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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Jesus de Nazaré condenado à Morte, acusação: MAGIA

Morte e vida “severina” de Jesus: um camponês galileu na “cruz” da história
A tese que quero defender hoje é simples, e ao mesmo tempo, marcada por uma certa ousadia hermenêutica, que como toda ousadia, e toda hermenêutica, precisa e muito da benevolência dos ouvintes.

A tese é que, se olharmos para a narrativa do julgamento e morte de Jesus, existem evidentes sinais de que, em última instância, é a magia dele o motivo mais importante de acusação e condenação à morte.

Mas antes de mergulhar propriamente na tese que proponho, me sejam permitidas 3 (três) premissas, à moda de introdução.

A primeira diz respeito, como não podia ser diferente, ao título de minha fala, e à sua referência ao celebre poema de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina:
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos

1 Este texto foi originalmente apresentado no I Seminário Internacional Jesus Histórico, no Rio de Janeiro, 16-18 de Outubro de 2007, Universidade Federal do Rio de Janeiro. E, por sua vez, é uma re-elaboração de um texto anteriormente publicado no livro CHEVITARESE, André & CORNELLI, Gabriele & SELVATICI Monica. Jesus de Nazaré: uma outra história. São Paulo, FAPESP / Annablume, 2006.

iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia

A idéia espero possa ser compreendida da maneira que eu gostaria, isto é: a narrativa da morte de Jesus é aproximável àquela do retirante do poema, num contexto de extrema pobreza, onde se “morre de velhice antes dos trinta”, e “de fome um pouco todo dia”. É neste contexto, que é tanto antigo e galileu, como escandalosamente contemporâneo, que a narrativa da morte do mago e curandeiro Jesus de Nazaré assume um sentido mais próprio. Defendo assim, contra qualquer tentativa de uma historiografia positivista e presentista, que o lugar inicial da pesquisa, a declaração de intenções, a hermenêutica é necessária à honestidade da mesma. É aqui, portanto, in terra brasilis, que estas próximas palavras encontram seu lugar e seu mais profundo sentido.

Uma segunda premissa, diz respeito à intuição fundamental do texto, que me veio de minha frequentação tanto dos livros do aqui presente Prof. Dominic Crossan, como, de maneira mais incisiva, das pesquisas de um eminente biblista, infelizmente pouco trabalhado por aqui, que é Morton Smith. Falecido em 1991, tem sua obra reeditada pelo discípulo Shaye Cohen. Foi professor da Columbia University por muitos anos, e antes, nos anos ´40, foi aluno de Cadbury (de Novo Testamento), de Wolfson (Judaísmo) e de Nock (religiões greco-romanas), sempre em Harvard. E aluno de Gershom Sholem (misticismo judaico) em Jerusalém. Seu livro talvez mais célebre é Jesus, the Magician. E a este livro extraordinário, devo muito.

Uma terceira premissa tem a ver com a compreensão da magia que defendo aqui.

E para isso, não encontro melhor ponto de partida que uma citação do Prof. Crossan:
"A magia está para a religião assim como o banditismo está para a política. Enquanto o banditismo contesta a legitimidade do poder político, a magia contestaa do poder espiritual. Tanto no mundo antigo quanto no moderno pode-se fazer uma distinção entre magia e religião através de definições prescritivas e políticas, mas não através de descrições neutras e objetivas. A religião é magia oficial e aprovada; a magia é uma religião extra-oficial e censurada."

Não acrescento mais. A questão parece-me clara. E fecha o círculo das três premissas.

Vamos à exegese do bloco narrativo da paixão.

“Banca o profeta!”

Da mesma forma que Herodes com relação a João Batista, as autoridades religiosas de Jerusalém temem uma reação popular contra a prisão de Jesus:
[Os sumos sacerdotes e os fariseus] procuravam prendê-lo, mas tiveram medo das multidões (evfobh,qhsan tou.j o;clouj), pois elas o consideravam como profeta (profh,thn).
Aqui o termo profhth,j, com o qual Jesus é nomeado pelas multidões, é significativo.

De qual profecia está se falando neste caso? Com que tradição profética Jesus é identificado pelas multidões? Como veremos em detalhes mais adiante, o conjunto das tradições sobre o Jesus histórico parece indicar que os modelos proféticos do galileu Jesus são Elias e Eliseu, profetas da tradição popular do Norte, magos e taumaturgos.

Nos escárnios dirigidos contra Jesus, preso, pelos guardas do Sinédrio, volta o tema da profecia:
Alguns puseram-se a cuspir nele, a velar-lhe o rosto, a dar pancadas e dizer-lhe: “Banca o profeta!” (profh,teuson).
neste sentido a aguda comparação de J. D. Crossan, O Jesus Histórico, pp 174-177.

Na versão mateana:
Então eles lhe cuspiram no rosto e lhe deram pancadas; outros o esbofetearam. Disseram eles: “Banca o profeta (profh,teuson) para nós, Messias: quem foi que te bateu?”.

É subentendida, em ambas as versões dos escárnios, a fama de Jesus como profeta adivinho. A profecia que lhe é cobrada neste momento é a da adivinhação.

Não parece um detalhe privado de significado o fato de Mateus citar o escárnio quem foi que te bateu, dirigido contra Jesus, sem preparar e explicar isso narrativamente com o encobrimento do rosto de Jesus, como na versão marcana. Se este pormenor deve-se provavelmente a um esquecimento de Mateus, confirmando mais uma vez sua dependência em relação a Marcos, é um fato que a expressão banca o profeta! – e todo o sentido de escárnio com relação às reais capacidades proféticas de Jesus – não é esquecida.

O que esta memória parece indicar é que a profecia de Jesus deveria ser compreendida pelos contemporâneos como adivinhação ou prognóstico.

A acusação pela qual Jesus é levado até o governador romano Pilatos é a seguinte:
Se este indivíduo não tivesse praticado o mal (kako.n poiw/n), porventura o entregaríamos a ti?9

Para um estudo sistemático dos escárnios contra Jesus, Raymond E. Brown (The Death of the Messiah: a Commentary on the Passion Narratives in the Four Gospels. New York, Doubleday, 1994, pp.568-586; 863-877). O autor pretende fundamentalmente distinguir os diferentes motivos dos escárnios dos judeus (por ser um falso profeta) e dos romanos (por ser um pretenso “rei dos judeus”), cf. p. 569. A distinção de R. Brown confirmaria assim a nossa suspeita com relação ao fato de que, para os interesses do judaísmo oficial, é a imagem de um Jesus “falso profeta” a que mais incomoda. Enquanto o problema de Jesus como “rei dos judeus”, que perpassa também todas as narrativas da paixão, seria mais uma representação da acusação do poder romano. A acusação de praticar o mal é, claramente, uma acusação de magia.

A prisão de Jesus no horto das Oliveiras, segundo a versão lucana, acontece num clima de demonstração de poderes mágicos: Jesus cura a orelha do servo do Sumo Sacerdote decepada por um de seus discípulos.

Ao longo das narrações da assim chamada paixão de Jesus, emergem vários indícios, nos detalhes esquecidos e nas contradições da forte armação querigmática, de que a acusação contra ele está ligada de alguma forma à sua prática mágica.

“Destruirei este templo”
Um dos temas recorrentes nas narrativas de acusação é o de Jesus ter prenunciado que iria destruir o templo. Uma breve comparação entre as versões marcana e mateana (Lucas não recebe esta acusação) mostra um detalhe significativo:

Marcos e Mateus

Nós o ouvimos dizer: eu destruirei este templo (nao.n tou/ton) feito por mãos de homem, e, em três dias, construirei outro, que não será feito por mãos de homem (avceiropoi,hton).12

Este homem disse: “Posso destruir o santuário de deus (to.n nao.n tou/ qeou) e reconstruí-lo em três dias”.

Lc 22, 51: mas Jesus tomou a palavra e disse: “Deixai fazer, até isso”. E tocando-lhe a orelha (a`ya,menoj tou/ wvti,ou), curou-o (iva,sato auvto,n))

Para uma discussão mais aprofundada sobre essa complexa tradição cf. Raymond E. Brown, The Death of the Messiah, pp. 264-293. Ainda que a maioria dos comentadores não reconheça nenhuma probabilidade histórica numa tradição tão bizarra como a do corte da orelha do servo, chama atenção o comentário naïf de Latourelle:
“Se a história dessa cura fosse um acidente isolado no evangelho, eu teria problemas em aceitá-la. Porém, no contexto da vida de Jesus, creio apenas que não é impossível”.

Mesmo que para a economia narrativa do julgamento de Jesus essa acusação não seja decisiva (pois, comenta Marcos, os acusadores não concordavam em seu testemunho), parece sê-lo para a compreensão de qual podia ser o incômodo que a figura de Jesus criava para as autoridades religiosas de Jerusalém.

Nesse sentido, a versão originária marcana, da qual com toda probabilidade Mateus depende, parece representar de maneira mais viva as palavras de um homem divino galileu na frente do templo de Jerusalém.

Enquanto em Mateus o templo é chamado de to.n nao.n tou/ qeou, “o” templo de deus, em Marcos o templo é nao.n tou/ton, este templo aqui. Se para Mateus o importante é deixar claro que Jesus afirma ter eventualmente o poder sobre o templo de Jerusalém, reconhecido como templo de deus, para Marcos a questão é mais profunda: Jesus mostra a intenção clara de construir um novo templo, diferente deste aqui. E a diferença está no termo avceiropoi,hton, não feito por mãos de homens.

Essa afirmação de Jesus em Marcos, pela qual de fato está sendo acusado, remete diretamente para um paralelo de extremo interesse na obra enumerada entre as obras apocalípticas intertestamentárias, e que recebeu o nome de Testamento de Salomão.

Narra-se aqui a construção do templo de Jerusalém pelas mãos dos demônios, sujeitados pelo poder do anel de Salomão. A obra, repleta de tradições ligadas à magia popular, como simpatias e palavras mágicas, na linha da literatura dos PMG, deve ser considerada como um paralelo histórico-literário central para entender a origem hermenêutica do tema da destruição do templo e da construção de um templo avceiropoi,hton.

Se entrarmos diretamente na discussão textual sobre o Testamento de Salomão, a presença de temas apocalípticos e mágicos na narração da construção do templo pelos demônios aponta para uma tradição de origem israelítica e popular, provavelmente galiléia.

O fato de que Lucas não recebe essa tradição não significa que ele não compreenda esse conflito. O mesmo é de fato remetido para Atos, na boca de um outro condenado, Estevão: “O Altíssimo não habita mansões construídas pela mão dos homens”

Assim, se a afirmação da destruição do templo caberia muito bem na boca de um profeta-santo Galileu,16 mais ainda deveria estar entre as tradições do Jesus histórico a intenção da construção de um templo avceiropoi,hton¸ isto é, fruto da magia xamânica, como no caso de Salomão.

Dessa forma, a acusação contra Jesus por ter afirmado querer destruir e reconstruir o templo, antes e mais do que uma acusação de rebeldia político-religiosa, seria uma acusação de xamanismo e prática mágica.

Interessante notar que o mesmo tema reaparece novamente nos escárnios atribuídos por Marcos e Mateus a quem passava aos pés do crucificado.

Os transeuntes o insultavam, meneando a cabeça, e diziam: “Olá, tu que destróis o templo e o reconstróis em três dias”.

Os transeuntes o insultavam, meneando a cabeça, e dizendo: “Tu que destróis o templo e o reconstróis em três dias...”.

Jesus é reconhecido aqui como “aquele que disse que ia destruir o templo e reconstruí-lo em três dias”. Aparentemente, um indício de que a tradição devia ser muito conhecida. O escárnio acontece por um motivo muito simples: não conseguir demonstrar em próprio favor seus poderes mágicos. Não consegue se libertar, como irá construir o templo em três dias?

"Filho de deus”

Para o termo Geza Vermes, Jesus, o judeu, pp. 64-86. Com esta terminologia Geza Vermes quer traduzir o termo hassid. O termo hassid, porém, não me parece absolutamente adequado, por ser característica central dos hassidim a obediência à Lei. Coisa que não parece estar absolutamente entre as prioridades de figuras religiosas outsiders como a de Jesus.

Segundo a estrutura interna das narrativas sinóticas da paixão, a acusação decisiva, da qual depende a condenação de Jesus à morte, é a de ter se autoproclamado “filho de deus”.

Na versão marcana:
O sumo sacerdote o interrogava, dizendo: “És tu o messias, filho de deus bendito? (Su. ei= o` Cristo.j o` ui`o.j tou/ euvloghtou/*)”. Jesus disse: “Eu sou (VEgw, eivmi), e vereis o Filho do homem assentado à direita do Todo-poderoso e vindo com as nuvens do céu”.

A resposta de Jesus tem o tom de uma auto-revelação. Proclamando-se “filho de deus” e citando o Salmo 110, 1 (em destaque na tradução acima) Jesus assina sua condenação. De fato:
O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse: “Que necessidade temos ainda de testemunhas? Ouvistes a blasfêmia (blasfhmi,a). Que vos parece?”. E todos o condenaram como digno de morte.

Por que exatamente esta expressão, filho de deus, na boca de Jesus, é considerada uma blasfhmi,a e é causa direta de sua condenação a morte?

Primeiramente, é preciso notar o seguinte: a expressão filho de deus não é muito comum no judaísmo como referência à figura do Messias. Nos mesmos sinóticos a expressão aparece normalmente no contexto da atividade taumatúrgica de Jesus. Isto leva autores como Morton Smith e Georg Luck a sugerir que a expressão “filho de deus”, portanto, estaria ligada ao âmbito da magia.

Mateus e Lucas resolvem ambos deixar a auto-proclamação de Jesus na ambigüidade: “Tu o dizes” – é a resposta de Jesus em Mt 26, 64. Segundo a Bíblia TEB Jesus exprime-se com uma reserva que deixa os interlocutores em face à sua própria pergunta (TEB, Mc 14, 62: nota o).

De fato, são especialmente os demônios que, nos sinóticos, chamam Jesus de filho de deus. Os seus discípulos o reconhecem como tal depois de seus milagres. Já os adversários recusam tal título, pois não se aplicaria àquele que consideravam como um mago e feiticeiro, possuído por um espírito impuro.

Particularmente significativo é o uso que Marcos faz da expressão. A proclamação de Jesus como filho de deus é mantida em segredo, a ser revelado somente nesta confrontação final com os sumos sacerdotes. A expressão aparece somente cinco vezes em todo o evangelho. Excluindo o cabeçalho (1, 1), a primeira vez que o termo aparece é na boca dos demônios em 3, 11, no bloco de tradições sobre a atividade mágica de Jesus que, num crescendo de intensidade, apresenta as reações à mesma atividade das diversas categorias presentes. Portanto a proclamação de Jesus como filho de deus está na boca dos demônios, como aquela de ter Beelzebul está na boca dos inimigos. Tanto os demônios como os inimigos parecem reconhecer sua força mágica, sua identidade de filho de deus.

E se no julgamento, em Mc 14, 61, é na boca do sumo sacerdote que a expressão filho de deus é colocada, a última vez que aparece é na boca do centurião romano, em Mc 15, 39.

Jesus, portanto, é proclamado filho de deus pelos demônios, pelo sumo sacerdote e por um soldado romano. Os três são paradigmas de poderosos inimigos do povo, na perspectiva galiléia e popular marcana.24

A confirmação desse sentido mágico da expressão “filho de deus”, no interior da literatura mágica helenística, a expressão “filho do deus vivo” era um dos títulos mais usados no politeísmo oriental e greco-romano, autoridades, heróis e milagreiros eram chamados de “filho(s) de deus.

Mesmo na literatura judaica bíblica ou extra-bíblica anterior ou contemporânea ao Novo Testamento, o “filho de deus” como título para um ser humano é extremamente raro e, de todo modo, limitado a uma obscura passagem dos Rolos do Mar Morto”). O trecho obscuro de Qumram ao qual o autor se refere é 4Q246. O mesmo vale para Mc 5, 7.

Considerando esta relação estreita entre a proclamação da figura de Jesus e seus milagres, Theissen fala de um arco aretológico em Marcos: “All the small units and the overall structure of the gospel can come together at this one point. Put in form of critical terms, wonder and acclamation motifs, together with the contrasting motif of secrecy, are structural motifs of overarching composition in Mark” (The Miracle Stories…, p. 212.

Tradução:
“Todas as pequenas unidades e a estrutura geral do evangelho encontram-se neste ponto. Colocados de forma crítica, os motivos de milagre e aclamação, juntamente com o motivo contrastante do segredo, constituem motivos estruturais do arco redacional de Marcos”). Usados, uma das forças mágicas mais poderosas. Há, nesse sentido, um interessantíssimo paralelo entre a iniciação xamânica de Jesus no batismo e os PMG. Aqui a descida do espírito é seguida por uma proclamação normalmente considerada como uma investidura messiânica: Ou-to,j evstin o` ui`o,j mou..., este é o meu filho."

Segundo Bultmann, a tradição do batismo deve ser muito antiga, por causa de sua inclusão tanto em Marcos como em João. Contradiria a teologia dos dois evangelhos, sendo assim preservada por eles como um fóssil inconsistente. Por outro lado, a tradição pode ser considerada como uma apologia da magia de Jesus: ele é um homem divino, um xamã, portanto está possuído (não tem como negá-lo!), mas pelo espírito santo de deus, e não por um espírito impuro.

Usando a terminologia acima, portanto, Jesus é filho, sim, mas de deus

Cabe notar que se a tradição do batismo é antiga, a acusação contra Jesus, formulada no Sinédrio pelo sumo sacerdote, nos termos acima analisados, de “ser filho de deus”, deve sê-lo ainda mais. Pois a apologia, logicamente, segue sempre a acusação, nunca a precede.

Para concluir o círculo comparativo, é preciso destacar o fato de exemplos de uma relação íntima do xamã com seu deus-pai estarem presentes até na literatura rabínica: as duas únicas vezes em que o termo Abbá, pai, é referido a deus em toda a literatura rabínica encontram-se no Talmude da Babilônia. Ambas as referências estão em tradições ligadas à figura de Honi há-Meaggel (o traçador dos círculos).

O contexto talmúdico é de magia, revelando inclusive, na figura de Honi, a atitude de um filho mimado por um pai que faz tudo o que o filho pede, indicando assim uma relação toda privilegiada e quase que de De Honi ha-Meaggel (o traçador de círculos) tratam duas fontes: a Mixná (Taanit) e uma memória de Flávio Josefo (que prefere chamá-lo de Onias).

A força, a capacidade especial atribuída a Honi é aquela de fazer chover. Esta habilidade chama diretamente à memória a figura de Elias. Aquele de Honi é o único milagre registrado na Mixná, código oficial da lei rabínica, composto na Palestina em torno do ano 200 d. C. Segundo o Talmude da Babilônia Honi se comportava diante de deus como um filho petulante e mimado: “Assim ele lhe disse: Pai [Abba], banha-me em água morna [e ele obedece], lava-me em água fria [e ele obedece], dá-me nozes, amêndoas, pêssegos e romãs, e ele lhe deu tudo”.

Controle ou coação da vontade do pai pelo filho. Algo pelo qual a magia é normalmente condenada.

A mesma expressão aramaica abbá é colocada na boca de Jesus no Getsêmani por Marcos:
“Abbá, tudo te é possível, afasta de mim este cálice!”.

Segundo Raymond Brown seria esta a única expressão aramaica transliterada pelos evangelhos e, como no caso de Honi acima citado, a expressão deveria ser a maneira mais comum pela qual uma criança dirigia-se ao seu pai.

A trama redacional de Marcos e a construção da tradição do batismo com relação à definição de Jesus como filho de deus apontam, mais uma vez, para uma tentativa de defender a figura de Jesus das acusações de magia. Desde sua iniciação mística no batismo até o julgamento, Jesus é filho de deus, não um mago ou charlatão.

Delito religioso

A maioria dos estudiosos compreende como causa da morte de Jesus a complexa trama político-religiosa na qual o itinerante galileu e seu movimento haviam se embatido nos anos 30 do I século, entre movimentos messiânicos-milenaristas e ocupação romana.

J. P. Meier de fato afirma:
É significativo que quando examinamos as várias tradições do julgamento de Jesus, e as diversas acusações assacadas contra ele, praticamente não há indicações de os milagres terem sido a razão principal de sua condenação e execução. (...) Quando ao final chegamos à prisão e ao julgamento de Jesus, nada nos diz que os milagres foram um motivo de sua execução. E chega ao ponto de quase reclamar dos evangelhos, por haver nelesum curioso senso de desconexão entre um elemento importante da narrativa do ministério público de Jesus (ou seja, os milagres, às vezes desencadeando planos para matar Jesus) e as acusações contra ele em seu julgamento.

Até mesmo Morton Smith, que traça um coerente perfíl de Jesus mago em sua já citada obra principal, Jesus, the Magician, não considera as acusações de magia como centrais frente às tradições do julgamento e: Enquanto eles todos [os sinóticos] relatam que sua pretensão de ser um (filho de) deus foi um dos fatores de sua perseguição, e João reporta que ele também foi acusado de magia na frente de Pilatos (18, 30), estas não parecem ter sido as acusações decisivas. A afirmação de João segundo a qual os sacerdotes de Jerusalém foram motivados, primeiramente, pelo medo de um levante messiânico (11, 48ss.), e a concordância de todos os evangelhos de que Jesus foi morto como um pretenso “rei dos judeus”, não deixa dúvidas sobre as causas da crucifixão.

Mas é exatamente a indicação, na cruz romana, de Jesus como “rei dos judeus” – após todos os indícios de acusação de magia até aqui levantados – que parece, ao contrário, significativa, e me faz tentar aqui um certo distanciamento da interpretação majoritária. Parece extremamente relevante, para compreender o motivo da acusação contra Jesus, focalizar a atenção sobre a atitude de Pilatos. Jesus lhe é apresentado como o “rei dos judeus”, e, portanto, fundamentalmente, como um agitador político ou um profeta milenarista, à maneira de muitos outros naquela época. Mas, após o interrogatório:

Pilatos disse aos chefes dos sacerdotes e às multidões: não encontro neste homem motivo algum de condenação.

Se é verdade que os paralelos de Mateus e Marcos não registram essa fala, mas simplesmente que Pilatos ficou muito impressionado por ele, na frente da multidão este não consegue realmente ver algum delito nas ações de Jesus, e pergunta: Que mal fez ele? (ti, ga.r kako.n evpoi,hsen*).

A culpa de Jesus não podia ser diretamente política, pois Pilatos, que representa o maior poder político na região, não consegue entender a atividade de Jesus como perigosa para os interesses romanos.

Outros interesses e poderes, os do Sinédrio, por exemplo, deviam se sentir ameaçados pelos poderes de Jesus. A ameaça não devia ser propriamente política, pois ao contrário teria atingido indiretamente Pilatos.

Qual tipo de ameaça não atingiria, de fato, os romanos? Uma ameaça interna ao sistema religioso judaico, provavelmente. Uma ameaça de heresia, é possível. Ou a do grande inimigo de todo sistema religioso estabelecido: a magia popular, extra-oficial.

Sobre agitadores políticos e profetas milenaristas: cf. Horsley & Hanson. Bandidos, profetas e messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo, Paulus, 1995.

Sobre a figura histórica do governador Pilatos, cf. Helen K. Bond. Pontius Pilate in History and Interpretation. Cambridge, Cambridge University Press, 1998.

A possível confirmação disso é o fato que a acusação contra Jesus teria partido das autoridades judaicas oficiais. Sobre isso tanto os quatro evangelhos como o Testimonium Flavianum parecem concordar. Cf. J. P. Meier. Um judeu marginal. Vol. II, III, pp. 146-147. O “problema Jesus” – usando uma expressão do mesmo Meier – devia ser compreendido muito melhor pelas autoridades judaicas oficiais do que pelo poder romano.

O que foi falado acima com relação à distinção de Raymond Brown entre os motivos dos escárnios dos judeus e dos romanos. Não quero, porém, de maneira alguma negar nem a relevância política do movimento de Jesus nem o interesse lucano em salvar os romanos. Cf. Klaus Wengst. Pax Romana: pretensão e realidade. Paulinas, São Paulo, 1991.

De fato, quando Jesus é enviado para Herodes, por estar sob a jurisdição deste mesmo sendo galileu, lemos:
Ao ver Jesus, Herodes se alegrou grandemente, pois fazia muito tempo que desejava vê-lo, por causa do que ouvia dizer de Jesus, e esperava vê-lo fazer algum milagre (ti shmei/on).

A expectativa por milagres por parte de Herodes, tetrarca da Galiléia, e portanto presumivelmente bem informado sobre o nazareno itinerante Jesus, deve ser considerada como um sinal da fama deste: o que Herodes ouvira dizer sobre Jesus era, fundamentalmente, dos seus milagres.

No coração do processo de julgamento de Jesus, mais um indício precioso sobre qual seria a grande fama do homem divino Jesus.

A fama de milagreiro de Jesus aparece novamente na cruz. Jesus é mais uma vez escarnecido, sendo desafiado a demonstrar seus poderes mágicos:
“Salva- te a ti mesmo, descendo da cruz!”(...) Igualmente, os sumos sacerdotes e os escribas escarneciam uns com os outros: “Ele salvou os outros, e não pode salvar a si mesmo!”.

Jesus é desafiado a usar seus poderes mágicos, já demonstrados salvando os outros (isto é, curando, ressuscitando etc.), salvando a si mesmo e descendo milagrosamente da cruz. Jesus é desafiado a provar que seus poderes não são uma farsa ou charlatanismo. Mais uma vez, no ápice da condenação de Jesus, um sinal da popularidade de sua magia.

39 Lc 23, 8. Sendo este o único testemunho do encontro de Jesus preso com Herodes (Mt e Mc não recebem esta suposta tradição) é provável que o encontro com o terceiro poder da região, depois de Pilatos e o Sinédrio, obedeça mais aos interesses teológico-querigmáticos de Lucas, como também demonstraria a paralela citação em At 4, 27. De toda forma, a expectativa de milagres de Herodes pode ser considerada indicativa da fama geral (e talvez especificamente galiléia) do homem divino Jesus.

“Eloi, Eloi, lamá sabactáni”

Para concluir esta análise das narrativas de julgamento e morte de Jesus, é extremamente significativa a confusão que os que estão assistindo a sua agonia fazem quanto à interpretação do grito de Jesus antes de morrer na cruz.

Na versão marcana:

E às três horas, Jesus gritou com voz forte “Eloi, Eloi, lamá sabactáni”, que significa: “Meu deus, meu deus, por que me abandonaste?”. Ao ouvi-lo, alguns dos que estavam diziam: “Está chamando Elias!” (...) “Esperai, vejamos se Elias virá tirá-lo daí”.41

quarta-feira, 14 de julho de 2010

A familiaridade de Jesus com as ciências da magia. Parte I

Este estudo, ou melhor, esta série de estudos, tem como objetivo desenvolver uma questão que sempre me intrigou. Gerd Thiessen e Annete Merz, em seu monumental "O Jesus Histórico, Um Manual", fazem a seguinte observação:

"Segundo G. Vermes, a descrição de Jesus como "homem sábio" e "realizador de feitos maravilhosos (milagrosos) (...) espelha a imagem de Jesus que circulava na Palestina como uma tradição popular.O fariseu Josefo recebeu-a sem uma apreciação, enquanto os rabinos interpretam a mesma tradição como testemunho sobre um mago e enaganador" [1].

Thiessen se refere aqui, em especial, ao importante trabalho do Prof. Geza Vermes, de Oxford, em em seu artigo "The Jesus Notice of Josephus Re-Examined" (1987).

Fatos e Versões: A proposta do Prof. Vermes abre uma "avenida", uma verdadeira auto-pista para os estudos do cristianismo primitivo.

Teriamos alguns fatos: O povo comum, contemporâneo de Jesus, tinha dele uma memória e lembrança como alguém capaz de realizar sinais e prodígios, feitos tidos como milagrosos e espetaculares. Um mestre cujos ensinos atrairam multidões. Sua atuação, porém, gerava controvérsia, que logo se transformou em conflito com as autoridades judaicas e romanas, levando a crucificação.

Para estes fatos teríamos uma interpretação dada por aqueles que, dentre o povo, seguiam a Jesus de Nazaré (os cristãos). O sinais e prodígios realizados por Jesus e seus ensinos provam que ele é "profeta poderoso em Palavras e Atos, diante de Deus e de todo o povo" (Lc. 24:24; Atos 2:22), que estas e outras coisas, bem como sua morte, aparentemente desonrosa, aconteceram para que se cumprisse a escritura (At. 2:23). "Ele nos apareceu vivo, pois Deus o ressuscitou dos mortos, em cumprimento da Escritura" (At. 2:24-32), testemunhavam os apóstolos. Tais fatos, interpretados a luz da escritura comprovariam uma reinvidicação ambiciosa: Jesus é o Cristo, em cumprimento das escrituras.

Outros, porém davam aos referidos fatos, interpretação diversa. Jesus foi preso e crucificado pelos próprios opressores do povo de Deus, a qual, supostamente, o Cristo deveria derrotar. Portanto, seu fracasso em impor seu reino e sua morte desonrosa, reservada a salteadores e agitafores, provariam que ele não podia ser quem dizia ser. Era então um falso profeta, magico e charlatão, e maldito, pois foi pendurado no madeiro. A medida que o cristianismo como movimento se tornou uma religião em separada, predominantemente gentia, essa visão se torna mais comum. Embora, possivelmente, alguns contemporâneos de Jesus pensassem assim, a predominância de tal visão seria resultado de uma reinterpretação tardia e deturpada da memória popular, que se intensifica com o passar do tempo, a medida que cristãos e judeus se distanciam.
No entanto, na visão de Geza Vermes, muitos dos contemporâneos de Jesus, provavelmente a maioria, interpretavam os fatos de uma maneira menos categórica. Acreditavam que Jesus tinha sido um homem santo, um hasside galileu, assim como Onias e Hanina Ben Dosa. Um sábio, realizador de feitos extraordinários, com muitos seguidores (como, parece, escreveu Josefo). Contudo, não o tinham como Messias. Outros ainda tinham dificuldade de distinguir Jesus de outros líderes carismáticos como Teudas ou Judas Galileu e pensavam que, se fosse de Deus, o legado de Jesus perduraria, ao contrário do que acontecera com Teudas ou Judas. O parecer atribuido a Gamaliel (Atos 5:33-42) pode ter sido uma opinião bem comum.

A hipótese é atrente, mas deve ser testada com as fontes disponíveis. Nossa análise será das fontes do II século e o Talmude.

Polêmica do II Século: O Professor Maurice Goguel (1880-1955), da Sorbonne (Universidade de Paris) observou certa vez que desde seus primórdios o cristianismo foi objeto de oposição tanto gentia quanto judaica, em Jerusalém, Judéia e todo o mundo romano. Por meio de Luciano, Celso, das várias apologias do século II (Justino, Taciano, Aristides) e pelo Dialogo entre Justino e o judeu Trifo, diz Goguel, podemos ter uma visão bem detalhada dos críticos do cristianismo no Segundo Século. Da mesma forma que há uma tradição apologética existe um outra polêmica, a qual a primeira tentava refutar [2]

Os mais importantes exemplos entre a polêmica a respeito de Jesus de Nazaré, no século II, são encontrados na obra do autor pagão Celso, e nos escritos dos apologistas Justino Martir e Tertuliano.

Sobre Celso, John Dominic Crossan escreve:

Em algum momento entre 177 e 180 E.C, com o Imperador Marco Aurélio já perseguindo os cristãos, o filósofo pagão Celso escreveu sua doutrina verdadeira, um ataque intelectual a religião dos cristãos [3]

A obra de Celso não sobreviveu. Mas várias partes de a Doutrina Verdadeira são conservadas na resposta de Origenes, "Contra Celso", escrita por volta de 230 a 240 DC. O mais interessante é que Celso afirma que sua fonte de detalhes supostamente biograficos de Jesus seriam relatos que circulavam entre os judeus. O que é relevante pois suas afirmações podem ser comparado com as apologias de São Justino Martir (140-160 DC), notadamente seu livro "Dialogo com Trifo" (150 DC), e com os escritos de Tertuliano de Cartago, por volta do ano 200, que também buscaram responder acusações feitas a Jesus por seus conterrâneos.

Entre as informações que Celso, Justino e Tertuliano apresentam estão:

1) Jesus é acusado de ter nascido de uma união ilegítima, da noiva de um carpinteiro e um soldado romano (Celso).

2) Os feitos extraordinários atribuidos a Jesus seriam resultado de seu conhecimento de magia (Celso, Justino e Tertuliano).

3) Os cristãos seguiam a Jesus, auto-proclamado Filho de Deus, por conta de seus feitos incríveis (Justino, Tertuliano e especificamente em Celso, resultado de seu aprendizado de magia no Egito), mas ele seria na verdade um aliciador e mago.

4) Se Jesus era o Messias e o Filho de Deus, não poderia ter sido crucificado, morte vergonhosa reservada aos mais baixos criminosos (Justino e Celso).

I) Origens e Acusação de Ilegitimidade:

"[Jesus] nasceu em uma certa vila judia, filho de uma pobre mulher do campo, que ganhava sua subsistência como fiandeira, e que foi expulsa de casa por seu marido, que exercia o ofício de carpinteiro, porque foi acusada de adultério; após ter sido abandonada por seu marido, e vagando por algum tempo, ela desgraçadamente deu a luz a Jesus, seu filho ilegitimo. Porque [Jesus] era pobre, empregou-se como operário no Egito e lá testou habilidades em certos poderes mágicos dos quais os egípcios se vangloriam, ele voltou cheio de presunção por causa desses poderes e por conta deles, deu a si mesmo o título de Filho de Deus."Durante a sua gravidez foi expulsa de casa de casa pelo carpinteiro a qual estava prometida, como sendo culpada de adultério, e deu a luz a uma filho de um soldado chamado Pantera[4]

No que se refere a questão de Ben Pandera e a suposta ilegitimidade de Jesus, Geza Vermes observa:

"Curiosamente, o nome Pantera/Pandera encontra confirmação no período, como nome de soldados romanos, e provas epígraficas, datando do ano 9, falam de um certo Tiberius Julius Abdes Pantera, um arqueiro sidoniano de uma legião estacionada na distante Germânia (...) A possibilidade de Pantera ser o Pai de Jesus foi retomada por James Tabor, em The Jesus Dynasty" [5]

Vermes acredita que a associação a Pandera surgiu de uma corruptela do grego "partenos" ou virgem, seria uma reação portanto as narrativas do evangelho de Mateus. J.P Meier, Notre Dame University, concorda, e aponta as dificuldades com essa tese:

"Como Celso relata o que um judeu lhe havia contado um pouco antes de 178, é de presumir que essa história já vinha circulando entre alguns judeus helenistas na Diaspora, em meados do século II. Com muita probabilidade, ela não data de época anterior, pois Justino, o Martir, trava um debate bastante detalhado co m Trifo, o judeu, sobre a concepção virginal, sem que este último seja apresentado como tendo respondido a acusação de ilegitimidade. Contudo, o fato da história ser primeiro atestada entre os judeus da diaspora, e não na Palestina, e só em meados do século II, evoca a apossibilidade de ela ser uma polêmica parodia judaica do relato cristão de concepção virginal, especialmente como apresentada no Evangelho de Mateus. (...) A origem da paródia na Diaspora e não na Palestina , torna improvável que tenhamos nessa passagem um fragmento de informação histórica preservado intacto "secretamente" pelos judeus ao longo de um século e meio [6].

O Novo Testamento registra pelo menos uma insinuaçãodos adversários de Jesus, de que ele teria sido concebido em uma relação ilícita, em João 8:40-41. Então a acusação aberta de ilegitimidade pode remontar aos contemporâneos de Jesus, o mesmo, no entanto, é duvidoso em relação a Pantera. Professor André Chevitarese, da Universidade Federal do Rio de Janeiro , apresenta outra motivos para uma dependência entre a tradição de Pantera relatada pela fonte de Celso e o evangelho de Mateus [7], além das trazidas por Vermes e Meier:

i) uma ênfase na concepção virginal;
ii) uma possivel insinuação à consternação de José, quando ele descobre que Maria está gravida, e seu plano para divorciar-se dela (Mateus 1:18-20),
iii) a fuga para o Egito (Mateus 2:13-15)
iv) a referência a José como carpinteiro, que só ocorre no Novo Testamento em Mateus 13:55

b) Feitos milagrosos e magia:

A respeito do extenso debate entre Justino Martir e Trifo (140-150 DC), já referido por Meier, o Prof. Graham Stanton, de Cambridge [8], observa que o primeiro afirma que as curas milagrosas de Jesus foram o cumprimento das profecias messiânicas de Isaias 35:1-7. Os milagres de Jesus seriam então um reconhecimento de sua condição de Messias, entretanto, muitos que os viram chegaram a conclusão oposta:

"Eles atribuiram [os milagres] a utilização de poderes mágicos, porque eles se atreveram a dizer que Jesus era um mágico e enganador do povo" [9].
Ainda segundo Stanton, do contexto, não há dúvida que o termo "enganador" esta sendo usado em comparação com Deuterônomio 13:5, com enfase no falso profeta que leva o povo de Deus a pecar.

Acusação semelhante é registrada e respondida por volta de 200 DC - uma geração após Celso e duas de Justino e Trifo - por Tertuliano, em seu livro Apologeticum:

"Assim, então, sob a força de sua rejeição convenceram a si próprios desse seu baixo procedimento: que Cristo não foi mais do que um homem, seguindo-se, como conseqüência necessária, que tivessem Cristo na conta de mágico, devido aos poderes que demonstrou"[10].

A acusação de Celso de que os judeus diziam que Jesus era na verdade um mágico e enganador do povo, foi também registrada e respondida, 30 anos antes, por Justino, em Diálogo com Trifo, e cerca de 20 anos depois na apologia de Tertuliano. Da mesma forma, é encontrada em passagens do Talmude, que será discutida em seguida, de um certo Yeshu que foi pendurado no madeiro (crucificado) na vespera da Páscoa, por praticar mágica e desencaminhar Israel.
A respeito, Geza Vermes observa:

"A familiaridade de Jesus com as ciências da magia, a representação negativa de sua atividade como realizador de milagres são atribuidos a seu contato com feiticeiros egípcios. O Celso de Origenes faz essas acusações no fim do século II." [11]

Orígenes (...) cita Celso, o crítico pagão de Jesus no século II, dizendo que ele afirmou que Jesus fazia seus "paradoxa" por mágica (Contra Celsum 1:6.17-18). A mesma acusação é levantada contra ele por detratores judeus posteriores (BSahedrin 43b) [12]

Nessa linha, Stanton afirma [13] que a acusação encontrada em Trifo (Jesus era um mágico enganador do povo) é uma tradição com raízes profundas. Durante seu ministério, diz Stanton, foi acusado de ser um mágico possuido pelo demônio. É provavel, ainda que não totalmente certo, que tenha acusado também de ser um falso profeta possuído pelo demônio. As alegações dos oponentes contemporâneos de Jesus confirmam que ele foi visto pior muitos como uma ameaça a ordem social e religiosa. A afirmar que agia e falava com base de um relacionamento especial com Deus foram corretamente percebidas como radicais. Para alguns eram tão radicais que tiveram que ser atacadas com base de uma explicação alternativa de sua fonte: Jesus era um mágico possuido pelo demônio e falso profeta. Avaliação semelhante pode ser feita em relação aos ataques respondidos por Tertuliano.

Na mesma linha, Celso centra seu linha de ataque na comparação entre os feitos de Jesus com os "realizados pelos mágicos egípcios que no meio das praças e feiras, por alguns trocados, demonstram conhecimento nas mais venerandas artes, expulsam demônios, curam enfermidades, e invocam a almas de heróis", e pergunta, "Visto, então, que essas pessoas podem realizar tais feitos, teremos que concluir que são "filhos de Deus" ou que procedem de homens iníquos sob a influência de espiritos malignos?[14]".
Em outras palavras, Celso esta ridicularizando os cristãos, dizendo, em outras palavras, : "vcs falam que esses milagres cumprem as profecias e demostram que Jesus é o Messias; Mas no Egito, os mágicos fazem feitos semelhantes, sem que possam ser chamados Filhos de Deus; Então, Jesus também deve ter sido um mágico possuido pelo demônio" É inevitavel a lembrança das acusações dos escribas no evangelho,
"Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos demônios que expulsa os demônios" (Mc 3:22).

Morte:

Celso também ridiculariza a crença dos cristãos em um homem que foi crucificado como criminoso:

"Se, após inventar defesas que são absurdas, e pelas quais vocês são ridiculamente enganados, ainda que imaginando que vocês realmente fizeram uma boa defesa, porque vocês não consideram aqueles outros individuos que também foram condenados, e sofreram uma morte miserável, como maiores e mais divinos mensageiros dos céus (que Jesus) ?""e da mesma forma outros de seus companheiros seria capaz de afirmar, até mesmo de um assaltante e assassino cujo o castigo tenha sido aplicado, que tal não era um bandido, mas um deus, porque previu para seus companheiros de roubo que ele seria punido, como realmente foi" [15] .

No Dialogo entre Justino e Trifo, também encontramos uma amostra de como a idéia de um Cristo Crucificado soava escandalosa para seus contêmporâneos. Justino alude as profecias de Daniel 7:9-27, e Trifo prontamente responde:

"Estas mesmas escrituras, meu caro, nos ordenam esperar aquele que, como Filho do Homem, receberá do Ancião de Dias o Reino Eterno. Mas este que vocês chamam de Cristo não teve honra ou glória, tanto assim que a maldição contida na Lei de Deus caiu sobre ele, porque foi crucificado " [16]

É um eco perfeito, ainda que mais polido, as críticas de Celso. Jesus não pode ser o Messias, pois Messias não são crucificados como bandidos e salteadores comuns.

Conclusão:

É interessante que Celso, ou as fontes judaicas utilizadas por ele, ao invés de negar os milagres de Jesus, opta, primeiro, por desacreditar a fonte de seus poderes, atribuindo a magia e o conluio com forças demoniacas, e em seguida, sua significância, ao dizer que qualquer mágico de esquina poderia realiza-los. É sugestivo também o fato de que as acusações levantadas pelo filósofo judeu anônimo citado por Celso, apresentarem certa similaridade com as encontradas em Dialogo com Trifo, das críticas registradas em Tertuliano, e o Talmude.

Da mesma forma, Josefo fala de Jesus como "realizador de feitos incríveis/controversos". Isso tudo indica que Jesus tinha fama de "milagreiro" (ou feiticeiro) em circulos judaicos. Essa crença é atestada também em circulos pagãos. Ao responder Celso, Orígenes cita Flegon de Trales, cujos escritos datam entre 120-150 DC "Flegon, no décimo terceiro ou décimo quarto livro, se não me engano, de suas cronicas, não apenas atribui a Cristo o conhecimento de eventos futuros, ainda que confundindo alguns coisas referentes a Pedro como se refererissem a Jesus, também afirma que o resultado correspondia as suas previsões [17]". Tudo isso atesta que em meados do século II, Jesus era conhecido como alguém com poderes premonitórios e miraculosos.

E como observa o [18] Professor Robert Van Voorst, Western Theological Seminary, além das acusações de nascimento ilegítimo e prática de feitiçaria, Celso lança um violento ataque sobre vários outros aspectos da vida terrena de Jesus - ancestralidade, concepção, nascimento, infância, ministério, morte, ressureição e influência posterior. Van Voorst escreve

"De acordo com Celso, os pais de Jesus eram de uma aldeia judia (Contra Celso 1.28), e sua mãe era uma pobre mulher que obtinha seu sustento como fiandeira (1.28). Ele realizou seus milagres através de feitiçaria (1.28; 2.32; 2.49; 8.41). Sua aparência física era de um homem feio e pequeno (6.75). Para seu descrédito, Jesus manteve todos os costumes judaicos, inclusive o sacrifício no Templo (2.6). Ele reuniu apenas dez seguidores e ensinou a eles seus piores hábitos, como mendigar e furtar (1.62; 2.44). Seus discipulos, que contavam só "dez marinheiros e coletores de impostos" foram os únicos a qual ele convenceu de sua divindade, mas agora seus seguidores convertem multidões (2.46). Os relatos de sua ressureição vieram de uma mulher histérica, e a crença na ressureição foi o resultado da mágica de Jesus, os desejos de seus seguidores, ou alucinação coletiva, tudo com o propósito de impressionar outros e aumentar as chances de outros tornaram-se mendigos (2.55).” [18]

A críticas acimas são tardias, escrita 100 a 150 anos depois da morte de Jesus. Contudo, Celso é a única fonte não-cristã até então que escreve especificamente sobre o movimento de Jesus. Josefo, Tácito, Plínio, Suetônio, Luciano, Mara, fazem menções incidentais em relação a Jesus. E Justino e Tertuliano se esforçam para defender o cristianismo de acusações semelhantes, que circulavam entre alguns círculos judaícos hostis ao cristianismo.

Tácito e Suetônio estavam interessados nos reinados de Claúdio e Nero; Josefo no governo de Pilatos e na destituição do Sumo-Sacerdote Ananias, nas duas menções que faz a Jesus; Luciano escrevia sobre o Filósofo Proteus, e Mara instruia seu filho nas virtudes da sabedoria apesar do ataque dos poderosos, citando Jesus como exemplo. Mas Celso critica sistemática e detalhadamente os cristãos. Apresenta argumentos filosóficos, aponta supostas inconsistências nas narrativas evangélicas, faz comparações com outros cultos e seitas existentes à época, apresenta alguma familiaridade com os vários grupos cristãos existentes. No que se refere a vida de Jesus, apresenta "fatos" não existentes em qualquer escrito cristão, e derivados de tradições que circulavam entre os judeus em meados, talvez no início do II século. Tais tradições são atestadas também, no mesmo período, pelas defesas de Justino e Tertuliano.

É razoavel inferir que critícos como Celso utilizaram o que havia de melhor à época para atacar o cristianismo. O mesmo pode ser dito dos oponentes de Tertuliano e Justino, que se esforçam por rebater críticas incisivas contra seu Mestre. O que indica fortemente mesmo os mais ferrenhos inimigos do cristianismo, não tinham motivo para questionar a historicidade de Jesus, seus ensinamentos como centrais no cristianismo, e que ele realizou pelos menos alguns feitos considerados milagrosos.
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CONTINUA
Referências:[1] Gerd Thiessen & Annete Merz (1996), "O Jesus Histórico, Um Manual, fl 94[2] Maurice Goguel, Jesus the Nazarene, Myth or History? fls. 69-71[3] John Dominic Crossan, Jesus, uma biografia revolucionária, fl. 43[4] Origenes, Contra Celso Livro 1, Capítulos 28 e 32[5] Geza Vermes, Natividade, fl. 178, nota 16[6] John P. Meier, Um Judeu Marginal, Vol. I, fls. 223-224[7] André Chevitarese, Menino Jesus e a Ilegitimidade Física do Fiho de Deus. O Uso do Modelo Iconográfico de Tipo Universal (Mãe/Filho) pelos cristãos, In Chevitarese, Corneli & Selvatici, Jesus de Nazaré, Uma Outra História, fl. 51[8] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 156[9] Justino, Dialogo com Trifo, Capítulo 69, verso 5[10] Tertuliano, Apologetica 21:17[11] Geza Vermes, Natividade, fl. 134[12] Geza Vermes, As Varias Faces de Jesus, fl. 306, nota[13] Graham Stanton, Gospel Thuth?New Light on Jesus and the Gospels, fl. 163[14] Orígenes, Contra Celso, Livro 1, Capitulo 68[15] Orígenes, Contra Celso, Livro 2, Capítulo 44[16] Justino Martir, Dialogo com Trifo, Capítulo 32[17] Orígenes, Contra Celso, Livro 2, Capítulo 14[18] Robert Van Voorst, Jesus Outside of New Testament, fl. 66