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sábado, 15 de outubro de 2011

Raymond Brown, James Charleswort e o estigma da exclusão das Sinagogas


A comunidade joanina nasceu com pessoas que estavam sofrendo com a restauração do judaísmo depois da destruição do Templo (ano 70 d.C.) e o sínodo de Jâmnia (80 d.C.) Este grupo de fariseus/judeus refaz e reconstrói o judaísmo a partir exclusivamente da Lei, em perspectiva farisaica e deuteronomista, negando, portanto, que Jesus seja a “consumação perfeita” messiânica de Deus. Os textos de Jo 9,22; 12,42; 16,2 nos mostram o quanto o Jesus joânico reprova os judeus e seu desconhecimento de Deus (5,37-47; 8,19.55) e o quanto os judeus também tornam evidente sua não-aceitação a Jesus numa atitude agressiva: a exclusão da sinagoga judaica.


Embora os judeus ocupem um lugar de destaque no Quarto Evangelho, o evangelista parece ter uma aversão odiosa sem limites para com eles. Quem são afinal os judeus no Quarto Evangelho? O autor do evangelho era anti-semita? Neste artigo tentaremos distinguir e definir quem são os judeus do Quarto Evangelho e o que foi a exclusão da sinagoga para a comunidade joanina.


É indiscutível que “os judeus” desempenhem um papel importante. Assim o confirma o surpreendente dado estatístico segundo o qual o evangelho menciona “os judeus” em 70 passagens, 33 das quais eles aparecem como os inimigos de Jesus. Este dado é tanto mais chocante quando se tem em conta que esta expressão aparece muito raramente nos Sinóticos: 5 vezes em Mateus, 6 vezes em Marcos e 5 vezes em Lucas. A maior parte dos textos em que se fala dos judeus no Quarto Evangelho é para indicar os opositores de Jesus e seus discípulos. Por outro lado, encontramos textos que falam dos judeus de um modo geral, para se referir aos seus costumes, suas leis ou sua religião.


Tanto os personagens positivos quanto os negativos são judeus. Daí que o termo “judeu” no Quarto Evangelho não designa uma etnia, nem uma cultura, nem um povo. Quando usado por João com conotação adversativa, este termo não indica os judeus em geral – presentes tanto na Judéia como na Galiléia – para falar dos seus costumes, suas leis ou sua religião, mas se refere aos opositores de Jesus e seus discípulos: um grupo especial no ambiente judaico que tem peso político e social e até certo poder de decisão; uma ideologia que está tomando corpo numa estrutura de poder. Ao usar o termo “os judeus” em sentido hostil, o escritor joanino aponta o grupo judaico dominante, quer no tempo de Jesus, quer no tempo das comunidades joaninas (constituídas de judeus e não judeus). O problema é que João não distingue estes dois momentos e projeta anacronicamente a situação ulterior sobre a narrativa do ministério de Jesus. Funde em um só horizonte o ano 30 d.C. e o ano 90 d.C.4 Porém, não há razão para deduzir, do uso deste termo, que o Evangelho de João seja anti-judaico. É que João usa o termo para expressar: o povo judeu, os habitantes da Judéia, as autoridades judaicas; e meio século mais tarde, o novo judaísmo, enquanto oposto aos seguidores de Jesus.


Os textos que mencionam os judeus de forma pejorativa encontram-se, sobretudo, nos capítulos 5-10 e 18-19. As razões desta tomada de posição são claras: a messianidade de Jesus, sua origem, suas pretensões, sua conduta em relação ao sábado e, mais grave, Jesus se apresenta como “Um com o Pai” (8,52; 10,30.31).


Encontramos diversos grupos entre os judeus e dentre estes há um grupo opositor que não crê em Jesus (7,48; 9,39-41; 10,25; 12,37). Portanto, quando se diz que a “luz brilha”, sem que as trevas apreendam, que a luz veio ao mundo, sem que o mundo a conheça, ou que veio entre os seus e os seus não a receberam, está se falando de um grupo que recusa a verdade que Jesus veio proclamar. Embora o autor do evangelho não se refira explicitamente a um grupo concreto no tempo de Jesus, porque às vezes se fala do povo, outras dos judeus, outras dos fariseus e, finalmente, do Sinédrio. Podemos identificar este grupo como sendo o círculo de “judeus” e fariseus que estão em volta do Templo e do culto oficial, ou seja, as autoridades político-religiosas judaicas (1,19; 2,18; 5,10; 5,15; 7,13; 8,22; 8,59; 9,40-41). No fundo, o evangelho nos diz daqueles que levaram Jesus à cruz. Eles são exatamente os seus contemporâneos: os que não aceitam Jesus, os “judeus” de seu tempo, herdeiros do farisaísmo que se impôs depois da queda de Jerusalém, quando se reuniram em Jâmnia.


Com efeito, uma das políticas das lideranças de Jâmnia foi justamente a culpabilização do povo judeu, imperfeito no cumprimento da lei mosaica segundo os mesmos, pela destruição do Templo. A crença na messianidade de Jesus foi interpretada pelos fariseus como infidelidade à lei, como heresia. A reação da comunidade joanina se expressa em termos de desprezo pela autoridade farisaica e de rechaço ao “Judaísmo” por eles apregoado.


Este referencial da sinagoga com poderes políticos sobre a comunidade judaica e com possibilidade de mobilizar poderes civis e militares contra seus dissidentes, real no reinado de Agripa II faz com que o Quarto Evangelho deva ser examinado no contexto cultural – religioso da comunidade judaica siro-palestinense, profundamente marcada pelo trauma da Guerra Judaica, pela fragmentação ideológica, pela pressão do movimento unificador sediado em Jâmnia – enfim, uma coletividade marcada pelo medo.


Isso não implica em dizer que a comunidade joanina hauria todo seu conhecimento do judaísmo, daquilo que era ensinado e praticado nas sinagogas dos anos 80. Ao contrário: se houve conflitos entre ambas as instâncias, o motivo provavelmente terá sido a discordância a respeito da interpretação de pontos específicos da tradição judaica, realizada de forma diferente por judeus da sinagoga e por judeus da comunidade joanina. Deve-se tomar a sinagoga como referencial sócio-político, mas não necessariamente como seu referencial cultural – religioso. O substrato cultural possivelmente seria o mesmo, ou muito próximo, mas cada segmento fez sua leitura particular dos dados recebidos. Afinal, não teria a comunidade joanina compreendido a si mesma como um novo movimento religioso, autônomo tanto em relação à sinagoga quanto a outros grupos cristãos?


Os “judeus” representam, portanto, também a sinagoga judaica que sucedeu ao grupo do Templo. É aqui que se pode compreender a importância do momento histórico em que foi escrito o evangelho. A incredulidade descrita e as discussões de Jesus com os “judeus” estão mais centradas na problemática do tempo do autor do que na do tempo de Jesus.


Segundo J. Louis Martyn, temos que ler o Evangelho de João num nível duplo: o nível da vida de Jesus e o nível da presença poderosa deste Jesus no âmbito de sua comunidade. O Evangelho de João reflete um estágio inicial de banimento no judaísmo formativo. O ponto de partida do trabalho de Martyn é a expulsão dos cristãos da sinagoga, que ele classifica como dado anacrônico, pois esta medida contra os cristãos só foi executada a partir dos anos 90 d.C. Sua aplicação à vida de Jesus é um indício de que outros dados semelhantes podem ser mais um reflexo dos problemas e preocupações da comunidade joanina do que dados históricos sobre Jesus. É preciso ler o Quarto Evangelho à luz de vertentes outras do mundo e da cultura judaica, não representadas pelos fariseus nos anos pós-Guerra Judaica, mas sem deixar de se perguntar sobre a originalidade do cristianismo joanino em relação a estas outras formas culturas religiosas.


Para Klaus Wengst, ainda que o Jesus do Evangelho de João apresente as Escrituras, Moisés e a Lei a seu favor e ainda que o mesmo se qualifique como judeu, fala, no entanto, em “vossa Lei” (8,17; 10,34), como se tampouco ele não fosse judeu. Também chama seus antepassados do deserto de “vossos pais” (6,49). É indiscutível que esta distância que estabelece no evangelho e que apresenta o judaísmo como alheio a Jesus não concorde com a realidade do Jesus terreno. Este tipo de exposição é compreensível, em compensação, como expressão do contraste entre judaísmo e cristianismo da época do evangelista. A mesma distância acontece quando este fala da “páscoa dos judeus” (2,13; 6,4; 11,55), da “festa dos judeus” (5,1; 6,4) e da “purificação dos judeus” (2,6). O julgamento aparece aqui como um coletivo religioso bem definido frente a Jesus – e é, no plano do evangelista, frente à comunidade que aceita e crê – com sua Escritura, festas e costumes.


Para Harold Bloom, entre todos os evangelhos, o de João parece exibir o tom mais angustiado, e a modalidade dessa angústia apresenta uma natureza que ele consideraria tão literária quanto existencial ou espiritual. Sinal dessa angústia para ele é a diferença palpável entre a atitude de Jesus, em relação a si mesmo, no Quarto Evangelho, comparada àquela que observada nos outros três: “O Jesus de João demonstra certa obsessão com a própria glória, de modo especial, com o que deve constituir essa glória no contexto judaico.”


O evangelho, no entanto, não somente marca as distâncias da comunidade cristã frente ao judaísmo, como também fala de uma profunda hostilidade. Essa hostilidade põe em evidência o quanto o Jesus joânico reprova os judeus e seu desconhecimento de Deus (5,37-47; 8,19.55), o quanto os judeus também tornam evidente sua não-aceitação a Jesus com uma atitude agressiva. Por isso, a incredulidade é definida como fazer obras contra luz.


Quer dizer, a incredulidade e a hostilidade dos judeus não são simplesmente um não permitir que a revelação ilumine a vida deles, mas tendem a aniquilar a revelação ou, aniquilar Jesus. Daí a perseguição sistemática a Jesus até sua morte de cruz.


A comunidade joanina viveu forte conflito com o império romano e com as autoridades judaicas. Estes são os representantes supremos da oposição e do ódio contra Jesus. Ao romper com o sistema baseado no cumprimento rigoroso da Lei, ameaça a autoridade dos judeus/fariseus. Então, os cristãos são expulsos da sinagoga e começam a ser perseguidos. A primeira medida que os judeus tomaram em relação aos primeiros seguidores de Jesus parece haver sido a exclusão e a expulsão da sinagoga.


Embora não esteja claro que este seja um acontecimento produzido no tempo de Jesus, indica que aqui aflora um problema crucial que já delineava o tempo de Jesus. A primeira vez em que aparecem as autoridades judaicas excluindo e conseqüentemente expulsando alguém da sinagoga é em 9,22, no contexto da Narrativa da Cura do Cego de Nascença. Primeiro estas autoridades são mencionadas como fariseus e depois como judeus e aparecem ostentando um poder autoritativo. Estes judeus investidos de autoridade chamam a julgamento, segundo 9,18-23, os pais do ex-cego e os interrogam acerca de seu filho que fora curado por Jesus. Perguntam a eles sobre como o filho deles recuperou a visão. Os pais confessam sua ignorância dizendo que ele é maior de idade e pode falar por si mesmo. Os pais falaram assim porque temiam os dirigentes judeus, que já haviam combinado de expulsar da sinagoga quem a Cristo confessasse como o messias. Depois de sua confissão indireta de Jesus em 9,30-33, o cego curado aparece em 9,34 sendo expulso da sinagoga.


Segundo Schnackenburg, a expressão expulsão (9,34) poderia significar simplesmente um afastamento do lugar de reunião, porém, em relação a 9,22, por uma parte, e a confissão explícita posterior do ex-cego, por outra, prova que o evangelista se refere a uma exclusão da sinagoga. Também em 9,22 chama a atenção a frase de que os pais do ex-cego “temiam os judeus”, como se eles mesmos também não fossem judeus. Isto nos mostra por quanto o evangelista não apresenta os pais do ex-cego como seguidores de Jesus. Os judeus aparecem, pois, nesta passagem com poder autoritativo que procede severamente contra os dissidentes de seu próprio campo. Especialmente significativo é o advérbio “já”, que aponta que a pena já era aplicada no tempo de Jesus, porém não há nenhum documento que comprove esta expulsão. Contudo, a sanção era conhecida e aplicada no tempo do evangelista, como indica claramente o advérbio “já”.


Também no capítulo 20,19 se diz que os discípulos reunidos em uma casa ao anoitecer da páscoa tinham as portas fechadas por “medo dos judeus”. Esta frase referindo-se ao contexto histórico dos discípulos de Jesus mostra um resultado muito estranho: parece dizer que estes discípulos não eram judeus. A frase encontra todo o sentido quando se é transferido ao plano histórico do evangelista, se sua comunidade se viu realmente submetida à prepotência de um judaísmo hostil e excludente.


Uma segunda passagem em que encontramos a expressão expulsão é 12,42: “Contudo, muitos chefes creram nele, mas, por causa dos fariseus, não o confessavam, para não serem expulsos da sinagoga.” Neste texto aparecem os fariseus exercendo uma autoridade que não possuíam no tempo de Jesus. Tampouco esta frase é aplicada à época anterior ao ano 70 d.C. Tem sentido, em compensação, quando se aplica ao tempo do evangelista, pois sua comunidade contava com simpatizantes da classe dirigente que evitavam um reconhecimento público por medo dos judeus/fariseus e suas conseqüências.


Temos como exemplos judeus que acreditavam em Jesus (Jo 2,23; 8,31; 12,10-11), porém não têm coragem de manifestar sua fé publicamente por medo dos judeus e também porque não querem abrir mão de seus privilégios e status social. É o caso de Nicodemos e José de Arimatéia, pessoas importantes na comunidade judaica. A fé em Jesus é motivo para que o judaísmo de orientação farisaica decretasse a exclusão da sinagoga.


A terceira passagem é 16,2, uma predição que Jesus tem ao despedir-se de seus discípulos: “Expulsar-vos-ão das sinagogas.” Parece claro que a exclusão da sinagoga não é uma medida que faz referência à época de Jesus. O evangelista tem presente um problema instigado no seu tempo. O contexto o confirma: os versículos 1 e 4 assinalam que Jesus predisse a seus discípulos o ódio que iria desencadear sobre eles e conferem a esta predição um caráter de consolo: “Digo-vos isto para que não vos escandalizeis”. E conclui: “Mas vos digo tais coisas para que, ao chegar a sua hora, vos lembreis de que vô-las disse.” Porém, isto somente pode significar que a comunidade do evangelista seja objeto de ódio por reconhecer a Jesus como o messias e o evangelista trata de consolar-lhes fazendo-os compreender que as tribulações que os afetarão não são o fruto de uma cega fatalidade, mas que já foram preditas e anunciadas por Jesus. E o versículo 3 indica o verdadeiro motivo da conduta de seus perseguidores: “E isso farão porque não reconheceram o Pai nem a mim.” Agora, bem dentro das medidas concretas que afetam aos discípulos de Jesus: “Vos expulsarão da sinagoga.” Por isso, a expulsão da sinagoga é uma experiência dolorosa para a comunidade joanina. E porque a comunidade sofre com esta experiência, o evangelista assinala que Jesus a havia predito.


Além disso, 16,2 assinala outra medida complementar e ainda mais extrema: “virá a hora em que aquele que vos matar julgará realizar ato de culto a Deus.” Deixa claro, pelo contexto, que o evangelista tem presente uma experiência que a sua comunidade está vivendo. Essa experiência consiste em que o evangelista faz referência aos judeus enquanto sujeitos ativos, como, por exemplo, com poder de expulsar alguém da sinagoga. E isto, porque condenar os cristãos à morte pressupõe uma suposta obediência a Deus. Então, também fica claro que as vítimas são judeus cristãos e que a ocasião entendida como obediência a Deus só tem sentido – sob a óptica judaica – tratando-se de judeus renegados.


Na prática, a expressão expulsão deve significar uma excomunhão e ter sido uma medida disciplinar adotada pela sinagoga e que, portanto, tinha um limite temporal. Porém, as passagens do Quarto Evangelho mostram uma medida muito mais rigorosa. Trata-se de uma separação, de uma exclusão total da comunidade de fé judaica, como mostra claramente em 16,2, onde se fala inclusive de sentença de morte.


De acordo com Overmam, no período fluído que deu origem ao judaísmo formativo, uma série de facções competia por influência e controle. A possibilidade de excluir dissidente indica que aqueles que excluem possuem um grau de autoridade no ambiente em que o banimento é aplicado. O grupo que pratica a exclusão também precisa ter uma identidade suficientemente bem definida para poder entrar em um acordo quanto ao que constitui uma violação grave, a ponto de merecer exclusão. Porém, uma série de comunidades sectárias do judaísmo havia atingido claramente este estágio decisivo de definição e organização. Quando o banimento é praticado, significa que a comunidade, de uma forma ou de outra, atingiu um consenso quanto ao que ela é e o que ela representa. O judaísmo formativo desenvolveu a prática institucional do banimento, que protegia o grupo.


Um dos procedimentos adotados e que evoluiu no judaísmo formativo tem referência à recepção da birkat hamminin (a bênção dos hereges), eufemismo para designar a maldição dos dissidentes. Esta representa a décima segunda de dezoito bênçãos pronunciadas na sinagoga, as chamadas Amidah. Teve sua elaboração ligada ao concílio de Jâmnia e vai se consolidando no final do século I, porém sua redação, segundo autores modernos, é do século II. Esta bênção, que tradicionalmente incluía uma maldição dos inimigos de Deus (“que toda maldade pereça, de repente”), teve sua maldição assim reformulada: “Para os apóstatas, que não haja esperança. O domínio da arrogância elimine rapidamente em nossos dias. E deixa os nazarenos e os minim perecer em um momento. Deixa-os ser apagados do livro da vida. E que não sejam escritos junto com os justos”.


Os judeus cristãos, que tinham que ficar em silêncio enquanto a congregação recitava a nova fórmula, foram obrigados a retirarem-se. Não podiam beneficiar-se do “amém” comum da comunidade, ou sequer rezarem esta benção como recitadores nas assembléias da sinagoga. Porém, a remodelação do judaísmo não se inicia com a redação da birkat hamminin, que somente marca uma etapa neste processo. Por isso, as passagens expulsão da sinagoga do Quarto Evangelho se referem provavelmente à estigmatização dos judeus cristãos como hereges pela ortodoxia farisaica em processo de formação; pois esta estigmatização tinha como conseqüência a expulsão da comunidade sinagogal.


O desenvolvimento do judaísmo depois do ano 70 d.C., que atua contra a comunidade joanina e também contra outras correntes, explica a imagem que temos dos judeus no Evangelho de João como uma retrospecção desta época à época de Jesus. A expulsão da sinagoga não tinha somente conseqüências religiosas para os dissidentes, mas também era um ato que alterava substancialmente todas as circunstâncias da vida.


Por esse motivo, a exclusão e a separação do judaísmo era um momento de treva para quem proclamava Jesus como messias. Os dissidentes ficavam sem proteção, sem trabalho, sem relações sociais e comerciais, separados de sua tradição religiosa, dos serviços e ritos religiosos. Portanto, sem a religião judaica farisaica, permitida pela lei do império, os judeus cristãos deveriam assumir outra religião que fosse reconhecida pelos romanos, caso contrário, seriam vistos como inimigos. A situação da comunidade joanina era de muita insegurança. De um lado, as autoridades religiosas e do império mantinham sobre ela uma vigilância continua. De outro lado, a multidão passou a ver os dissidentes cristãos como pessoas suspeitas, gente perigosa.


Quanto à “expulsão dos cristãos joaninos da sinagoga” (9,22; 12,42; 16,2), há muito tratada como causa polêmica anti-judaica, podemos dizer que não temos como datar semelhante “expulsão”, uma vez que as sinagogas já existiam antes do ano 70 a.C. Também aludir à oração das dezoito bênçãos (birkat hamminin), ligada ao sínodo de Jâmnia, com oração aos Minim (cristãos), como é usual fazer, parece-nos não ser o mais correto. Assim sendo, a expressão expulsar da sinagoga dos textos supracitados refere-se possivelmente a um conflito local entre a comunidade joanina e os seus vizinhos judeus. No contexto histórico de Jesus, somente cabe pensar em expulsão simples da sinagoga, que tinha duração de 30 dias. Mas de modo algum se deve compreender como decreto de excomunhão de todo o cristianismo por parte do novo judaísmo de Jâmnia. Assim sendo, o judaísmo não pode ser responsabilizado exclusivamente pela ruptura entre judaísmo e cristianismo. Na compreensão dos textos joaninos anti-judaicos, há que não se confundir entre a intenção do autor e respectivos destinatários reais e implícitos e a compreensão dos mesmos textos ao longo do tempo.



quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Helmut Koester, Elaine Pagels sobre o Gnosticismo no cenário religioso do cristianismo primitivo

A descoberta

Em dezembro de l.945 um camponês árabe fez uma descoberta arqueológica espantosa em Nag Hammadi, vilarejo do Alto Egito a 500 km do Cairo: um pote de cerâmica de quase 1 metro de altura que continha 13 papiros encadernados em couro!

Foi o início de uma história dramática e policialesca que terminou com 10 destes livros - posteriormente chamados códices - confiscados pelo governo egípcio e depositados no museu copta do Cairo; os demais códices foram contrabandeados para fora do Egito, finalmente caindo nas mãos de estudiosos de várias linhas filosóficas e religiosas.

Hoje encontram-se todos traduzidos, permanecendo o centro da atenção dos historiadores para uma nova interpretação da história.

A língua e as datas

Os papiros estavam escritos em copta, que é uma língua camito-semítica do sec. III DC., com características gregas, e que hoje é usada apenas como língua litúrgica; eram traduções de originais escritos em grego ( a língua do Novo Testamento), entre os anos 400 a 500 D.C.

E quanto às datas dos textos originais, os estudiosos divergem: alguns não poderiam ser posteriores a 120 ou 150 DC, pois Irineu, o bispo ortodoxo de Lyon, escrevendo por volta de 180 DC, declarou que "os hereges dizem possuir mais evangelhos do que realmente existem ", e lastima que nessa época esses escritos tivessem atingido grande circulação - da Gália até Roma, e da Grécia até a Ásia Menor !

O pesquisador Quispel e seus colaboradores sugerem que os originais sejam datados por volta do ano 140 DC; um alemão, prof. Helmut Koester, de Harvard, sugeriu que uma das coletâneas, a do Evangelho de Tomé, talvez inclua algumas tradições ainda mais antigas que os evangelhos do novo testamento, contemporâneas ou anteriores a Marcos, Mateus, Lucas e João (escritos por volta de 50 a 100 DC).

O assunto dos textos

Um dos mais eminentes pesquisadores foi o professor Gilles Quispel, um historiador da religião em Utrech, Holanda. Ao examinar a primeira linha de um texto ficou estupefato e incrédulo com o que leu: "Essas são as palavras secretas que Jesus, o Vivo, proferiu, e que o seu gêmeo Judas Tomé, anotou " - O texto continha O Evangelho Segundo Tomé, que ao contrário do Novo Testamento, se apresentava como "secreto".

Quispel viu que o texto continha muitos ensinamentos presentes também no Novo Testamento; mas esses mesmos dizeres, colocados em contextos pouco familiares, sugeriam outras dimensões de significados!

Verificou, ainda, que algumas passagens diferiam totalmente de qualquer tradição cristã conhecida: Jesus, o Vivo, por exemplo, fala de maneira tão intensa e enigmática quanto os Koans Zen. Jesus disse: "Se manifestarem aquilo que têm em si, isso que manifestarem os salvará. Se não manifestarem o que têm em si, isso que não manifestarem os destruirá". O que Quispel tinha em mãos era apenas um dos 52 textos descobertos em Nag Hammadi.

Encadernado no mesmo volume do Evangelho de Tomé estava o Evangelho de Filipe. Em outro volume encontraram-se ensinamentos criticando crenças cristãs bastante comuns, como a concepção imaculada - ou a ressurreição corporal, considerando-as ingenuamente equivocadas!

Boa parte da literatura encontrada em Nag Hammadi é nitidamente cristã . Certos textos, contudo , mostram pouca ou nenhuma influência cristã; alguns provêm de fontes ditas pagãs, e outros fazem uso extenso de tradições judaicas.

Os Textos

LISTA DOS TEXTOS ELABORADA PELO PROJETO CANADENSE DA BIBLIOTECA COPTA DE NAG HAMMADI

Prece do Apóstolo Paulo Fragmento de A Republica

Epístola Apócrifa de Tiago Octoade e Eneade

Evangelho da Verdade Prece de Ação de Graças

Tratado sobre a Ressurreição Asclépio

Tratado Tripartite Paráfrase de Sem

Apócrifo de João Segundo Tratado do Grande Set

Evangelho de Tomé Apocalipse de Pedro

Evangelho de Filipe Ensinamento de Silvano

Hipóstase dos Arcontes As Três Estelas de Set

Escrito sem título Zostriano

Exegese da Alma Epístola de Pedro a Filipe

Livro de Tomé, O Atleta Melquisedec

Apócrifo de João Noréia

Evangelho dos Egípcios Testemunho de Verdade

Eugnosto, o Bem-aventurado Marsano

Sabedoria de Jesus Cristo Interpretação da Gnose

Diálogo do Salvador Exposição Valentiniana

Evangelho dos Egípcios Batismo A

Eugnosto, o Bem-aventurado Batismo B

Apocalipse de Paulo Eucaristia A

1o- Apocalipse de Tiago Eucaristia B

2o- Apocalipse de Tiago Alógeno

Apocalipse de Adão Hypsiphrone

Atos de Pedro e dos 12 Apóstolos Sentenças de Sexto

Bronté ou Trovão Evangelho da Verdade

Authentikos Logos Protenóia Trimorfe

Conceito de Nossa Grande Força Escrito sem título

Agrupamento de assuntos:

Coletânea das palavras de Jesus/diálogos com seus discípulos:

Evangelho de Tomé

Diálogo do Salvador Epístola de Pedro a Filipe

Relatos apócrifos sobre Jesus e seus discípulos:

Epístola Apócrifa de Tiago

Evangelho de Maria

Apocalipses:

• Adão

Pedro

Paulo

Tiago


Tratados sobre as origens do mundo visível/invisível:

Tratado Tripartite

Apócrifo de João

Origem do mundo

Tratados filosóficos sobre a alma/destino humano:

Exegese da Alma

Marsano

Zostriano

Tratado Hermético:

As Três Estelas de Set

Coletânea de sentenças de sabedoria (tipo monástico):

Sentenças de Sexto

Ensinamentos de Silvano


As origens do Gnosticismo

Hipólito, um cristão de Roma, escrevendo em grego por volta do ano 225, ouvira falar dos brâmanes indianos - e inclui a tradição destes entre as fontes de heresia: "Há, entre os indianos, a heresia daqueles que filosofam entre os brâmanes - que vivem uma vida auto-suficiente abstendo-se de ingerir criaturas vivas e todo alimento cozido. Eles afirmam que Deus é luz, não como a luz que se vê, nem como o sol ou o fogo. E para eles Deus é discurso; não o discurso que se expressa em sons distintos e inteligíveis, mas o do conhecimento (gnose) através do qual os mistérios secretos da natureza são apreendidos pelos sábios"!

Já Edward Conze, o estudioso britânico do budismo, sugere que "os budistas mantiveram contato com os cristãos tomistas (i.é., cristãos que conheciam e usavam escritos como o Evangelho de Tomé) no sul da Índia!". As rotas comerciais entre o mundo greco-romano e o extremo oriente estavam sendo abertas na época em que o gnosticismo floresceu (entre os anos 80 e 200 DC); missionários budistas vinham pregando em Alexandria já há gerações!.

O estudioso do Novo Testamento, Wilhelm Bousset, remontou a origem do Gnosticismo às antigas tradições babilônicas e persas, declarando que "o gnosticismo é antes de tudo um movimento pré-cristão cujas raízes estão em si mesmo. Deve, portanto, ser compreendido... em seus próprios termos, e não como uma ramificação ou sub-produto da religião cristã"! O filólogo Richard Reitzenstein concordou com este ponto, mas argumentou que o gnosticismo proveio da antiga religião iraniana, e que foi influenciado por antigas tradições do zoroastrismo.

Os atuais estudiosos e pesquisadores acima citados não fizerem mais do que corroborar o que HPB já revelara no final do século passado. Já havia um certo conhecimento sobre o gnosticismo em sua época, além da literatura católica que anatematizava os gnósticos, de alguns textos originais em grego descobertos em outras regiões: o próprio Evangelho de Tomé (descoberto em meados de 1895); e a Pistis Sophia, descoberto em meados do sec. 18), contendo muitas páginas onde o próprio Jesus instruía seus discípulos sobre a reencarnação, ensinamento comum nos primeiros tempos do cristianismo primitivo.

Helena P. Blavatsky escreveu vários artigos sobre "O Caráter Esotérico dos Evangelhos" destacando sempre que Jesus ensinava aos seus discípulos uma doutrina esotérica: "A vós vos foi dado o mistério do Reino de Deus; aos de fora, porém, tudo acontece em parábolas" (Marcos 4:11). Em Isis sem Véu, HPB menciona que no Evangelho de João e nos atos de São Paulo, o Novo Testamento apresenta um grande número de expressões gnósticas, como admitem os eruditos hoje.

George R.S. Mead, secretário particular de HPB entre os anos de 1887 a 1891, recebeu dela a incumbência de que "se dedicasse ao estudo e à pesquisa na área do Gnosticismo" (o que ele realizou com brilhantismo). Em um de seus trabalhos, O Hino de Jesus - Um Rito Gnóstico, encontramos o que segue: "Como está atualmente provado, e fora de qualquer dúvida, que a Gnosis é pré-cristã , estamos então tratando com uma gnosis cristianizada que existia demonstradamente no tempo de Paulo e que este encontrou já existindo nas igrejas". Sem dúvida, a gnosis era pré-cristã no sentido de que já existia no sec. I AC, especialmente na região da Samaria e da Síria.

A catedrática Elaine Pagels, da Universidade de Colúmbia, que escreveu "Os Evangelhos Gnósticos", diz que "a maioria dos estudiosos hoje concorda que o que nós chamamos - gnosticismo - foi um movimento muito difundido cujas fontes podem ser encontradas em diversas tradições".

O Gonosticismo e o cenário religioso da época

Elaine Pagels explora uma linha de pesquisa que busca a relação entre o Gnosticismo e o cenário religioso da época; ela mostra, em parte, como as formas gnósticas de cristianismo primitivo interagiram com as formas ortodoxas, que mais tarde deram origem ao Catolicismo.

Sendo este também um dos objetivos deste trabalho, podemos colocar as seguintes questões : por que esses textos foram enterrados? por que não foram usados pela igreja cristã , posteriormente institucionalizada? e por que os cristãos gnósticos foram chamados de "hereges", e perseguidos pelos cristãos ditos "ortodoxos" ( aqueles que pensam corretamente)?

As considerações abaixo apontarão algumas respostas a tão cruciais questões!:

No século IV, na época da conversão do Imperador Constantino e quando o cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano, os bispos cristãos, anteriormente perseguidos pela polícia da época, passaram a comandá-la! Possuir livros denunciados como heréticos tornou-se crime civil - assim, quase toda a literatura gnóstica preciosa foi destruída pelo fogo; mas, no alto Egito, possivelmente um monge do mosteiro de São Pacômio (próximo ao vilarejo de Nag Hammadi), teve a feliz inspiração de enterrar os textos, hoje estudados! Antes desta valiosa descoberta, tudo o que sabíamos daquela época é de origem ortodoxa. A supressão dos textos cristãos gnósticos é o resultado de toda uma disputa crítica para a formação da igreja católica.

Muitos autores gnósticos afirmavam apresentar tradições sobre Jesus que eram secretas, ocultas dos "muitos" (os que passaram a ser conhecidos como ortodoxos). A palavra "Gnósis" geralmente é traduzida por "conhecimento", mas a Gnose não é, primordialmente, um conhecimento racional; a língua grega distingue entre o conhecimento científico (ele conhece matemática) e, reflexivo (ele se conhece), experiência que é Gnose, percepção direta daquilo que é, percepção interior, um processo intuitivo de conhecer-se a si mesmo. Como um ensinamento dessa natureza poderia ser utilizado pela igreja?.

Aqueles que não participavam da mesma interpretação de "textos sagrados" (no mais das vezes simples interpolações dogmatizadas!) dada pelos padres, passaram a ser denunciados como "heréticos" ( aquele que pratica doutrina contrária ao que foi definido pela igreja em matéria de fé). No entanto, essa campanha contra a heresia envolvia um reconhecimento de seu poder de persuasão! ... e no entanto, foram os bispos que prevaleceram.

Traçaremos, agora, um paralelo entre o que acreditavam e o que falavam os cristãos ortodoxos e os gnósticos seguidores de Valentino, um dos líderes moderados da época, e que até pretendia a união entre as duas facções, pretensão esta repudiada por Irineu e outros bispos:

os cristãos ortodoxos:

-Uma distância abissal separa a humanidade de seu criador. Ele é inteiramente distinto de Sua criação.

os gnósticos valentinianos:

- Negam essa distância e afirmam que o conhecimento de si mesmo é conhecimento de Deus; o "eu" e o "divino" são idênticos.

-Jesus fala em "pecado" e "arrependimento".

- Jesus fala em ilusão e iluminação.

- Jesus é o Senhor e o Filho de Deus, de uma maneira única e singular; permanece eternamente distinto do resto da humanidade que veio "salvar".

- Jesus veio como um guia que abre o acesso para o entendimento espiritual, e quando o discípulo se ilumina, ele deixa de ser seu Mestre, pois ambos se tornam semelhantes.

- Seguindo os tradicionais ensinamentos judaicos, "todo sofrimento vem do pecado", que teria maculado uma criação originalmente perfeita .

- É a ignorância e não o pecado que leva uma pessoa a sofrer. No Evangelho da Verdade encontra-se: "...a ignorância...trouxe angústia e terror. E a angústia tornou-se espessa como uma neblina, de modo que ninguém conseguia enxergar. Por isso o erro é tão poderoso..." Isto significa que a maioria das pessoas vivem no oblívio, na inconsciência. Sem jamais se tornarem cientes de si mesmas, elas não têm raízes.Os que vivem deste modo sofrem "terror, confusão, instabilidade, dúvidas e desunião", sendo enredados por "muitas ilusões".

- A paixão e a morte de Jesus como um sacrifício que redime a humanidade da culpa e do pecado. E a única chave para abrir o Paraíso é "o nosso próprio sangue".

- A "crucificação" é o momento para descobrirmos a essência divina em nós mesmos. O "Testemunho da Verdade" declara que aqueles que se entusiasmam com o martírio não sabem "quem é o Cristo". O autor ridicularizava a crença de que o martírio assegura a salvação e diz que os ortodoxos o veem como uma oferenda a Deus e pensam que ele deseja sacrifícios humanos!". Cristo é um ser espiritual e apenas a sua natureza humana sofreu.

- A ressurreição de Jesus e do cristão.

A "Fé dos Tolos". A existência humana comum é morte espiritual. É necessário receber a ressurreição espiritual enquanto vivem!.

- A discriminação da mulher: Tertuliano, nos preceitos da "disciplina eclesiástica para as mulheres", especificava: "Não é permitido a nenhuma mulher falar na igreja, nem é permitido que ensine ou que batize, ou que ofereça a eucaristia’ ... para não falar em qualquer cargo sacerdotal. Em 1.977, o papa Paulo VI declarou que a mulher não pode ser padre "porque Nosso Senhor era homem".

- Entre alguns grupos gnósticos , as mulheres eram consideradas iguais aos homens; algumas ensinavam, outras evangelizavam e curavam.

- A fé ortodoxa diz que o ensinamento original dos apóstolos é a norma e o critério; aquilo que se afastar é heresia!

- Os escritos gnósticos previam que o futuro propicia um aumento ininterrupto do conhecimento!

- Os três evangelhos sinóticos do Novo Testamento, em sua maior parte, traçam uma biografia da vida de Jesus em ordem cronológica, fazendo dele o Messias esperado pelos judeus. O destino humano depende dos eventos da "história da salvação", particularmente da sua vinda, vida, morte e ressurreição como fato histórico.

- Os gnósticos aceitavam os acontecimentos históricos como secundários; interessavam-se, acima de tudo, pelo significado interior dos acontecimentos e parábolas. Tanto o gnosticismo como a psicoterapia valorizam sobretudo, o conhecimento - o autoconhecimento que é a percepção interior. De acordo com o "Diálogo do Salvador", quem não compreender os elementos do Universo, e de si mesmo, está fadado ao aniquilamento: "... quem não compreender como o corpo veio a existir, há de perecer com ele. Quem não compreender como veio, não há de compreender como irá...".!

- Os ortodoxos concebiam o "Reino de Deus" literalmente, como se fosse um lugar específico. Segundo Mateus, Lucas e Marcos, Jesus proclamou o advento próximo do Reino de Deus, quando "os encarcerados obteriam a sua liberdade, os doentes seriam curados, os oprimidos receberiam alívio, e a harmonia prevaleceria sobre todo o mundo". Marcos afirma "que os discípulos esperavam que o reino se instaurasse num evento cataclismico que ocorreria ainda durante suas vidas", pois Jesus dissera que alguns deles viveriam para ver "o reino de Deus chegando com poder".

- No Evangelho de Tomé, Jesus teria ridicularizado aqueles que concebiam o Reino de Deus literalmente:

"...antes, o reino de Deus está dentro de voces; e está fora de voces. Quando vierem a se conhecer, então se farão conhecidos, e perceberão que são os filhos do Pai Vivo. Mas se não conhecerem, existirão em pobreza". O "Reino" então simboliza um elevado estado de consciência.

- Os líderes criaram um arcabouço simples e claro, constituído de doutrina, ritual e estrutura política que provou ser um sistema extraordinariamente eficaz de organização. Criou-se uma hierarquia de três níveis - bispos, padres e diáconos, e a concepção: "Um Deus, um Bispo". Clemente diz que Deus delega sua autoridade para reinar a líderes e governantes na terra!. Separar-se do bispo é separar-se da igreja e de Deus ! Fora dessa igreja não há salvação - "Ela é a entrada para a vida!".

- Os gnósticos foram potencialmente "subversivos" quando diziam que os "muitos" (os ortodoxos) eram "canais sem água"! Afirmavam oferecer a todo iniciado um acesso direto a Deus, sem representantes ou intermediários. Em o "Testemunho da Verdade " encontramos que "obediência à hierarquia clerical exige que os fiéis se submetam a guias cegos"; a fé nos sacramentos demonstra um raciocínio mágico e ingênuo. Contra essas mentiras o gnóstico declara que, quando um homem se conhecer a si mesmo, e ao Deus que está acima da verdade, ele será salvo.

- A autoridade da igreja é incontestável e é a base para a "infalibilidade papal ". Concebiam Jesus como Senhor, identificando-o como alguém exterior e superior aos seus discípulos. Em Marcos encontramos: "E Jesus partiu com seus discípulos...No caminho perguntou-lhes: "Quem dizem os homens que eu sou?" Ao que replicaram: "João Batista; outros, Elias, outros ainda, um dos profetas" E ele perguntou: "Mas quem vocês dizem que eu sou?" Pedro respondeu: "És o Cristo". Mateus acrescenta que Jesus abençoou Pedro pela sua acuidade, e em seguida declarou que a igreja seria edificada sobre ele e sobre o seu reconhecimento de Jesus como o Messias.

- O Evangelho de Tomé narra o episódio de maneira diferente; Jesus disse a seus discípulos: "Comparem-me e digam-me com quem me pareço eu". Disse Simão Pedro: "És semelhante a um anjo justo". Disse-lhe Mateus: "És semelhante a um filósofo sábio". Disse-lhe Tomé: "Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com quem tu és semelhante". Jesus disse: "Não sou o seu Mestre. Porque vocês beberam, ficaram embriagados da fonte borbulhante da qual eu lhes servi". Jesus não nega aqui o seu papel de Mestre. Mas os discípulos e suas respostas representam um nível inferior de compreensão. Daí Tomé, que reconhecia a impossibilidade de atribuir qualquer papel específico a Jesus, transcendeu , naquele instante de reconhecimento, a relação discípulo/mestre.

O modelo gnóstico aproxima-se do modelo psicoterapeutico: ambos admitem a necessidade de orientação, como medida provisória apenas. O propósito de aceitar a autoridade é aprender a superá-la; aquele que se torna maduro não precisa mais de uma autoridade exterior.

Quem alcança a gnose torna-se "não mais um cristão, mas um Cristo" E quem esperava "tornar-se Cristo", dificilmente poderia admitir que as estruturas institucionais da igreja - seus bispos e padres, seu credo e cânone, e seus ritos - possuíssem a autoridade suprema.

- Aquele que confessasse o Credo, aceitasse o ritual do batismo, participasse do culto e obedecesse ao clero, pertencia à igreja.

- Os gnósticos afirmam que o que distingue a verdadeira da falsa igreja não é a sua relação com o clero, mas o nível de compreensão dos seus membros e a qualidade das relações que esses mantém entre si, unidos pela amizade e amor fraternal.

Conclusão

Vimos que a corrente filosófica e religiosa de nome Gnosticismo foi um movimento pré-cristão, cfe. os atuais estudiosos Bousset/Reitzenstein, que vieram a corroborar as pesquisas de George R.S. Mead, erudito secretário de HPB durante os últimos anos de vida desta grande iniciada.

Podemos dizer que essa grande corrente - O Gnosticismo - pode ser dividida em: uma popular (influenciada pelas antigas religiões, notadamente o Zoroastrismo - 1400 AC , que também veio a influenciar o Catolicismo contribuindo com as "crenças no céu, no inferno, na ressurreição dos mortos e no juízo final"); e outra esotérica, de origem grega (pelo Orfismo do VI sec. AC, e o Neoplatonismo, através de Plotino, entre 204 AC e 70 DC ) - doutrinas que professavam, entre outros aspectos, a purificação da alma para evitar futuros renascimentos.

Esta corrente helenística influenciou notavelmente os primeiros padres cristãos (que eram gregos), inclusive o conhecido São Paulo, que era um judeu helenizado e com uma visão universalista cristã, contrária ao segregacionismo judaico. Mas, aos poucos, o cristianismo puro de Jesus foi sendo dominado, com a emergente igreja católica assimilando cada vez mais, através dos concílios, ensinamentos do Velho Testamento, tornando-se, na realidade, uma igreja judaica-cristã. Muitas interpolações foram feitas nos evangelhos ditos canônicos, com evidente objetivo.

Ao estudarmos as origens do Catolicismo começamos a entender o por que da sua sobrevivência por quase 2000 anos! É a façanha de uma organização hierarquizada que se autodenominando representante de Deus na face da terra, através de seus clérigos, procurou nivelar as consciências por meio de dogmas. E tal organização jamais iria abrir mão da sua "representatividade", pois sem ela não haveria razão para a sua existência!

O dogmatismo e a intolerância advindas dessa imposição (como se o homem fosse um ser estático, não passível de evolução), castraram o desenvolvimento de muitas consciências, e as que se rebelaram sofreram restrições terríveis. Suficiente é nos lembrarmos da "Santa Inquisição" e dos "trabalhos" de catequese que tiraram de muitas sociedades o direito de seus membros à liberdade de culto! E em muitos casos, as suas riquezas materiais...

Sylvia Cranston, em sua recente obra Helena Blavatsky, relata que "o trabalho da Teosofia ... foi reconhecido na Encyclopaedia Britannica num artigo sobre o Cristianismo pelo historiador da religião, Ernst Wilhelm Benz... definindo-a (a teosofia) como "caracterizada principalmente por uma combinação de tradições e ensinamentos cristãos e elevadas religiões asiáticas" , concluindo a seção com um comentário surpreendente: ..."Muitos eruditos estão convencidos de que, no século vinte, é necessário um Cristianismo Esotérico para cumprir uma tarefa positiva como um contra movimento capaz de compensar a perda de substância espiritual na organização institucional, social e dogmaticamente estática da Igreja".

Em Isis Sem Véu, HPB cita Max Müller, que escreveu em l860: "A ciência da religião está só começando... Durante os últimos 50 anos, documentos autênticos das religiões mais importantes do mundo foram recuperados de maneira inesperada e quase miraculosa..." (e até então, nada se sabia de Nag Hammadi!) . E ela pergunta se a freqüente ocorrência dessas descobertas não obedece a algum propósito pré-determinado: "Será tão estranho pensar que os guardiões da sabedoria "pagã", vendo que chegou o momento certo, façam com que o documento, livro, ou relíquia necessários cheguem como que por acaso às mãos do homem certo?".

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Bibliografia:

Pagels, Elaine - Os Evangelhos Gnósticos ; Ed. Cultrix, 1979

Kuntzmann, R - Nag Hammadi - O Evangelho de Tomé ; Edições Paulinas, 1990

Mead, George R.S. - O Hino de Jesus - Um Rito Gnóstico ; Ed. Teosófica, 1994

Rodhen, Huberto - O Quinto Evangelho ; Ed. Alvorada

Le Cour, Paul - O Evangelho Esotérico de São João ; Ed. Pensamento, 1980

Hinnells, John R. - Dicionário das Religiões ; Ed. Cultrix, 1984

Cranston, Sylvia - Helena Blavatsky - A Vida e a Influência Extraordinária da Fundadora do Movimento Teosófico Moderno ; Ed. Teosófica, 1997