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sábado, 10 de dezembro de 2011

John Collins e a pluralidade textual nos tempos de Jesus


Singularidade dos Manuscritos de Qumran.

Os manuscritos de Qumran introduziram novos elementos nos estudos sobre o cristianismo antigo. Antes de sua descoberta o conhecimento do universo religioso da Judéia do século I era muito limitado. Tanto os evangelhos canônicos quanto os apócrifos, por exemplo, eram pouco esclarecedores. Seu principal objetivo era a reafirmação das mensagens de Jesus – tais como diferentes tradições as entendiam - e não uma reflexão sobre as forças e tendências conceituais que as envolviam. Outros textos que continham elementos memorialistas, como o Talmude, igualmente eram obscuros ou omissos, como anteriormente apontamos.

A obra de Flávio Josefo foi, nesse sentido, bastante esclarecedora. Através dela tomamos conhecimento pormenorizado da primeira guerra judaica (66-73). A guerra pôs fim a séculos de criatividade teológica e confusão política, o “período do segundo templo” (516 a.e.c.- 70). Josefo nos apresentou um relato básico dos movimentos religiosos da época. E assim alguns processos e eventos retratados no Novo Testamento puderam ser parcialmente compreendidos e explicados. Mas Josefo sempre foi fonte única, limitada e não detalhada, e sua convergência com outros fontes, como Philo, por exemplo, nem sempre entendida por satisfatória.

Existia, portanto, uma área de sombra documental, bastante compreensível, aliás. A primeira guerra judaica varreu da história toda uma civilização, com suas cidades e monumentos, seus líderes religiosos, escribas e grupos políticos. Eliminou populações inteiras e seus relatos e incendiou, certamente, muitas bibliotecas. No final do século XIX, no entanto, foram realizados dois achados documentais importantes. O Livro de Henoc, em sua versão etíope, que estava guardado num mosteiro da Etiópia, e o Documento de Damasco, encontrado na genizá de uma sinagoga no Cairo.

Henoc e o Documento de Damasco introduziram perturbações significativas no entendimento do cristianismo antigo. Eram textos consistentes que retratavam realidades até então desconhecidas. O primeiro era uma construção teológica afirmativa que podia ser vista ecoando na literatura cristã, às vezes de forma subjetiva, às vezes literal. O segundo revelava a existência de um grupo de judeus enigmáticos, cuja plataforma teológica não coincidia com nada conhecido até aquele momento. Mas esses achados, embora importantes, não foram particularmente elucidativos. Eram cópias medievais de textos certamente antigos, mas muito distantes de seus contextos originais e sem elos claros com eles.

A importância dos achados de Kirbet Qumran, portanto, foi imensa. Primeiro, foi percebido que eram documentos originais, vindos diretamente do período anterior à primeira guerra judaica. As datações paleográficas dos manuscritos foram consolidadas por Frank M. Cross.

Cross postulou, em função de outras evidências, a existência de três tipos de escrita na documentação. O mais antigo denominou de arcaico (c. 250-150 a.e.c.), o intermediário de hasmoneu (c. 150- 50 a.e.c.) e o mais recente de herodiano (c. 50 a.e.c. – 70 e.c.). Os testes de Carbono 14 foram mais precisos, e apontaram a existência de documentos em Qumran elaborados entre remotos c.388 -353 a.e.c. e o mais próximo 21 a.e.c-61 e.c. Tratavam-se, portanto, de textos oriundos exatamente do período dentro do qual Jesus atuou.

Em segundo lugar os manuscritos, na sua variedade e quantidade, em torno de 900 documentos, permitiram a gradual percepção de elos conceituais e teológicos entre tradições e linhagens textuais diversas. Até aquele momento em sua maioria desconhecida e que permitiram uma compreensão significativa da gênese e desenvolvimento dos textos bíblicos da tradição masorética, grega e samaritana.

Mas, no que nos interessa, apresentaram um mosaico não apenas da rica tradição apocalíptica judaica da época, mas também da pluralidade textual que imperava nos tempos de Jesus – principalmente no tocante à literatura bíblica. No primeiro caso reforçou as teorias que viam em alguns elementos do Novo Testamento traços marcantes de literatura apocalíptica, permitindo correlações documentais. No segundo introduziu novas reflexões sobre a natureza e realidade dos textos sagrados na época e sua real importância e dinâmica na gênese dos primeiros movimentos cristãos.

Quem e porque depositou esses textos nas encostas do mar morto foi matéria de discussão desde o princípio. A “hipótese essênia”, fundada pelos primeiros editores dos textos, entre eles o Padre Roland de Vaux, é a mais consensual entre os estudiosos. Foi consolidada nos estudos de Geza Vermes, Josef T. Milik e Frank M. Cross e identifica nos essênios citados por Josefo os antigos habitantes de Kirbet Qumran, igualmente responsáveis pela ocultação dos textos nas cavernas próximas. A “hipótese Groningen”, sustentada por Florentino Garcia Martinez, nega a identidade entre a comunidade de Qumran com os essênios, entendendo-a como fruto de uma ruptura doutrinária, mas afirma a responsabilidade do grupo pelo material das cavernas.

A “hipótese Jerusalém”, defendida principalmente por Norman Golb, sustenta, acompanhando algumas opiniões anteriores, que o material das cavernas não veio dos essênios e da comunidade de Qumran, mas da biblioteca do Templo de Jerusalém e de acervos particulares. De qualquer forma, todos concordam que os textos de Qumran comprovam a existência de um debate teológico intenso no período final do segundo templo. Cujos problemas e desenvolvimentos conceituais não são alheios à literatura neotestamentária.

Krister Stendhal, segundo James Vanderkam, chamou a atenção para o fato de que: “os manuscritos contribuem para o entendimento dos antecedentes do cristianismo, mas essa contribuição é tanta, que chegamos a um ponto onde o significado das semelhanças definitivamente resgata o cristianismo de falsas pretensões de originalidade no sentido popular e nos remete a uma nova compreensão de sua verdadeira base, na pessoa e nos eventos da vida do seu Messias”.

Isto é, Qumran permite a compreensão da genealogia teológica do cristianismo e um entendimento do significado de elementos conceituais que sobreviveram na memória e foram trabalhados no pensamento dos evangelistas.

2. Luz e Trevas.

Desde a pioneira descoberta do Livro de Henoc, os estudiosos se deram conta da existência de antecedentes dualistas expressivos na tradição judaica prévia à emergência do cristianismo. As origens desse dualismo não parecem remontar à tradição sacerdotal do Templo, nem aos antigos legisladores e historiadores deuteronomistas, que estão na base da autoria do Pentateuco. A maior parte dos especialistas na área visualiza aqui evidentes influências do mazdeísmo persa, relacionados aos contatos estabelecidos durante o período de dominação arquemênida. Esse tema é obscuro, no entanto, pois, como anotou John Collins, “não consigamos traçar os canais através dos quais o zoroastrianismo foi realmente transmitido”. Mas foi de uma forma ou de outra, recebido por escribas e religiosos judeus.

O mito de origem do mal, expresso em I Henoc, o entende como oriundo de uma revolta dos anjos, os “guardiões”. Esse mito teve, como compreendemos a partir dos textos de Qumran, profunda influência sobre diferentes linhagens teológicas na época do segundo Templo. Alguns, como Margareth Baker, argumentaram que seu elemento judaico, o ciclo mítico de Henoc, mencionado em Gênesis 5, 21-24 tem raízes na época do primeiro Templo

O texto bíblico em si pertence ao chamado “Livro das Gerações”, que é provavelmente de origem sacerdotal e talvez evoque alguma antiga genealogia já conhecida. Independentemente desse registro, I Henoc, como proposição teológica, é entendido por muitos, no entanto, como uma afirmação opositora à teologia sacerdotal do perdão, entronizada no Pentateuco. Gabrielle Boccaccini propõe que suas origens estão no século IV a.e.c., no próprio momento da consolidação do texto sacerdotal, e não é impossível que reflita dissensões na esfera das lideranças sacerdotais com relação às iniciais disputas de poder pelo controle do segundo templo. De fato I Henoc se opõe ao Pentateuco.

A sua ética tende a liberar o ser de suas responsabilidades diante do mal, pois o atribui às ações de outros, isto é dos anjos rebeldes e os demônios. Afirma que a solução definitiva do problema pode ser unicamente alcançada em uma dimensão global e se posiciona na aceitação de algum tipo de predestinação.

Muito da literatura sectária de Qumran é relacionada a esse dualismo presente em I Henoc. Ele está presente, por exemplo, de alguma forma, na postura daqueles judeus que atuaram para instaurar um isolamento próprio absoluto diante dos outros, tidos por impuros. Tema de muitos textos qumranitas. Também é característico daqueles documentos que afirmam ser a história o cenário de um conflito entre a luz e as trevas e que culminará numa grande batalha escatológica. Esse é um motivo central do dualismo apocalíptico e é assim declinado na Regra da Comunidade (1QS): “Do manancial da luz provém as gerações da verdade, e das fontes das trevas as gerações da falsidade. Na mão do príncipe das luzes está o domínio sobre todos os filhos da justiça, eles andam por caminhos de luz. E na mão do anjo das trevas está todo domínio sobre os filhos da falsidade, eles andam por caminhos das trevas”.

O alcance de semelhantes concepções pode ser discernido na literatura neotestamentária. Como anotou David Flusser, elas são claras especialmente em Paulo, oão Evangelista e no autor da Epístola aos Hebreus. De fato, o caráter rarefeito desse dualismo em outros autores do Novo Testamento permite a identificação, naqueles, de um perfil teológico específico de natureza apocalíptica. Parece que esses elementos conceituais de aplicação geral no universo sectário se manifestam em determinada fase da constituição das comunidades cristãs, aparentemente após o desaparecimento de Jesus.

Paulo, explicitamente, assume tal plataforma teológica: “que comunhão pode haver entre a luz e as trevas? Que acordo entre Cristo e Belial?... Que há de comum entre o templo de Deus e os ídolos? Ora, nós é que somos o templo do Deus vivo...” (2Cor, 6:14-16). A identificação do mal com Belial, por exemplo, só ocorre uma única vez no Novo Testamento, mas é comum na literatura apocalíptica de Qumran. João, da mesma maneira, acompanha os elementos expostos na Regra da Comunidade: “se... andamos nas trevas mentimos e não praticamos a verdade. Mas se caminhamos na luz como ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros” (1Jo, 1:6-7) e mais adiante, concluindo: “Nós sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro está sob o poder do maligno” (1Jo 5:20). Isso também aparece na literatura cristã primitiva extra-canônica, como no Pastor de Hermas: “dois anjos existem em cada homem: um da justiça e outro da maldade” (M6, 2). Tais formulações aproximam-se de transcrições literais dos pressupostos dualistas de muitos documentos de Qumran. Comprovam a força e o alcance do pensamento apocalíptico sectário no desenvolvimento do cristianismo.

3. Anjos e Messias.

Um outro tema importante na aproximação entre os manuscritos de Qumran e o cristianismo antigo diz respeito às concepções judaicas do período do segundo templo sobre os anjos e seu papel. Como o próprio Novo Testamento afirma, não se tratava de crença geral (Atos, 23:8) e textos sectários importantes encontrados em Qumran, como o Rolo do Templo (11Q19), não os mencionam. No entanto, as tendências dualistas, em suas diversas variantes, colocaram em evidência um cenário de confrontação entre o bem e o mal que tem nos anjos os seus mais proeminentes protagonistas. Em I Henoc a rebeldia de Azazel e Semiaz é confrontada por um exército angelical, destinado a restaurar a ordem, chefiado pelo anjo Miguel.

Essa elevação de personalidades angelicais a um papel central no drama cósmico, o do “príncipe da luz”, por exemplo, corresponde a um padrão generalizado – que transborda na literatura cristã antiga. E não coincide muito, de fato, com o papel subordinado e de meros intermediários e mensageiros que os anjos costumam ter na literatura sacerdotal. John Crossan analisou especialmente a convergência de Henoc com Daniel, nesse sentido. Associação que parece delinear as tendências teológicas presentes na literatura neotestamentária. O tardio “Livro das Similitudes” de I Henoc, descreve uma criatura celestial de imenso poder:

“Vi Aquele a quem pertence o tempo antes do tempo. Sua cabeça era branca como a lã e com ele estava um outro indivíduo, cujo rosto era como o de um ser humano... perguntei... a um... dos anjos... „Quem é este?... e ele me respondeu: „este é o Filho do Homem a quem pertence a virtude, em quem vive a virtude... este filho do homem que viste é aquele que expulsará os reis e os poderosos de seus assentos confortáveis e arrancará os fortes de seus tronos”.

A denominação “como um filho do homem” aparece, como se sabe, em Daniel 7,13-14: “Eu continuava contemplando nas minhas visões noturnas quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho do Homem... a ele foi outorgados o poder, a honra e o reino, e todos os povos nações e línguas o serviram”.

Essa convergência de designação assinala um comum entendimento de que uma criatura celestial, provavelmente um anjo, talvez Miguel, viria a assumir um papel central na solução do drama cósmico. Segundo Collins as figuras do “príncipe da luz” e “do como um Filho do Homem” são correspondentes e afirmam a proposta, comprovada na literatura de Qumran, de entender um futuro messias como uma criatura mais que humana, angelical. Isso é fundado provavelmente na tradição mazdeísta, na qual o saoshyant, o messias escatológico, é uma emanação de Ahura Mazda. Mas se distancia claramente de uma outra tradição que entende o messias apenas como o detentor de um título geral, o “ungido”, isto é, um rei ou sacerdote, - que tanto podem ser os antigos reis e sacerdotes de Israel quanto os futuros -, ou um soberano estrangeiro, Ciro, por exemplo.

De certo que também existe um movimento no pensamento apocalíptico no sentido de elevar figuras humanas a uma dimensão celestial, e isso parece em parte conseqüente com elementos judaicos mais amplos. A literatura sacerdotal também admitia essa possibilidade, no caso de Henoc e no do profeta Elias, ambos tidos como tendo ascendido aos céus e passado a existir junto ao Eterno. O pensamento apocalíptico, no entanto, construirá toda uma teologia em torno desses personagens. Além desses incluirá Melquisedec, protagonista de um ciclo mítico específico. Essa personagem é de fato especialmente relevante na literatura apocalíptica, notavelmente nos manuscritos de Qumran. É mencionado de uma forma misteriosa no Gênesis. É ele, “rei de Salém”, que foi ao encontro de Abrão trazendo pão e vinho, “ele era sacerdote do Eterno” e pronunciou uma benção sobre o patriarca (Gen, 14: 18-20). Em mais de um texto de Qumran, Melchisedec é também equacionado ao “príncipe das luzes”, isto é, um anjo. Em 4Q374, o Apócrifo de Moisés, é entendido como um “guardião”, figura celestial que se defronta com Melchiresha, o mal. Em 11Qmelch, são aplicados a ele todos os atributos redentores do “filho do homem”: “Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus. Nesse dia eles serão liberados da mão de Belial e das mãos dos espíritos de seu lote. Em sua ajuda virão todos os elohim. Ele é quem prevalecerá nesse dia sobre todos os filhos de Deus, e ele presidirá a assembléia (...)”.

A sua importância ecoa na Epístola aos Hebreus 7, onde “se assemelha ao filho de Deus”, sendo “sem pai, sem mãe, sem genealogia”, ou seja, provavelmente, também uma criatura celestial. Donde se conclui pela dependência desse texto dos elementos literários a ele associados em Qumran.

Esses dois movimentos, o do anjo redentor e o do humano que ascende ao espaço da divindade, parecem assim apontar para certas noções presentes na literatura neotestamentária. De um lado a busca de um messias que não fosse humano, mas sim um integrante da corte celestial e, portanto, dotado de uma pureza exemplar e absoluta. De outro a crença num messias que, sendo originalmente humano, pelas suas virtudes foi capaz de ascender a um elevado estado de santidade. Passando então para um plano superior e mantendo-se então na convivência eterna de Deus. As dúvidas sobre a precisa natureza de Jesus provavelmente eram fundadas em semelhantes concepções - de conhecimento geral nos derradeiros momentos do segundo templo.

Por fim, em pelo menos um texto, o 4Q174, Florilegium, o messias é descrito como “filho de Deus”, numa interessante e direta correspondência com a literatura antiga cristã: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho. Isto se refere ao broto de Davi que se erguerá com o intérprete da Lei que surgirá em Sion nos últimos dias”. Os dois messias, aqui declinados, o “rebento de Davi” e o “intérprete da Lei”, não obscurecem a singular denominação que se tornará emblemática para os primeiros seguidores do cristianismo. Ela se repete num fragmento aramaico, o 4Q246, onde se trata do messias dizendo que “grande será chamado e será designado com o seu nome. Será denominado filho de Deus e lhe chamarão filho do Altíssimo”. Desde a descoberta desse texto foi anotado que há dele um muito provável eco em Lucas: 1,32: “Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai”. Todos esses elementos permitem-nos caracterizar parcelas substanciais da literatura cristã como dependentes, do ponto de vista da genealogia teológica e da história, de um corpo literário específico abundante no período do segundo templo.

4. Em Direção a Novos Problemas.

Podemos, portanto entender parcela substancial da teologia da literatura neotestamentária a partir dos manuscritos de Qumran. Mas certamente isso não esgota o assunto. Tanto em direção ao desenvolvimento posterior do cristianismo quanto no tocante ao Jesus histórico.

No posterior porque parece claro que nenhum dos elementos aqui expostos permite compreender os particulares desdobramentos que conduziram ao desenvolvimento do conceito da Santíssima Trindade e à crença na divindade de Jesus. De resto temas mapeáveis historicamente e relacionados à outras influências e desenvolvimentos particulares. No tocante ao Jesus histórico porque se é claro que a literatura paulina ou joanina está repleta de elementos apocalípticos e se remete textualmente a textos agora conhecidos do segundo templo, não é certo que ela expresse a realidade teológica da pregação de Jesus.

Esse tema é significativo, principalmente devido ao fato de algumas passagens neotestamentárias serem distantes dessa temática dualista ou não compartilharem dos elementos formais dos textos apocalípticos. Brad Young, por exemplo, estudou um problema específico dos evangelhos: as parábolas. Ao faze-lo procurou demonstrar a convergência teológica entre as parábolas de Jesus e as parábolas rabínicas. Ele considerou que a utilização de parábolas é um recurso específico da tradição rabínica. Os rabinos se entendem como herdeiros da tradição farisaica, principalmente de seus procedimentos de digressão teológica.

Como esse recurso, a parábola, não é próprio e nem encontrado na literatura apocalíptica, se entende que o mesmo possui origem farisaica. Assim sendo, a ampla utilização que Jesus faz das parábolas só pode ser entendida como indicação que ele compartilhava, ao menos eventualmente, do universo conceitual dos fariseus. Young, portanto, acompanhando Flusser, sugeriu inusitadas afinidades entre o Jesus histórico e as tradições farisaicas. Tanto em método de exposição quanto em conceitos.

Ele analisou diversas parábolas de forma pormenorizada. Entre elas a difícil “parábola do administrador infiel”, em Lucas. Nessa passagem Jesus utiliza literalmente a expressão “filhos da luz”. E é essa a única ocorrência da expressão nos evangelhos. Trata-se, como hoje sabemos, do termo com que alguns dos sectários de Qumran se designavam, especialmente na “guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas” (1QM). Segundo Young, essa parábola complexa conteria uma crítica aos dualistas, “uma paródia negativa”. Principalmente expressando reticências à forma como os sectários geriam seus bens, isto é, recolhendo-os do indivíduo, administrando-os coletivamente. “Pois os filhos deste mundo são mais prudentes com sua geração do que os filhos da luz”, asseverou Jesus (Lc 16:8).

Nesse sentido, pelo menos algumas partes das tradições relativas a Jesus poderiam bem afastá-lo do universo teológico apocalíptico, ou não inseri-lo dentro dele totalmente. Isso significaria que os fortes traços dualistas ou o insistente perfil sobrenatural do messias presentes no Novo Testamento não necessariamente seriam traços marcantes e originais do Jesus histórico, mas sim frutos de uma interpretação e vivência imediatamente posteriores. Pode ser também que o Jesus histórico gravitasse entre mundos diferentes, não se atendo a uma tradição específica. Isso coaduna com a pluralidade teológica do período do segundo templo, tão bem exemplificado pela biblioteca de Qumran, onde sequer algo conhecido como “um texto canônico bíblico” pode ser identificado. Assim, Jesus poderia ser um rabino singular – dessa forma é, aliás, denominado várias vezes – que reunisse em torno de si seguidores de diferentes origens. E que deixou tantos legados quantas fossem as concepções teológicas de seus seguidores. O que é possível, dado à pluralidade de visões, não apenas dualistas, mas gnósticas, por exemplo, que caracterizam as diferentes tradições cristalizadas nos evangelhos – tanto canônicos quanto apócrifos.

Os manuscritos de Qumran levantaram, portanto, importantes questões sobre a teologia do cristianismo antigo. Mas, principalmente, inseriram o desenvolvimento do pensamento cristão original no quadro mais amplo do judaísmo do período do segundo templo. Dimensionando, portanto, sua real inserção histórica.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Eric Hobsbawn e Richard Horsley: As agitações camponesas do século I e os líderes messiânicos


Este artigo pretende investigar como Jesus se comportou na sociedade de seu tempo, abordar a sua atitude política e social e utilizar-se da corrente historiográfica da Escola dos Annales. Segundo a revolução dos Annales, a interdisciplinaridade passou a ser explorada e outras fontes de estudo passaram a ser consideradas históricas.

Geografia, Arqueologia, Antropologia, Sociologia, Economia, História, entre outras, poderiam juntas alcançar resultados científicos de grande fecundidade para suas respectivas áreas. Quando se desliga Jesus Cristo do seu contexto social, produz-se um mito. Se estudado dentro deste contexto histórico de aguda opressão e profunda crise de valores, cria-se um líder social, um libertador. Jesus, revolucionário social e político, um homem que dedicou sua vida a pregar uma revolução social na Palestina, dirigindo-se aos pobres camponeses e outros oprimidos de seu tempo, subjugados pelo domínio do Império Romano e seus associados locais da elite judaica, chamando os para uma revolução que só teria sucesso se partisse da conscientização da situação de opressão em que viviam.


A figura de Jesus Cristo é uma das mais intrigantes, questionadas e controvertidas de todos os tempos. Sem dúvida alguma, a maior parte dos registros sobre Jesus Cristo está na Bíblia Sagrada, mas há menções feitas por historiadores e estudiosos judeus e não-judeus. Há quem insista que Jesus se restringiu a comunicar uma mensagem religiosa sem cunho político ou ideológico. Se compreendido dentro do contexto político, econômico e social do imperialismo romano de sua época, sua pregação assumiria a expectativa da libertação política e social. Jesus de Nazaré, revolucionário social e político, foi um homem que dedicou sua vida a pregar uma revolução social na Palestina, dirigindo-se aos pobres camponeses e a outros oprimidos de seu tempo (CROSSAN, 1995), subjugados pelo domínio do Império Romano e de seus associados locais da elite judaica, chamando os para uma revolução que só teria sucesso se partisse da conscientização da situação de opressão em que viviam.


Ao longo deste artigo serão abordados temas sobre a cultura, a política, a sociedade e a economia da Palestina do século I no intuito de se poder decifrar Jesus, o homem judeu de Nazaré, o Jesus Histórico que emerge da interação do individuo e contexto.


A PALESTINA NO TEMPO DE JESUS


O termo Palestina, em poucas palavras, significa terra dos filisteus. Há, contudo, segundo Daniel Rops controvérsias sobre a utilização desse termo para designar tal região. Segundo o pensador, o termo designava um povo vencido do qual as terras haviam sido conquistadas. Assim o real nome que os israelitas usavam para indicar a palestina, na linguagem nobre, idioma religioso e histórico, era: País de Canaã. Esse termo servia para designar a terra prometida por Javé e conquistada a expensas de guerras. Portanto, o termo Palestina significa, do ponto de vista religioso, para o povo da época, o País de Canaã, a terra prometida por Javé. Do ponto de vista etimológico, Terra dos filisteus. A Palestina no tempo de Jesus possuía uma extensão de terra mediana, era uma estreita área situada entre a África e a Ásia, funcionando como uma espécie de ponte entre essas regiões. Suas coordenadas geográficas estão nos paralelos de 31 e 33 ao norte e nos meridianos 32 e 34 ao leste.


Com um território menor que o estado do Espírito Santo, possuía uma superfície de cerca de 34.000 Km2 e cerca de 650 mil habitantes. Encontrava-se dividida em áreas menores: Judéia, Samaria e Galiléia, à oeste; Ituréia, ao norte; Gualanítade, Batanéia, Traconítide, Auranítide, Decápole e Peréia, à leste; e Iduméia ao sul. Todo esse território era margeado pelo Mar Mediterrâneo, no extremo oeste. Ao Leste estava o Rio Jordão que desemboca no Mar Morto, ao sul. Entrecortando toda região havia uma cadeia de montanhas e montes com 600 mts de altura, sendo que os mais altos estavam situados na Galiléia e no Hermon. Em 63 a.C., através do general Pompeu, Roma chega ao Oriente Médio. A política expansionista romana teve inicialmente como objetivos básicos a defesa frente a povos vizinhos rivais e a obtenção de mais terras necessárias à agricultura e ao pastoreio, mas logo se revelou uma fonte valiosa de riquezas em metais preciosos e em escravos. Como resultado, em cinco séculos de guerras, a dominação romana se estendeu a grande parte da Europa, da Ásia e da África.


Assim a Palestina passa a fazer parte do Império Romano. Herodes, o Grande (37- 4 a.C.) obtém de Roma o título de Idumeu, rei da Judéia. É no seu reinado, por volta do ano 7 ou 6 a.C., alguns anos antes da morte do Rei Herodes, o Grande (4 a.C.) e durante o governo do imperador romano Augusto, que ocorre nascimento de Jesus de Nazaré. Durante a vida de Jesus, a Palestina foi governada, principalmente, pela Dinastia Herodiana.


Devido a sua posição geográfica estratégica, a Palestina era região de passagem. Por ela circulavam soldados, comerciantes, mensageiros, diplomatas. Essa região possuía importantes centros urbanos, como Cesaréia e Jerusalém, que concentravam indivíduos e atividades econômicas. Como em outras áreas do Império, existiam vias e portos, que facilitavam as comunicações e transporte de mercadorias e pessoas.


A economia da palestina subsistia, basicamente, da agricultura e da atividade pesqueira. Banhada pelo Mediterrâneo, cortada por rios e possuindo lagos, não é difícil constatar a variedade de peixes e seu papel para o abastecimento interno e até exportação. Quanto à pecuária, a região possuía rebanhos de ovelhas, cordeiros e bois. Existia nas pequenas cidades um comércio local (feiras), onde se fazia troca de produto (escambo). A economia monetária, ou seja, a circulação de dinheiro era muito reduzida. Contudo, havia grandes mercados, como o de Jerusalém, com o controle de grandes comerciantes. Eram mercados atacadistas que faziam importações como o mercado do templo. O comércio, tanto interno quanto externo, também era praticado. O comércio interno, pouco conhecido, consistia nas trocas locais e, sobretudo, visava ao abastecimento das grandes cidades. Quanto ao externo, importavam-se produtos de luxo, consumidos pelas elites e pelo Templo. Por outro lado, exportavam-se alimentos – frutas, óleo, vinho, peixes – e manufaturas, como perfumes, além do betume.


A produção baseava-se no trabalho escravo. Os escravos não eram considerados pessoas, mas coisas de que seu dono podia dispor conforme lhe conviesse, comprando os e vendendo-os. Havia escravos por toda parte. Dois terços da população de Corinto era formada por escravos, cerca de 400 mil pessoas. Por não conseguir pagar uma dívida, alguém poderia tornar-se escravo. Ademais, a corte romana obrigava a população a pagar impostos. O sistema de impostos era o canal principal pelo qual o povo era explorado por colonizadores romanos. A situação era aflitiva para a maioria da população, pois, para sustentar seus projetos arquitetônicos, a vida de luxo da corte e os presentes à família imperial, Herodes impôs aos súditos uma carga pesada de impostos que eles só cumpriam com enorme dificuldade. Apesar da presença ameaçadora de suas fortalezas e do aparato de sua cruel polícia secreta, a oposição popular a seu governo fervilhava e quase vinha à tona.


Roma, na época, um império muito extenso e muito preocupado com seus próprios problemas, não estava em condições de ali instalar o aparelho administrativo necessário para um governo direto. O regime era brutal e autocrático. Ao assumir o controle direto da Judéia, mais de dois mil rebeldes foram crucificados. O templo foi saqueado e destruído. Impostos pesados foram criados. A maior parte das fontes históricas (materiais ou literárias) indicam que as relações político-econômicas na Palestina faziam parte do que se chamou de relações redistributivas ou tributárias. Os impostos eram cobrados tanto por romanos quanto por judeus. Os impostos romanos dividiam-se em diretos, cobrados dos produtos da terra (entre 20 a 25%), os de capitalização ou pessoal, que era o denário, e indiretos, que compreendiam os direitos de alfândega, de barreira (na entrada das cidades) e pedágio (pontes, atravessadouros de rios e encruzilhadas).


Esses últimos eram arrendados, por isso muito altos. Os impostos judaicos eram os do templo, destinados à manutenção do santuário e dos sacerdotes; o primeiro dízimo, a décima parte do primeiro produto da terra (ou primícias) e da agropecuária; o segundo dízimo, que deveria ser gasto em festa e beneficência, a ser pago no primeiro, segundo, quarto, quinto anos numa série de sete anos e cobrado do produto da terra e do gado; o terceiro dízimo ou dízimo dos pobres, a ser pago no terceiro e sexto anos, destinado aos órfãos, viúvas e prosélitos; as rendas do quarto ano, que prescrevia que o produtor, ao colher o produto da terra nos três primeiros anos, gastaria o resultado dessa primeira colheita em Jerusalém.


O aparelho de Estado em Jerusalém exercia forte controle sobre a economia de todo o país. A ordem fiscal, a pública, o direito e a justiça constituíam os três setores básicos em que o poder era exercido. Os judeus suportavam muito mal as pesadas imposições romanas. Os romanos garantiam a segurança do transporte do imposto judaico do Templo. A ordem pública era assegurada, internamente, pelos romanos. A sociedade palestina podia ser dividida, naquele período, em quatro grandes grupos: os ricos, grandes proprietários, comerciantes ou elementos provenientes do alto clero; os grupos médios, sacerdotes, pequenos e médios proprietários rurais ou comerciantes; os pobres, trabalhadores em geral, seja no campo ou nas cidades; e os miseráveis, mendigos, escravos ou excluídos sociais, como ladrões.


Contudo, as diferenças sociais na palestina não se pautavam somente na riqueza ou pobreza do indivíduo, mas em diversos outros critérios, como sexo, função religiosa, conhecimento, pureza étnica, entre outros. Em meados do século I, calcula-se entre 50 e 80 milhões os habitantes do Império Romano, dos quais cerca de 90% viviam no campo.


A sociedade era piramidal. A classe alta era composta por funcionários, por detentores do Estado: Sumo Sacerdote, Sinédrio e Estado romano, o rei Herodes, o governador Pôncio Pilatos e a Corte. Esse era o primeiro pólo da classe rica. O segundo estrato da classe rica era constituído pelos proprietários de terra, pelos latifundiários. No próprio Evangelho muitas vezes aparece a referência aos anciãos - famílias tradicionais, donas de terras. Por fim, havia os grandes comerciantes do mercado importador-exportador, do mercado atacadista, sobretudo de Jerusalém. Depois da classe rica, vinham os remediados. Eram os artesãos qualificados dos grandes centros urbanos. Jerusalém deveria ter de 35 a 40 mil habitantes. Nazaré, de 20 a 30 famílias. Toda a Palestina, a sociedade em que Jesus viveu, deveria ter de 600 a 800 mil habitantes.


Por fim, a classe baixa, formada pelo povo. Eram artesãos do interior, diaristas, arrendatários rurais, escravos, criados, e também existia toda a sorte de marginalizados: leprosos (os últimos dos últimos), doentes, mendigos, órfãos, viúvas, estropiados, loucos, possessos. Chamavam de possessas as pessoas que, por causa de sua condição social, ficavam loucas. Isso mostra o nível a que estava reduzido o povo, o grau de deterioração das condições de vida. Jesus certamente pertencia à classe pobre, precisava trabalhar duro para seu sustento. Um carpinteiro, marceneiro em Nazaré, ocuparia algum lugar de nível inferior do grupo médio, um lugar equivalente a um operário da classe média baixa.


JESUS E AS TENSÕES SOCIAIS DO SEU MEIO


A situação social na Galiléia ficou explosiva a partir do governo de Herodes Antipas. As provas extraídas da literatura rabínica e de documentos legais do período indicam que o endividamento rural aumentou de forma significativa em todo o período herodiano, com lavradores desesperados pedindo empréstimos aos funcionários da administração herodiana e à aristocracia sacerdotal (hipotecas sobre as terras). Em muitos casos, essa ação legal transformava aldeãos outrora livres, que cultivavam a terra dos antepassados, em meeiros permanentemente empobrecidos, que ganhavam a vida com dificuldade em vastas propriedades aristocráticas (as quais aumentavam rapidamente) (HORSLEY. 2000).


As agitações camponesas do século I oscilavam entre os líderes messiânicos – que recorriam à violência, mas por trás dela se escondia uma causa divina – e os bandidos – que operaram apenas no âmbito humano. O banditismo social foi um dos fenômenos de maior ocorrência na história, além de ser um dos mais uniformes. Ele apareceu nas sociedades agrárias, onde existia uma enorme quantidade de camponeses e trabalhadores sem terra governados, oprimidos e explorados por representantes de outra classe social: senhores de terra, cidades, governos, juristas ou até mesmo bancos. (HOBSBAWM, 1976).


Em sociedades agrárias, sob certas condições de crise econômica severa, causadas por fatores como fome, altos impostos ou anexação de terras, o banditismo pode atingir proporções epidêmicas. Ele pode surgir também quando se provocam rupturas em uma sociedade tradicional pela imposição de uma nova política ou sistema econômico.


Jesus nasceu nesse contexto de revolta contra Roma. Sua pregação incluiu a resistência ao Império Romano. Por isso, segundo Richard A. Horsley, Jesus só pode ser compreendido dentro do contexto do imperialismo romano de sua época. Em sua vida e em sua missão, influenciou e também se deixou influenciar pela cultura do seu tempo. Ele era judeu e marcado pela vida, costumes e modo de ser dos judeus, ainda que com sua missão vá transcender a história de sua gente, dando à sua doutrina um caráter de universalidade e transcendendo até mesmo aos critérios de tempo e de lugar.


Durante o governo de Antipas cresceu o latifúndio em prejuízo das pequenas propriedades comunitárias que eram a característica do sistema tradicional dos judeus. A produção agrícola da Galiléia começou a orientar-se não mais a partir das necessidades das famílias como antes, mas sim, a partir das exigências do mercado. A arqueologia provou a existência de grandes propriedades que visavam a um maior excedente de produção para poder exportar. Os muitos impostos faziam diminuir a rentabilidade das pequenas propriedades. Quando Jesus Cristo iniciou sua pregação foi visto como mais um dentre os diversos grupos que já possuíam interpretações próprias da lei. Contudo, a mensagem de Cristo mostrou-se revolucionária.


De acordo com o artigo “Democracia e poder”, Jesus imprimiu outra ótica ao poder. Para ele, não se tratava de uma função de mando, e sim de serviço: Os reis das nações as dominam e os que as tiranizam são chamados Benfeitores. Quanto a vós, não deverá ser assim; pelo contrário, o maior dentre vós torne-se como o mais jovem, e o que governa como aquele que serve. [...] Eu, porém, estou no meio de vós como aquele que serve![...] (BÍBLIA, Lc, 22, 24-27)


A REVOLUÇÃO SOCIAL DE JESUS NA PALESTINA DO SÉCULO I


É nesse contexto sócio político e religioso que Jesus tentará implantar sua doutrina, pelos caminhos oferecidos pela liderança carismática e da desobediência civil. Desobediência civil é uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim de induzir o legislador a mudá-la. Como tal é acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja considerada, não apenas como lícita, mas como obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas diferentemente de quaisquer outras transgressões. Enquanto a desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada a fim de que o ordenamento seja reintegrado em seu estado original, a desobediência civil é um ato que tem em mira, em última instância, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor [...].


A proposta de Jesus de Nazaré é a divisão da riqueza. Jesus não é contra a riqueza como tal. Também não é contra a terra. É contra a concentração da terra nas mãos de poucos. Vale lembrar que a relação da propriedade de terra na Palestina nos tempos de Jesus era a situação do latifúndio, da concentração da propriedade da terra. Então sua proposta é a partilha: [...] a terra, a principal fonte de sobrevivência para a população do Império, inclusive aquela da Palestina, era muito mal distribuída... Na Judéia e no Egito a situação da população rural “livre” era mais desfavorável que a dos escravos nas propriedades de senhores romanos. Em consonância com o discurso político moderno, Jesus de Nazaré estava no processo de efetuar a revolução política que transformaria a ordem imperial romana na Palestina. O seu movimento político estava realizando a revolução social nas comunidades rurais da Galiléia (CROSSAN, 1994).


A revolução proposta por Jesus era um processo de longo prazo, amplo e profundo. Ela deveria ocorrer no interior das consciências, exteriorizando-se como transformação radical de toda a existência. Sua meta era realizar o Reino de Deus na Terra. Jesus formulou uma proposta de sociedade ao criticar o modelo predominante na Palestina do século I, quando a riqueza de uns poucos resultava da pobreza de muitos: Isto é, o reino de Deus não é apenas o tema que abarca a declaração profética de Jesus sobre o julgamento contra os governantes romanos e os seus dependentes em Jerusalém, mas esse aspecto de julgamento do reino tinha uma contraparte construtiva de libertação, novas forças e renovação para o povo. No discurso político moderno, no aspecto de julgamento do Reino de Deus, Jesus proclamava que Deus estava no processo de efetuar a “revolução política” que transtornaria a ordem imperial romana na Palestina. Então, no aspecto construtivo, na confiança de que Deus estava cuidando da ordem política dominante, Jesus e o seu movimento estavam realizando a “revolução social” que Deus estava tornando possível e forte nas comunidades rurais da Galiléia [...].


Este é o antigo sonho camponês de igualitarismo radical. O igualitarismo radical do Reino de Deus de Jesus é mais assustador que qualquer outra idéia. Colocando a visão e o programa de Jesus de volta na matriz de onde saiu, o antigo e universal sonho camponês de um mundo justo e igual pode ser concretizado. Por meio de pregação objetiva e popular, contando parábolas e fazendo denúncias, Jesus tinha como projeto despertar a consciência do povo em relação à opressão. O império romano, percebendo a força de sua atuação político revolucionária, mandou crucificá-lo e iniciou um processo de perseguição aos seus seguidores. Muitos movimentos de resistência tinham, na origem, um caráter meramente social, mas ganharam, depois, a dimensão religiosa messiânica. A crescente revolta judaica contra a ocupação romana foi, com freqüência, atribuída ao sempre vivo espírito nacionalista judaico e à sua imorredoura fé na libertação messiânica, mas historicamente é condicionada e ocasionada pela inabilidade dos procuradores e até mesmo de alguns Imperadores.


A atuação de Jesus aconteceu em uma situação social, econômica, política, cultural e religiosa bem configurada. Ele não realizou a sua missão desconhecendo sua época, o que seria impensável para um judeu tão próximo do povo, assim como Jesus demonstrou durante toda a sua vida pública. Um estudo sobre as condições de vida dos camponeses palestinos da época de Jesus, mostra a violência brutal que sofriam. Fraudes, roubos, trabalhos forçados, endividamento, perda da terra através da manipulação das dívidas atingiam a muitos. Existia uma violência epidêmica na Palestina. Jesus não convidava a uma revolução política, mas pregava uma revolução social perigosa. Jesus de Nazaré pretendia uma libertação plena. Tinha um projeto social amplo para atender a todas as pessoas. Contemplava o indivíduo, considerando-o como sujeito e, ao mesmo tempo, coletividade estabelecidas às regras mínimas de convivência, baseadas na caridade. Caridade que não se restringiu a dar coisas. Caridade como compartilhamento de sentimentos e de espaços físicos ou simbólicos, de um exercício de boa convivência, de respeito a si mesmo e ao próximo visto como igual.


A doutrina social de Jesus é, em sua essência, bastante simples, pois parte de princípios e valores que podem ser considerados universais, que visam ao bem viver, daí assimiláveis pelos mais simples do povo, desde que altas autoridades não manipulem ou façam adaptações de seus ensinamentos como tem acontecido ao longo dos séculos.


sábado, 17 de setembro de 2011

John Dominic Crossan e Marcus Borg: O Messias e seus seguidores


O estudo histórico de Jesus de Nazaré e de seus primeiros seguidores apresenta já larga trajetória no âmbito mundial. Durante muitos séculos, Jesus e o Cristianismo foram objeto de reflexões teológicas, a partir de denominações confessionais cristãs. Com o período moderno, tanto o catolicismo como as igrejas reformadas debruçaram-se sobre tais temas, fundamentais para as querelas entre as diferentes correntes religiosas. Eram tempos de guerras de religião, com a Europa dilacerada por conflitos sangrentos. Com o avanço do Iluminismo, em suas diversas facetas, surgiram novas preocupações, menos afeitas às contendas religiosas. Iniciava-se a busca pela historicidade. Nessa longa caminhada, o positivismo, com sua ênfase na reconstrução do que realmente aconteceu, marcou um momento importante de inflexão. A intervenção de Deus, de forma direta, nos afazeres humanos foi descartada, em benefício das explicações que fizessem redundar em causas racionais e mundanas. O século XIX testemunhou, nesse afã, um florescimento crescente da literatura científica que buscava explicar os movimentos religiosos, em geral, e o cristianismo, em particular, à luz da objetividade.


Nem por isso Jesus e o cristianismo deixaram de ser objeto preferencial daqueles dedicados à religião. A História, como disciplina nascente, voltou-se para os grandes temas, relevantes para os estados nacionais e impérios nascentes, com sua ênfase na política, nas guerras e nos estados. Os influxos da Filosofia, da Sociologia e da Antropologia, nas primeiras décadas do século XX, viriam a criar novas perspectivas e interesses no campo propriamente historiográfico. Marc Bloch, com seus reis taumaturgos, mostrava que as representações culturais, também de caráter religioso, eram tanto ou mais relevantes do que as visões tradicionais, do ponto de vista da ciência histórica. Abertas as portas das mentalidades, as religiosidades adquiriam novos estatutos também no âmbito da historiografia. Multiplicaram-se os estudos sobre os sentimentos e representações religiosas não apenas das elites, como das pessoas comuns, em sua imensa diversidade e variedade.


O Jesus histórico e a historicidade do movimento em torno do Galileu tornaram-se objeto pleno iure da historiografia. Multiplicaram-se as vertentes interpretativas, caracterizadas tanto por sua diversidade, como não poderia deixar de ser, como por seu rigor metodológico. As ferramentas básicas da pesquisa historiográfica, a partir do estudo das fontes, foram desenvolvidas de forma acurada. A tradição literária foi esmiuçada, de modo a buscar nos textos oriundos da ortodoxia todo o seu universo de composição, datação, autoria e muito mais. As pesquisas arqueológicas foram, também, essenciais para redimensionar o estudo das fontes históricas. As investigações pela Arqueologia produziram uma pletora de novos documentos, na forma de sítios arqueológicos, edifícios, artefatos de uso quotidiano, mas também inscrições. A paleografia foi, neste âmbito, de relevância particular, pela diversidade de documentos que ajudaram a iluminar a vida à época de Jesus e de seus seguidores. O estudo do Jesus Histórico e do cristianismo dos primeiros tempos tornou-se um campo historiográfico consolidado.


No âmbito internacional, publicações recentes atestam essa vitalidade, como a produção recente de John Dominic Crossan traduzida e publicada no Brasil, como BORG, Marcus J.; CROSSAN, John Dominic. O Primeiro Natal, o que podemos aprender com o nascimento de Jesus. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008, Tradução de Vera Ribeiro. Primeiro, convém tratarmos da abordagem adotada pelos autores. Eles a definem com duas características ou aspectos: em termos históricos e parabólicos. A abordagem histórica das narrativas trata de situar as antigas simbologias em seu contexto do século I d.C.: são textos antigos em um contexto antigo. A historicidade está na imersão nas concepções de mundo que são outras, diferentes das nossas, filhas do Iluminismo e do Positivismo dos últimos dois séculos. Em seguida, e como resultado dessa busca pelas circunstâncias culturais e simbólicas antigas, a abordagem parabólica procura superar a dicotomia iluminista entre fato e fábula, acontecimentos e invenções. Parábolas, como os mitos, apresentam estruturas arquetípicas e representam não fatos, com sua irrelevância, mas mensagens perenes. A morte de uma pessoa é apenas a extinção de uma vida. O nascimento de um bebê não passa do início. O Natal e a Ressurreição, como metáforas do nascimento e do renascimento, revestem-se de relevância por sua significação não como fato irrepetível, mas como presença na reinterpretação constante do ciclo da vida.


A partir destas premissas teóricas, descortinam as especificidades de Mateus e Lucas. Este enfatiza, em seu relato, as mulheres, os marginalizados e o Espírito Santo. São Maria e Isabel, assim como, no decorrer da vida de Jesus, muitas que são mencionadas, algumas nomeadas, outras não. Dentre os marginalizados, estão os pastores já no nascimento e, depois, os pobres, os néscios, os aleijados, os coxos, os cegos. Por fim, o Espírito Santo, que caracteriza o relato da trajetória dos seguidores de Jesus após sua morte, nos Atos dos Apóstolos do mesmo Lucas. Já Mateus apresenta uma narrativa fundada na referência, sempre simbólica, às escrituras hebraicas, como na ênfase em cinco elementos, como no Sermão da Montanha, que retoma, por assim dizer, os cinco livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio): concepção virginal de Maria, Belém como local de nascimento de Jesus, Sagrada Família parte do Egito, após o infanticídio de Herodes em Belém e sobre Nazaré.


Mateus e Lucas compartilham, segundo Borg e Crossan, da uma contraposição bem marcada entre o reino da violência do Império Romano e o Reino de Deus, fundado na justiça e na igualdade. Propõem que a simbologia da fé cristã e do Natal, em particular, seja uma contraposição ao poder imperial. Os epítetos teológicos do imperador são transpostos para Jesus: se o imperador é chamado de senhor, divino, filho de Deus, Deus, Deus de Deus, Redentor, Libertador, também Jesus, assim também com as expressões Salvador, Evangelho, Paz, todas usadas para se referirem ao governante romano. O nascimento divino de Augusto, reportado por Suetônio (Augusto, 94,4) não podia deixar de servir de parâmetro, ou de ponto de partida, em negativo, para o relato dos primeiros seguidores de Jesus. Eles não sabiam muito sobre o tema e nem se preocupavam com isso, pois consideravam sua vinda ao mundo como uma dádiva divina, oposta à opressão imperial romana, este o argumento central de Borg e Crossan. Outro grande elemento de inspiração parabólico está na leitura metafórica dos livros da Bíblia hebraica. Assim, Jesus aparece como novo Moisés em seqüências triádicas: separação, revelação, reunião; sonho/revelação, temor e interpretação.


O volume apresenta, de forma muito clara e didática, como a narrativa dos Evangelhos estava preocupada com dois aspectos: a crítica social e a luta pela justiça terra, por meio de uma apresentação metafórica desses objetivos. Consideram, portanto, o movimento dos primeiros seguidores de Jesus como parte de uma ampla e variada resistência ao domínio romano. Neste aspecto, os autores inserem-se entre as múltiplas tomadas de posição recentes, por parte da historiografia sobre o mundo romano, interessadas em estudar o mundo romano em sua diversidade e contradições. Em seguida, a leitura metafórica do relato bíblico está bem envolvida nas interpretações da História da Cultura como um campo de representações sociais. Em ambos os aspectos, portanto, os autores fazem parte de movimentos muito mais amplos e que alguns designam como pós-modernos e outros preferem chamar apenas crítica cultural. Haveria aqueles que se queixariam da pouca ênfase, nas abordagens de ambos os autores, na experiência religiosa, com seus aspectos variados, que vão dos contatos com o mundo espiritual – a apocalíptica, mas também outras sensações e interações metafísicas.


Outra obra importante merece ser mencionada: Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, A Última Semana. Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro, Ediouro, 2010, tradução de Alves Calado. A Semana Santa é o ápice do calendário cristão, toda a fé está fundada nos dias finais de Jesus, que culminam no Domingo de Páscoa. Como disse Paulo de Tarso, se Jesus não ressuscitou, não há salvação cristã (I Cor. 15:14: “Se Cristo não ressuscitou, nossa proclamação e a fé de vocês foram em vão”). Os estudiosos do cristianismo inicial Borg e Crossan procuram, neste belo volume, explicar o caráter simbólico do relato da vida de Jesus e, em particular, dos seus últimos dias, como sumário de sua trajetória terrena. Não estão nem um pouco interessados em estabelecer, restabelecer, o que efetivamente aconteceu, buscar distinguir fato de ficção. Ao contrário, mostram, de maneira magistral, como apenas uma leitura alegórica, ou parabólica, como eles preferem designar, permite entender a lógica e profundidade do relato de Marcos sobre os dias finais de Jesus. Convém explicar o que eles entendem por parábola e como ela se diferencia da concepção moderna de verdade. Contrapõem a verdade positivista de algo que ocorreu e todos podem constatar de forma objetiva à subjetividade que está subjacente a uma narrativa verossímil, possível. A parábola do filho pródigo é, nesta perspectiva, prenhe de verdade, por conter uma lição: o filho gastador se afasta, gasta tudo e, quando volta para casa, é recebido pelo pai com júbilo.


Ninguém se pergunta se existiu um filho chamado tal, que tenha vivido em tal cidade, em tal época: o que importa é seu caráter universal. O mesmo é aplicado pelos autores a todos os relatos do Evangelho de Marcos e, em particular, no que se refere à sua entrada em Jerusalém, no Domingo de Ramos, até sua ressurreição no Domingo de Páscoa.


Seus argumentos são simples e claros. O relato de Marcos é grande parábola, não precisa ter nenhuma relação muito direta com os acontecimentos que uma câmera de gravação teria podido captar, se isso fosse possível àquela época. Interpretam toda a semana como uma contraposição de dois mundos, ou de duas concepções de mundo: a imperialista romana, baseada na força, e a messiânica hebraica, fundada no amor, na paz e na justiça na terra. A primeira representa a sociedade de classes, opressora, por oposição à visão camponesa da comunidade que tudo compartilha. Jesus entra montado num burrico, numa contra-parada, em relação à entrada de Pilatos e suas tropas, no Domingo de Ramos. Há dois reinos de deus em disputa: o de Roma, do imperador, aclamado como deus e filho de deus, fundado na paz resultante da violência e da dominação. E há outro reino de Deus, também nesta terra, com Jesus como Deus e filho de Deus, um caminho para a paz resultante do amor pelo próximo.


Em Marcos, nada busca descrever o que aconteceu. Tudo que se menciona tem um propósito simbólico. Assim, na terça-feira santa, Jesus, perguntado sobre o primeiro dos mandamentos, responde que “amarás o teu próximo como a ti mesmo” está junto com o amor a Deus, na frente de todos. Borg e Crossan não dizem que Jesus disse isso na terça: pouco importa. Ressoa o ensinamento de Jesus, de toda sua vida, tal como entendida por volta de 70 d.C., quando da redação do Evangelho de Marcos. E acrescentam: “amar o próximo significa recusar-se a aceitar as divisões entre respeitados e marginalizados, justos e pecadores, ricos e pobres, amigos e inimigos, judeus e gentios”.


A Páscoa, nesta leitura simbólica, representa que Jesus vive: não está entre os mortos, e sim entre os vivos. Jesus é o Senhor deste mundo e, portanto, os senhores deste mundo não o são. A Páscoa mostra que os sistemas de dominação deste mundo, como o romano e o americano, nos dias de hoje, não são obras de Deus e não persistirão. Nem todos os leitores compartilharão dessa perspectiva geral do volume, que interpreta as narrativas do Evangelho de Marcos e a vida de Jesus como entendida por seus seguidores iniciais como uma contestação da dominação de classe. No entanto, há um aspecto muito importante, bem explorado pelos autores: as diferenças de concepção do mundo dos antigos, sempre atentos à magia do mundo e alheios à noção moderna de fatos empíricos e de verdades objetivas que não dependam do observador. Os antigos, tanto gregos, romanos com hebreus, consideravam o mundo embebido em espiritualidade. O Salvador do mundo, com poderes divinos, podia ser o imperador ou Jesus, mas ambas as concepções eram religiosas e simbólicas. Por isso mesmo, a ressurreição de Jesus era tão crível quanto a ascensão do imperador morto ao mundo dos deuses. Por outro lado, a mensagem dos autores vai contra a leitura literal da Bíblia por fundamentalistas, uma leitura positivista, como eles afirmam, que busca apenas comprovar que tudo ocorreu como descrito, a despeito das contradições e divergências nos próprios textos antigos.


No Brasil, o estudo da Antiguidade tardou para desenvolver-se de forma profissional. A Universidade brasileira é tardia. Enquanto a América hispânica teve suas universidades em período colonial inicial, a universidade brasileira data do século XX e apenas começou a generalizar-se depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os cursos de História surgiram aos poucos, com ênfase na História do Brasil, ainda que a História Antiga tenha constado dos currículos desde o início. A pesquisa só viria a consolidar-se aos poucos, com os cursos de mestrado e doutoramento, a partir da década de 1970. A História Antiga iniciou-se pela garra de aficionados que se interessavam pelo tema, mas que não tiveram, em grande parte, a oportunidade de conhecer a documentação antiga no original. A partir da década de 1980, o estudo histórico da Antiguidade torna-se mais profissional, com a crescente capacitação dos estudiosos, tanto no conhecimento dos idiomas antigos, como das outras fontes, em particular arqueológicas. O contato com a ciência internacional e a inserção na pesquisa mundial torna-se mais corrente, em especial a partir da década de 1990.


Nesta perspectiva, entende-se a trajetória dos estudos sobre a historicidade do cristianismo, no âmbito historiográfico brasileiro. Amadureceram as condições para o florescimento de pesquisas originais e isto por alguns motivos muito particulares. Por um lado, desde o período militar (1964-1985) as denominações cristãs passaram a ter uma influência crucial nos movimentos sociais. Multiplicaram-se as comunidades eclesiais de base, assim como as associações religiosas cristãs independentes. A alfabetização crescente dos segmentos populares, assim como as religiosidade emergentes, levaram à maior difusão não apenas da Bíblia, como de variada literatura espiritual. Com o restabelecimento das liberdades e do estado de direito, tudo isso levou à consolidação de um ambiente caracterizado pela diversidade religiosa, embora sempre em sua imensa maioria no espectro do cristianismo.


Estas mudanças formam o pano de fundo para o aumento exponencial de interesse, em seus diversos aspectos, por Jesus, os apóstolos e o cristianismo em geral. Surgiram produções brasileiras, tanto televisivas, como cinematográficas, voltadas para a vida de Jesus e seus seguidores, assim como programas radiofônicos, livros, revistas, CDs, DVDs, e muito mais. Marchas por Jesus, jogadores de futebol com camisetas cristãs, rezas em estádios, como nunca antes o cristianismo tornou-se tema não apenas de fé ou tradição, como de busca espiritual e de conhecimento. Tudo isto pode parecer distante da seara acadêmica, mas não convém esquecer que a ciência se faz a partir das ruas, das inquietações e dos movimentos sociais. Uma história da ciência que ultrapasse a História das Idéias, de cunho internalista, reconhece que o cerne das interpretações e compreensões científicas surge como resultante dos embates sociais. Costuma-se chamar a esta perspectiva de externalista, pois coloca a ênfase nas transformações científicas na sociedade, não no interior da ciência mesma, como se as idéias tivessem uma vida própria.


Assim, entende-se que a historiografia brasileira tenha se voltado, cada vez mais, para a religiosidade, de períodos mais recentes e mais distantes. A área de História Antiga, ao consolidar-se como campo de investigação especializado, não escapou a essa tendência. O reconhecimento da diversidade como valor, tanto no mundo como no Brasil, contribuiu, também, para que o estudo da religiosidade antiga ganhasse reconhecimento. O tempo das escolas monolíticas, das ortodoxias interpretativas e dos temas canônicos passara. Com isso, floresceram as pesquisas historiográficas sobre identidades, sentimentos, emoções, representações. O cristianismo antigo encontrou, neste ambiente, condições particularmente favoráveis. O interesse dos estudiosos pôde ser direcionado para a pesquisa acadêmica, ao corrente da literatura internacional, equipada com o comando do instrumental acadêmico, a partir do domínio da documentação escrita, material e iconográfica e das questões teóricas e metodológicas. Multiplicaram-se os centros de pesquisa historiográfica dedicados a estudos da temática cristã antiga.


terça-feira, 23 de agosto de 2011

Gary Habermas e John Dominic Crossan: Sobre a Ressurreição de Jesus

Gary Habermas completou a mais ampla investigação já feita até o momento sobre o que os estudiosos acreditam a respeito da ressurreição de Jesus. Habermas reuniu mais de 1.400 obras dos eruditos mais críticos que falam sobre a ressurreição de Jesus, escritas de 1975 a 2003. Na obra The Risen Jesus and Future Hope, [O Jesus ressurreto e a esperança do futuro]

Habermas expõe que quase todos os estudiosos, independentemente do espectro ideológico — desde os ultra liberais até os conservadores defensores da Bíblia -, concordam que os pontos a seguir, todos relacionados a Jesus e ao cristianismo, são fatos históricos reais:
1.A morte de Jesus deu-se por meio da crucificação romana.
2.Ele foi sepultado, muito provavelmente, num túmulo particular.
3. Pouco tempo depois, os discípulos ficaram desanimados, desolados e desacorçoados, tendo perdido a esperança.
4. O túmulo de Jesus foi encontrado vazio pouco tempo depois de seu sepultamento.
5. Os discípulos tiveram experiências que acreditaram ser aparições reais do Jesus ressurreto.
6. Devido a essas experiências, a vida dos discípulos foi totalmente transformada. Depois disso, até mesmo se dispuseram a morrer por sua crença.
7. A proclamação da ressurreição aconteceu logo de início, desde o começo da história da igreja.
8. O testemunho público e a pregação dos discípulos sobre a ressurreição de Jesus aconteceram na cidade de Jerusalém, onde Jesus fora crucificado e sepultado pouco tempo antes.
9. A mensagem do evangelho concentrava-se na pregação da morte e da ressurreição de Jesus.
10. O domingo passou a ser o principal dia de reunião e adoração.
11. Tiago, irmão de Jesus e cético antes desse evento, converteu-se quando acreditou que também vira o Jesus ressurreto.
12. Poucos anos depois, Saulo de Tarso (Paulo) tornou-se cristão devido a uma experiência que ele também acreditou ter sido uma aparição do Jesus ressurreto.
A aceitação desses fatos faz sentido à luz daquilo que vimos até aqui. As evidências nos demonstram os pontos a serem apresentados a seguir.
A história do Novo Testamento não é uma lenda. Os documentos do NT foram escritos exatamente dentro de um período de duas gerações, com base nos eventos, pelas testemunhas oculares ou por seus contemporâneos. A seqüência da história do NT é corroborada por escritores não-cristãos. Além disso, o NT menciona pelo menos 30 personagens históricas que foram confirmadas por fontes externas ao NT. Portanto, a história do NT não pode ser uma lenda.
A história do Novo Testamento não é uma mentira. Os autores do NT incluíram detalhes divergentes e embaraçosos, dizeres difíceis e exigentes e fizeram cuidadosa distinção entre as palavras de Jesus e suas próprias palavras. Eles também se referiram a fatos e a testemunhas oculares que seus leitores já conheciam ou poderiam verificar. De fato, os autores do NT fizeram seus leitores e os mais destacados inimigos do século I verificarem aquilo que disseram. Se isso não é suficiente para confirmar sua fidedignidade, então seu martírio deveria remover qualquer dúvida. Essas testemunhas oculares sofreram perseguição e morte por causa da declaração empírica de que viram, ouviram e tocaram o Jesus ressurreto, embora elas pudessem ter-se salvado simplesmente negando-se a dar o seu testemunho.
A história do Novo Testamento não é um embelezamento. Os autores do NT foram meticulosamente precisos, conforme evidenciado pelos mais de 140 detalhes historicamente confirmados. Registraram milagres nessas narrativas historicamente confirmadas e o fizeram sem maquiagem aparente ou comentário teológico significativo.
Portanto, o Novo Testamento é verdadeiro? Se a maioria dos estudiosos concorda com os 12 fatos relacionados anteriormente porque as evidências mostram que a história do NT não é uma lenda, uma mentira ou um embelezamento, então sabemos, acima do que se considera dúvida justificável, que os autores do NT registraram com precisão aquilo que viram. Por acaso isso significa que todos os acontecimentos do NT são verdadeiros? Não necessariamente. O cético ainda tem uma questão.
A última questão possível para o cético é que os autores do NT foram enganados.
Em outras palavras, talvez os autores do NT estivessem simplesmente errados em relação àquilo que pensaram ter visto.
Dadas as características do NT que já revisamos anteriormente, não parece plausível que os autores do NT tenham sido enganados com relação a acontecimentos comuns e não miraculosos. Eles se mostraram corretos em relação a muitos detalhes históricos. Por que duvidar de suas observações de acontecimentos do dia-a-dia?
Mas teriam eles sido enganados no caso de acontecimentos miraculosos como a ressurreição de Jesus? Talvez realmente tenham crido que Jesus ressuscitara dos mortos — e, por isso, pagaram com a própria vida -, mas estavam errados ou enganados. Talvez existam explicações naturais para todos os milagres que julgavam ter visto.
Os estudiosos mais críticos ignoram isso. Considere o fato número 5 daquela lista de 12 nos quais praticamente todos os estudiosos acreditam: “Os discípulos tiveram experiências que eles acreditaram ser aparições reais do Jesus ressurreto”. Em outras palavras, os estudiosos não estão necessariamente dizendo que Jesus realmente ressuscitou dos mortos (embora alguns considerem que realmente ressuscitou). O consenso mínimo entre praticamente todos os estudiosos é que os discípulos acreditaram que Jesus ressuscitara dos mortos.
Para que testemunhas oculares e contemporâneos dos acontecimentos estejam errados, é preciso haver alguma outra explicação para a ressurreição de Jesus e os outros milagres registrados no NT. Uma vez que a ressurreição de Jesus é o fato central do cristianismo, vamos começar daí. De que maneira os céticos excluem a ressurreição?

Aqui estão as explicações para a ressurreição de Jesus mais freqüentes ente apresentadas pelos céticos.

Teoria da alucinação. Teriam os discípulos sido enganados por alucinações?
Talvez eles pensaram sinceramente que tinham visto o Cristo ressurreto, mas, em vez disso, na verdade estavam experimentando alucinações. Essa teoria tem muitas falhas fatais. Vamos abordar duas delas.
Em primeiro lugar, as alucinações não são experimentadas por grupos, mas apenas por indivíduos. Nesse aspecto, são muito parecidas com sonhos. É por isso que, se um amigo lhe diz pela manhã: “Uau! Esse foi um grande sonho que nós tivemos, não é?”, você não diz “Sim, foi fabuloso! Vamos continuar hoje à noite?”. Não, você acha que seu amigo ficou louco ou que está simplesmente fazendo uma brincadeira. Você não o leva a sério porque sonhos não são experiências coletivas. Quem tem sonhos é o indivíduo, não grupos. As alucinações funcionam da mesma maneira. Se existirem raras condições psicológicas, um indivíduo pode ter uma alucinação, mas seus amigos não a terão. Mesmo que a tiverem, não terão a mesma alucinação.
A teoria da alucinação não funciona porque Jesus não apareceu uma única vez para uma única pessoa — ele apareceu em dezenas de ocasiões diferentes, numa grande variedade de cenários, para diferentes pessoas, durante um período de 40 dias. Ele foi visto por homens e mulheres. Foi visto caminhando, falando e comendo. Foi visto dentro e fora de lugares. Foi visto por muitos e por poucos. Um total de mais de 500 pessoas viu o Jesus ressurreto. Elas não estavam tendo uma alucinação ou vendo um fantasma, porque, em seis das 12 aparições, Jesus foi fisicamente tocado e/ou comeu comida verdadeira (v. tabela 12.1).
A existência do túmulo vazio é a segunda falha fatal da teoria da alucinação.
Se mais de 500 testemunhas oculares tiveram a experiência sem precedentes de ter a mesma alucinação em 12 ocasiões diferentes, então por que as autoridades judaicas ou romanas simplesmente não exibiram o corpo de Jesus pela cidade? Isso teria desferido um golpe fatal no cristianismo de uma vez por todas. As autoridades adorariam ter feito isso, mas, aparentemente, não puderam fazê-lo porque o túmulo estava realmente vazio.
As testemunhas foram ao túmulo errado. Talvez os discípulos tenham ido ao túmulo errado e, então, presumiram que Jesus havia ressuscitado. Essa teoria também possui duas falhas fatais.
Primeira falha: se os discípulos tivessem ido à sepultura errada, as autoridades judaicas e romanas teriam ido à sepultura certa e, então, teriam mostrado o corpo de Jesus na cidade. O túmulo era conhecido pelos judeus porque era um túmulo deles (pertencia a José de Arimatéia, membro do Sinédrio). O túmulo também era conhecido pelos romanos porque colocaram guardas ali. Como destaca William Lane Craig, a teoria do túmulo errado presume que todos os judeus (e os romanos) tiveram um tipo de “amnésia coletiva’ permanente em relação àquilo que eles haviam feito com o corpo de Jesus.
ORDEM DAS DOZE APARIÇÕES DE JESUS CRISTO
Pessoas
Viram
Ouviram
Tocaram
Outras evidências
1 Maria Madalena (Jo 20.10-18)
X
X
X
túmulo vazio
2. Maria Madalena e outra Maria (Mt 28.1-10)
X
X
X
túmulo vazio (e panos no sepulcro também em Lc 24.1-12)
3. Pedro (1Co 15.5) e João (Jo 20.1-10)
X
X
túmulo vazio, panos no sepulcro
4. Dois discípulos (Lc 24.13-35)
X
X
comeram com ele
5. Dez apóstolos (Lc 24.36-49; Jo 20.19-23)
X
X
X**
viram as feridas,comeram
6. Onze apóstolos(Jo 20.24-31)
X
X
X**
viram as feridas
7. Sete apóstolos a o 21)
X
X
comeram
8. Todos os apóstolos (Mt 28.16-20; Mc 16.14-18)
X
X
9. Quinhentos irmãos (1Co 15.6)
X
X*
10. Tiago (1Co 15.7)
X
X*
11. Todos os apóstolos (At 1.4-8)
X
X
comeram com ele
12. Paulo (At 9.1-9; 1Co 15.8)
X
X
* implícito ** deixou que seu corpo fosse tocado
Tabela 12.1
Segunda falha: mesmo que os discípulos realmente tivessem ido ao túmulo errado, a teoria não explica de que maneira o Jesus ressurreto apareceu em 12 diferentes ocasiões. Em outras palavras, são as aparições que devem ser explicadas, e não apenas o túmulo vazio.
Perceba que o túmulo vazio não convenceu a totalidade dos discípulos (com a possível exceção de João) de que Jesus ressuscitara dos mortos. Foram as aparições de Jesus que os fizeram deixar de ser covardes assustados, fugitivos e céticos e se transformar na maior força missionária pacífica da história. Isso é especialmente verdadeiro com relação a um religioso inimigo do cristianismo, Saulo (Paulo). Ele não apenas não foi convencido pelo túmulo vazio, como estava perseguindo os cristãos logo após a ressurreição de Jesus. Foi necessária uma aparição do próprio Jesus para transformar Paulo. Parece que Tiago, o cético irmão de Jesus, também foi convertido depois de uma aparição de Jesus. Como vimos, a conversão de Tiago foi tão dramática que ele se tornou líder da igreja de Jerusalém e, mais tarde, foi martirizado nas mãos do sumo sacerdote.
O resumo é este: mesmo que alguém pudesse dar uma explicação natural para o túmulo vazio, não seria suficiente como prova contrária à ressurreição. Qualquer teoria alternativa da ressurreição também deve excluir as aparições de Jesus. A teoria do túmulo vazio não faz nenhuma das duas coisas.
Teoria do desmaio, do desfalecimento ou da morte aparente. Existe a possibilidade de Jesus não ter realmente morrido na cruz? Talvez Jesus tenha simplesmente desfalecido. Em outras palavras, ele ainda estava vivo quando foi colocado no túmulo, mas, de alguma maneira, Jesus escapou e convenceu seus discípulos de que havia ressuscitado dos mortos. Existem diversos erros fatais nessa teoria também.
Primeiro erro: tanto inimigos quanto amigos acreditaram que Jesus estava morto.
Os romanos, que eram executores profissionais, chicotearam e bateram em Jesus de maneira brutal. Então, depois disso, pregaram cravos rústicos em seus punhos e em seus pés e enfiaram uma lança em seu lado. Eles não quebraram as pernas para apressar sua morte porque sabiam que já estava morto (as vítimas de crucificação freqüentemente morriam por asfixia porque não podiam erguer o corpo para poder respirar. Quebrar as pernas, portanto, apressaria a morte). Além do mais, Pilatos foi verificar para certificar-se de que Jesus estava morto, e a morte de Jesus foi a razão de os discípulos terem perdido toda a esperança.
A técnica brutal de crucificação romana foi verificada por toda a arqueologia e por fontes escritas não-cristãs (v. capo 15, em que temos uma vívida descrição da experiência da crucificação de Jesus). Em 1968, os restos de uma vítima de crucificação do século I foram encontrados numa caverna em Jerusalém. O osso do calcanhar desse homem tinha um prego de quase 18 cm que o atravessava, e seus braços também mostravam evidências de pregos. A lança no coração também foi reconhecida como uma técnica romana de crucificação pelo autor romano Quintiliano (35-95 d.C.). Em função desse tratamento dispensado a Jesus, não é de surpreender que as testemunhas oculares tenham pensado que ele estivesse morto.
Não foram apenas as pessoas do século I que acreditaram que Jesus estava morto: médicos modernos também acreditam que Jesus realmente morreu. Escrevendo em 21 de março de 1986, na edição do Journal of the American Medical Association, três médicos, incluindo um patologista da Clínica Mayo, concluíram:
Está claro que o peso das evidências históricas e médicas indica que Jesus já estava morto antes de receber o ferimento em seu lado e apóia a visão tradicional de que a lança, introduzida entre as costelas do lado direito, provavelmente perfurou não apenas o pulmão direito, mas também o pericárdio e o coração e, portanto, garantiu sua morte. Por conta disso, interpretações baseadas na pressuposição de que Jesus não morreu na cruz parecem não estar de acordo com o conhecimento médico moderno’!
Como indicamos no capítulo anterior, o sangue e a água que saíram da ferida da lança parecem ser outro detalhe genuíno de uma testemunha ocular, relatado pela pena de João. Esse único fato deveria pôr fim a todas as dúvidas sobre a morte de Jesus.
O segundo grande erro na teoria do desfalecimento é que Jesus foi embalsamado com 34 quilos de bandagens e especiarias. É altamente improvável que José de Arimatéia e Nicodemos ao 19.40) pudessem ter embalsamado por engano um Jesus que ainda estivesse vivo.
Terceiro erro: mesmo que todo mundo estivesse errado sobre o fato de Jesus realmente estar morto quando foi para o túmulo, de que maneira um homem gravemente ferido e sangrando ainda estaria vivo 36 horas depois? Ele teria sangrado até morrer naquele túmulo frio, úmido e escuro.
Quarto erro: se ele tivesse sobrevivido ao túmulo frio, úmido e escuro, de que maneira poderia tirar as bandagens, empurrar a pedra para cima e para fora (uma vez que estava dentro do túmulo), passar pelos guardas romanos (que seriam mortos por permitir uma brecha na segurança) e, então, convencer os covardes assustados, fugitivos e céticos de que ele havia triunfado sobre a morte? Mesmo que pudesse sair do túmulo e passar pelos guardas romanos, Jesus seria apenas uma massa mole alquebrada e ensanguentada de homem, da qual os discípulos teriam pena, e não alguém a quem eles adorariam. Eles diriam: “Você pode estar vivo, mas certamente não ressuscitou. Vamos levá-la já para um médico!”.
Quinto erro: a teoria do desfalecimento não pode explicar a brilhante aparição de Jesus a Paulo na estrada de Damasco. O que transformou esse dedicado inimigo do cristianismo logo depois da crucificação? Certamente não foi um ser humano normal que fora curado de sua experiência de crucificação.
A descrição que Paulo faz de sua conversão está registrada duas vezes no livro de Atos, que é historicamente autenticado. No capítulo 22, Paulo fala a uma multidão judaica hostil sobre a aparição de Cristo a ele:
“Por volta do meio-dia, eu me aproximava de Damasco, quando de repente uma forte luz vinda do céu brilhou ao meu redor. Caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ‘Saulo, Saulo, por que você está me perseguindo?’ Então perguntei: ‘Quem és tu, Senhor?’. E ele respondeu: ‘Eu sou Jesus, o Nazareno, a quem você persegue’.” (v. 6-8).
Paulo ficou sem enxergar por três dias e experimentou uma mudança de 180 graus em suas atitudes. Deixou de ser o mais enérgico inimigo do cristianismo para se tornar o seu mais ardente defensor.
A experiência de conversão de Paulo não pode ser explicada por um Jesus desfalecido segurando uma tocha e usando sua “voz de Deus” no meio dos arbustos. Foi uma mostra dramática do poder divino, em plena luz do dia, que mudou dramaticamente um homem e o mundo para sempre.
Sexto erro: vários autores não-cristãos confirmaram que Jesus morreu por crucificação. Dentre eles, incluímos Josefo, Tácito, Talo e o talmude judaico. O talmude judaico, por exemplo, diz que Yeshua Qesus) foi pendurado num madeiro na véspera da Páscoa. Essa não é considerada uma fonte favorável ao cristianismo, de modo que não há razão para duvidar de sua autenticidade.
Por essas e outras razões, poucos estudiosos ainda acreditam na teoria do desfalecimento. Simplesmente existem evidências demais contra ela.
Os discípulos roubaram o corpo. A teoria de que os discípulos roubaram o corpo de Jesus não pode apoiar a última opção dos céticos — a de que os autores do NT foram todos enganados. Por quê? Porque a teoria faz que os autores do NT sejam os enganadores, e não os enganados! Naturalmente, isso é um ataque frontal a todas as evidências que vimos até aqui. A teoria presume a insustentável posição de que os autores do NT eram todos mentirosos. Por alguma razão inexplicável, roubaram o corpo com o objetivo de serem eles mesmos surrados, torturados e martirizados! As pessoas que defendem essa teoria não podem explicar por que qualquer pessoa faria isso. Por qual razão os discípulos embarcariam em tal conluio de autodestruição? E por que todos eles continuaram a dizer que Jesus ressuscitara dos mortos quando poderiam preservar sua vida ao se negarem a dar seu testemunho?
Além do grave conflito de interesse dos discípulos, os defensores dessa ideia não podem explicar outros absurdos exigidos pela teoria. De que maneira, por exemplo, os discípulos passaram pela guarda de elite romana que fora treinada para guardar o túmulo com o penhor da própria vida? Se Jesus nunca ressuscitou dos mortos, então quem apareceu a Paulo, a Tiago e às outras testemunhas oculares? Os autores do NT mentiram sobre sua conversão também? Paulo simplesmente inventou as evidências encontradas em 1 Coríntios? E o que dizer sobre os autores não-cristãos? Teria Josefo mentido sobre Tiago ter sido martirizado pelo Sinédrio? Por acaso o escritor romano Flegon (nasc. c. 80 d.C.) mentiu também quando escreveu suas Crônicas, em que diz: “Jesus, enquanto vivo, não foi de qualquer ajuda para si mesmo, mas, quando ressuscitou depois da morte, exibiu as marcas de sua punição, e mostrou de que maneira suas mãos foram perfuradas pelos pregos”?. Seria preciso mais do que um “milagre” para que tudo isso acontecesse, caso Jesus não tivesse ressuscitado dos mortos. Não temos fé suficiente para acreditar em tudo isso!
Como já vimos, a noção de que os discípulos roubaram o corpo é exatamente a explicação que os judeus ofereceram para justificar o túmulo vazio. Além do fato de os discípulos não terem nenhum motivo ou habilidade para roubar o corpo, essa antiga explicação judaica não foi uma boa mentira por duas outras razões: 1) como os guardas adormecidos poderiam ter visto que os discípulos haviam roubado o corpo? e 2) nenhum guarda romano se deixaria punir com a pena capital por ter dormido no posto (talvez seja por isso, como registra Mateus, que as autoridades judaicas tiveram de pagar os guardas e prometer que os livrariam de problemas com o governador).
Em 1878, foi feita uma fascinante descoberta arqueológica que corrobora a afirmação bíblica de que os judeus estavam espalhando a versão do roubo. Uma placa de mármore de 38 cm por 60 cm foi descoberta em Nazaré com a seguinte inscrição:
Decreto de César: É meu prazer que tumbas e sepulturas permaneçam perpetuamente imperturbadas por aqueles que as construíram para o culto aos seus ancestrais, aos filhos ou aos membros de sua casa. Se, porém, qualquer um fizer acusação de que outro as destruiu ou que, de alguma maneira, tenha extraído o sepultado, ou o tenha maliciosamente transferido para outro lugar com o objetivo de fazer-lhe mal, ou que tenha substituído o selo por um outro, contra este ordeno que seja constituído um tribunal, tanto com relação aos deuses, como em relação ao culto aos mortais. Pois é muito mais obrigatório honrar os sepultados. Que seja absolutamente proibido a qualquer um perturbá-los. Em caso de violação, desejo que o ofensor seja sentenciado à pena capital ou considerado culpado de violação de sepulcro. I
Os estudiosos acreditam que esse edito foi promulgado pelo imperador Tibério, que reinou de 14 a 37 d.C. (durante a maior parte da vida de Cristo), ou pelo imperador Cláudio, que reinou de 41 a 54 d.C. O aspecto notável desse dito é que ele transforma a simples ação de saquear uma sepultura de um ato passível de multa para um ato passível de pena de morte!
Por que o imperador romano se importaria em promulgar um edito tão severo naquele momento, numa área tão remota de seu Império? Embora ninguém saiba com certeza as razões que levaram à promulgação desse edito, existem algumas possibilidades que remetem a Jesus.
Se a inscrição é de Tibério, então é provável que Tibério tenha ouvido falar de Jesus com base em um dos relatórios anuais que Pilatos teria feito. Justino Mártir afirma que foi isso o que aconteceu. Pode ter sido incluída nesse relatório a explicação judaica para o túmulo vazio (os discípulos roubaram o corpo), levando Tibério a impedir qualquer “ressurreição” futura daquele edito.
Se a inscrição é de Cláudio, então o edito pode ter sido parte de sua resposta às revoltas que aconteceram em Roma no ano 49 d.C. Lucas menciona em Atos 18.2 que Cláudio expulsou os judeus de Roma. Isso é confirmado pelo historiador romano Suetônio, que nos diz que “porque os judeus em Roma causavam perturbações contínuas em função da instigação de Crestos, ele [Cláudio] os expulsou da cidade” (Crestos é uma variante do nome Cristo).
Qual a relação entre Cristo e as revoltas judaicas em Roma? Talvez Roma tivesse experimentado o mesmo curso de fatos ocorridos em Tessalônica basicamente no mesmo período. Em Atos 17, Lucas registra que houve um “tumulto” em Tessalônica quando os judeus “ficaram com inveja’ porque Paulo estava pregando que Jesus ressuscitara dos mortos. Aqueles judeus reclamaram com os oficiais da cidade, dizendo: “Esses homens, que têm causado alvoroço por todo o mundo, agora chegaram aqui [ ... ]. Todos eles estão agindo contra os decretos de César, dizendo que existe um outro rei, chamado Jesus” (v. 6,7).
Se foi isso o que realmente aconteceu em Roma, então Cláudio não estava feliz com o grupo que agia contra os seus decretos e que seguia outro rei. Uma vez que já tinha conhecimento dessa nova seita rebelde nascida entre os judeus que acreditavam que seu líder havia ressuscitado, é possível que tenha expulsado todos os judeus de Roma e transformado a violação de sepulturas em crime capital.
Qualquer uma dessas duas possibilidades poderia explicar o tempo, o local e a severidade do edito. Contudo, mesmo que o edito não estivesse ligado ao túmulo vazio de Cristo, já temos boas evidências de que os judeus propagaram a hipótese do roubo (v. capo anterior). A questão principal é que a hipótese do roubo foi uma admissão tácita de que o túmulo estava realmente vazio. Além do mais, por que os judeus inventariam uma explicação para o túmulo vazio se o corpo de Jesus ainda estivesse ali?
Um substituto assumiu o lugar de Jesus na cruz. Essa é a explicação apresentada pelos muçulmanos hoje — Jesus não foi crucificado, mas alguém — como Judas, por exemplo — foi morto em seu lugar. O Alcorão faz a seguinte afirmação sobre Jesus:
Eles não o mataram, não o crucificaram, mais tudo foi feito para que lhes parecesse assim, e aqueles que discordam desse aspecto estão cheios de dúvidas sem conhecimento (correto), mas apenas conjeturas para seguir, pois com certeza eles não o mataram: não, Alá o ressuscitou para si mesmo; e Alá é Exaltado em Poder, Sábio (surata 4.157,158).
Desse modo, de acordo com o Alcorão, parece que Jesus foi crucificado e que Alá o levou diretamente para o céu.
Existem muitos problemas com essa teoria, sem contar que simplesmente não existe evidência alguma que a apoie. Essa afirmação do Alcorão foi escrita mais de 600 anos depois da vida de Jesus. De que maneira isso pode ser considerado uma fonte mais autorizada sobre a vida de Jesus do que os relatos das testemunhas oculares? Essa teoria contradiz todo o depoimento das testemunhas oculares e o testemunho das fontes não-cristãs.
Além do mais, essa teoria levanta mais perguntas do que respostas. Devemos acreditar que a multidão de testemunhas que presenciou algum aspecto da morte de Jesus — os discípulos, os guardas romanos, Pilatos, os judeus, a família e os amigos de Jesus — estava toda errada sobre quem fora morto? De que maneira tantas pessoas poderiam estar erradas quanto a uma simples identificação? Isso é o mesmo que dizer que Abraham Lincoln não foi a pessoa assassinada ao lado de sua esposa numa noite de abril de 1865 no Teatro Ford. Estaria Mary Lincoln errada sobre o homem que estava sentado ao seu lado? O guarda-costas de Lincoln estava errado sobre quem ele estava guardando? Todas as outras pessoas estavam erradas sobre a identidade do presidente também? Não se pode acreditar nisso.
Existem muitas outras perguntas levantadas por essa teoria. Se Jesus não foi morto, então por que o túmulo do homem que realmente foi morto foi encontrado vazio? Por acaso devemos acreditar que o substituto ressuscitou dos mortos? Se foi assim, de que maneira ele o fez? Devemos acreditar que todos os historiadores não-cristãos estão errados sobre a morte de Jesus? E o que devemos fazer com a admissão judaica da morte de Jesus? Estaria o talmude errado ao dizer que Jesus foi pendurado num madeiro na véspera da Páscoa? Em resumo, devemos acreditar que todas as pessoas do século I estavam erradas sobre tudo?
É preciso questionar uma teoria surgida 600 anos depois dos fatos e que pede a você para acreditar que todas as evidências do século I estão erradas. A verdade é que essa teoria contradiz a maioria dos 12 fatos nos quais praticamente todos os estudiosos acreditam (v. o início deste capítulo). Tal como outras teorias alternativas, essa está construída sobre mera especulação, sem nem mesmo uma partícula de comprovação que possa apoiá-la. Portanto, não temos fé suficiente para acreditar nela.
A fé dos discípulos levou-os à crença na ressurreição. John Dominic Crossan é o co-fundador do grupo de estudiosos e críticos de extrema esquerda que chamam a si mesmos de o “Seminário de Jesus”. Eles decidiram que apenas 18% dos dizeres atribuídos a Jesus nos evangelhos são autênticos (leia mais sobre isso no apêndice 3). Não apresentam nenhuma evidência real para o seu ceticismo, apenas teorias especulativas sobre como a fé dos discípulos levou-os à sua crença na ressurreição e em tudo mais no NT.
Essa teoria foi levantada exatamente durante o debate que Crossan teve com William Lane Craig sobre a ressurreição de Jesus. Crossan apresentou a teoria de que os discípulos inventaram a história da ressurreição porque eles “pesquisaram nas Escrituras” depois de sua morte e descobriram que “a perseguição, se não a execução, era muito semelhante a uma espécie de descrição de função dos eleitos de Deus”.
Todo o debate de duas horas girou em torno da resposta de Craig. Ele disse:
“Certo. Isso surgiu depois de terem presenciado as aparições da ressurreição [ ... ]. A fé dos discípulos não levou às aparições [da ressurreição], mas foram as aparições que levaram à sua fé; depois disso é que eles foram pesquisar nas Escrituras”.
O fato é que os discípulos assustados, amedrontados e céticos não inventariam uma história de ressurreição e depois sairiam por aí dispostos a morrer por Jesus.
Em terceiro lugar, antigas fontes não-cristãs sabiam que os autores do NT não estavam apresentando relatos míticos. Como observa Craig L. Blomberg, “os antigos críticos judaicos e pagãos da ressurreição entenderam que os autores dos evangelhos estavam fazendo afirmações históricas, não escrevendo mitos ou lendas. Eles simplesmente discutiam a plausibilidade dessas afirmações”.
Em quarto lugar, nenhum mito grego ou romano falou da encarnação literal de um Deus monoteísta numa forma humana (cf. Jo 1.1-3,14), por meio de um nascimento virginal (Mt 1.18-25), seguido por sua morte e ressurreição física. Os gregos eram politeístas, e não monoteístas como os cristãos do NT. Além do mais, os gregos acreditavam na encarnação em um corpo mortal diferente; os cristãos do NT acreditavam na ressurreição do mesmo corpo físico que se tornava imortal (cf. Lc 24.37; Jo 9.2; Hb 9.27).
Em quinto lugar, o primeiro paralelo real de um deus que morre e ressuscita só aparece depois do ano 150 d.e, mais de cem anos depois da origem do cristianismo. Desse modo, se houve qualquer influência de um sobre o outro, foi a influência do fato histórico do NT sobre a mitologia, e não o inverso.
O único relato conhecido de um deus sobrevivendo à morte que seja anterior ao cristianismo é o culto egípcio ao deus Osíris. Nesse mito, Osíris é cortado em 14 pedaços, espalhado por todo o Egito e, depois, remontado e trazido de volta à vida pela deusa Ísis. Contudo, Os íris não volta realmente à vida física, mas torna-se membro de um submundo de sombras. Como observam Gary Habermas e Michael Licona, “isso é muito diferente do relato da ressurreição de Jesus, no qual ele é o gloriosamente ressurreto Príncipe da vida que foi visto por outros na terra antes de sua ascensão ao céu”.
Por fim, mesmo se existirem mitos sobre deuses morrendo e ressuscitando que sejam anteriores ao cristianismo, isso não significa que os autores do NT copiaram esses mitos. A série de TV de ficção científica Jornada nas estrelas precedeu o programa norte-americano do ônibus espacial, mas isso não significa que as reportagens de jornal sobre as missões do ônibus espacial são influenciadas pelos episódios de Jornada nas estrelas! É preciso olhar para a evidência de cada relato para ver se é histórico ou mítico. Não há testemunhas oculares ou evidências que corroborem a historicidade da ressurreição de Os íris ou de qualquer outro deus pagão. Ninguém acredita que eles sejam realmente figuras históricas. Contudo, como vimos, existem fortes evidências de testemunhas oculares que corroboram a historicidade da morte e da ressurreição de Jesus Cristo.

Os cristãos estão acostumados a “contra-atacar” teorias alternativas da ressurreição. De fato, nós mesmos acabamos de fazer isso ao destacar as inúmeras deficiências das teorias alternativas. Mas isso não é suficiente. Embora os céticos corretamente coloquem o ônus da prova da ressurreição sobre os cristãos (e, como vimos, os cristãos podem satisfazer essa prova com boas evidências), os cristãos precisam colocar o ônus da prova sobre os céticos quanto às suas teorias alternativas. À luz de todas as evidências positivas da ressurreição, os céticos devem mostrar evidências positivas originárias do século I para suas visões alternativas.

Uma coisa é inventar uma teoria alternativa da ressurreição; outra é encontrar evidências do século I para ela. Uma teoria não é uma evidência. É sensato exigir evidências, não apenas teoria. Qualquer um pode inventar uma teoria para explicar um fato histórico qualquer. Por exemplo: você acreditaria numa história que afirmasse que todo o material filmado nos campos de concentração do Holocausto fora encenado e fabricado por judeus com o objetivo de angariar simpatia e apoio para um Estado judeu? É claro que não, porque isso vai de encontro a todas as evidências conhecidas. Para serem levados a sério, aqueles que propõem tal teoria devem apresentar relatórios dignos de crédito e independentes de testemunhas oculares, além de outras evidências corroborantes, para irem na direção oposta aos inúmeros relatos que dizem que o Holocausto foi real e que foi realmente perpetrado pelos nazistas. Mas não existe nenhuma dessas contra-evidências.
Esse é o caso da ressurreição. Embora os céticos tenham formulado diversas teorias alternativas para desacreditar a ressurreição, não há evidência de alguma fonte do século I que apoie qualquer uma dessas teorias. A única teoria que é até mesmo mencionada por uma fonte do século I (os discípulos roubaram o corpo) vem de Mateus e é claramente identificada como mentira. Ninguém do mundo antigo — nem mesmo os inimigos do cristianismo — deu uma explicação alternativa plausível para a ressurreição. Muitas das teorias alternativas formuladas nos 200 anos seguintes estão baseadas no anti-sobrenaturalismo. Uma vez que os estudiosos modernos eliminam filosoficamente os milagres logo de início, eles inventam explicações ad hoc para desacreditar a ressurreição. Como vimos, suas explicações ad hoc contêm inúmeros absurdos e improbabilidades.
Deveríamos perguntar àqueles que possuem teorias alternativas para a ressurreição: “Que evidências você tem para sua teoria? Por favor, poderia citar três ou quatro fontes do século I que apóiem sua teoria?”. Quando os céticos honestos se vêem diante dessa pergunta, normalmente respondem com o silêncio ou admitem de modo gaguejante que não possuem tais evidências, porque elas não existem.
E não é apenas a ressurreição que os céticos precisam explicar. Também precisam explicar os outros 35 milagres que as testemunhas oculares associaram a Jesus. Devemos acreditar que os quatro autores dos evangelhos foram todos enganados acerca de todos aqueles milagres, bem como sobre a ressurreição de Jesus?
Essa teoria de engano em massa precisa de evidência. Possuímos alguma outra fonte do século I que ofereça uma explicação diferente para as obras de Jesus? A única que foi descoberta (e que provavelmente é do século 11) é o !talmude judaico, que admite que Jesus realizou atos incomuns dizendo que ele “praticava feitiçaria’. Mas essa explicação é tão fraca quanto a explicação judaica para a ressurreição (os discípulos roubaram o corpo). Talvez a feitiçaria pudesse explicar alguns dos “milagres” de Jesus, mas o que dizer de todos os 35? Feiticeiros e mágicos não podem realizar o tipo de ato que se diz que Jesus realizou — ressuscitar mortos, dar vista a cegos, caminhar sobre as águas, e assim por diante.
Desse modo, se não existe nenhuma evidência antiga para esse engano coletivo, devemos aceitar os milagres do NT como são apresentados? Por que não? Vivemos num Universo teísta, onde milagres são possíveis. Embora seja verdade que não tenhamos confirmação independente para todos os milagres do NT (porque alguns são mencionados por apenas um autor), certamente temos múltiplas confirmações de muitos deles (até mesmo a ressurreição de Jesus). A quantidade de milagres de Jesus citados por fontes independentes é grande demais para que eles sejam eliminados como se fossem um grande engano. Uma pessoa pode ser enganada uma vez, mas não é possível que vários observadores sejam enganados repetidamente.
O estudioso alemão Wolfgang Trilling escreve: “Estamos convictos e consideramos historicamente correto que Jesus de fato realizou milagres [ ... ]. Os relatos de milagres ocupam tanto espaço nos evangelhos que é impossível que tudo isso pudesse ter sido subsequentemente inventado ou transferido para Jesus”.
William Lane Craig conclui: “O fato de que a obra miraculosa pertence ao Jesus histórico não é mais discutido”. Ou seja, os milagres não são discutidos com bases históricas, mas apenas com bases filosóficas (falaremos sobre isso mais à frente).
O mais importante é que existem muitos milagres e muito testemunho para se acreditar que todas as testemunhas oculares erraram todas as vezes. Com respeito à ressurreição, todas as teorias alternativas possuem erros fatais e temos fortes evidências circunstanciais e de testemunhas oculares de que Jesus realmente ressuscitou dos mortos. Em outras palavras, não apenas carecemos de uma explicação natural para o túmulo vazio, mas temos evidências positivas da ressurreição. A explicação que exige a menor quantidade de fé é a de que Jesus realmente realizou milagres e realmente ressuscitou dos mortos como havia predito anteriormente. Desse modo, não temos fé suficiente para acreditar que os autores do Novo Testamento foram todos enganados.

Se temos uma cópia precisa de um testemunho antigo (cap. 9); se esse testemunho é não apenas antigo, mas provém de testemunhas oculares (cap. 10); se essas testemunhas oculares registraram com precisão aquilo que viram (cap. 11); e se as testemunhas oculares não foram enganadas sobre aquilo que registraram (este capítulo), então por que nem todos os estudiosos aceitam o NT como ele é? Pela mesma razão que os darwinistas recusam-se a reconhecer as evidências que derrotam sua visão: possuem um viés filosófico contrário aos milagres.

Esse viés foi admitido durante um debate entre Craig e Crossan. Craig acredita, como nós, que a evidência da historicidade da ressurreição literal é forte. Por outro lado, Crossan não acredita que Jesus ressuscitou literalmente dos mortos. Leia a seguir um trecho do debate entre os dois homens:
Craig: — Haveria alguma coisa, dr. Crossan, que pudesse convencê-lo do fato histórico de que Jesus ressuscitou dos mortos?
Crossan: — Preciso certificar-me do que estamos falando. Digamos que estamos diante de algum acontecimento do lado de fora do túmulo vazio na manhã do domingo de Páscoa. Se alguém tivesse uma câmera de vídeo, teríamos o registro de alguma coisa saindo do túmulo? É esse o tipo da pergunta?
Craig: — Creio que o que estou perguntando e o que penso que o sr. Buckley [o moderador do debate] está exigindo é isto: que evidência seria necessária para convencê-lo? Ou você possui uma idéia preconcebida sobre a impossibilidade do miraculoso e similares que, de fato, é tão forte que distorce o seu julgamento histórico, de modo que tal fato jamais pudesse ser admitido num tribunal?
Crossan: — Não … Um médico na cidade de Lourdes poderia admitir: “Não possuo uma maneira médica de explicar o que aconteceu”. Essa é uma afirmação correta. Então alguém tem o direito de dizer: “Portanto, eu, pela fé, acredito que Deus interveio aqui”. Mas é uma pressuposição teológica minha de que Deus não opera dessa maneira … O que seria necessário para me provar o que você pergunta? Eu não sei, a não ser que Deus mude o Universo. Eu poderia imaginar descobrir amanhã pela manhã que todas as árvores do lado de fora da minha casa moveram-se 2 metros. Isso exige alguma explicação. Não sei qual é a explicação, mas não presumiria imediatamente que foi um milagre.
A declaração explícita de Crossan de sua pressuposição teológica contra os milagres é uma franca admissão de sua parte. Naturalmente Crossan não está falando em nome de todos os estudiosos céticos. Contudo, certamente a maioria deles nega a leitura direta do NT porque compartilha de seu viés filosófico contra os milagres. Não é que a evidência histórica favorável ao NT seja fraca (na verdade, ela é muito forte). É que excluíram os milagres de antemão. Chegam à conclusão errada porque seu viés os impede de chegar à conclusão correta.

Vamos analisar o comentário final de Crossan sobre as árvores no seu jardim movendo-se 2 metros da noite para o dia. Ele diz que ele”não presumiria imediatamente que foi um milagre”. Bem, nós também, porque a maioria dos fatos realmente possui uma explicação natural (que, conseqüentemente, ajuda os milagres a destacar-se quando ocorrem). Desse modo, faz total sentido procurar uma explicação natural em primeiro lugar.

Mas isso significa que nunca deveríamos concluir que um fato qualquer (como as árvores movendo-se) foi um milagre? Crossan não concluiria isso por causa de sua pressuposição teológica de que Deus “não opera dessa maneira”. Contudo, uma vez que a pressuposição é injustificada — porque Deus existe -, qual seria a conclusão correta? Depende do contexto do fato. Lembre-se do capítulo 5, no qual dissemos que a evidência deve ser interpretada à luz do contexto no qual ela é encontrada.
Desse modo, vamos supor que o evento de Crossan no qual as árvores movem-se aconteceu no seguinte contexto: 200 anos antes, alguém que afirma ser um profeta de Deus escreve uma predição de que todas as árvores numa área de Jerusalém realmente se moveriam 1 metro numa noite, em um ano em particular. Duzentos anos depois, um homem chega para dizer às pessoas da cidade que o milagre do mover das árvores vai acontecer em breve. Esse homem afirma ser Deus, ensina verdades profundas e realiza muitos outros atos incomuns que parecem ser milagres.
Então, numa manhã, diversas testemunhas oculares afirmam que as árvores no jardim de Jerusalém de Crossan — incluindo algumas com raízes profundas, carvalhos com 30 metros de altura — realmente se moveram 1 metro durante a noite, exatamente como o homem-Deus predissera. Essas testemunhas oculares também dizem que esse é apenas um dos mais de 30 milagres realizados por aquele homem-Deus. Então as testemunhas começam a sofrer perseguição e martírio por proclamar tais milagres e recusar-se a negar o seu depoimento. Os oponentes do homem-Deus não negam a evidência sobre as árvores ou os outros milagres, mas oferecem uma explicação natural que possui inúmeros erros fatais. Muitos anos mais tarde, depois que todas as testemunhas morreram, os céticos oferecem explicações naturais adicionais que fatalmente são comprovadas como erros. De fato, nos 1.900 anos seguintes, os céticos tentam explicar o fato de maneira natural, mas nenhum deles consegue.
Pergunta: Dado o contexto, não seria racional presumir que o movimento das árvores foi sobrenatural, em vez de ter uma origem natural? É claro que sim. O contexto faz toda a diferença.
Esse é o caso que temos quanto à ressurreição. Não é simplesmente porque não temos uma explicação natural para o túmulo vazio. É que temos evidências circunstanciais positivas de testemunhas oculares que corroboram favoravelmente o milagre da ressurreição de Jesus. Aqui está o contexto no qual devemos avaliar as evidências.
I. A natureza teísta deste Universo faz milagres serem possíveis. Vivemos num Universo teísta onde milagres são possíveis (na verdade, o maior milagre de todos — a criação do Universo do nada — já aconteceu). Desse modo, Deus pode usar profetas para anunciar sua mensagem e milagres para confirmá-la. Ou seja, um milagre pode ser usado para confirmar a palavra de Deus, por meio de um homem de Deus, ao povo de Deus.
II. Documentos antigos dizem que se devem esperar os milagres. Temos documentos do AT, escritos centenas de anos antes, que predizem que o Messias — um homem que, na verdade, seria Deus — viria, seria morto num momento específico como sacrifício pela humanidade pecaminosa e ressuscitaria dos mortos (v. mais sobre esse assunto no capítulo seguinte).
III. Documentos de testemunhas oculares historicamente confirmados dizem que os milagres são reais. Existem 27 documentos escritos por nove testemunhas oculares ou por seus contemporâneos que descrevem diversos acontecimentos miraculosos. Muitos desses documentos contêm depoimentos historicamente confirmados de testemunhas oculares que remontam aos tempos dos acontecimentos, e essas evidências demonstram que a narrativa não foi inventada, maquiada ou produto de fraude. Sabemos isso porque os documentos do NT satisfazem todos os sete testes de historicidade identificados no capítulo 9. Os documentos do NT:
  1. são antigos (a maioria deles foi escrita 15 a 40 anos depois, num período de no máximo duas gerações depois dos fatos);
    1. possuem depoimento de testemunhas oculares;
  2. possuem depoimento independente de testemunhas oculares de múltiplas fontes;
    1. foram escritos por pessoas dignas de confiança que ensinaram e viveram de acordo com elevados padrões de ética e que morreram por causa de seu testemunho;
  3. descrevem acontecimentos, locais e indivíduos corroborados pela arqueologia e por outros autores;
  4. descrevem alguns acontecimentos que os inimigos tacitamente admitem serem verdadeiros (confirmação do inimigo);
  5. descrevem acontecimentos e detalhes que são embaraçosos para os autores e até mesmo para o próprio Jesus.
Esses documentos historicamente confirmados de testemunhas oculares contam a seguinte história:
  1. No tempo, no local e da maneira predita pelo AT, Jesus chega a Jerusalém e afirma ser o Messias. Ele ensina verdades profundas e, de acordo com numerosas testemunhas oculares independentes, realiza 35 milagres (alguns em grupos de pessoas) e ressuscita dos mortos.
  2. As testemunhas oculares — que antigamente eram covardes e descrentes — repentinamente começam a proclamar a ressurreição de Jesus de maneira ousada, arrostando perseguição e morte (pessoas mal orientadas podem morrer por uma mentira que elas consideram ser verdade, mas não vão morrer por uma mentira que sabem que é uma mentira. Os autores do NT estavam em posição de saber a verdade real sobre a ressurreição).
  3. Na própria cidade da morte e do túmulo de Jesus, um novo movimento (a igreja) nasce e espalha-se rapidamente de maneira pacífica, na crença de que Jesus ressuscitou dos mortos (isso seria difícil de explicar se a ressurreição não tivesse acontecido. Como seria possível o cristianismo começar em uma cidade hostil como Jerusalém se o corpo de Jesus ainda estivesse no túmulo? As hostis autoridades religiosas e governamentais teriam exposto o cristianismo como uma farsa ao apresentarem o corpo).
  4. Os milhares de judeus de Jerusalém, incluindo sacerdotes fariseus, abandonaram cinco de suas crenças e práticas mais estimadas e adotaram novas práticas estranhas ao se converter ao cristianismo.
  5. Saulo, o mais ardoroso inimigo da igreja nascente, converte-se repentinamente e torna-se seu propagador mais produtivo. Ele viaja pelo mundo antigo para proclamar a ressurreição, sofrendo perseguição e martírio (se a ressurreição não tivesse acontecido, então por que o maior inimigo do cristianismo repentinamente se tornaria seu maior líder? Por que sofreria voluntariamente perseguição e morte?).
  6. Tiago, o cético irmão de Jesus, repentinamente se convence de que seu irmão é o Filho de Deus e, então, torna-se o líder da igreja em Jerusalém. Mais tarde, sofre martírio nas mãos do sumo sacerdote (todos nós sabemos que os membros da família podem ser as pessoas mais difíceis de se convencerem de nosso ponto de vista religioso. Tiago começou como um irmão inconvicto de Jesus (Jo 7.5]. Se a ressurreição não tivesse acontecido, então por que Tiago — que foi chamado de “o justo” pelos historiadores Clemente e Hegesipo no século 11 — repentinamente se tornaria crente de que seu irmão realmente era o Messias? A não ser que tenha visto o Cristo ressurreto, por que Tiago se tornaria o líder da igreja em Jerusalém e sofreria a morte por meio de martírio?).
    1. Os inimigos judeus do cristianismo não negam as evidências, mas oferecem justificativas naturais falhas para explicá-la.
IV: Confirmação adicional. As referências coletivas de outros historiadores e de autores antigos confirmam essa linha básica da história dos documentos do NT, e várias descobertas arqueológicas confirmam os detalhes que esses documentos descrevem.
Quando se colocam as evidências no contexto adequado, você pode ver por que não temos fé suficiente para sermos céticos em relação a isso. É muito mais lógico ser cético sobre o ceticismo!
Os céticos que analisam os pontos 11 a IV mostrados anteriormente (incluindo seus subi tens) podem concluir que Jesus não ressuscitou dos mortos. Mas, se o fizerem, então precisarão dar evidências para uma teoria alternativa que possa responder a todas essas questões. Como já vimos, eles falharam terrivelmente. A ressurreição é a melhor explicação para todas as evidências.
Uma vez que existe um Deus capaz de agir, então pode haver atos de Deus.
Quando a intenção de Deus é anunciada antecipadamente e você possui bons depoimentos de testemunhas oculares e evidências que corroboram que tais fatos realmente aconteceram, é preciso ter muito mais fé para negar esses eventos do que para acreditar neles.

Existem duas objeções adicionais que os céticos freqüentemente levantam contra a ressurreição de Jesus e os milagres. A primeira é a demanda por evidência extraordinária.

Evidência extraordinária. Alguns céticos podem admitir que a ressurreição seja possível, mas eles dizem que isso exigiria uma evidência extraordinária para que fosse crível. Ou seja, uma vez que o NT faz afirmações extraordinárias como os milagres -, devemos ter evidências extraordinárias com o objetivo de acreditar nessas afirmações. Essa objeção parece lógica até que se pergunte: “o que significa ‘extraordinário’?”.
Se significa além do natural, então o cético está pedindo que a ressurreição seja confirmada por outro milagre. Como isso poderia funcionar? Com o objetivo de acreditar no primeiro milagre (a ressurreição), o cético precisaria então de um segundo milagre que a apoiasse. Ele então exigiria um terceiro milagre para apoiar o segundo, e isso prosseguiria infinitamente. Assim, por esse critério, o cético nunca acreditaria na ressurreição de Jesus. Existe alguma coisa errada com um padrão de prova que impossibilita que se creia naquilo que realmente aconteceu.
Se “extraordinário” significa repetível como no laboratório, então nenhum fato da história é digno de crédito, porque os fatos históricos não podem ser repetidos. A credibilidade de um fato histórico só pode ser confirmada ao olhar-se para a qualidade das evidências das testemunhas oculares e para a natureza das evidências forenses à luz dos princípios de uniformidade e causalidade (abordamos esses princípios no capo 5). Além disso, os ateus que exigem a repetibilidade dos milagres bíblicos são incoerentes, porque não exigem repetibilidade de “milagres” históricos nos quais eles acreditam — o Big Bang, a geração espontânea da primeira vida e a macroevolução das formas de vida subsequentes.
Se “extraordinário” significa mais do que o comum, então é exatamente o que temos para apoiar a ressurreição. Temos mais documentos de testemunhas oculares e documentos de testemunhas oculares mais antigos sobre a ressurreição de Jesus do que de qualquer outra coisa do mundo antigo. Além do mais, esses documentos incluem mais detalhes históricos e personagens e foram corroborados por mais fontes independentes e externas do que qualquer outra coisa do mundo antigo. Como acabamos de ver, também temos mais do que evidências circunstanciais comuns apoiando a ressurreição de Jesus.
Por fim, as pressuposições dos céticos podem ser contestadas. Não precisamos de evidências “extraordinárias” para acreditar em alguma coisa. Os ateus afirmam isso com base em sua própria visão de mundo. Eles acreditam no Big Bang não porque ele tenha evidências “extraordinárias” favoráveis, mas porque existem boas evidências de que o Universo explodiu e passou a existir do nada. Boas evidências é tudo de que você precisa para acreditar em alguma coisa. Contudo, os ateus não possuem nem mesmo boa evidência para algumas de suas próprias crenças tão preciosas. Os ateus acreditam, por exemplo, na geração espontânea e na macroevolução somente pela fé. Dizemos somente pela fé porque, como vimos nos capítulos 5 e 6, não apenas existe pouca ou nenhuma evidência para a geração espontânea e a macroevolução, mas existem fortes evidências contra essas possibilidades.
Além disso, os céticos não exigem evidências “extraordinárias” para outros fatos “extraordinários” da história. Poucos fatos da história antiga, por exemplo, são mais “extraordinários” do que os feitos de Alexandre, o Grande (356-323 a.C.). Apesar de ter vivido apenas 33 anos, Alexandre alcançou um sucesso sem paralelo. Ele conquistou grande parte do mundo civilizado de sua época, desde a Grécia, indo ao leste da Índia e ao sul do Egito. Contudo, como sabemos tudo isso sobre Alexandre? Não temos fontes da época de sua vida ou de pouco tempo depois de sua morte. Temos apenas fragmentos de duas obras escritas cerca de cem anos depois de sua morte. A verdade é: baseamos quase tudo o que sabemos sobre a vida “extra-ordinária” de Alexandre, o Grande, daquilo que historiadores escreveram cerca de 300 a 500 anos depois de sua morte! À luz das robustas evidências favoráveis à vida de Cristo, qualquer um que duvide da historicidade de Cristo deveria também duvidar da historicidade de Alexandre, o Grande. De fato, para ser coerente, tal cético deveria duvidar de toda a história antiga.
Por que os céticos pedem evidências “extraordinárias” para a vida de Cristo, mas não para a vida de Alexandre, o Grande? Porque se apegam novamente aos milagres. Apesar do fato de os milagres serem possíveis pelo fato de Deus existir — e a despeito do fato de que os milagres foram preditos e depois testemunhados -, os céticos não suportam admitir que os milagres realmente aconteceram. Desse modo, colocam o padrão de credibilidade num nível muito alto. É como se algum cético estivesse dizendo: “Eu não vou acreditar nos milagres porque não vi um deles acontecer. Se Jesus ressurreto aparecesse a mim, então eu acreditaria nele”. Essa então seria uma evidência extraordinária.
Ela seria certamente extraordinária, mas seria realmente necessária? Jesus precisa aparecer a toda pessoa no mundo para que suas declarações sejam dignas de crédito? Por que faria isso? Não precisamos testemunhar todo acontecimento em primeira mão com o objetivo de acreditar que ele realmente aconteceu. De fato, seria fisicamente impossível fazer isso. Acreditamos no testemunho dos outros se são pessoas dignas de confiança e especialmente se o seu testemunho é corroborado por outros dados. É exatamente isso o que acontece com o testemunho dos autores do NT.
Além do mais, como destacamos no capítulo 8, se Deus fosse muito aberto à demonstração de milagres freqüentes, então, em alguns casos, estaria infringindo o nosso livre-arbítrio. Se o propósito desta vida é permitir que façamos escolhas livremente que vão nos preparar para a eternidade, então Deus vai nos dar evidências convincentes — mas não evidências impositivas — de sua existência e de seus propósitos. Portanto, aqueles que querem seguir a Deus podem fazê-lo com confiança, e aqueles que não querem podem suprimir ou ignorar a evidência e viver como se ele não existisse.
Milagres que se auto-cancelam. O grande cético David Hume argumentou que os milagres não podem confirmar a religião de alguém porque são baseados em um testemunho pobre e todas as religiões os possuem. Em outras palavras, as declarações sobre milagres se auto-cancelam. Infelizmente para Hume, sua objeção não descreve o estado real das coisas.
Em primeiro lugar, Hume faz uma generalização precipitada ao dizer que os supostos milagres de todas as religiões são iguais. Como estamos vendo desde o capítulo 9, os milagres associados ao cristianismo não estão baseados em um testemunho pobre. Eles estão baseados em um testemunho antigo, de testemunhas oculares e de múltiplas fontes que não possuem similares em qualquer outra religião mundial. Ou seja, nenhuma outra religião mundial testificou milagres como aqueles presentes no NT.
Em segundo lugar, a objeção de Hume é anterior às descobertas da ciência moderna que confirmam que este é um Universo teísta (caps. 3-6). Uma vez que este é um Universo teísta, o judaísmo e o islamismo são as únicas outras grandes religiões mundiais com possibilidade de serem verdadeiras. Os milagres que confirmam o AT do judaísmo também confirmam o cristianismo. Desse modo, resta o islamismo como a única alternativa possível para “cancelar” os milagres do cristianismo. Contudo, como vimos no capítulo 10, não existem milagres verificáveis confirmando o islamismo. Todos os supostos milagres de Maomé surgiram depois de sua morte e não estão baseados no depoimento de testemunhas oculares.
Por fim, a singularidade, a quantidade e a qualidade dos milagres do NT não podem ser explicadas por qualquer outra coisa que não seja uma causa sobrenatural. Jesus realizou mais de 30 milagres, os quais foram instantâneos, sempre bem-sucedidos e singulares. Alguns foram até mesmo preditos. Os assim chamados milagreiros que afirmam sucesso parcial realizam apenas curas psicossomáticas, estão envolvidos em embuste, realizam sinais satânicos ou estão baseados em acontecimentos que podem ser explicados naturalmente. De fato, nenhum curandeiro contemporâneo jamais afirmou ser capaz de curar todas as doenças (incluindo as “incuráveis”) instantaneamente, com 100% de sucesso. Mas Jesus e os apóstolos fizeram isso. Assim, fica demonstrada a natureza singular e de autenticação divina dos milagres do NT contra todas as afirmações sobrenaturais de qualquer outra religião. Em resumo, nada “cancela” os milagres do NT.

No começo do capítulo 9, dissemos que existem duas perguntas às quais precisamos responder para verificar se o NT é verdadeiramente histórico:

  1. Possuímos cópias precisas dos documentos originais que foram escritos no século I?
  2. Esses documentos falam a verdade?
Como temos observado nos últimos quatro capítulos, há fortes evidências para uma resposta afirmativa a ambas as perguntas. Em outras palavras, podemos ter certeza, ainda que passível de dúvida, de que o NT é historicamente confiável.
Nesse ponto, não estamos dizendo que o NT está isento de erros. Vamos investigar essa questão mais tarde. Por ora, podemos apenas concluir que os principais fatos do NT realmente aconteceram cerca de 2 mil anos atrás. Jesus realmente viveu, ensinou, realizou milagres, morreu crucificado e depois ressuscitou dos mortos.
Se você ainda não se convenceu, considere mais uma peça das evidências corroborantes o incrível impacto da vida de Cristo conforme expresso num pequeno excerto de um sermão freqüentemente intitulado “Uma vida solitária’:
Ele nasceu numa vila obscura, filho de um camponês. Cresceu em outra vila, onde trabalhou como carpinteiro até os 30 anos. Então, por três anos, foi pregador itinerante. Ele nunca escreveu um livro. Nunca teve um escritório. Nunca constituiu família nem teve casa. Ele não foi para a faculdade. Nunca viveu numa cidade grande. Nunca viajou a mais de 300 quilômetros do lugar onde nasceu. Nunca realizou as coisas que normalmente acompanham a grandeza. Ele não tinha credenciais, a não ser ele mesmo. Tinha apenas 33 anos quando a onda da opinião pública voltou-se contra ele. Seus amigos fugiram. Um deles o negou. Foi entregue aos seus inimigos e sofreu zombaria durante seu julgamento. Foi pregado numa cruz entre dois ladrões. Enquanto estava morrendo, por meio de sortes seus executores disputavam suas roupas, a única coisa material que tivera. Quando morreu, foi colocado numa sepultura emprestada, por compaixão de um amigo.
[Vinte] séculos se passaram, e hoje ele é a figura central da raça humana. Sintoma plenamente confiante quando digo que todos os exércitos que já marcharam, todos os navios que já navegaram, todos os parlamentos que já discutiram, todos os reis que já reinaram, colocados juntos, não afetaram a vida do homem nesta Terra tanto quanto aquela vida solitária.
Se não houve ressurreição, de que maneira essa vida poderia ter sido a vida mais influente de todos os tempos? Não temos fé suficiente para acreditar que essa vida solitária de uma vila remota e antiga pudesse ser a mais influente de todos os tempos … A não ser que a ressurreição seja verdadeira.