros grupos de seguidores de Jesus, já em finais do século I , e são praticamente os primeiros e únicos no Egito e na Síria oriental (que, com Antioquia e Roma, eram as metrópoles da nova religião), até o século IV. Isto ficou comprovado pela descoberta recente dos manuscritos de Nag Hammadi, e dos Evangelhos de Maria e de Judas, que, apesar de encontrados em locais diferentes, fazem parte de uma mesma "biblioteca" gnóstica, isto é, trazem uma versão própria e diferente do que as comunidades então acreditavam ter sido a mensagem do fundador Jesus. 

Pode-se dizer que este livro trata de uma revisão histórica, ao dar voz aos perdedores da primeira batalha dentro do cristianismo, revelando fatos e ideários que não foram registrados na história oficial da Igreja. Esta, aliás, os combateu desde o princípio, e os derrotou de vez assim que a facção de Roma -a dos futuros católicos- ganhou a simpatia do imperador Constantino e se tornou a religião oficial do império romano. 

A descoberta de um rico e vasto material sobre as comunidades gnósticas permitiu a divulgação, e reinterpretação, de uma outra versão sobre os primórdios do cristianismo. È interessante como esta questão das versões é atualíssima, e está em pauta, por exemplo, no principal episódio de política internacional que ocupou as manchetes nos últimos dias: os acontecimentos dramáticos que têm ocorrido na Faixa de Gaza. A versão oficial de Israel é a da legítima defesa; a versão de vários governos tem sido a de que se trata de um ataque desproporcional; já a versão do comissariado de direitos humanos da ONU, da Cruz Vermelha, da Anistia Internacional, da Human Rights Watch e de outras organizações humanitárias , após a divulgação dos últimos acontecimentos, é a de que se trata de um crime de guerra. A perseguição aos gnósticos foi brandíssima, mesmo tímida, se comparada ao atual massacre da população civil palestina. Mas em ambos os casos a história acaba se tornando a versão daquele que vence, daquele que ficou, ou ficará, para contá-la com autoridade ou legitimidade. 

Quais são as principais questões que mobilizam seus integrantes, e quais os principais ramos que se desenvolvem? 

Uma das principais características do gnosticismo é sua pluralidade. Eles divergem dos ortodoxos - aqui entendidos como os futuros católicos, "futuros" pois, até o século IV, ninguém poderia dizer ao certo quem era "orto", isto é, "reto", e quem era "hetero", isto é "diferente", pois as doxas (isto é, opiniões, no caso sobre o cristianismo) se equilibravam em número de adesões, importância e popularidade. Isto fica claro quando lembramos que dois dos expoentes gnósticos do século II, Valentino e Marcion, concorreram ao mais alto cargo de bispo inclusive em terreno alheio, isto é, Roma. 

Assim, os gnósticos divergem mesmo entre si, e muito: há os que acham que a ressurreição foi só simbólica (os docéticos) e os que crêem que foi real, material; há aqueles simpáticos a certas passagens da Torá hebraica e os que a repudiam veementemente; os que acham que Jesus era um sábio, ou um anjo, ou um mestre ou a própria divindade. 

Neste oceano de divergências compartilhadas eles têm, porém, três princípios em comum: 1) o de que o caminho para a salvação se faz pela gnose, ou conhecimento direto e individual de Deus, e não pela fé em algo transmitido por terceiros; 2) a idéia de que conhecer Deus é se conhecer, isto é, que cada pessoa possui uma faísca do divino em si; e 3) uma certa insolência ou arrogância que se revela tanto no estilo de seus evangelhos como no menosprezo que devotam aos opositores ortodoxos, para eles uns "tolos" e "falsos cristãos". 

Como se dá o diálogo entre esses pensadores e o cristianismo? 

Na verdade esses pensadores –pregadores, lideranças ou escritores- são tão cristãos quanto os que ficaram com o título. O diálogo e debate é intenso e feroz, eles se acusam mutuamente (de ímpios ou tolos) e há mesmo autores que dizem ser impossível imaginar a Igreja sem eles, pois eram a sombra uns dos outros, tamanha a competição, e em pé de igualdade. Dois padres da Igreja escreveram profusamente sobre eles no segundo século, Irineu de Lyon e Tertuliano de Cartago –este último foi tão zeloso em sua campanha que seu purismo acabou levando-o a ser excomungado pela própria Igreja. 

Quando Irineu e Tertuliano acusam os gnósticos de "serpentes, escorpiões, devassos", o que lhes incomoda são principalmente dois traços de seus adversários: a imaginação (muitas vezes desenfreada ), e a audácia. 

A principal acusação de Irineu era a de que os gnósticos não possuíam "o medo de Deus em seus corações". Para este primeiro teólogo da Igreja, o medo da punição divina era o que forjava um bom cristão, e como os gnósticos não pareciam movidos a medo, sugeriu que o melhor método para tratar estes adversários internos era "ferir fundo a besta". A principal crítica de Tertuliano -além de seu horror ao "despudor" das mulheres que participavam como iguais dos cultos gnósticos- era que estes "dissidentes" misturavam platonismo, isto é, filosofia, com cristianismo, e se permitiam a veleidade de pensar como bem entendiam. A "humanidade" (sic) com que os gnósticos se tratavam, assim como o "atrevimento" de suas mulheres , além da mania petulante deles de "perguntar sobre tudo" eram, segundo Tertuliano, vícios imperdoáveis. 

Mas o mais interessante, agora que se pode ler na íntegra as idéias contidas nos manuscritos gnósticos, é notar o quanto a teologia dita ortodoxa nasceu, na verdade, de um empréstimo das idéias gnósticas, viradas do avesso. Por mais que Irineu e Tertuliano abominassem a imaginação gnóstica, foi nela que beberam. A teologia ortodoxa nasce como uma teologia da refutação, em que os éons dos gnósticos foram transformados em anjos, a ignorância (para os gnósticos, fonte de todo mal) virou pecado e a questão do sofrimento humano foi equacionada no livre-arbítrio. 

Em que o gnosticismo pode ser importante para as reflexões contemporâneas? 

Em uma palavra: no amor à liberdade. Os gnósticos eram ridicularizados e atacados por seus oponentes tanto por seu "excesso de imaginação" , isto é, pela livre interpretação que faziam da mensagem cristã (um de seus críticos dizia que eles empilhavam doutrinas como quartos de aluguel, e que havia tantos gnosticismos quanto membros de uma congregação), quanto por sua excessiva tolerância –eles admitiam que mulheres virassem bispos, adotavam o sistema de funções em rodízio, e achavam que o contato com Deus era direto e não precisava da intermediação de uma casta sacerdotal. A principal lição destes anarquistas espirituais é o elogio da convivência, o gosto pela diferença, e uma profunda antipatia por dogmas e autoridades auto-proclamadas. Numa época como a nossa, em que os fundamentalismos religiosos de todos os matizes ganham terreno, o gnosticismo é uma rara e feliz mostra de que, certa vez, foi possível conciliar o ímpeto pelo sagrado com a autonomia e liberdade de cada indivíduo, deixando os assuntos de Deus a cargo e competência de cada um, em vez de excluir, perseguir e matar coletivamente em Seu nome.