É amplamente sabido que os primeiros cristãos, os cristãos do século I, esperavam para muito breve, para seu próprio tempo de vida, a volta, o retorno de Jesus Cristo, a Segunda Vinda, a chamada parousia, palavra grega que significa “presença”.
Selecionei três trechos de três obras diferentes que dão testemunho de tal expectativa.
O primeiro livro é God is not Great (Deus não é grande) do jornalista inglês Christopher Hitchens. Ele diz na p. 56 de sua edição americana em brochura:
“Paulo claramente pensava e esperava que o tempo estava acabando para a humanidade”.
Hitchens é confirmado por Richard Tarnas, filósofo americano, em A epopéia do pensamento ocidental, cuja p. 151 afirma:
“Como a Segunda Vinda não ocorreu conforme a primeira geração de cristãos havia esperado, o dualismo que tinha uma forma nos Sinópticos assumiu uma dimensão mais mística e ontológica sob a influência do Evangelho de João”.
Em A História do Futuro – O que há de verdade nas mais famosas profecias e previsões, o historiador canadense David A. Wilson trata do assunto de forma mais detalhada (pp. 41-42):
O cristianismo, em seus primórdios, era permeado de expectativas do milênio, intensificadas pelas próprias palavras de Cristo, como relatado nos evangelhos de Marcos e Mateus: “Em verdade vos digo que entre aqueles que estão aqui presentes”, disse Mateus a seus discípulos, “há alguns que não morrerão antes que vejam o Filho do Homem vir ao seu reino”. Ao mesmo tempo, a noção dos mil anos de reinado de Cristo foi ampliada para incorporar não só os mártires revividos, como todos os fiéis seguidores de Cristo. O milênio, acreditava-se, aconteceria em breve e abrangeria toda a comunidade cristã.
Prossegue Wilson:
O único problema é que a Segunda Vinda teimosamente se negava a se materializar. Algo estava claramente errado: crescia a lacuna entre as expectativas e a realidade e explicações faziam-se imperiosas. Na verdade, o cristianismo atravessava a mesma crise que cerca todos os movimentos cujas profecias não se concretizam. A solução, nesse caso, era sustentar que os textos apocalípticos deviam ser compreendidos em termos alegóricos, e não literais, e empurrar o milênio cada vez mais para o futuro.
Ainda Wilson:
A solução adequava-se bem ao caráter organizacional mutável do cristianismo. Ao final do século IV, com a conversão do Império Romano, o cristianismo evoluíra de uma seita perseguida para uma religião estabelecida. Sob essas circunstâncias, as tarefas práticas de assegurar uma estabilidade institucional a longo prazo tornaram-se mais importantes do que se preparar para o apocalipse – especialmente quando todas as previsões anteriores sobre a Segunda Vinda haviam provado ser falsas.
Cabe perguntar se o capítulo 16 do Evangelho de Mateus é causa ou conseqüência da expectativa cristã primitiva de um iminente retorno de Jesus.
Segundo o escritor espanhol Juan Arias, autor de Jesus, esse grande desconhecido, o Evangelho de Marcos foi escrito entre os anos 60 e 70, provavelmente no ano 64, pouco depois de Nero ter acusado os cristãos de incendiarem Roma e depois do martírio de Pedro e Paulo.
Escreve Arias na p. 41:
“Marcos escreve o evangelho com o propósito de preparar os cristãos perseguidos para a gloriosa segunda vinda do Messias. Essa missão condiciona muitos dos feitos e ditos de Jesus narrados em seu evangelho”.
De fato, em seu capítulo 13, o Evangelho de Marcos descreve uma imensa tribulação e o retorno do “Filho do Homem”, dizendo no versículo 30: “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que tudo isto aconteça”, e aparentemente se desdizendo logo a seguir (versículo 32): “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai”.
Os versículos 3 a 13 da segunda epístola de Pedro e os versículos 6 a 8 do primeiro capítulo de Atos dos Apóstolos vão na mesma linha de Marcos 13:32. O capítulo 16 de Mateus, no entanto, segue a linha de Marcos 13:30. Isto nos traz finalmente ao Evangelho de Mateus, que costuma ser o primeiro a aparecer no Novo Testamento.
Calcula-se, diz Arias na p. 46, que o Evangelho de Mateus foi escrito por volta de 80 d. C., cerca de quinze anos após o Evangelho de Marcos. Não se tem certeza, acrescenta Arias, de que seu autor tenha sido o apóstolo Mateus, o coletor de impostos. Não há certeza também, sempre segundo Arias, de que este evangelho tenha sido escrito originalmente em grego: é possível que o Evangelho de Mateus tenha sido escrito primeiramente em aramaico.
Segundo Arias, o autor do Evangelho de Mateus usou duas fontes para escrevê-lo: o Evangelho de Marcos e a chamada fonte Q, ou Evangelho Q, uma coleção de mais de duzentas frases atribuídas a Jesus. Esta coleção foi conhecida originalmente como Quelle (“fonte”, em alemão), nome dado por H. J. Holtzman em 1861 e que J. Weiss abreviaria definitivamente como Q, tal como é hoje conhecida, informa Arias na p. 45.
Especula-se que a fonte Q começou a ser escrita em aramaico e terminou de ser escrita em grego, mas não se pode ter certeza, pois a Fonte Q não sobreviveu à escrita dos evangelhos de Mateus e Lucas. Arias acrescenta (p. 46) que o Evangelho de Mateus se dirigia a um público do âmbito judaico-cristão, “revelando preocupação pela redução do número de cristãos de origem judaica em relação aos de origem pagã, o que acabaria rompendo o equilíbrio existente até então”. Por exemplo: no Evangelho de Mateus, os apóstolos são apresentados com uma aura de grande dignidade, certamente para dar importância ao cristianismo mais primitivo, baseado nos apóstolos, que eram todos judeus (Arias, p. 46).
Tendo delineado todo o contexto, podemos agora abordar o capítulo 16 do Evangelho de Mateus, especialmente no que ele tem de mais importante: seu aspecto profético e apocalíptico, explícito nos versículos 24 a 28.
Antes dos versículos cruciais, porém, vamos dar uma olhada panorâmica no capítulo 16. Em sua primeira seção, versículos 1 a 4, Jesus pratica a ironia contra os fariseus e os saduceus, jogando-lhes na cara uma pergunta retórica: “Sabeis, na verdade, discernir o aspecto do céu e não podeis discernir os sinais dos tempos?”.
Na seção seguinte (versículos 5 a 12), Jesus aconselha seus discípulos a acautelar-se contra o fermento dos fariseus e saduceus. Os discípulos não entendem a metáfora, levando Jesus a esclarecer sua mensagem (“Como não compreendeis que não vos falei a respeito de pães?”). Os discípulos então entendem que ele se referia à doutrina dos fariseus e saduceus.
A terceira seção (versículos 13 a 20) traz o célebre versículo que tanta celeuma causa entre católicos e protestantes: “… Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Os protestantes argumentam que naquele momento histórico a palavra grega eklesia não significava ainda “igreja”, mas tão-somente “comunidade”.
A interpretação da metáfora de Pedro como pedra se complica ainda mais quando nos damos conta de que a conversa, se um dia ocorreu, certamente aconteceu em aramaico, e não em grego. Que palavra terá sido usada em aramaico?
Na quarta seção (versículos 21 a 23), Jesus prevê sua morte e ressurreição, o que leva Pedro a fazer um apelo para que ele não passe por tudo aquilo, apelo que provoca uma áspera e violenta reação de Jesus: “Arreda, Satanás! Tu és para mim pedra de tropeço, porque não cogitas das coisas de Deus, e sim das dos homens”. Passamos da metáfora de Pedro como pedra fundamental da igreja ou comunidade para a metáfora de Pedro como pedra de tropeço.
Alcançamos, enfim, a quinta e última seção do capítulo, os versículos 24 a 28. Vou lê-la na íntegra, mas vou me deter em apenas um de seus aspectos (haveria outros a explorar, mas o tempo não permite). Estamos aqui diante de uma forma de expressão bem específica: a profecia apocalíptica. Por volta do ano 80, o Evangelho de Mateus veio reforçar, sendo ao mesmo tempo conseqüência e causa, o sentimento amplamente dominante na época: a parousia estava muito próxima.
Então, disse Jesus a seus discípulos: Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me.
Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; quem perder a vida por minha causa achá-la-á.
Pois que aproveitará o homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Ou que dará o homem em troca da sua alma?
Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu Pai, com os seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras.
Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui se encontram, que de maneira nenhuma passarão pela morte até que vejam vir o Filho do Homem no seu reino [grifo meu].
Somente quando ficou claríssimo que já haviam morrido os últimos remanescentes daquela ocasião, os cristãos perceberam que o Filho do Homem talvez não viesse logo. Começaram a procurar outras interpretações para a profecia não cumprida. A Bíblia de Estudo Plenitude assegura:
Jesus está salientando o encontro que alguns dos que aqui estão verão em sua transfiguração.
A transfiguração é um breve episódio em que Jesus aparece resplandecente para alguns discípulos, enquanto se ouve uma voz, supostamente de Deus, apontá-lo como o Filho do Altíssimo.
É óbvio que se trata de uma interpretação forçada, destinada a tapar um buraco, pois Mateus 16:27 deixa absolutamente claro que não se está falando da transfiguração, mas da segunda vinda de Cristo:
Porque o Filho do Homem há de vir na glória de seu pai, com seus anjos, e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras [grifo meu].
Os anjos não estavam presentes na transfiguração. Além disso, a frase “e, então, retribuirá a cada um conforme as suas obras” não deixa margem para manobras: está se falando aqui do Juízo Final que deverá seguir a segunda vinda. A profecia falhou, não há como escapar a este fato. E quem estava profetizando não era qualquer um; era, segundo os cristãos majoritários, o próprio Deus encarnado.
A última seção de Mateus 16 segue, em qualquer um dos três primeiros níveis de interpretação (literal, entrelinhas e moral), um gênero literário que pode ser definido como profecia apocalíptica. Daí porque a interpretação da Bíblia de Estudo Plenitude não tem como se sustentar, pois a transfiguração não é, de modo algum, um apocalipse.
Quaisquer tentativas de interpretação da última seção de Mateus 16 devem levar em conta seu caráter de profecia apocalíptica.
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