segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Polêmico Bart D. Ehrman

Para a maioria dos estudantes do Novo Testamento, um livro sobre crítica textual é uma real chatice. Os detalhes tediosos não são matéria para um bestseller.

Mas desde a publicação em 1 de Novembro de 2005, Misquoting Jesus2 tem circulado mais e mais alto até o pico de vendas da Amazon. E já que Bart Ehrman, um dos líderes da América do Norte em crítica textual, apareceu em dois programas da NPR (o Diane Rehm Show e Fresh Air com Terry Gross) – ambos em um espaço de uma semana – ele tem estado entre os primeiro cinquenta mais vendidos na Amazon. Em menos de três meses, mais de 100000 cópias foram vendidas. Quando a entrevista de Neely Tucker a Ehrman no The Washington Post apareceu em 5 de Março deste ano as vendas do livro de Ehrman subiram ainda mais. O sr. Tucker falou de Ehrman como um “estudioso fundamentalista que vasculhou tanto as orígens do Cristianismo que ele perdeu sua fé.”3 Nove dias depois, Ehrman era a celebridade convidada no The Daily Show de Jon Stewart. Stewart disse que vendo a Bíblia como algo que foi deliberadamente corrompida por escribas ortodoxos fez da Bíblia “mais interessante… quase mais divina em alguns aspectos.” Stewart concluiu a entrevista declarando, “Eu realmente te parabenizo. É um baita de um livro!” Em menos de 48 horas, Misquoting Jesus chegou ao topo da Amazon, ainda que somente por um curto período. Dois meses depois e ainda está voando alto, ficando entre os 25. Ele “se tornou um de meus bestsellers mais improváveis do ano.”4 Nada mal para um tomo acadêmico em uma matéria “chata”!

Porque todo o alvoroço? Bem, por uma coisa, Jesus vende. Mas não o Jesus da Bíblia. O Jesus que vende é aquele que é saboroso ao homem pós-moderno. E com um livro entitulado Misquoting Jesus: The Story Behind Who Changed the Bible and Why, uma audiência disponível foi criada através da esperança que haveria novas evidências que o Jesus bíblico é uma imaginação. Ironicamente, quase nenhuma das variantes que Ehrman discute envolve palavras de Jesus. O livro simplesmente não entrega o que o título promete. Ehrman preferiu Lost in Transmission, mas a publicadora achou que tal livro seria percebido pelo pessoal de Barnes e Noble como relacionado a corridas de stock car! Mesmo que Ehrman não tenha escolhido o título resultante, ele foi uma jogada de marketing.

Mais importante, este livro vende porque ele apela ao cético que quer razões para não acreditar, que considera a Bíblia um livro de mitos. É uma coisa dizer que as histórias na Bíblia são lenda; outra bem diferente é dizer que muitas delas foram adicionadas séculos depois. Apesar de Ehrman não dizer bem isto, ele deixa a impressão que a forma original do Novo Testamento era bem diferente dos manuscritos que nós lemos agora.

De acordo com Ehrman, este é o primeiro livro escrito sobre a crítica textual do Novo Testamento – uma disciplina que tem circulado por quase 300 anos – para uma audiência leiga.5 Aparentemente ele não conta os vários livros escritos por advogados da KJV Only, ou os livros que interagem com eles. Parece que Ehrman quer dizer que o seu é o primeiro livro sobre a disciplina geral do criticismo textual do Novo Testamento escrito por um crítico textual de boa fé para leitores leigos. Isto é muito provavelmente verdade.

Crítica Textual 101

Misquoting Jesus em grande parte é simplesmente crítica textual 101 do Novo Testamento. Há sete capítulos com uma introdução e conclusão. A maior parte do livro (capítulos 1–4) é basicamente uma introdução popular ao campo, e uma muito boa nisto. Ele introduz os leitores ao fascinante mundo da atividade dos escribas, o processo de canonização, e textos impressos do Novo Testamento Grego. Ele discute o método básico de ecleticismo racional. Tudo através destes quatro capítulos, vários fragmentos – leituras variantes, citações dos Pais, debates entre Protestantes e Católicos – são discutidos, familiarizando o leitor com alguns dos desafios do secreto campo da crítica textual.

Capítulo 1 (“Os princípios das Escrituras Cristãs”) endereça os motivos pelos quais os livros do Novo Testamento foram escritos, como eles foram recebidos e quando eles foram aceitos como Escritura.

Capítulo 2 (“Os copistas e os Primeiros Escritos Cristãos”) lida com as mudanças do texto feitas pelos escribas, tanto intencionais como não intencionais. Aqui Ehrman mistura informações da crítica textual padrão com suas própria interpretação, uma interpretação que de nenhuma forma é compartilhada por todos os críticos textuais, nem mesmo a maioria deles. Em essência, ele pinta uma figura sem vida da atividade dos escribas6, deixando o descuidado leitor assumir que nós não temos nenhuma chance de recuperar as palavras originais do Novo Testamento.


Capítulo 3 (“Textos do Novo Testamento”) e capítulo 4 (“A Questão das Origens”) nos leva de Erasmo e do primeiro Novo Testamento Grego ao texto de Westcott e Hort. Discutidos são os maiores estudiosos dos séculos dezesseis até dezenove. Este é o material mais objetivo do livro e fornece uma leitura fascinante. Mas mesmo aqui, Ehrman injeta seu próprio ponto de vista por sua seleção de material. Por exemplo, ao discutir o papel que Bengel teve na história da crítica textual (109-112), Ehrman dá a este piedoso conservador alemão alto valor como estudioso: ele era um “extremamente cuidadoso intérprete do texto bíblico” (109); “Bengel estudou tudo intensamente” (111). Ehrman fala sobre as importantes descobertas de Bengel na crítica textual (111-12), mas não menciona que ele foi o primeiro importante estudioso a articular a doutrina da ortodoxia das variantes. Esta é uma omissão curiosa porque, de um lado, Ehrman está bem ciente deste fato, pois na quarta edição de The Text of the New Testament, agora por Bruce Metzger e Bart Ehrman,7 que apareceu alguns meses antes de Misquoting Jesus, a nota dos autores, “Com energia e perseverança característica, [Bengel] procurou todas as edições, manuscritos e antigas traduções disponíveis a ele. Depois de extenso estudo, ele chegou à conclusão que as leituras variantes eram menores em número que poderia ter sido esperado e que elas não ameaçam nenhum artigo da doutrina evangélica.”8 De outro lado, Ehrman menciona J. J. Wettstein, um contemporâneo de Bengel, que, na tenra idade de vinte anos assumiu que estas variantes “podem não ter nenhum efeito na confiabilidade ou integridade das Escrituras,”9 mas que anos depois, após cuidadoso estudo do texto, Wettstein mudou suas visões depois que ele “começou a pensar seriamente sobre suas próprias convicções teológicas.”10 Alguém é tentado a pensar que Ehrman possa ver um paralelo entre ele mesmo e Wettstein: como Wettstein, Ehrman começou como um evangélico quando no colégio, mas mudou suas visões sobre o texto e teologia em seus anos mais maduros.11 Mas o modelo que Wettstein fornece – um sóbrio estudioso que chega a conclusões diferentes – está calmamente ultrapassado.

O que também é curiosamente deixado de fora são as motivações de Tischendorf para seu incansável trabalho de descobrir manuscritos e de publicar uma edição crítica do texto grego com um aparato completo. Tischendorf é reconhecido amplamente como o mais ativo crítico textual de todos os tempos. E o que o motivou foi o desejo de recuperar a forma mais antiga do texto – um texto que ele acreditaria vindicar a ortodoxia cristã contra o ceticismo hegeliano de F. C. Baur e seus seguidores. Nada disto é mencionado em Misquoting Jesus.

Além da seletividade a respeito de estudiosos e suas opiniões, estes quatro capítulos envolvem duas curiosas omissões. Primeiro, há quase nenhuma discussão sobre os vários manuscritos. É quase como se a evidência externa fosse um não-inicializador para Ehrman. Mais, assim como ele ilumina seus leitores leigos sobre a disciplina, o fato de que ele não dá a eles os detalhes sobre quais manuscritos são mais confiáveis, velhos, etc., o permite controlar o fluxo de informações. Repetidamente eu fui frustado em minha leitura do livro porque ele falou de várias leituras sem dar muitas, se alguma, das informações que dão suporte a elas. Mesmo em seu terceiro capítulo – “Textos do Novo Testamento: Edições, Manuscritos, e Diferenças” – há discussão mínima dos manuscritos, e nenhum dos códices individuais. Nas duas páginas que lidam especificamente com os manuscritos, Ehrman fala somente sobre seus números, natureza e variantes.12

Segundo, Ehrman representa exageradamente a qualidade das variantes enquanto sublinha sua quantidade. Ele diz, “Há mais variações entre nossos manuscritos que número de palavras no Novo Testamento.”13 Em outro lugar ele declara que o número de variações é tão alto quanto 400,000.14 Isto é bem verdade, mas por si só é enganoso. Qualquer um que ensine crítica textual do Novo Testamento sabe que este fato é somente parte da figura e que, se deixado balançando diante do leitor sem explicação, é uma visão distorcida. Uma vez que é revelado que a grande maioria destas variantes são inconsequentes – envolvendo diferenças de escrita que sequer podem ser traduzidas, artigos com nomes próprios, mudança na ordem das palavras e coisas parecidas – e que somente uma pequena minoria das variantes alteram o significado do texto, toda a figura começa a ser focada. De fato, somente cerca de 1% das variantes textuais são tanto significativas e viáveis.15 A impressão que Ehrman algumas vezes dá através do livro – e repete em entrevistas16 – é a total incerteza sobre o palavreado original,17 uma visão que é de longe mais radical do que a que ele realmente abraça.18

Nós podemos ilustrar as coisas desta forma. Há aproximadamente 138,000 palavras no Novo Testamento grego. As variantes nos manuscritos, versões e Pais constituem quase três vezes este número. A primeira vista, esta é uma quantidade devastadora. Mas à luz das possibilidades, é na verdade bem trivial. Por exemplo, considere as formas que o grego pode dizer “Jesus ama Paulo”:
1. ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ Παῦλον
2. ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον
3. ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ Παῦλον
4. ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον
5. Παῦλον ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
6. τὸν Παῦλον ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
7. Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
8. τὸν Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς ἀγαπᾷ
9. ἀγαπᾷ ᾿Ιησοῦς Παῦλον
10. ἀγαπᾷ ᾿Ιησοῦς τὸν Παῦλον
11. ἀγαπᾷ ὁ ᾿Ιησοῦς Παῦλον
12. ἀγαπᾷ ὁ ᾿Ιησοῦς τὸν Παῦλον
13. ἀγαπᾷ Παῦλον ᾿Ιησοῦς
14. ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον ᾿Ιησοῦς
15. ἀγαπᾷ Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς
16. ἀγαπᾷ τὸν Παῦλον ὁ ᾿Ιησοῦς

Estas variações representam apenas uma pequena fração das possibilidades. Se a sentença usar φιλεῖ ao invés de ἀγαπᾷ, por exemplo, ou se ela começar com uma conjunção tal qual δεv, καιv, ou μέν, as potenciais variações crescerão exponencialmente. Fatore em sinônimos (tais quais κύριος por ᾿Ιησοῦς), diferenças de escrita, e palavras adicionais (tais quais Χριστός, ou ἅγιος com Παῦλος) e a lista de potenciais variantes que não afetam a essência da declaração cresce às centenas. Se uma simples sentença como “Jesus ama Paulo” pode ter tantas variações insignificantes, meros 400000 variantes entre os manuscritos do Novo Testamento parece quase uma quantidade insignificante.19

Mas estas críticas são ninharias mínimas. Não há nada realmente catastrófico nos primeiros quatro capítulos do livro. Pelo contrário, é na introdução que vemos os motivos de Ehrman, e os últimos três capítulos revelam sua agenda. Nestes lugares ele é especialmente provocativo e dado a declarações exageradas e non sequitur. O resto de nossa revisão vai focar neste material.

Bases Evangélicas de Ehrman

Na introdução, Ehrman fala de suas bases evangélicas (três anos na Moody Bible Institute, dois anos na Wheaton College onde ele aprendeu grego pela primeira vez), seguido por um M.Div. e Ph.D. no Seminário de Princeton. Foi em Princeton que Ehrman começou a rejeitar parte de sua formação evangélica, especialmente quando ele lutava com os detalhes do texto do Novo Testamento. Ele nota que o estudo dos manuscritos do Novo Testamento crescentemente criou dúvidas em sua mente: “Eu me mantive voltando para minha pergunta básica: como nos ajudaria dizer que a Bíblia é a inerrante palavra de Deus se de fato não temos as palavras que Deus inerrantemente inspirou, mas somente as palavras copiadas por escribas – algumas vezes corretamente e algumas vezes (muitas vezes!) incorretamente?”20 Esta é uma pergunta excelente. E foi proeminentemente tratado com destaque em Misquoting Jesus, sendo repetido por todo o livro. Infelizmente, Ehrman não gasta muito tempo lutando com ela diretamente.

Enquanto ele estava no programa de mestrado, ele pegou um curso sobre o Evangelho de Marcos do professor Cullen Story. Para seu trabalho de conclusão, ele escreveu sobre o problema de Jesus falando da entrada de Davi no templo “quando Abiatar era o sumo-sacerdote” (Marcos 2:26). A bem conhecida crux é problemática para a inerrância porque, de acordo com 1 Samuel 21, o tempo que Davi entrou no tempo era de fato quando o pai de Abiatar, Ahimeleque, foi sacerdote. Mas Ehrman estava determinado a trabalhar no que parecia ser o significado claro do texto, para salvar a inerrância. Ehrman diz a seus leitores que o comentário do professor Story sobre o tema “o atingiu em cheio. Ele escreveu, ‘Talvez Marcos apenas tenha cometido um erro.’”21 Este foi um momento decisivo na jornada espiritual de Ehrman. Quando ele concluiu que Marcos pode ter errado, “as comportas abriram.”22 Ele começou a questionar a confiabilidade histórica de muitos textos bíblicos, resultando em uma “mudança sísmica” em seu entendimento da Bíblia. “A Bíblia,” nota Ehrman, “começou a parecer para mim como um livro bem humano… Este era um livro humano do início ao fim.”23

O que me chama mais a atenção em tudo isto é como Ehrman amarrou a inerrância com a geral confiabilidade histórica da Bíblia. Foi uma proposição de “ou tudo ou nada” para ele. Ele ainda parece ver as coisas em termos de preto e branco, pois ele conclui seu testemunho com estas palavras: “É uma mudança radical de ler a Bíblia como um esquema inerrante para nossa fé, vida e futuro para vê-la como um livro bem humano… Esta é a mudança no meu próprio pensamento que terminei fazendo, e ao qual agora estou entregue completamente.”24 Parece então não haver meio termo em sua visão do texto. Em resumo, Ehrman parece ter mantido o que eu chamaria de ‘uma visão dominó da doutrina’. Quando uma cai, elas todas caem. Retornaremos a esta matéria em nossa conclusão.

A Corrupção Ortodoxa das Escrituras

O coração do livro são os capítulos 5, 6, e 7. Aqui Ehrman especificamente discute o resultado das descobertas em seu maior trabalho, The Orthodox Corruption of Scripture.25 Seu capítulo de conclusão se aproxima do ponto que ele está direcionando nesta seção: “Seria errado… dizer – como pessoas geralmente fazem – que as mudanças em nosso texto não possuem impacto real no que os textos significam ou nas conclusões teológicas que alguém obtém deles. Temos visto, de fato, que o oposto é o caso.”26

Nós pausamos para observar dois pontos teológicos fundamentais sendo enfatizadas em Misquoting Jesus: primeiro, como mencionamos antes, é irrelevante falar sobre inerrância Bíblica porque não temos mais os documentos originais; segundo, as variantes nos manuscritos mudam a teologia básica do Novo Testamento.

A falácia lógica em negar um Autógrafo inerrante

Apesar de Ehrman não desenvolver realmente este primeiro argumento, ele merece uma resposta. Precisamos começar fazendo uma distinção cuidadosa entre inspiração e inerrância verbal. Inspiração está relacionada ao palavreado da Bíblia, enquanto inerrância está relacionada à verdade da declaração. Evangélicos americanos geralmente acreditam que somente os textos originais são inspirados. Isto não quer dizer, contudo, que cópias não podem ser inerrantes. De fato, declarações que não mantém nenhuma relação com as Escrituras podem ser inerrantes. Se eu disser, “Estou casado e tenho quatro filhos, dois cães e um gato”, é uma declaração inerrante. Não é inspirada, nem tanto relacionada com as Escrituras, mas é verdade. Similarmente, se Paulo diz “nós temos paz” ou “que tenhamos paz” em Romanos 5:1, ambas declarações são verdadeiras (apesar de que cada uma em um sentido diferente), apesar de somente uma é inspirada. Manter esta distinção em mente enquanto considerar as variantes textuais do Novo Testamento deve deixar claro o assunto.

Não importando o que alguém pensa sobre a doutrina da inerrância, o argumento contra ela com base em desconhecidos autógrafos é logicamente falacioso. Isto é assim por duas razões. Primeiro, nós temos o texto do Novo Testamento em algum lugar nos manuscritos. Não há necessidade de conjecturas, exceto talvez em um ou dois lugares.27 Segundo, o texto que temos em qualquer variante viável não é mais problema para a inerrância do que outros problemas onde o texto é seguro. Agora, para ter certeza, há alguns desafios nas variantes textuais para a inerrância. Isto não é negado. Mas há simplesmente maiores peixes a fritar quando se está tratando de pontos controversos que a inerrância tem que encarar. Assim, se emenda conjectural é desnecessária, e se nenhuma variante viável registra mais que um ponto no radar chamado ‘problemas para inerrância’, então não ter os originais é um ponto bem humorado para esta doutrina. Não é um ponto bem humorado para a inspiração verbal, é claro, mas é para a inerrância.28

Doutrinas cardeais afetadas por variantes textuais?

O segundo ponto teológico de Ehrman ocupa o centro do palco em seu livro. Da mesma forma ocupará o resto desta revisão.
Nos capítulos cinco e seis, Ehrman discute várias passagens que envolvem variantes que alegadamente afetam o centro das crenças teológicas. Ele resume suas descobertas no capítulo de conclusão como se segue:

Em alguns exemplos, o próprio significado do texto está em questão, dependendo de como alguém resolve um problema textual: Era Jesus um homem nervoso [Marcos 1:41]? Era ele completamente ignorado na face da morte [Hebreus 2:8-9]? Ele disse a seus discípulos que eles poderiam tomar veneno sem se ferir [Marcos 16:9-20]? Ele livrou uma adúltera da morte com nada mais que um brando aviso [João 7:53-8:11]? É a doutrina da Trindade explicitamente ensinada no Novo Testamento [1 João 5:7-8]? É Jesus realmente chamado de “o único Deus” ali [João 1:18]? O Novo Testamento indica que mesmo o próprio Filho de Deus não pode saber quando o final virá [Mateus 24:36]? As questões continuam, e todas elas estão relacionadas a como alguém resolve as dificuldades na tradição do manuscrito da forma que ele veio a nós.29

É aparente que tal sumário intenciona focar nas maiores passagens problemáticas que Ehrman descobriu. Assim, seguindo o bem-usado princípio rabínico de a maiore ad minus30, ou argumentando do maior para o menor, nós vamos endereçar apenas estes sete textos.

O problema com passagens problemáticas

Três destas passagens tem sido consideradas inautênticas pela maioria dos estudiosos do Novo Testamento – incluindo muitos estudiosos do Novo Testamento evangélicos – por bem mais que um século (Marcos 16:9-20; João 7:53-8:11; e 1 João 5:7-8).31 Ainda assim Ehrman escreve como se a amputação de tais textos mexeria com nossas convicções teológicas. Isto dificilmente é o caso. (Nós vamos suspender a discussão de uma destas passagens, 1 João 5:7-8, até o final.)

Os últimos doze versos de Marcos e o Pericope Adulterae

Ao mesmo tempo, Ehrman implícitamente levanta uma questão válida. Uma olhada em virtualmente cada Bíblia Inglesa hoje revela que o final longo de Marcos e o pericope adulterae são encontrados em seus lugares normais. Assim, não somente a KJV e NKJV possuem estas passagens (como seria de se esperar), mas também a ASV, RSV, NRSV, NIV, TNIV, NASB, ESV, TEV, NAB, NJB, e NET. Ainda que os estudiosos que produzem estas traduções, de longe, não assinam a autenticidade de tais textos. As razões são bastante simples: eles não aparecem nos mais antigos e melhores manuscritos e sua evidência interna é decididamente contra sua autenticidade. Porque eles ainda estão nestas Bíblias?

A resposta a esta questão varia. Para alguns, eles parecem estar na Bíblia por causa de uma tradição de timidez. Há aparentemente boas razões para isto. A análise racional é tipicamente que ninguém comprará uma versão particular se ela não trouxer estas famosas passagens. E se eles não compram a versão, ela não pode influenciar cristãos. Algumas traduções incluiram o pericope adulterae por causa do mandato das autoridades papais declarando a passagem ser Escritura. A NEB/REB a inclui no final dos Evangelhos, ao invés de seu lugar tradicional. A TNIV e NET possuem ambas passagens em fontes pequenas entre chaves. Caixa baixa é claro dificulta a leitura do púlpito. A NET adiciona uma longa discussão sobre a inautenticidade dos versos. A maioria das traduções mencionam que estes pericopae não são encontrados nos manuscritos mais antigos, mas tal comentário é raramente notado por leitores hoje. Como sabemos disto? Das ondas de choque produzidas pelo livro de Ehrman, nas entrevistas na radio, TV, e jornal com Ehrman, a história da mulher pega em adultério é quase sempre o primeiro texto trazido como inautêntico, e a menção é calculada para alarmar a audiência.

Deixar o público saber dos segredos de estudiosos sobre o texto bíblico não é novidade. Edward Gibbon, em seu bestseller de seis volumes, The Decline and Fall of the Roman Empire, notou que o Comma Johanneum, ou fórmula Trinitária de 1 João 5:7-8 não era autêntica.32 Isto escandalizou o público britânico do século dezoito, pois sua única Bíblia era a Versão Autorizada, que continha a fórmula. “Outros fizeram [isto] antes dele, mas somente em círculos acadêmicos e de estudos. Gibbon o fez diante do público geral, em linguagem destinada a ofensa.”33 Ainda no tempo que a Versão Revisada apareceu em 1885, nenhum traço da Comma foi encontrada nela. Hoje o texto não é impresso em traduções modernas, e ela dificilmente levantará uma sobrancelha.

Ehrman seguiu no trem de Gibbon ao expor ao público a inautenticidade de Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11. O problema aqui, no entanto, é um pouco diferente. Forte bagagem emocional é especialmente ligada ao último texto. Por anos, foi minha passagem favorita que não estava na Bíblia. Eu até mesmo pregaria sobre ela como uma verdadeira narrativa histórica, mesmo depois de rejeitar sua literária/canônica autenticidade. E nós todos conhecemos pregadores que não podem simplesmente desistir dela, mesmo apesar deles também terem dúvidas sobre ela. Mas há dois problemas com esta abordagem. Primeiro, em termos de popularidade entre estes dois textos, João 8 é esmagadoramente favorito, ainda que suas credenciais externas são significantemente piores que as de Marcos 16. O mesmo pregador que declara a passagem de Marcos inautêntica exalta as virtudes de João 8. Esta inconsistência é intimidadora. Algo está errado em nossos seminários teológicos quando se permite que os sentimentos de alguém sejam os árbitros dos problemas textuais. Segundo, o pericope adulterae é provavelmente sequer historicamente verdadeiro. Foi provavelmente uma história unida de dois relatos diferentes.34 Assim, a desculpa que alguém pode proclamá-lo porque a história realmente aconteceu não é aparentemente válida.

Em retrospecto, mantendo estas duas pericopae em nossas Bíblia ao invés de relegá-los às notas de rodapé parece ter sido uma bomba só esperando para explodir. Tudo que Ehrman fez foi ascender o pavio. Uma lição que nós devemos aprender de Misquoting Jesus é que aqueles no ministério precisam diminuir a distância entre a igreja e a academia. Nós temos que educar os fiéis. Ao invés de isolar os leigos da crítica erudita, nós precisamos protegê-los. Eles precisam de estar preparados para a barragem, porque ela está vindo.35 O silenciamento intencional da igreja para o bem de preencher mais bancos irá finalmente direcionar para a derrota de Cristo. Ehrman deve ser agradecido por nos dar um alerta para despertar.

Isto não é para dizer que tudo que Ehrman escreveu neste livro é deste tipo. Mas estas três passagens são. Novamente, nós precisamos enfatizar: estes textos não mudam nenhuma doutrina fundamental, nenhuma doutrina central. Estudiosos evangélicos os abandonaram há mais de um século sem incomodar um jota de ortodoxia.

Os restantes quatro problemas textuais, contudo, contam uma história diferente. Ehrman apela ou para uma interpretação ou para evidência que a maioria dos estudiosos consideram, no máximo, duvidosa.

Hebreus 2:8-9

Traduções são grosseiramente unidas em como elas tratam Hebreus 2:9b. O da NET é representativo: “pela graça de Deus ele experimentou a morte da parte de todos.” Ehrman sugere que “pela graça de Deus”—χάριτι θεου' – é uma leitura secundária. Pelo contrário, ele argumenta que “apartado de Deus,” ou χωρὶς θεοῦ, é o que o autor escreveu originalmente. Há no entanto três manuscritos que possuem esta leitura, todos do século dez ou posterior. Codex 1739, contudo, é um deles, e é uma cópia de um manuscrito mais antigo e decente. χωρὶς θεοῦ também é discutido em vários pais, um manuscrito da Vulgata, e algumas cópias da Peshitta.36 Muitos estudiosos dispensariam tal evidência insignificante sem muito alvoroço. Se eles se derem ao trabalho de tratar a evidência interna de alguma forma, é porque mesmo que ele tenha um pobre pedigree, χωρὶς θεοῦ é a leitura mais difícil e assim deve requerir alguma explicação, já que escribas tendem a deixar o palavreado do texto mais simples. Da mesma forma, algo precisa explicar as várias citações patrísticas. Mas se uma leitura é uma mudança não intencional, o canon da leitura mais difícil é inválida. A leitura mais difícil seria uma leitura sem sentido, algo que não pode ser criado de propósito. Apesar de χωρίς ser aparentemente a leitura mais difícil,37 ela pode ser explicada como uma alteração acidental. É mais provável devido tanto a um ‘lapso dos escribas’38 onde um copista inatento confundiu χωρίς por χάριτι, ou ‘uma interpretação marginal’ onde um escriva estava pensando em 1 Coríntios 15:27 onde, como Hebreus 2:8, cita o Salmo 8:6 em referência à sujeição de Deus de todas as coisas a Cristo.39

Sem entrar nos detalhes da defesa de Ehrman de χωρίς, nós simplesmente desejamos notar quatro coisas. Primeiro, ele destaca demais seu caso por assumir que sua visão é certamente correta. Depois de três páginas de discussão deste texto em seu Orthodox Corruption of Scripture, ele pronuncia o veredito: “A evidência externa porém é que Hebreus 2:9 deve originalmente dizer que Jesus morreu ‘apartado de Deus.’”40 Ele ainda está vendo as coisas em termos de preto e branco. Segundo, os pontos de vista crítico-textuais de Ehrman estão ficando perigosamente próximos de um rigoroso ecleticismo.41 A informação externa parece significar menos e menos para ele já que ele parece querer ver uma corrupção teológica no texto. Terceiro, mesmo apesar dele ter certeza em seu veredito, seu mentor, Bruce Metzger, não está. Um ano após Orthodox Corruption ser publicado, a segunda edição da Textual Commentary de Metzger apareceu. O comitê da UBS ainda dá a mão para a leitura χάριτι θεοῦ, mas desta vez elevando sua convicção para uma categoria ‘A’.42 Finalmente, mesmo assumindo que χωρὶς θεοῦ é a leitura correta aqui, Ehrman não revelou um caso que esta variante “afeta a interpretação de um livro inteiro do Novo Testamento.”43 Ele argumenta que “a leitura menos atestada é também mais consistente com a teologia de Hebreus.”44 Ele adiciona que o autor “repetidamente enfatiza que Jesus morreu uma completamente humana e humilhante morte, totalmente removido do reino de onde ele veio, o reino de Deus. Seu sacrifício, como resultado, foi aceito como a perfeita expiação pelo pecado. Além do mais, Deus não interviu em sua paixão e não fez nada para minimizar sua dor. Jesus morreu ‘apartado de Deus.’”45 Se esta é a visão de Jesus através de Hebreus, como a variante que Ehrman adota em 2:9 muda este retrato? Em seu Orthodox Corruption, Ehrman diz que “Hebreus 5:7 fala de Jesus, na face da morte, implorando a Deus com grandes clamores e lágrimas.”46 Mas que este texto esteja falando de Jesus ‘na face da morte’ não é tão claro (nem Ehrman defende esta visão). Depois ele contrói sobre isto em seu capítulo final de Misquoting Jesus – mesmo que ele nunca estabeleceu o ponto – quando ele pergunta, “Foi [Jesus] completamente abandonado na face da morte?”47 Ele vai ainda mais longe em Orthodox Corruption. Eu estou perdido em entender como Ehrman pode clamar que o autor de Hebreus parece conhecer “de tradições de paixão onde Jesus estava aterrorizado na face da morte”48 a menos que se conecte estes três pontos, todos os quais são duvidosos – a saber, lendo χωρὶς θεοῦ in Hebreus 2:9, vendo 5:7 como se referindo principalmente à morte de Cristo e que suas orações eram principalmente para si mesmo,49 e então a respeito dos grandes clamores ali para refletir seus estado de aterrorizado. Ehrman parece estar contruindo seu caso sobre hipóteses ligadas, que é uma pobre fundamentação no máximo.

Marco 1:41

No primeiro capítulo do Evangelho de Marcos, um leproso se aproxima de Jesus e o pede para o curar: “Se você desejar, você pode me fazer limpo” (Marcos 1:40). A resposta de Jesus é gravada no texto de Nestle-Aland como segue: καὶ… σπλαγχνισθει…Vς ἐκτείνας τὴν χεῖρα αὐτοῦ ἥψατο καὶ… λέγει αὐτῳÇ· θέλω, καθαρίσθητι (“e movido por compaixão, ele estendeu [sua] mão e o tocou, dizendo, ‘Eu quero, seja limpo’”). Ao invés de σπλαγχνισθει…vς (‘movido por compaixão’) algumas testemunhas ocidentais50 lêem ὀργισθείς (‘ficando nervoso’). A motivação de Jesus para esta cura aparentemente está na balança. Mesmo que a UBS4 dá a σπλαγχνισθει…vς uma classe B, um crescente número de exegetas estão começando a argumentar pela autenticidade de ὀργισθείς. Em um Festschrift para Gerald Hawthorne em 2003, Ehrman fez um impressionante argumento pela sua autenticidade.51 Quatro anos antes, uma dissertação de doutorado de Mark Proctor foi escrito em defesa de ojrgisqeivV.52 A leitura também fez seu caminho na TNIV, e é seriamente cogitada na NET. Nós não tomamos o tempo para considerar os argumentos aqui. Neste estágio estou inclinado a pensar que é mais provavelmente original. De qualquer forma, para o bem do argumento, assumindo que a leitura ‘nervosa’ é autêntica, o que isto nos diz de Jesus que não sabíamos antes?

Ehrman sugere que se Marcos originalmente escreveu sobre a raiva de Jesus nesta passagem, ela muda nossa figura de Jesus em Marcos significantemente. De fato, este problema textual é o maior exemplo no capítulo 5 (“Originais que Importam”), um capítulo cuja tese central é que algumas variantes “afetam a interpretação de um livro inteiro do Novo Testamento.”53 Esta tese é superestimada em geral, e particularmente no Evangelho de Marcos. Em Marcos 3:5 Jesus é dito estar nervoso – palavras que estão indisputavelmente no texto original de Marcos. E em Marcos 10:14 ele está indignado com seus discípulos.

Ehrman, é claro, sabe disto. De fato, ele argumenta implicitamente no Festschrift de Hawthorne que a raiva de Jesus em Marcos 1:41 se encaixa perfeitamente na figura que Marcos em outro lugar pinta de Jesus. Ele diz, por exemplo, “Marcos descreveu Jesus como nervoso, e pelo menos nesta instância, os escribas ficaram ofendidos. Isto não vem como surpresa; fora de um completo entendimento do retrato de Marcos, a raiva de Jesus é difícil de entender.”54 Ehrman até mesmo lança o princípio fundamental que ele vê através de Marcos: “Jesus fica nervoso quando qualquer um questiona sua autoridade ou habilidade de curar – ou seu desejo de curar.”55 Agora, para o bem do argumento, vamos assumir que não somente a reconstrução textual de Ehrman é correta, mas sua interpretação de ὀργισθείς em Marcos 1:41 está correta – não somente naquela passagem mas na totalidade da apresentação de Jesus por Marcos.56 Se assim, como então um nervoso Jesus em 1:41 “afeta a interpretação de um livro inteiro do Novo Testamento”? De acordo com a própria interpretação de Ehrman, ὀργισθείς somente aumenta a força da imagem que nós vemos de Jesus neste Evangelho por fazê-lo totalmente consistente com outros textos que falam de sua raiva. Se esta leitura é a Exposição A no quinto capítulo de Ehrman, ela seriamente produz efeitos negativos, pois ela faz pouco ou nada para alterar o geral retrato de Jesus que Marcos pinta. Aqui está outro exemplo, então, no qual as conclusões teológicas de Ehrman são mais provocativas do que a evidência sugere.

Mateus 24:36

No Discurso do Monte das Oliveiras, Jesus fala sobre o tempo de seu próprio retorno. De forma destacável, ele confessa que ele não conhece exatamente quando isto será. Em traduções mais modernas de Mateus 24:36, o texto basicamente diz, “Mas quanto ao dia e a hora ninguém o sabe – nem os anjos do céu, nem o Filho – exceto o Pai sozinho.” Contudo, muitos manuscritos, incluíndo alguns antigos e importantes, faltam οὐδὲ ὁ υἱός. Se “nem o Filho” é autêntico ou não é disputado.57 No entanto, Ehrman novamente fala de forma confiante sobre o tema.58 A importância desta variante textual para a tese de Misquoting Jesus é difícil de avaliar, contudo. Ehrman alude a Mateus 24:36 em sua conclusão, aparentemente para sublinhar seu argumento que variantes textuais alteram doutrinas básicas.59 Sua discussão inicial desta passagem certamente deixa esta impressão também.60 Mas se ele não quer dizer isto, então ele está escrevendo mais provocativamente que é necessário, enganando seus leitores. E se ele quer dizer isto, ele superestimou seu caso.

O que não é disputado são as palavras no paralelo em Marcos 13:32 – “Mas quanto àquele dia ou hora ninguém sabe – nem os anjos no céu, nem o Filho – exceto o Pai.”61 Assim, não pode haver dúvidas que Jesus falou de sua própria ignorância profética no Discurso do Monte das Oliveiras. Consequentemente, qual ponto doutrinal está realmente em questão aqui? Alguém não pode simplesmente manter que o palavreado em Mateus 24:36 muda as convicções teológicas básicas de alguém desde que o mesmo sentimento é encontrado em Marcos. Ehrman não menciona Marcos 13:32 nenhuma vez em Misquoting Jesus, apesar de que ele explicitamente discute Mateus 24:36 pelo menos seis vezes, aparentemente para o efeito de que esta leitura impactua nosso entendimento fundamental de Jesus.62 Mas o palavreado muda nosso entendimento básico da visão de Jesus de Mateus? Mesmo isto não é o caso. Mesmo que Mateus 24:36 originalmente faltasse “nem o Filho”, o fato de que o Pai sozinho (εἰ μὴ ὁ πατὴρ μόνος) tem este conhecimento certamente implica na ignorância do Filho (e o “sozinho” é somente encontrado em Mateus 24:36, não em Marcos 13:32). Novamente, este detalhe importante não é mencionado em Misquoting Jesus, nem mesmo em Orthodox Corruption of Scripture.

João 1:18

Em João 1:18b, Ehrman argumenta que “Filho” ao invés de “Deus” é a leitura autêntica. Mas ele vai além da evidência ao declarar que se “Deus” fosse o original o verso estaria chamando Jeus de “o único Deus”. O problema com tal tradução, nas palavras de Ehrman, é que “o termo único Deus deve se referir ao próprio Deus o Pai – de outra forma ele não é único. Mas se o termo refere ao Pai, como ele pode ser usado com o Filho?”63 O argumento gramatical sofisticado de Ehrman para isto não é encontrado em Misquoting Jesus, mas está detalhado em seu Orthodox Corruption of Scripture:
O mais comum recurso para aqueles que optam por [ὁ] μονογενὴς θεός, mas que reconhecem que sua tradução de “o único Deus” é virtualmente impossível em um contexto Joanino, é entender o adjetivo substantivamente, e construir a segunda parte de João 1:18 inteira como uma série de aposições, assim que ao invés de ler “o único Deus que está no seio do Pai”, o texto seria traduzido por “o único, que também é Deus, que está no seio do Pai”. Há algo atrativo sobre a proposta. Ela explica o que o texto poderia ter significado a um leitor Joanino e desse modo permite o texto de testemunhas textuais geralmente superiores. Apesar disto, a solução é inteiramente implausível.
…. É verdade que μονογενής pode em outro lugar ser usado como substantivo (= o único, como no versículo 14); todos os adjetivos podem. Mas os proponentes desta visão falharam em considerar que ele nunca é usado desta forma quando é imediatamente seguido por um nome que concorda com ele em gênero, número e caso. De fato alguém aqui deve pesar o ponto sintático:
quando um adjetivo alguma vez é usado substantivamente quando ele imediatamente precede um nome de mesma inflexão? Nenhum leitor grego construiria tal construção como uma linha de substantivos, e nenhum escritor grego criaria tal inconsistência. No meu melhor conhecimento, ninguém citou nada análogo fora desta passagem.
O resultado é que tomando o termo μονογενὴς θεός como dois substantivos estando em aposição faz uma sintaxe quase impossível, enquanto que construindo-os como uma relação adjetivo-substantivo cria um sentido impossível.
64

O argumento de Ehrman assume que μονογενής não pode normalmente ser substantivo, mesmo que ele seja usado no versículo 14 – como ele admite. Há muitas críticas que poderiam ser feitas deste argumento, mas o maior entre eles é este: sua consideração absoluta da situação gramatical é incorreta. Seu desafio (“ninguém citou nada análogo fora desta passagem”) é adotada aqui. Há, de fato, exemplos onde um adjetivo que é justaposto a um nome com as mesmas concordâncias gramaticais não está funcionando adjetivamente mas substantivamente.65

João 6:70: καὶ ἐξ ὑμῶν εἷς διάβολός ἐστιν. Aqui διάβολος está funcionando como um nome, mesmo que ele seja um adjetivo. E εἷς, o adjetivo pronominal, é o sujeito relacionado a διάβολος, o predicado nominativo.
Romanos 1:30: καταλάλους θεοστυγεῖς ὑβριστὰς ὑπερηφάνους ἀλαζόνας, ἐφευρετὰς κακῶν, γονεῦσιν ἀπειθεῖς (“caluniadores, odiadores de Deus, insolentes, arrogantes, orgulhosos, inventores de mal, desobedientes aos pais”—verdadeiros adjetivos em itálicos)
Gálatas 3:9: τῷ πιστῷ ᾿Αβραάμ (“com Abraão, o fiel” como a NASB o tem; NRSV tem “Abraão que creu”; NIV tem “Abraão, o homem da fé”). Indepentende do jeito que é traduzido, aqui um adjetivo é cunhado entre um artigo e um nome que está funcionando substantivamente, em aposição ao nome.
Efésios 2:20: ὄντος ἀκρογωνιαίου αὐτοῦ Χριστοῦ ᾿Ιησοῦ (“Cristo Jesus mesmo sendo a principal pedra angular”): apesar de ἀκρογωνιαῖος ser um adjetivo, ele parece estar funcionando substantivamente aqui (apesar de ele possivelmente ser um adjetivo predicado, eu suponho, com um predicado genitivo). A LSJ lista este como um adjetivo; LN lista como um nome. Ele pode assim ser similar a μονογενής em seu desenvolvimento.
1 Timóteo 1:9: δικαίῳ νόμος οὐ κεῖται, ἀνόμοις δὲ καὶ ἀνυποτάκτοις, ἀσεβέσι καὶ ἁμαρτωλοῖς, ἀνοσίοις καὶ βεβήλοις, πατρολῴαις καὶ μητρολῴαις, ἀνδροφόνοις (lei não é feita para um homem justo, mas para aqueles que não possuem lei e rebeldes, para os sem Deus e pecadores, para os impuros e profanos, para aqueles que matam seus pais ou mães, para assassinos [adjetivos e itálico]): este texto claramente mostra que Ehrman superestimou seu caso, pois βεβήλοις não modifica πατρολῴαις mas ao contrário é substantivado, como os cinco termos descritivos anteriores.
1 Pedro 1:1: ἐκλεκτοῖς παρεπιδήμοις (“os eleitos, estrangeiros”): Este texto é interpretado, mas nosso ponto é simplesmente que ele poderia encaixar igualmente no esquema de
John 1:18. Ele então se qualifica para textos dos quais Ehrman diz “ninguém citou nada análogo fora desta passagem.”
2 Pedro 2:5: ἐφείσατο ἀλλὰ ὄγδοον Νῶε δικαιοσύνης κήρυκα (“não poupou [o mundo], mas [preservou] um oitavo, Noé, um pregador de justiça”). O adjetivo ‘oitavo’ fica em aposição a Noé; de outra forma, se ele modificasse Noé, a força seria ‘um oitavo Noé’ como se houvessem outros sete Noés!
66

Na luz destes exemplos (que são no entanto poucos daqueles encontrados no Novo Testamento), nós podemos assim responder diretamente a questão que Ehrman levanta: “quando um adjetivo alguma vez é usado substantivamente quando ele imediatamente precede um nome de mesma inflexão?” Seu destaque que “Nenhum leitor grego iria construir tal construção como uma linha de substantivos, e nenhum escritor grego iria criar tal inconsistência” não é simplesmente gerada a partir de evidência. E nós temos somente olhado para uma amostra do Novo Testamento. Se os autores do Novo Testamento podem criar tais expressões, em seu argumento interno contra a leitura μονογενὴς θεός perde considerável peso.

Agora se torna uma questão de perguntar se há suficientes evidências contextuais que μονογενής está de fato funcionando substantivamente. Ehrman já proveu de ambos: (1) em João, é bem impensável que a Palavra se tornasse o único Deus em 1:18 (no qual ele sozinho, e não o Pai, é clamado ter status divino) somente para ter aquele status removido repetidamente através de todo o Evangelho. Assim, assumindo que μονογενὴς θεός é autêntico, estamos de fato quase direcionados para o mesmo sentido que Ehrman considera como gramaticalmente implausível mas contextualmente necessário: “o único, ele mesmo sendo Deus …” (2) que μονογενής já é usado no versículo 14 como um substantivo67 se torna o mais forte argumento contextual para ver sua função substantivada repetida quatro versos depois. Imediatamente depois que Ehrman admite que este adjetivo pode ser usado substantivamente e assim é usado no versículo 14, ele faz seu argumento gramatical com a intenção de abandonar as luvas ou para fechar a tampa do caixão (escolha seu cliché) na força da conexão com o versículo 14. Mas se o argumento gramatical não o corta, então o uso substantivado de μονογενής no versículo 14 deveria ficar como uma importante dica contextual. De fato, à luz do já gasto uso no grego bíblico, nós deveríamos quase esperar que μονογενής fosse usado substantivamente com a implicação de filiação em 1:18.

Agora, nossa única preocupação aqui é disputar com o que μονογενὴς θεός significaria se ele fosse o original, ao invés de argumentar por sua autenticidade, parece haver suficiente evidência para demonstrar uma força tal qual “o único, ele mesmo Deus” como uma interpretação cabível para esta leitura. Tanto a interna quanto a externa evidência estão do seu lado; a única coisa segurando tal variante é a interpretação que ela é uma leitura modalística.68 Mas as bases para isto são uma suposição gramatical que temos demonstrado não ter peso. Em conclusão, tanto μονογενὴς υἱός e μονογενὴς θεός encaixam confortavelmente na ortodoxia; nenhuma mudança teológica sísmica ocorre se alguém pegar uma leitura ao invés da outra. Apesar de algumas traduções modernas serem persuadidas pelo argumento de Ehrman aqui (tal qual a HCSB), o argumento dificilmente não possui pontos fracos. Quando cada variante é examinada com cuidado, ambas são vistas dentro do reino do ensino ortodoxo.

Suficientemente é dito que se “Deus” é autêntico aqui, é dificilmente necessário traduzir a frase como “o único Deus”, apesar de que isto poderia implicar que Jesus sozinho é Deus. Pelo contrário, como a NET o traduz (veja também a NIV e NRSV), João 1:18 diz, “Ninguém jamais viu a Deus. O Único, Ele mesmo Deus, que está em mais próxima comunhão com o Pai, fez Deus conhecido.”

Em outras palavras, a idéia de que as variantes nos manuscritos do Novo Testamento alteram a teologia do Novo Testamento é superestimado ao máximo.69 Infelizmente, um estudioso tão cuidadoso como Ehrman é, seu tratamento de maiores mudanças teológicas no texto do Novo Testamento tendem a cair em uma de duas críticas: Ou suas decisões textuais são erradas, ou sua interpretação é errada. Estas críticas foram feitas de seu trabalho anterior, Orthodox Corruption of Scripture, que Misquoting Jesus foi extensamente baseado. Por exemplo, Gordon Fee disse deste trabalho que “infelizmente, Ehrman muito frequentemente transforma meras possibilidades em probabilidades, e probabilidade em certeza, onde outras razões igualmente viáveis para corrupção existem.”70 Ainda, as conclusões que Ehrman revela em Orthodox Corruption of Scripture ainda são oferecidas em Misquoting Jesus sem o reconhecimento de alguns das severas críticas de seu trabalho a primeira evasiva.71 Para um livro que tem como alvo uma audiência leiga, alguém poderia pensar que ele iria querer ter sua discussão um pouco mais detalhada, especialmente com todo o peso teológico que ele diz estar em jogo. Alguém quase tem a impressão que ele está encorajando os fracos na fé na comunidade cristã a ter pânico por informações as quais eles simplesmente não estão preparados para encarar. Tempo e tempo novamente no livro, declarações altamente carregadas são reveladas para que as pessoas não treinadas simplesmente não possam filtrar. E aquela abordagem parece mais uma mentalidade alarmista que uma maduro, meste e professor é capaz de oferecer. A respeito da evidência, é suficiente dizer que variantes textuais significantes que alteram as doutrinas centrais do Novo Testamento não foram ainda produzidas.

Aparentemente Ehrman ainda pensa que elas foram. Quando discute as visões de Wettstein do texto do Novo Testamento, Ehrman nota que “Wettstein começou a pensar seriamente sobre suas próprias convicções teológicas, e se sincronizou ao problema que o Novo Testamento raramente, se alguma vez, chama Jesus de Deus de fato.”72 Destacadamente, Ehrman parece representar esta conclusão não somente como a de Wettstein, mas sua própria, também. Ao ponto que Wettstein estava se movendo para o moderno texto crítico e se afastando do TR, seus argumentos contra a deidade de Cristo eram infundados porque a deidade de Cristo é de fato mais claramente vista no texto crítico grego que na TR.73 Apesar de Ehrman não discutir a maioria das passagens que ele acha espúrias, ele o faz em Orthodox Corruption of Scripture (especialmente 264-73). Mas a discussão não é realmente substanciada e envolve contradições internas. Em resumo, ele não elabora seu caso. A deidade de Cristo é indiscutível por qualquer variante viável.

1 João 5:7-8

Finalmente, a respeito de 1 João 5:7-8, virtualmente nenhuma tradução moderna da Bíblia inclui a “Fórmula Trinitária”, já que estudiosos por séculos o reconheceram como adicionado posteriormente. Somente poucos manuscritos muito tardios possuem os versos. Alguém perguntaria porque esta passagem é discutida no livro de Ehrman. A única razão parece ser motivar dúvidas. A passagem criou seus caminhos em nossas Bíblias através de pressões políticas, aparecendo pela primeira vez em 1522, mesmo apesar de que estudiosos ali e agora sabiam que ela não era autêntica. A igreja primitiva não conhece este texto, e ainda o Concílio de Constantinopla em 381 D.C. explicitamente afirmou a Trindade! Como eles poderiam fazer isto sem o benefício de um texto que não chegaria ao Novo Testamento Grego por outro milênio? A declaração de Constantinopla não foi escrita em um vácuo: a igreja primitiva colocou em uma fórmula teológica o que eles receberam do Novo Testamento.

Uma distinção deve ser feita aqui: só porque um verso particular não afirma uma doutrina amada não significa que aquela doutrina não pode ser encontrada no Novo Testamento. Neste caso, qualquer um com um entendimento dos saudáveis debates patríticos sobre a Divindade sabe que a igreja primitiva chegou ao seu entendimento por um exame da informação no Novo Testamento. A fórmula Trinitária encontrada em manuscritos tardios de 1 João 5:7 somente resumem o que eles descobriram; ele não informou suas declarações.

Conclusão

Em resumo, o último livro de Ehrman não desaponta na escala provocativa. Mas ele vem destituído de genuína substância sobre sua contenda primária. Eu peço por sua indulgência por eu refletir em dois pontos pastorais aqui.

Primeiro é meu apelo para todos os estudiosos bíblicos para tomar seriamente sua responsabilidade em cuidar do povo de Deus. Estudiosos carregam um dever sagrado de não alarmar leitores leigos em pontos que eles possuem pouco entendimento. De fato, mesmo professores agnósticos carregam esta responsabilidade. Infelizmente, o leigo médio irá terminar Misquoting Jesus com mais dúvidas sobre o palavreado e ensino do Novo Testamento do que qualquer crítico textual jamais ofereceria. Um bom professor não se contém em dizer a seus estudantes o que é o quê, mas ele também sabe como empacotar o material de forma que eles não deixem a emoção ficar no caminho da razão. A ironia é que Misquoting Jesus é supostamente para ser sobre razão e evidência, mas ele tem criado tanto pânico e alarme quanto O Código Da Vinci. É este realmente o efeito pedagógico que Ehrman estava buscando? Eu tenho que assumir que ele sabia que tipo de reação ele iria receber deste livro, pois ele não muda tanto a impressão em suas entrevistas. Sendo provocativo, mesmo correndo o risco de não ser compreendido, parece ser mais importante para ele que ser honesto mesmo correndo o risco de ser chato. Mas um bom professor não cria fracos na fé.74

Segundo, o que eu digo para meus estudantes todo ano é que é imperativo que eles persigam a verdade ao invés de proteger suas pressuposições. E eles precisam ter uma sistemática doutrinária que distingue crenças centrais de periféricas. Quando eles colocam mais doutrinas periféricas tais quais inerrância e inspiração verbal no centro, então quando a crença nestas doutrinas começam a se desgastar, ela cria um efeito dominó: Uma cai, todas caem. Parece-me que algo assim pode ter acontecido com Bart Ehrman. Seu testemunho em Misquoting Jesus discutiu inerrância como o primeiro motor em seus estudos. Mas quando um comentário superficial de um de seus professores conservadores em Princeton foi rabiscado em um trabalho de conclusão, ao efeito de que talvez a Bíblia não fosse inerrante, a fé de Ehrman começou a desmoronar. Um dominó se chocou com outro até que finalmente ele se tornou ‘um agnóstico bem feliz’. Eu posso estar errado sobre a própria jornada espiritual de Ehrman, mas eu tenho conhecido também muitos estudantes que foram para aquela direção. A ironia é que aqueles que concentram suas investigações críticas do texto da Bíblia com pressuposições bibliológicas sempre falam de uma ‘corda escorregadia’ na qual todas as convicções teológicas estão amarradas à inerrância. Sua visão é que se a inerrância vai, tudo mais começa a se desgastar. Eu diria ao contrário que se inerrância é elevada ao status de doutrina primária, é quando alguém se encontra em uma corda escorregadia. Mas se um estudante vê doutrinas como círculos concêntricos, com as doutrinas cardeais ocupando o centro, então se as doutrinas mais periféricas são desafiadas, isto não tem um impacto significante no centro. Em outras palavras, a comunidade evangélica continuará a produzir estudiosos liberais até nós aprendermos a definir nossos compromissos de fé um pouco mais, até aprendermos a ver Cristo como o centro de nossas vidas e as Escrituras como aquilo que aponta para ele. Se nosso ponto de partida é abraçar verdades proposicionais sobre a natureza da escritura ao invés de pessoalmente abraçar Jesus Cristo como nosso Senhor e Rei, nós estaremos naquela corda escorregadia, e levaremos várias pessoas para baixo conosco.

Eu me aflijo pelo o que aconteceu a um conhecido meu, um homem que conheci e admirei – e continuo a admirar – por mais de um quarto de século. Não me dá alegria de elaborar esta revisão. Mas de onde estou sentado, parece que a mentalidade preto e branco de Bart como um fundamentalista foi dificilmente afetada já que ele trabalhou arduamente através dos anos e provas da vida e estudo, mesmo quando ele surgiu no outro lado do espectro teológico. Ele ainda vê as coisas sem suficiente detalhamento, ele superestima seu caso, e eles está entrincheirado na segurança que sua própria visão está correta. Bart Ehrman é um dos mais brilhantes e criativos críticos textuais que eu jamais conheci, e ainda suas bases são tão fortes que, algumas vezes, ele nem mesmo pode confirmá-las.75 Justamente meses antes de Misquoting Jesus aparecer, a quarta edição do Text of the New Testament de Metzger foi publicado. As primeiras três edições foram escritas somente por Metzger e tinham o título de O Texto do Novo Testamento: Sua Transmissão, Corrupção e Restauração. A quarta edição, agora em co-autoria com Ehrman, faz tal título parecer quase falso. O leitor de Misquoting Jesus pode ser tentado a pensar que o subtítulo da quarta edição de Metzger deveria ter sido chamada simplesmente Sua Transmissão e Corrupção.76
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1 Agradecimentos são dados a Darrell L. Bock, Buist M. Fanning, Michael W. Holmes, W. Hall Harris, e William F. Warren por verificar um esboço preliminar deste artigo e oferecer sua opinião.
2 San Francisco: HarperSanFrancisco, 2005.
3 Neely Tucker, “The Book of Bart: In the Bestseller ‘Misquoting Jesus,’ Agnostic Author Bart Ehrman Picks Apart the Gospels That Made a Disbeliever Out of Him,” Washington Post, March 5, 2006. Acessado em http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/03/04/AR2006030401369.html.
4 Tucker, “The Book of Bart.”
5 Misquoting, 15.
6 Veja especialmente 59-60.
7 Bruce M. Metzger e Bart D. Ehrman, The Text of the New Testament: Its Transmission, Corruption, and Restoration (Oxford: OUP, 2005).
8 Metzger-Ehrman, Text, 158 (italics added). Isto aparece em direta contradição com a declaração de Ehrman em sua conclusão (207), citado acima.
9 Citação de Ehrman, Misquoting, 112.
10 Ibid., 114.
11 Veja Misquoting, 1-15, onde Ehrman relata sua própria jornada espiritual.
12 No capítulo 5, “Originais que Importam”, Ehrman discute o método da crítica textual. Aqui ele devota cerca de três páginas à evidência externa (128-31), mas não menciona nenhum manuscrito individual.
13 Misquoting, 90. Esta é uma de suas declarações favoritas, pois ela aparece em suas entrevistas, tanto impressa e na rádio.
14 Misquoting, 89.
15 Para uma discussão da natureza das variantes textuais, veja J. Ed Komoszewski, M. James Sawyer, Daniel B. Wallace, Reinventing Jesus: What The Da Vinci Code and Other Novel Speculations Don’t Tell You (Grand Rapids: Kregel, May 2006). O livro é lançado em Junho de 2006. A seção que enderaça a crítica textual, compreendida de cinco capítulos, é chamada “Politically Corrupt? The Tainting of Ancient New Testament Texts.”
16 “Quando eu falo de centena e milhares de diferenças, é verdade que um monte são insignificantes. Mas também é verdade que um monte são altamente significantes para interpretar a Bíblia” (Ehrman em uma entrevista com Jeri Krentz, Charlotte Observer, 17 de Dezembro de 2005 [acessado em http://www.charlotte.com/mld/observer/living/religion/13428511.htm]). Na mesma entrevista, quando perguntado, “Se nós não temos os textos originais do Novo Testamento – ou mesmo cópias das cópias do original – o que temos?” Ehrman respondeu, “Nós temos cópias que foram feitas centenas de anos depois – em muitos casos, muitas centenas de anos depois. E estas cópias são todas diferentes umas das outras.” No The Diane Rehm Show (National Public Radio), 8 de Dezembro de 2005, Ehrman disse, “Há mais diferenças em nossos manuscritos que há de palavras no Novo Testamento.”
17 Note o seguinte: “nossos manuscritos são…cheios de erros” (57); “Não somente não temos os originais, não temos as primeiras cópias dos originais. Não temos nem mesmo as cópias das cópias dos originais, ou cópias das cópias das cópias dos originais. O que nós temos são cópias feitas depois – muito depois… E estas cópias todas diferem uma da outra, em muitos milhares de lugares… estas cópias diferem umas das outras em tantos lugares que nós sequer sabemos quantas diferenças existem” (10); “Erros se multiplicam e se repetem; algumas vezes eles são corrigidos e algumas vezes eles são combinados. E assim vai. Por séculos” (57); “Nós poderíamos continuar praticamente para sempre falando sobre específicos lugares onde os textos do Novo Testamento vieram a ser mudados, tanto acidentalmente quanto intencionalmente. Como eu tenho indicado, os exemplos não são somente em centenas mas em milhares” (98); ao discutir o aparato textual de John Mill de 1707, Ehrman declara, “Para o choque e desânimo de muitos de seus leitores, o aparato de Mill isolou alguns trinta mil lugares de variação entre as testemunhas sobreviventes… Mill não foi exaustivo em sua apresentação da informação que ele coletou. Ele encontrou, de fato, muito mais que trinta mil lugares de variação” (84); “Estudiosos variam significantemente em suas estimativas – alguns dizem que há 200,000 variantes conhecidas, alguns dizem 300,000, alguns dizem 400,000 ou mais! Nós não sabemos com certeza porque, apesar do impressionante desenvolvimento na tecnologia de computadores, ninguém foi capaz de contar todos eles” (89); ele conclui sua discussão de Marcos 16:9-20 e João 7:53-8:11, os dois problemas textuais mais longos do Novo Textamento, dizendo que estes dois textos “representam apenas dois de milhares de lugares nos quais os manuscritos do Novo Testamento chegaram a ser mudados pelos escribas” (68). Para dizer que estes dois problemas textuais são representantes de outros problemas textuais é uma sobrevalorização grosseira: o próximo mais largo e viável problema de omissão/adição envolvem apenas dois versos. Ehrman adiciona que “Apesar da maioria das mudanças não serem desta magnitude, há várias mudanças significantes (e muito mais de insignificantes)…” (69). Mesmo isto é um pouco enganoso. Por “maioria das mudanças” Ehrman quer dizer todas as outras mudanças.
18 Por exemplo, ele abre o capítulo 7 com estas palavras: “É provavelmente seguro dizer que a cópia de primeiros textos cristãos era grande processo ‘conservativo’. Os escribas… tinham a intenção de ‘conservar’ a tradição textual que eles estavam passando adiante. Sua preocupação final não era modificar a tradição, mas preservá-la para si mesmos e para aqueles que os seguiam. Muitos escribas, sem dúvida, tentaram fazer um trabalho fiel ao ter certeza que o texto que eles reproduziam era o mesmo que eles receberam” (177). “Seria um erro… assumir que as únicas mudanças sendo feitas eram por copistas com um risco pessoal no palavreamento do texto. De fato, a maioria das mudanças encontradas em nossos primeiros manuscritos cristãos não estão relacionados com nada de teologia ou ideologia. De longe as [sic] maiores mudanças são resultado de erros, pura e simplesmente – deslizes da pena, omissões acidentais, adições inadvertidas, palavras mal escritas, enganos de um tipo ou outro” (55). “Para ter certeza, de todos as centenas de milhares de mudanças encontradas entre os manuscritos, a maioria deles são insignificantes…” (207). Tais concessões parecem ter sido espremidos dele, pois estes fatos são contrários a sua agenda. Nesta instância, ele imediatamente adiciona que “Seria errado, contudo, dizer – como as pessoas normalmente fazem – que as mudanças em nosso texto não possuem real relação com o que o texto significa ou com as conclusões teológicas que alguém retira deles” (207-8). E ele prefaceia sua concessão com a declaração negritada que “Quando mais eu estudei a tradição de manuscritos do Novo Testamento, mais eu me dei conta em exatamente quão radicalmente o texto tem sido alterado através dos anos pelas mãos dos escribas…” (207). Mas este é outro clamor sem definição suficiente. Sim, escribas tem alterado os textos, mas a vasta maioria das mudanças são insignificantes. E a vasta maioria do resto são facilmente detectadas. Alguém quase tem o sentimento que é o estudioso honesto em Ehrman que está adicionando estas concessões, e o teólogo liberal em Ehrman que mantém estas concessões minimizadas.
19 Esta ilustração é tomada de Daniel B. Wallace, “Laying a Foundation: New Testament Textual Criticism,” in Interpreting the New Testament Text: Introduction to the Art and Science of Exegesis (a Festschrift for Harold W. Hoehner), ed. Darrell L. Bock e Buist M. Fanning (Wheaton, IL: Crossway, [forthcoming: 2006]).
Um item a mais poderia ser mencionado sobre as lacunas de Ehrman dos manuscritos. Ehrman parece estar gradualmente movendo para uma visão de prioridade interna. Ele argumenta por várias leituras que estão penduradas em evidências externas por uma linha desprotegida. Isto parece estranho porque meses antes de Misquoting Jesus aparecer, a quarta edição do Text of the New Testament de Bruce Metzger foi publicado, desta vez em co-autoria com Bart Ehrman. Ainda naquele livro, ambos autores falam mais grandemente da evidência externa do que Ehrman faz em Misquoting Jesus.
20 Misquoting, 7.
21 Ibid., 9. Para um tratamento do problema em Marcos 2.26, veja Daniel B. Wallace, “Mark 2.26 and the Problem of Abiathar,” ETS SW regional meeting, 13 de Março de 2004, disponível em http://www.bible.org/page.asp?page_id=3839.
22 Ibid.
23 Ibid., 11.
24 Ibid., 13 (italics added).
25 The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament (Oxford: OUP, 1993).
26 Ibid., 208.
27 281, n. 5 (to ch. 8), “O que temos agora é o que eles escreveram então?” em Reinventing Jesus é aqui duplicado: “Há dois lugares no Novo Testamento onde conjecturas são talvez necessárias. Em Atos 16:12 o texto crítico grego padrão dá uma leitura que não é encontrada em qualquer manuscrito grego. Mas mesmo aqui, alguns membros do comitê da UBS rejeitam a conjectura, argumentando que certos manuscritos possuem a leitura original. A diferença entre os dois entre as duas leituras é somente uma letra. (Veja discussão em Bruce M. Metzger, A Textual Commentary on the Greek New Testament, 2d ed. [Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1994], 393–95; Nota da NET Bible “tc” sobre Atos 16:12.) Também em Apocalipse 21:17 o texto grego padrão segue uma conjectura que Westcott e Hort originalmente estabeleceram, apesar do problema textual não ser listado nem no texto da UBS ou no texto Nestle-Aland. Esta conjectura é uma mera variante de pronúncia que não muda nenhum significado no texto.”
28 Para uma discussão deste ponto, veja Daniel B. Wallace, “Inerrancy and the Text of the New Testament: Assessing the Logic of the Agnostic View,” postado em Janeiro de 2006 em http://www.4truth.net/site/apps/nl/content3.asp?c=hiKXLbPNLrF&b=784441&ct=1799301.
29 Misquoting, 208.
30 Veja Hermann L. Strack, Introduction to the Talmud and Midrash (Atheneum, NY: Temple, 1978) 94, 96 para este princípio hermenêutico conhecido por Kal Wa-homer.
31 Uma discussão acessível do problema textual nestas três passagens pode ser encontrado nas notas de rodapé na Bíblia NET nestes textos.
32 Edward Gibbon, The History of the Decline and Fall of the Roman Empire, Edition DeLuxe, seis volumes (Philadelphia: John D. Morris, [1900]) 3.703–5.
33 James Bentley, Secrets of Mount Sinai: The Story of the Codex Sinaiticus (London: Orbis, 1985) 29.
34 Veja Bart D. Ehrman, “Jesus and the Adulteress,” NTS 34 (1988) 24-44.
35 Por causa desta necessidade, Reinventing Jesus foi escrito. Apesar de escrito em um nível popular, é baseado em estudos sérios.
36 Ehrman diz que a leitura “ocorre em somente dois documentos do décimo século” (Misquoting Jesus, 145), pelo que ele se refere a somente dois documentos gregos, 0243 (0121b) e 1739txt. Estes manuscritos são próximos e provavelmente representam um arquétipo comum. Também é encontrado em 424cvid (assim, aparentemente uma correção tardia em um minúsculo do décimo primeiro século) assim como o vgms syrpmss Orígenesgr (vr), lat MSSaccording to Origen Teodoro Nestoriano according to Ps-Oecumenius Teodoreto 1/2; lem Ambrósio MSSaccording to Jerome Vigílio Fulgêncio. Ehrman nota algumas das evidências patrísticas, sublinhando um importante argumento, a saber, “Orígenes nos diz que esta era a leitura da maioria dos manuscritos em seus próprios dias” (ibid.).
37 Isto, contudo, não é necessariamente o caso. Um argumento poderia ser feito que χάριτι θεοῦ é a leitura mais difícil, desde que o clamor de abandono da cruz, em que Jesus citou Salmos 22:1, pode ser refletido na leitura χωρὶς θεοῦ, enquanto que morrendo “pela graça de Deus” não é tão claro.
38 Assim Metzger, Textual Commentary2, 595. Em escrita uncial: caritiqu vs. cwrisqu.
39 Ibid. Para argumentos similares, veja F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews, rev ed, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1990) 70–71, n. 15. O ponto da interpretação marginal é que em Hebreus 2:8 o autor cita Salmos 8:6, adicionando que “ao sujeitar todas as coisas a ele, ele não deixou nada fora de seu controle”. Em 1 Coríntios 15:27, que também cita Salmos 8:6, Paulo adiciona o qualificador que Deus foi excluído de ‘todas as coisas’ que foram sujeitas a Cristo. Metzger argumenta que a interpretação foi mais provavelmente adicionada por um escriba “para explicar que ‘tudo no versículo 8 não inclui Deus; esta interpretação, sendo erroneamente considerada por um transcritor posterior como uma correção de χάριτι θεοῦ, foi introduzido no texto da versículo 9” (Textual Commentary, 595). Para melhores tratamentos deste problema na literatura exegética, veja Hans-Friedrich Weiss, Der Brief an die Hebräer in MeyerK (Göttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1991) 200–2; Bruce, Hebrews, 70–71.
Ehrman diz que isto é bem improvável por causa da localização da leitura χωρίς no versículo 9 ao invés de uma nota adicional no versículo 8 onde ele pertence. Mas o fato de que tal explicação pressupõe um simples ancestral errante para as poucas testemunhas que o possuem é dificilmente algo forçado. Coisas mais estranhas tem acontecido entre os manuscritos. Ehrman adiciona que χωρίς é o termo menos usual no Novo Testamento, e assim os escribas tenderiam para o mais usual, χάριτι. Mas em Hebreus χωρίς é quase duas vezes mais frequente que χάρις, como Ehrman nota (Orthodox Corruption), 148. Além disto, apesar de que é certamente verdadeiro que os escribas “tipicamente confundem palavras incomuns com as mais comuns” (ibid., 147), não há absolutamente nada incomum com χωρίς. Ela ocorre 41 vezes no Novo Testamento, treze das quais estão em Hebreus. Isto nos traz de volta para o cânon da leitura difícil. Ehrman argumenta que χωρίς é de fato a leitura mais difícil aqui, mas em Metzger-Ehrman, Text, ele (e Metzger) diz, “Obviamente, a categoria ‘leitura mais difícil’ é relativa, e um ponto é algumas vezes alcançado quando uma leitura deve ser julgada tão difícil que ela poderia ter aparecido somente por um acidente em transcrição” (303). Muitos estudiosos, incluindo Metzger, diriam que aquele ponto foi alcançado em Hebreus 2:9.
40 Orthodox Corruption, 149 (italics added).
41 Por isto, não quero apenas dizer sobre sua adoção de χωρὶς θεοῦ aqui. (Apesar de tudo, Günther Zuntz, altamente considerado como um brilhante e sensato eclético, também considerou χωρὶς θεοῦ como autêntico [The Text of the Epistles: A Disquisition upon the Corpus Paulinum [Schweich Lectures, 1946; London: OUP, 1953) 34–35].) Pelo contrário, eu estou me referindo à agenda geral de Ehrman de explorar o aparato para corrupções ortodoxas, a despeito das evidências por leituras alternativas. Com esta agenda, Ehrman parece estar direcionado a argumentar por certas leituras que possuem pouco suporte externo.
42 O prefácio para esta edição foi escrito em 30 de Setembro de 1993. Metzger é reconhecido em Orthodox Corruption como tendo ‘lido parte do manuscrito’ (vii), um livro completado em Fevereiro de 1993 (ibid., viii). Se Metzger leu a seção sobre Hebreus 2:9, ele ainda discordou enormemente de Ehrman. Alternativamente ele não foi apresentado a esta porção do manuscrito. Se o último, alguém deve pensar porque Ehrman não desejaria ter a opinião de Metzger já que ele já sabia, da primeira edição de Textual Commentary, que Metzger não vê a leitura cwrivV como possível (ali é dado uma classificação ‘B’).
43 Misquoting, 132 (itálicos adicionados).
44 Orthodox Corruption, 148.
45 Ibid., 149.
46 Ibid.
47 Misquoting Jesus, 208.
48 Orthodox Corruption, 144 (itálicos adicionados).
49 O contexto de Hebreus 5, contudo, fala de Cristo como sumo-sacerdote; versículo 6 prepara o campo ao ligar o sacerdócio de Cristo com o de Melquisedeque; versículo 7 conecta suas orações com os “dias de sua carne”, não somente com sua paixão. Assim não é irracional ver suas orações como orações para seu povo. Tudo isto sugere que mais que a paixão está em vista em Hebreus 5:7. A única informação que poderia conectar as orações com a paixão é que aquela para quem Cristo orou era “capaz de salvá-lo da morte”. Mas se as orações estavam restritas à provação de Cristo na cruz, então a leitura χωρίς em Hebreus 2:9 parece ser refutada, pois em 5:7 o Senhor “foi ouvido [εἰσακουσθει…vς] por causa de sua devoção”. Como ele poderia ser ouvido se ele morreu apartado de Deus? Os pontos interpretativos em Hebreus 5:7 são de alguma forma complexos, não produzindo respostas fáceis. Veja William L. Lane, Hebrews 1–8, WBC (Dallas: Word, 1991) 119–20.
50 D ita d ff2 r1 Diatessaron.
51 Bart D. Ehrman, “A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” em New Testament Greek and Exegesis: Essays in Honor of Gerald F. Hawthorne (Grand Rapids: Eerdmans, 2003) 77–98.
52 Mark A. Proctor, “The ‘Western’ Text of Mark 1:41: A Case for the Angry Jesus” (Ph.D. diss., Baylor University, 1999). Mesmo apesar do artigo de Ehrman’s aparecer quatro anos depois da dissertação de Proctor, Ehrman não menciona o trabalho de Proctor.
53 Misquoting, 132 (italics added).
54 Ehrman, “A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” 95.
55 Ibid., 94. See também 87: “Jesus fica nervoso em várias ocasiões no Evangelho de Marcos; o que é mais interessante notar é que cada relato envolte a habilidade de Jesus fazer milagres de cura.”
56 Há algumas ligações fracas neste argumento geral, no entanto. Primeiro, ele não faz o melhor caso que cada instancia onde Jesus está nervoso é um relato de cura. É o periscópio sobre Jesus tocando as criancinhas realmente uma história de cura (10.13-16)? Não é claro qual doença estas crianças estão sendo ‘curadas’. Sua sugestão que o por as mãos indica cura ou pelo menos a transmissão de poder divino aqui é falha (“A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” 88). Além disto, ele prova demais, pois 10:16 diz que Jesus “tomou as crianças em seus braços e colocou suas mãos neles e os abençoou.” Não ver um compassivo e gentil Jesus em tal texto é quase incompreensível. Assim, se esta é uma narrativa de cura, ela também implica na compaixão de Jesus no mesmo ato de cura – um motivo que Ehrman diz nunca acontecer em narrativas de cura em Marcos.
Segundo, ele clama que a cura da sogra de Pedro por Jesus em Marcos 1:30-31 não é um ato compassivo: “Mais de um observador de soslaio notou… que depois que ele o faz ela se levanta para os dar de comer” (ibid., 91, n. 16). Mas certamente a declaração de Ehrman – repetido em Misquoting Jesus (138) – é simplesmente um comentário politicamente correto que quer sugerir que por Jesus restaurar a mulher para um papel servil não pode ser por causa de sua compaixão. Não é o ponto ao invés disto que a mulher estava tão completamente curada, sua força completamente restabelecida, até mesmo ao ponto de que ele poderia retornar à seus afazeres habituais e Jesus e seus discípulos? Como tal, parece funcionar igualmente ao levantar da filha do chefe da sinagoga, pois assim que sua vida foi restaurada Marcos nos diz que “a garota se levantou de uma vez e começou a andar por toda parte” (Marcos 5:42).
Terceiro, em mais de uma narrativa de cura nos Evangelhos sinóticos – incluindo a cura da sogra de Pedro – nós vemos fortes indícios de compaixão da parte de Jesus quando ele pega a mão da pessoa. Em Mateus 9:25; Marcos 1:31; 5:41; 9:27; e Lucas 8:54 a expressão a cada hora é κρατήσας/ἐκράτησεν τῆς χειρός. kratevw com um objeto direto genitivo, ao invés de um objeto direto acusativo, é usado nestes textos. Nos evangelhos quando este verbo toma um objeto direto acusativo, tem a força de apanhar, agarrar-se a, segurar firmemente (cf. Mateus 14:3; 21:46; 22:6; 26:57; 28:9; Marcos 6:17; 7:3,4,8; mas quando ele toma um objeto direto genitivo, ele implica em um toque gentil mais do que um firme aperto, e é usado somente em contextos de cura (note a tradução na NET de κρατήσας/ἐκράτησεν τῆς χειρός em Mateus 9:25; Marcos 1:31; 5:41; 9:27; e Lucas 8:54). O que deve ser notado nestes textos não é somente que não há diferença entre Marcos de um lado e Mateus e Lucas do outro, mas que Marcos de fato tem mais instâncias desta expressão que Mateus e Lucas combinados. Como este ‘gentil tomar das mãos dele/dela’ não falam de compaixão?
Quarto, não ver a compaixão de Jesus em textos que não usam σπλαγχνίζομαι ou parecido, como Ehrman está acostumado a fazer, beira a falácia da equação léxico-conceitual onde um conceito não pode ser visto em um dado texto a menos que a palavra para tal conceito esteja ali. Para dar um simples exemplo, considere a palavra para ‘comunhão’ no Novo Testamento grego, κοινωνία. A palavra ocorre menos que vinte vezes, mas ninguém clama que o conceito de comunhão ocorre com tão baixa frequência. Ehrman, é claro, sabe disto e tenta argumentar que tanto as palavras para compaixão e o conceito não podem ser vistos nas histórias de cura de Marcos. Mas ele deixa a impressão que desde que ele estabeleceu este ponto lexicamente por rejeitar σπλαγχνισθείς em Marcos 1:41, o conceito seria fácil de dispensar juntamente.
Quinto, a recusa de Ehrman de todas as interpretações alternativas a seu entendimento de porque e com quem Jesus estava nervoso em Marcos 1:41 é muito arrogante. Sua certeza que “mesmo os comentadores que se deram conta que o texto originalmente indicava que Jesus se tornou bravo estão embaraçados pela idéia e tentam explicá-la, de forma que o texto não mais significa o que ele diz” (“A Leper in the Hands of an Angry Jesus,” 86) implica que sua interpretação certamente deve ser correta. (Apesar de Ehrman fazer um trabalho rápido com várias visões, ele não interage bem com a visão de Proctor, aparentemente porque ele não estava ciente da dissertação de Proctor quando ele escreveu sua parte para a Festschrift de Hawthorne. Proctor essencialmente argumenta que a cura do leproso é uma cura dupla, que também implicitamente envolve um exorcismo [“A Case for the Angry Jesus,” 312-16]. Proctor resume seu argumento como segue: “Dado (1) visões populares do primeiro século a respeito da ligação entre demônios e doenças, (2) a linguagem de exorcismo do versículo 43, (3) o comportamento de demônios e aqueles associados com eles em outros locais no Evangelho, e (4) o tratamento de Lucas de Marcos 1:29-31, isto parece ser uma suposição relativamente segura mesmo que Marcos [sic] não descreve explicitamente o homem como demoníaco” [325-26, n. 6].) Não somente Ehrman acusa os exegetas de não entender ὀργισθείς de Marcos, ele também diz que Mateus e Lucas não entendem: “Qualquer um não intimamente familiar com o Evangelho de Marcos em seus próprios termos… pode não entender porque Jesus ficou nervoso. Mateus certamente não, nem Lucas” (ibid., 98). Não é talvez um pouco frágil clamar que a razão que Mateus e Lucas deixaram ojrgisqeivV era porque eles desconheciam os propósitos de Marcos? Afinal de contas, eles não eram também ‘intimamente familiares com o Evangelho de Marcos’? Não há outras razões plausíveis para sua omissão?
Juntamente com estas linhas, deve ser notado que nem todas as interpretações são criadas iguais, mas a ironia aqui é que Ehrman parece querer ter seu bolo e comê-lo também. No capítulo final de Misquoting Jesus ele diz “significado não é inerente e textos não falam por si mesmos. Se textos pudessem falar por si mesmos, então todo mundo honestamente e abertamente lendo um texto concordaria com o que o texto diz” (216). Ele adiciona, “O único meio para obter um sentido de um texto é lê-lo, e o único meio de lê-lo é por em outras palavras, e o único meio de colocá-lo em outras palavras é tendo outras palavras para colocar, e o único meio de você ter outras palavras para colocar é ter uma vida, e o único meio de ter uma vida é sendo preenchido por desejos, ânsias, necessidades, carências, crenças, perspectivas, cosmovisões, opiniões, gostos, desgostos – e todas as outras coisas que fazem dos seres humanos, humanos. E então para ler um texto, é necessariamente mudar um texto” (217). Eu posso estar compreendendo ele errado aqui, mas isto soa como se Ehrman não pode clamar que sua própria interpretação é superior a outras já que todas as interpretações mudam um texto, e se cada interpretação muda o texto, então como uma interpretação de um texto é mais válida que outras interpretações? Se eu tiver entendido errado seu significado, meu ponto básico ainda se mantém: sua rejeição de outras interpretações é muito arrogante.
57 Veja a discussão na nota da Bíblia NET sobre este versículo.
58 Orthodox Corruption, 92: “não somente é a frase οὐδὲ ὁ υἱός encontrada em nossos mais antigos e melhores manuscritos de Mateus, é também necessário em bases internas.”
59 Misquoting Jesus, 208 (quoted earlier).
60 Ibid., 95: “Escribas acham esta passagem difícil: o Filho de Deus, o próprio Jesus, não sabe quando o fim virá? Como pode isto ser? Ele não é onisciente? Para resolver o problema, alguns escribas simplesmente modificaram o texto por tirar as palavras ‘nem mesmo o Filho’. Agora os anjos podem não saber, mas o Filho de Deus sabe.”
61 Codex X, um manuscrito da Vulgata, e algumas outras testemunhas sem nome (de acordo com o aparato de Nestle-Aland27) renunciam a frase aqui.
62 Misquoting Jesus, 95, 110, 204, 209, 223 n. 19, 224 n. 16.
63 Misquoting, 162.
64 Ehrman, Orthodox Corruption, 81.
65 Outra crítica é que Ehrman declarou muito rapidamente que μονογενής não pode ter a força implícita de “único filho” como em “o único Filho, que é Deus” (ibid., 80-81):
A dificuldade com esta visão e que não há nada sobre a palavra μονογενής de si própria que sugere isto. Fora do Novo Testamento o termo simplesmente significa “um de um tipo” ou “único”, e o faz com referência a qualquer ordem de objetos animados ou inanimados. Por este motivo, recurso deve ser feito para seu uso no Novo Testamento. Aqui os proponentes da visão argumentam que in situ a palavra implica “filiação”, pois ela sempre ocorre (no Novo Testamento) ou em explícita conjunção com υἱός ou em um contexto onde um υἱός é chamado e então descrito como μονογενής (Lucas 9:38, João 1:14, Hebres 11:17). Contudo, tão sugestivo quanto o argumento pode parecer, ela contém a semente de sua própria refutação: se entende-se que a palavra μονογενής significa “um único filho”, alguém poderia pensar porque ela é tipicamente colocada em atribuição a υἱός, uma atribuição que então cria um tipo de redundância incomum (“o único-filho filho”). Dado o fato que nem a etimologia da palavra nem seu uso geral sugere tal significado, esta solução parece envolver um caso de súplica especial.
O problema com esta declaração é tríplice: (1) Se nos três textos listados acima μονογενής, de fato, tem tanto uma força substantiva e envolve a implicação de filiação, então argumentar que isto pode ser o caso em João 1:18 não é uma instância de súplica especial porque já há testemunho claro desta força no Novo Testamento. (2) O argumento de Ehrman reside em sair do grego bíblico para o significado normativo de um termo que parecia ter nuances especiais dentro da Bíblia. Mas desde o Novo Testamento (Hebreus 11:17) – assim como no grego patrístico (veja n. 62) e a LXX (cf. Juízes 11:34 onde o adjetivo é usado antes do nome que fala da filha de Jeftá; Tobias 3:15 é igual; cf. também Tobias 8:17) – μονογενής frequentemente tem o sentido tanto de ‘filho’ (ou criança) e é usado absolutamente (por exemplo, substantivamente), argumentar por uma força secular na Bíblia parece uma súplica especial. (3) Argumentar que uma força léxica implícita se torna “um tipo incomum de redundância” quando a implicação é apresentada explicitamente no texto requer muito mais detalhamento antes que possa ser aplicado como algum tipo de princípio normativo: de cara, e em aplicação ao caso em questão, me vem como quase uma inverdade precipitada. Na gramática e lexema, o Novo Testamento é cheio de exemplos nos quais o fluxo e refluxo do significado implícito e explícito se misturam um com o outro. Para tomar um exemplo do lado gramatical: εἰσέρχομαι εἰς é uma expressão geralmente helenística na qual a grande redundância (ao dobrar a preposição) faz compreender o ponto. É encontrado mais de 80 vezes no Novo Testamento, e ainda não quer dizer “vir-para-dentro dentro”! Ainda, ela significa a mesma coisa que ἔρχομαι εἰς, uma frase que ocorre mais de 70 vezes no Novo Testamento. Exemplos em inglês também vem prontamente à mente: Na linguagem coloquial, sempre escutamos “foot pedal” (existe algum outro tipo de pedal que não seja de pé?).
66 Adicionado aos meus exemplos são aqueles que um estudante de doutorado no Dallas Seminary, Stratton Ladewig, selecionou de vários lugares no Novo Testamento: Lucas 14:13; 18:11; Atos 2:5. Da mesma forma, ele encontrou vários paralelos inexatos. Veja sua tese Th.M., “An Examination of the Orthodoxy of the Variants in Light of Bart Ehrman’s The Orthodox Corruption of Scripture,” Dallas Seminary, 2000.
67 Uma rápida olhada no Patristic Greek Lexicon de Lampe também revela que a função substantiva deste adjetivo era corriqueiro: 881, def. 7, o termo é usado absolutamente em uma hoste de escritores patrísticos.
68 Ehrman não é completamente claro em seu argumento que monogenh;V qeov" era uma leitura anti-adocionista. Se sua construção do significado do texto é correta, ela parece mais modalista que ortodoxa. Ainda, já que seu embasamento é solidamente Alexandrino, ele pareceria voltar para um arquétipo que possui uma data anterior à heresia Sabeliana. Em outras palavras, as motivações para a leitura, assumindo a interpretação de Ehrman, são no mínimo confusas.
69 Para o caso que o Novo Testamento fala claramente da deidade de Cristo, veja Komoszewski, Sawyer, e Wallace, Reinventing Jesus.
70 Gordon D. Fee, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture in Critical Review of Books in Religion 8 (1995) 204.
71 Veja J. K. Elliott, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em NovT 36.4 (1994): 405–06; Michael W. Holmes, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em RelSRev 20.3 (1994): 237; Gordon D. Fee, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em CRBR 8 (1995): 203–06; Bruce M. Metzger, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em PSB 15.2 (1994): 210–12; David C. Parker, revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em JTS 45.2 (1994): 704–08; J. N. Birdsall, Revisão de The Orthodox Corruption of Scripture: The Effect of Early Christological Controversies on the Text of the New Testament, por Bart D. Ehrman, em Theology 97.780 (1994): 460-62; Ivo Tamm, Theologisch-christologische Varianten in der frühen Überlieferung des Neuen Testaments? (Magisterschrift, Westfälische Wilhelms-Universität Münster, n.d.); Stratton Ladewig, “An Examination of the Orthodoxy of the Variants in Light of Bart Ehrman’s The Orthodox Corruption of Scripture” (tese Th.M., Dallas Seminary, 2000).
72 Misquoting Jesus, 114 (itálicos adicionados).
73 Veja por exemplo, D. A. Carson, King James Version Debate [Grand Rapids: Baker, 1979], 64).
74 Apesar do Misquoting Jesus de Ehrman ser bem a primeira introdução ao público leigo da crítica textual do Novo Testamento, na primavera de 2006 um segundo livro que lida com estes assuntos (e alguns outros) foi lançado. Veja Komoszewski, Sawyer, e Wallace, Reinventing Jesus, para um tratamento mais balanceado da informação.
75 Sou lembrado do insight de Martin Hengel sobre os perigos paralelos de “ um não crítico e estéril fundamentalismo apologético” e “da não menos estéril ‘ignorância crítica’” do liberalismo radical. No fundo, as abordagens são as mesmas; a única diferença são as pressuposições (Martin Hengel, Studies in Early Christology [Edinburgh: T & T Clark, 1995], 57–58). Não estou dizendo que Ehrman está ali, mas ele não mais parece ser o verdadeiro liberal que uma vez ele aspirou ser.
76 Deve ser notado que Misquoting Jesus é dedicado a Bruce Metzger, a quem Ehrman descreve como “o maior expert no campo [da crítica textual do Novo Testamento]” (Misquoting, 7). Mesmo assim Metzger não concordaria fundamentalmente com a tese de Ehrman neste livro.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Jesus, o taumaturgo de Israel

Quais são os mistérios que ecoam na trajetória do homem que mudou a história da humanidade. Na busca pela humanidade de Jesus, e pelo debate de mistérios que intrigam grande parte da humanidade há séculos,a revista ISTOÉ fez 14 perguntas sobre a vida de Cristo a especialistas, autores consagrados e lideranças religiosas.

Confira abaixo a íntegra da matéria:

A descoberta dos restos da casa de uma família que viveu no tempo e na região de Jesus de Nazaré animou arqueólogos e entusiastas bíblicos no último dia 21. Ainda que ela não tenha vínculos diretos com o Messias, essa descoberta joga luz sobre um Jesus que vai além da figura mítica que morreu na cruz, como contam os evangelhos do Novo Testamento. Ela alimenta quem vive para especular o lado humano do Filho de Deus, que a Igreja nunca deixou se sobrepor ao divino. Mas o interesse por detalhes históricos de alguém como Cristo é compreensível.

Afinal, foi esse judeu da Galileia quem plantou a semente da religião mais influente do mundo. E, para quem lê os evangelhos como relatos biográficos, um erro de princípio, segundo os especialistas, as lacunas parecem implorar por especulações. O Novo Testamento não traz, por exemplo, nenhum registro sobre a vida e as andanças de Cristo entre os 15 e 30 anos de idade. “Porque esses anos não são importantes”, explica Pedro Vasconcelos Lima, teólogo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Para a igreja, tudo de relevante sobre a missão de Cristo na terra está na “Bíblia”. Mas é o suficiente? A clareira histórica aberta por esses 15 anos perdidos é uma das brechas mais exploradas por estudiosos, uns mais honestos que outros, para especular sobre a vida e Jesus. Mas ela não é a única. Outras foram encontradas nas entrelinhas dos 27 livros, 260 capítulos e 7.957 versículos do Novo Testamento. Mais algumas foram pesquisadas, com base em descobrimentos arqueológicos que variam de objetos do tempo de Jesus a textos de grupos religiosos do cristianismo primitivo, no longínquo século I d.C. E, por mais que a Igreja prefira não tratar de alguns detalhes das faces divina e humana de Cristo, os mais de um bilhão de fiéis não param de fazer perguntas.

“É na humanidade de Jesus que melhor podemos compreender a dimensão de sua divindade”, reconhece Frei Betto, religioso dominicano autor do recém-lançado “Um Homem Chamado Jesus”. Na busca pela humanidade de Jesus, e pelo debate de mistérios que intrigam grande parte da humanidade há séculos, ISTOÉ fez 14 perguntas sobre a vida de Cristo a especialistas, autores consagrados e lideranças religiosas. Em que época foram escritos os Evangelhos e quem os escreveu? Jesus teve irmãos? Maria foi virgem durante toda sua vida? Jesus estudou? Qual profissão seguiu? Como era fisicamente? Esteve na Índia? Deixou alguma coisa escrita? Teve um relacionamento amoroso com Maria Madalena? Teve filhos? Por mais simples ou absurdas que algumas dessas questões possam parecer, elas merecem uma discussão. “Algumas realmente atormentam a vida dos fiéis”, reconhece o padre mariólogo Vicente André de Oliveira, membro da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo. As respostas apontam caminhos, mas não têm a aspiração de ser definitivas. O estudo científico da vida do Messias ajuda na construção do que se convencionou chamar de Jesus histórico. Em esforço que surgiu no final do século XVIII e ganhou ritmo com importantes e raras descobertas arqueológicas no século XX (leia quadro na página 76), um Jesus que vai além dos relatos bíblicos começou a ganhar forma.

Ele surgiu do debate acadêmico do que podia e não podia ser considerado fonte para o entendimento da vida que o Nazareno levou na Terra. E, como a fé cristã, evolui e ganha novos contornos diariamente. Para o fiel bem resolvido, não há disputa entre o Jesus histórico e o bíblico, ou divino. “Cristo trouxe uma mensagem poderosa de amor e perdão que é inatingível”, afirma Fernando Altemeyer, professor de teologia e ciências da religião da PUC-SP. Para quem crê, é esse o legado do homem de Nazaré. Mas toda informação que contribuir para montar o quebra-cabeça dessa que é a mais repetida e famosa história da humanidade será bem-vinda.

Jesus nasceu em Belém ou Nazaré?

Embora os evangelhos de Mateus e Lucas afirmem que Jesus tenha nascido em Belém, é muito provável que isso tenha ocorrido em Nazaré. “Todos os grandes especialistas bíblicos são unânimes em admitir que Jesus nasceu em Nazaré”, afirma Frei Betto, religioso dominicano autor do recém-lançado “Um Homem Chamado Jesus”. Ao que tudo indica, Lucas e Mateus teriam escolhido Belém como cidade natal de Jesus para que suas versões da vida de Cristo se alinhassem a uma profecia do Antigo Testamento, segundo a qual o Messias nasceria na Cidade do Rei Judeu, ou seja, a Cidade de Davi, que é Belém. Quanto à afirmação de que Jesus teria nascido em uma manjedoura rodeado de animais, Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”, é taxativa: “Tanto José quanto Maria provinham de famílias judias nobres e prósperas, de sorte que Jesus nasceu em uma estalagem e não em um estábulo, rodeado de animais”, diz. “José, de família real, não podia ser pobre – era um artesão especializado.” A afirmação de Sylvia é contestada por Fernando Altemeyer, professor de teologia e ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Afirmar que a ascendência nobre de José garantiria o bem-estar da família não faz sentido”, argumenta. Ele lembra que Davi é do ano 1000 a.C. e em um milênio sua fortuna certamente teria se dispersado. “Fora que a ascendência entre os judeus vem de mãe, não de pai”, explica. Para o teólogo, são muitas as fontes independentes que tratam da pobreza da família de José e é quase certo que Jesus tenha nascido em um curral e morado em um gruta com o pai e a mãe, que não eram miseráveis, mas tinham pouca terra e viviam como boa parte dos judeus pobres das áreas rurais.

Quando Jesus nasceu?

Uma coisa é certa: ele não nasceu no dia 25 de dezembro. E a razão é simples. Esta data coincide com o solstício de inverno do Hemisfério Norte, quando uma série de festas pagãs, muito anteriores ao nascimento de Cristo, já aconteciam em homenagem a divindades ligadas ao Sol e a outros astros. Ao que tudo indica, o dia foi adotado pelos católicos primitivos na esperança de cristianizar uma festa pagã. Faz sentido. Jesus também significa “Sol da Justiça”, o que faz dele um belo candidato a substituto de uma efeméride como o solstício de inverno. Se Jesus não nasceu em 25 de dezembro, a Igreja Católica também não sabe qual o dia nem o ano exatos. Os registros abrem um leque relativamente grande de possibilidades. É certo, porém, que o nascimento aconteceu antes da morte do rei Herodes, em 4 a.C., já que foi ele quem pediu o recenseamento que teria obrigado a viagem de Maria e José a Belém. Quanto ao mês e o dia, só há especulações. Para o padre mariólogo Vicente André de Oliveira, da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo, Jesus teria nascido entre os meses de setembro e janeiro, quando, segundo ele, eram tradicionalmente feitos os censos em Belém. Já as pesquisas do astrônomo australiano Dave Reneke mostram que a estrela que teria guiado os Reis Magos apareceu em junho – crença compartilhada por parte da comunidade católica. Wagner Figueiredo, colunista do site Mistérios Antigos e autor de “Trilogia dos Guardiões – O Êxodo”, por sua vez, coloca as fichas no oitavo mês do ano, que, segundo ele, seria o período oficial de recenseamento dos romanos.

Quem e quantos foram os Reis Magos?

Se realmente existiram, os Reis Magos não eram reis e provavelmente não seguiram estrela nenhuma. O único registro dessas figuras nos evangelhos canônicos, ou oficiais, está em Mateus, que fala dos magos do Oriente e de uma estrela seguida por eles. Mas a menção não diz quantos eram os visitantes nem se eram, de fato, reis. “Como esses magos trouxeram três presentes, supõe-se que eram três reis”, explica o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai), em São Paulo. A versão atual da história se formou junto com o forjar de diversas tradições católicas durante o primeiro milênio da Era Cristã. Convencionou-se chamar os visitantes de Melchior, rei da Pérsia, Gaspar, rei da Índia, e Baltazar, rei da Arábia. Também ficou estabelecido que eles teriam trazido incenso, ouro e mirra como presentes ao recém-nascido. Para Wagner Figueiredo, colunista do site Mistérios Antigos e autor de “Trilogia dos Guardiões – O Êxodo”, os três seriam, ainda, astrólogos ou astrônomos, já que usaram uma estrela para guiá-los até Belém. “Mas não sabemos se a estrela de Belém era mesmo uma estrela”, diz Figueiredo.

“Ela pode ter sido um cometa, uma supernova ou o alinhamento celeste de planetas”, explica. Em consulta ao histórico astronômico de então, Figueiredo descartou a possibilidade de a estrela ser um cometa. Segundo ele, o único fenômeno astronômico desse tipo visível da Terra em anos próximos ao nascimento de Jesus foi a passagem do cometa Halley. Mas o Halley riscou o céu em 12 a.C., no mínimo cinco anos antes do nascimento de Jesus, o que o elimina como candidato a estrela de Belém. Um registro do que hoje chamamos de supernova por astrônomos chineses na constelação de Capricórnio no ano 5 aC. é o candidato mais forte. “A supernova, que é a explosão de uma estrela, cria um forte ponto luminoso no céu”, especula Figueiredo. Ele lembra, ainda, da impressão de movimento que esses fenômenos deixam, o que as alinha com a descrição que se tem da estrela de Belém. A terceira e última possibilidade de explicação astrológica trata do alinhamento de planetas entre os anos 7 a.C. e 6 a.C. Na primeira tese, Júpiter e Saturno se alinharam criando um ponto luminoso que caminhou pelo espaço entre maio e dezembro daquele ano. Já na segunda, Júpiter, Saturno e Marte se aproximaram na constelação de Peixes, formando um único e poderoso ponto luminoso no céu.

Jesus teve irmãos? Maria se manteve virgem?

Muito da discussão em torno dessa pergunta se deve à ambiguidade do termo grego adelphos, que para alguns significa irmão, enquanto para outros significa companheiro, amigo. Nos evangelhos de Mateus e Marcos e na carta de Paulo aos Gálatas, a palavra surge e, para quem é partidário da primeira interpretação, confirma a existência de irmãos e irmãs de Jesus. Segundo Rodrigo Pereira da Silva, professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC), se os irmãos existiram, eles seriam seis – quatro homens e duas mulheres –, identificados no Evangelho de Marcos. Silva lembra também que no evangelho apócrifo de José fala-se que o pai de Jesus era viúvo quando se casou com Maria e que teria filhos do primeiro casamento. O teólogo ressalva, porém, que duas situações narradas pelos evangelhos canônicos, tidos como fonte mais confiável, depõem contra essa interpretação. “Esses supostos irmãos dão ordens a Jesus”, argumenta. “Isso jamais aconteceria se eles fossem, de fato, irmãos, porque Jesus foi o primogênito. E o mais velho, na Galileia de então, tinha autoridade sobre a família”, diz.

Soma-se a isso o fato de Jesus ter confiado sua mãe ao apóstolo João no momento da crucificação, segundo está descrito no Evangelho de João, e não a um de seus supostos irmãos. Sabe-se também, a partir dos textos bíblicos, que, além de Maria, mãe de Jesus, nenhum parente direto do Messias estava ao pé da cruz quando ele foi morto. O rechaço da igreja à possibilidade da existência de irmãos de Jesus se explica. Se a teoria fosse verdadeira, iria contra um dos dogmas marianos segundo o qual a mãe de Jesus teria dado à luz virgem e assim permanecido até a assunção de seu corpo aos céus. Por isso o apego ao problema de tradução da palavra adelphos e aos sinais que estão na “Bíblia” da ausência de irmãos (segundo interpretação oficial). Para o padre mariólogo Ademir Bernardelli, da Academia Marial de Aparecida, no interior de São Paulo, a existência ou não de irmãos é mais simbólica do que prática. “A virgindade de Maria é uma tradição que foi criada com o tempo”, diz Bernardelli. “A pergunta pela virgindade no parto ou depois do parto nunca foi um assunto discutido entre a hierarquia católica primitiva, só surgiu depois”, afirma.

Especulação ou não, a tese de que Jesus teria irmãos ganhou força com um precioso achado arqueológico em 2002. Chamado de ossuário de Tiago, o artefato é uma urna de pedra-sabão com as inscrições “Tiago, filho de José, irmão de Jesus”. Embora a Igreja conteste as inscrições, feitas em aramaico, o objeto atraiu a atenção tanto de sensacionalistas quanto de estudiosos. A urna é, sem dúvida, legítima e data do tempo de Cristo. Já a autenticidade das inscrições, mais especificamente a parte que diz “irmão de Jesus”, ainda está sendo avaliada pela comunidade arqueológica internacional. Se comprovada, esse seria o primeiro e único objeto vinculado diretamente a Jesus já descoberto.

Jesus estudou? Qual profissão seguiu?

Para Wagner Figueiredo, colunista do site Mistérios Antigos e autor de “Trilogia dos Guardiões – O Êxodo”, Jesus teve formação intelectual mais rica do que se supõe a partir dos evangelhos. “Era comum, na Antiguidade, que os mais ricos custeassem os estudos dos prodígios apresentados ao conselho do templo”, diz. Cristo era uma dessas crianças brilhantes e certamente não passou despercebido no templo, onde chegou a protagonizar uma cena curiosa, aos 12 anos, quando colocou os sábios para ouvi-lo. Mas mesmo que tenha tido uma formação, Jesus continuou como um homem de hábitos e mentalidade rurais. “Podemos chamá-lo de um caipira antenado, que tinha sensibilidade suficiente tanto para dialogar com o povo quanto com a elite intelectual de sua época”, resume Paulo Augusto Nogueira, professor de teologia da Universidade Metodista de São Paulo, em São Bernardo do Campo.

Segundo o americano H. Wayne House, autor do livro “O Jesus que Nunca Existiu”, o Messias provavelmente sabia ler em hebraico e aramaico e escrever em pelo menos um desses idiomas. Suspeita-se, também, que falava um pouco de grego, a língua comercial da época.

Quanto à profissão que seguiu, há controvérsias. E as dúvidas surgem por causa de uma palavra ambígua, usada nos registros mais antigos dos evangelhos. Neles, José é apresentado como “tekton”, uma espécie de artesão que faria as vezes de um mestre de obras. Ele teria, portanto, as habilidades de um carpinteiro, mas não apenas. Jesus e José seriam uma espécie de faz-tudo. Faziam a fundação de uma casa, erguiam paredes como pedreiros e construíam portas como carpinteiros. É sabido também que tinham ovelhas e uma pequena plantação. Portanto, teriam algumas noções de pastoreio e agricultura.

Como era Jesus fisicamente?

A imagem de Cristo que se consagrou foi a de um tipo bem europeu: alto, branco, de olhos azuis, cabelos longos ondulados e barba. Mas são grandes as chances de que essa representação esteja errada. “É praticamente certo que ele não foi um homem alto, a julgar pelos objetos, como camas e portas, deixados por seus contemporâneos”, revela a socióloga e biblista Ana Flora Anderson. O fato é que não há registros fieis da aparência do filho de Maria. Essa ausência de documentos se explica. Para os especialistas, até o ano 30 d.C. pouquíssimas pessoas sabiam quem era Jesus. “Mas ele é Deus encarnado. Então teve um corpo, uma aparência física”, afirma padre Benedito Ferraro, professor de teologia na Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC), no interior de São Paulo. E se por um lado a existência carnal de Jesus impôs limites físicos a um Deus todo-poderoso, ela deu asas à imaginação e à especulação dos fieis já no século II e III d.C. sobre a aparência desse Deus em carne e osso.

A julgar pelos registros históricos que contam um pouco da vida na região em que Jesus nasceu e foi criado, o Messias deve ter sido um homem baixo, de pele morena e cabelos escuros e encaracolados (à esq., uma reconstituição feita pelo médico especialista em reconstrução facial inglês Richard Neave, da Universidade de Manchester). Por ser um trabalhador braçal, tinha uma estrutura física bem desenvolvida. “Como palestino, deveria ter as características daquele povo”, lembra frei Betto, dominicano autor do recém-lançado “Um Homem Chamado Jesus”. Esse é o máximo a que chega a especulação baseada em estudos. “Não saberemos nem precisamos saber da real aparência de Jesus – ela não importa”, afirma o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai).

Jesus foi à Índia?

Teria Cristo pregado às margens do rio Ganges? Quem garante de pés juntos que ele esteve na Índia, cita duas possibilidades cronológicas. A primeira, durante os chamados anos perdidos, dos 12 ou 14 anos de idade aos 28 ou 30 anos. A segunda, depois da ressurreição. Ambas as afirmações são extremamente controversas e têm tanto apaixonados defensores quanto vigorosos detratores. O teológo americano H. Wayne House, do Dallas Theological Seminary no Texas, Estados Unidos, não acredita na visita de Jesus à Índia, mas reconhece que são muitas as fontes que narram uma suposta passagem do Messias, não só pela Índia, mas também pela região das Cordilheiras do Himalaia. Um texto hindu do século I d.C. menciona a suposta visita de Cristo ao rei Shalivahan, empossado mandatário da cidade de Paithan, no Estado de Maharashtra, em 78 d.C.

Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”, é fervorosa defensora da visita de Jesus à Índia. “Há dezenas de textos de eruditos orientais que confirmam a estada de Jesus na Índia e em regiões vizinhas na época”, conta ela em seu livro. Segundo Sylvia, Jesus recebeu diferentes nomes nas culturas pelas quais circulou, entre eles “Issa”, “Isa”, “Yuz Asaf”, “Budasaf”, “Yuz Asaph”, “San Issa” e “Yesu”.

Para a maioria dos cristãos, essas afirmações são absurdas. “Esses nomes são muito comuns na Índia, não permitem concluir que se referem ao Jesus que reconhecemos como Cristo”, sentencia Rodrigo Pereira da Silva, professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC). Silva explica que uma série de documentos reunidos em livro do alemão Holger Kersten chamado “Jesus Viveu na Índia”, de 1986, incendiaram uma discussão vazia sobre o assunto. “Isso é uma picaretagem”, afirma o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). Para ele, explorar esse tipo de ideia é caminhar no limite ético da especulação. “Era uma época de efervescência religiosa”, lembra o teólogo Fernando Altemeyer, colega de Lima na PUC-SP. “Um sem-número de sujeitos com o nome Issa ou Yesu pode ter aparecido na Índia e se anunciado profeta ou liderança de Israel”, lembra. Há também o argumento das dificuldades e custos de uma viagem como essa no século I d.C. Jesus, muito provavelmente, não teria como arcar com as despesas de uma empreitada desse tipo.

Jesus foi tentado pelo demônio no deserto?

Que Jesus foi tentado no deserto, não há dúvida. O episódio é relatado por três evangelistas, Mateus, Marcos e Lucas, e citado pelo quarto, João. O que se questiona é a natureza do demônio que se apresenta a ele. Seria ele o demônio feito homem ou apenas uma síntese simbólica das tentações às quais todos os seres humanos estão sujeitos? Para o padre Vicente André de Oliveira, mariólogo da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo, a tentação do demônio é simbólica. “O deserto e o demônio são maneiras de ilustrar o encontro de Jesus com suas limitações como homem”, diz Oliveira. Simbólico ou não, o encontro aconteceu. E para o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib), segundo os textos oficiais, o demônio se materializa diante de Jesus. Nesse sentido, ele tinha uma aparência física, apesar de ela não estar descrita. Pelos relatos de Mateus e Lucas, sabe-se apenas da conversa entre o Filho de Deus e Satanás. “Eram tentações que tinham como objetivo tirar Jesus de seu caminho”, lembra o mariólogo. A saber: a tentação do poder, da vaidade e do exibicionismo.

Jesus já gozava de fama quando foi levado pelo Espírito Santo para passar 40 dias e 40 noites no deserto. Se quisesse um cargo público na burocracia romana, por exemplo, era praticamente certo que o conseguiria e, com ele, viriam fartos benefícios. Mas isso seria se entregar às tentações. Ele resistiu e saiu recompensado, na visão dos cristãos.

Jesus era um judeu taumaturgo?

Judeus taumaturgos eram figuras muito comuns no tempo de Jesus: homens que circulavam pela Galileia fazendo milagres como uma espécie de mágico. Mas, para a maioria dos especialistas, não há possibilidade de Cristo ter sido um deles, apesar de suas andanças e milagres. A afirmação vem de muitas fontes. “Jesus pedia segredo dos milagres que fazia, não cobrava por eles e evitou fazer curas diante de quem tinha meios de recompensá-lo”, explica Rodrigo Pereira da Silva, professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC). Segundo ele, os taumaturgos jamais agiriam dessa maneira. “Eles eram profissionais da cura. Jesus, não.” Outra diferença importante entre Jesus e os taumaturgos era que o Messias apresentava Deus de maneira acessível aos fiéis. Diferentemente dos taumaturgos, que valorizavam uma espécie de canal exclusivo que teriam com o divino para operar seus milagres, Jesus tentava ensinar as pessoas a cultivar o contato com Deus. E, assim, receber suas graças sem intermediários.

Mas a fama de Jesus como um judeu taumaturgo existiu e, em alguns lugares, ainda existe. Quem afirma é Giordano Cimadon, coordenador da Associação Gnóstica de Curitiba e membro de um dos braços brasileiros do gnosticismo, grupo religioso que condiciona a salvação ao conhecimento. Ele conta que, no início da Idade Média, provavelmente no século VII, alguns escritos chamados “Toledoth Yeshu”, que significa algo como o “Livro da Vida de Jesus”, circularam tentando expor Cristo como mais um entre os muitos judeus taumaturgos da Galileia. “A obra, que mostra Jesus como um falso Messias, circulou também como tradição oral”, conta Cimadon. Depois, ela foi redigida em aramaico e traduzida para ídiche, ladino e latim. A versão mais famosa foi compilada pelo alemão Johann Wagenseil e impressa na segunda metade do século XVII. O texto cria polêmica até hoje por divulgar uma versão deturpada supostamente por grupos de judeus da vida de Jesus. Argumenta-se que ela foi usada para legitimar o antissemitismo entre os séculos XIII e XX.

Qual a relação de Jesus com seus apóstolos?

Há quem argumente que a escolha que Jesus fez dos discípulos tenha sido um desastre. Não houve um sequer, por exemplo, que o acompanhasse durante a crucificação. Mas a Igreja Católica garante que ele confiava nos apóstolos que escolheu, inclusive nos que o traíram. Para o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai), em São Paulo, Cristo tinha plena consciência de que lidava com homens e que os homens têm suas limitações. “É a beleza da obra de Jesus”, diz. Cristo tratava todos com igualdade, mas com Pedro, João e Tiago tinha mais intimidade. Mesmo sabendo que Pedro, por exemplo, negaria conhecê-lo em três ocasiões no dia de sua morte. Da mesma maneira, Jesus escolheu Judas, que também o traiu. Sobre ele, há farta literatura. Em evangelho atribuído a Judas, o apóstolo não aparece como traidor, mas como engrenagem fundamental do projeto de Deus , pois sem ele Jesus não seria crucificado e não se martirizaria para salvar os homens.

Com que idade Jesus morreu?

Provavelmente não morreu com os consagrados 33 anos. Essa marca foi estabelecida pela tradição durante os primeiros séculos do cristianismo primitivo – ou seja, não há nada que a comprove. Para o espanhol Ramón Teja Cuso, professor de história antiga da Universidade da Cantábria, Jesus não poderia ter morrido com 33 anos. Se ele nasceu entre os anos 6 a.C. e 5 a.C. e Pôncio Pilatos, algoz de Jesus, ocupou o cargo de prefeito da Judeia entre 29 d.C. e 37 d.C., o Messias morreu com, no mínimo, 34 anos e no máximo 43 anos.

Já o professor de filologia grega da Universidade Complutense de Madri, Antonio Piñero, usa a astronomia para fazer suas estimativas. Segundo ele, analisando o calendário de luas cheias no dia da Páscoa judaica, e existem registros desse fenômeno na data da crucificação, há apenas duas possibilidades de morte de Jesus dentro da janela estabelecida pelo professor Teja: 7 de abril de 30 d.C. e 3 de abril de 33 d.C. Nesse sentido, Jesus teria morrido com 36 anos ou 39 anos. Ainda assim, essas são apenas conjecturas. Elas dependem de variáveis que não podem ser verificadas, como, por exemplo, o relato de que havia uma lua cheia na ocasião da morte de Jesus ou que seu ministério teria durado três anos. O ano certo, portanto, dificilmente será conhecido, mas sabe-se, com uma margem mínima de dúvida, que foi entre os anos 29 d.C. e 37 d.C.

O dia da semana é consenso. De acordo com a “Bíblia de Jerusalém”, a tradução mais fiel dos originais das Sagradas Escrituras, Jesus morreu em uma sexta-feira, dia 14 de Nisã, que equivale, no calendário judaico, a 30 dias entre os meses de abril e março. A crença de que essa é a data correta é quase unânime entre os especialistas ouvidos por ISTOÉ.

Jesus manteve um relacionamento amoroso com Maria Madalena?

Como a questão que envolve as possíveis viagens de Jesus ao Vale do Rio Ganges, essa é uma pergunta que gera discussões acaloradas. Um dos grupos que defendem a relação de amor carnal entre Jesus e Maria Madalena com mais fervor é o dos gnósticos. Como Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”. Para ela, Jesus conheceu Maria Madalena ainda na infância e se casou com ela no que ficou conhecido, nos evangelhos, como o episódio das Bodas de Caná. Nessa ocasião, Jesus transformou água em vinho, que era parte fundamental da cerimônia do matrimônio. “Maria, mãe de Jesus, não ignorava que, pelos costumes judaicos, o noivo era responsável pela distribuição do vinho”, diz Sylvia. “Então quem fabricou o vinho oferecido aos convidados em Caná? Jesus. Era ele o noivo”, afirma em seu livro.

Outro indicador de que Jesus e Maria Madalena teriam uma relação amorosa estaria registrado no evangelho apócrifo de Filipe. Nele estaria escrito que Jesus beijava Maria Madalena na boca – afirmação constestada por uma corrente de tradutores. Ela, por sua vez, o compreendia melhor do que qualquer discípulo. A certa altura, os apóstolos chegam a demonstrar ciúme.

A americana Sylvia vai mais longe. Ela sustenta que Jesus teve filhos com Maria Madalena. As crianças teriam nascido depois da suposta morte de Cristo, que, segundo ela, foi forjada com a ajuda de Pôncio Pilatos e José de Arimateia. Ambos teriam tirado Jesus e Maria Madalena da Galileia num barco que passou pela Turquia e Caxemira, até aportar na França. Durante a estada na Turquia, a primeira filha do casal Jesus e Maria Madalena, chamada Sara, teria nascido. Outra menina e dois meninos teriam sido gerados já na França.

A Igreja Católica rechaça qualquer possibilidade de relação de amor carnal e, portanto, de filhos entre os dois. “Jesus deixou sim descendentes, espiritualmente, bilhões deles espalhados por todo o planeta”, afirma o padre mariólogo Vicente André de Oliveira, da Academia Marial de Tietê, no interior de São Paulo. A instituição religiosa reconhece, porém, que Maria Madalena era de fato muito próxima de Jesus. “Para os homens daquela época, ver Jesus confiar segredos a uma mulher era uma afronta”, lembra o cônego Celso Pedro da Silva, professor de teologia e reitor do Centro Universitário Assunção (Unifai). “Mas da simples confiança concluir que havia uma relação matrimonial é deduzir demais.”

O professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Rodrigo Pereira da Silva lembra que quando o livro “O Código da Vinci”, de Dan Brown, foi lançado, em 2003, um sem-número de supostos especialistas surgiu para confirmar o que o próprio autor havia classificado de ficção. Uma das afirmações seria de que Leonardo Da Vinci retratou Maria Madalena, e não o apóstolo João, ao lado de Cristo na “Santa Ceia”. “Criei um curso com a Coordenadoria-Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (Cogeae) da PUC-SP só para esclarecer a confusão criada pela obra”, lembra. Batizada de “O Código da Vinci e o Cristianismo dos Primeiros Séculos: Polêmicas”, a disciplina foi um sucesso. Ainda assim, muitas das afirmações do livro, que vendeu cerca de 80 milhões de cópias e foi traduzido para mais de 40 idiomas, permaneceram como aparentes verdades para muitos. “Mas não são”, sentencia Silva.

Jesus deixou algo escrito?

“É mais fácil encontrar os vestígios de um palácio do que de uma choupana”, diz o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). Com essa afirmação, Lima resume o argumento que explica a inexistência não só de qualquer documento escrito por Jesus, mas de objetos que tenham ligação direta com ele. É que, no início do século I d.C., Cristo não tinha nenhuma importância. E, historicamente, os documentos mais antigos só registram os feitos de estadistas e donos de grandes fortunas – como sabemos, ele não foi nenhum dos dois. O único registro que se tem de Jesus escrevendo está nos evangelhos. Eles relatam o episódio da adúltera que seria apedrejada até a morte – supostamente Maria Madalena –, mas que foi salva pelo Messias. Cristo teria escrito algo na areia para afastar quem queria matar a mulher. “Não sabemos o que foi, mas podem ter sido os nomes de quem havia se encontrado com ela, talvez alguém importante ou até alguns dos que queriam apedrejá-la”, explica o cônego Celso Pedro da Silva. Fora isso, porém, não há absolutamente nada escrito por Jesus que tenha sido encontrado – ou para ser achado, suspeita-se. Na melhor das hipóteses, pode haver anotações de um ou outro fiel feitas durante uma das pregações de Cristo. Mas, até hoje, esses registros permanecem perdidos.

Quem escreveu os evangelhos? E quando?

A própria Igreja Católica reconhece que não há como saber se os evangelhos foram, de fato, escritos por Mateus, Marcos, Lucas e João. Nos textos não há menção aos autores. Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”, usa essas supostas brechas nas escrituras para tecer suas teorias. Ela lembra que a “Bíblia” como a conhecemos só tomou forma a partir do Concílio de Niceia, em 325 d.C., e que nesses três séculos a Igreja manipulou transcrições e traduções dos evangelhos para que eles divulgassem uma mensagem alinhada ao projeto de expansão da instituição. Sylvia sustenta ainda que os evangelhos de Mateus, Lucas e Marcos foram escritos pela mesma pessoa e que apenas o de João teve um autor exclusivo. Supostas contradições, omissões e coincidências seriam sinais da manipulação.

A teoria da coautoria começou a tomar forma no início do século XVIII, com os trabalhos do teólogo protestante alemão Heinrich Julius Holtzmann e do filólogo Karl Lachmann. Chamada de “Questão Sinótica”, ela tem apoio de importantes estudiosos da atualidade, como o inglês Marc Goodacre, responsável pelo núcleo de estudos do Novo Testamento na Universidade Duke, na Inglaterra, e John Dominic Crossan, teólogo e fundador do controverso Jesus Seminar. Em 1968, um outro pesquisador inglês, A.M. Honoré, chegou a fazer um levantamento mostrando que 89% do que está em Marcos se encontra em Mateus, enquanto 72% de Marcos está em Lucas.

“Isso é uma besteira”, argumenta o teólogo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Fernando Altemeyer. Para ele, não há contradição nos evangelhos e as omissões e coincidências são justificáveis. “Os evangelhos não foram escritos como biografias de Jesus”, reforça o teólogo Pedro Vasconcelos Lima, presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). “Eles contam as partes da vida do Messias que têm importância”, conclui. Os relatos da vida de Cristo que não entraram para o Novo Testamento circulam com o título de evangelhos apócrifos. Entre os séculos XIX e XX houve uma explosão nas descobertas desse tipo de documento. Hoje já são mais de 15 os relatos extraoficiais. A Igreja não os reconhece, embora utilize parte dos que datam dos séculos I d.C. e II d.C. para reconstruir o dia a dia de Jesus, que viveu como mais um dos milhares de judeus remediados da Galileia.

Os evangelhos também não foram escritos logo depois que os fatos aconteceram. Eles datam dos anos 70 d.C. e 90 d.C. e foram redigidos, provavelmente, em aramaico e hebraico. Chegaram até nós por meio de cópias, pois os originais foram perdidos. Não se tem registro de como isso aconteceu, mas não seria difícil danificar um manuscrito em papiro no tempo de Jesus. As cópias foram descobertas em fragmentos e reconstruídas por pesquisadores alemães no início do século XIX. A mais antiga, em papiro grego, data do século II d.C. e foi reconstruída no século XIX pela equipe Nestle & Alland, de Stuttgart, na Alemanha.

O que diz a arqueologia

A ciência das escavações é a única chave para preencher a colcha de retalhos que é a história de Jesus Cristo na Terra. Só a arqueologia é capaz de preencher as imensas lacunas que compõem a trajetória de Jesus na Terra. Ao se debruçar sobre os costumes e a cultura do tempo do Messias, através de buscas por monumentos, documentos e objetos que compunham aquela época, os pesquisadores da área se movimentam para saciar as centenas de indagações acerca do judeu que mudou a história da humanidade. Praticamente não há esperanças de se achar algo diretamente ligado a Jesus Cristo ou à sua família. Mas há expectativa de se encontrar objetos relacionados a contemporâneos, da mesma classe social, que moravam na Galileia. Nesse quesito, o século XX foi recheado de conquistas. Novas técnicas e o renovado interesse por provar, ou desmentir, o que foi escrito pelos evangelistas alimentaram as buscas pelo que sobrou do tempo de Jesus. E as descobertas foram importantes. Entre papiros e pergaminhos, jarros, urnas, pedras e ruínas comprovou-se parte do que disseram Mateus, Marcos Lucas e João.

Mas, quando o assunto é arqueologia, todo cuidado é pouco. Nem tudo é o que parece. Por isso, o processo de verificação da autenticidade dos objetos é lento e rigoroso. Que o digam os estudiosos do que ainda vem sendo considerado o último grande achado do tempo de Cristo: uma urna que conteria os ossos de Tiago, irmão do Messias. Revelada em 2002, ela já foi reconhecida como objeto do tempo de Cristo, mas as inscrições em aramaico que a identificam como sendo de Tiago ainda estão sob avaliação da comunidade arqueológica internacional. “Pude ver o ossuário em primeira mão, quando estive em Israel no começo de 2009”, conta Rodrigo Pereira da Silva, teólogo, filósofo e doutor em teologia bíblica com pós-doutorado em arqueologia na Andrews University, nos Estados Unidos. “Mas ainda há muito o que ser feito para validar as inscrições.”

Professor de teologia do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC), Silva também é arqueólogo e já participou de escavações em Israel, na Jordânia, no Sudão e na Espanha. Ele conta que, no caso da urna de Tiago, se comprovada a autenticidade de seus escritos em aramaico, esse será o primeiro artefato arqueológico com vínculos diretos com Jesus. No dia 21 de dezembro, um outro achado empolgou os arqueólogos. Foram encontrados os restos de uma casa humilde de Nazaré que datam do século I d.C. Com dois quartos, um pátio e uma cisterna, ela ajuda a resconstruir a vida de judeus do tempo de Cristo. “As informações vêm sempre fragmentadas”, explica Pedro Vasconcelos Lima, professor de teologia e presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (Abib). “Não podemos esquecer que esses fragmentos não foram criados para responder às nossas perguntas e, por isso, precisam de um cuidadoso trabalho de contextualização.”

Enquanto a contextualização segue a todo vapor, nos departamentos acadêmicos das melhores universidades do planeta, o trabalho de campo tem encontrado mais obstáculos do que de costume. Como se o calor, a areia e as outras tantas dificuldades usuais da arqueologia já não fossem suficientes, questões políticas das regiões escavadas têm influenciado pesadamente as áreas disponíveis para exploração. “Vemos muitas descobertas se esgotarem nelas mesmas”, explica Rafael Rodrigues da Silva, professor do Departamento de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e teólogo do Centro de Estudos Bíblicos (Cebi). “O sujeito faz a descoberta, quer escavar o entorno, buscar outros sinais e não pode”, afirma. É que boa parte da terra onde estão enterrados muitos desses objetos está em áreas de constante disputa, como é o caso de porções territoriais de Israel. “Se o século XX foi bom para a arqueologia, dos anos 90 para cá temos visto uma calmaria nos achados – mesmo com essa história do ossuário de Tiago”, afirma o professor Silva. Sem achados, sem história.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Oferendas, benzeduras e vudus alguns dos hábitos das civilizações antigas que chegaram até nós.

Antigas Tradições Mágicas dos Dias Modernos
Oferendas, benzeduras e vudus estes são apenas alguns dos hábitos adquiridos de civilizações antigas que chegaram até nós. Mas qual a sua origem e verdadeiro propósito? Conheça nesta entrevista exclusiva com Maria Regina Cândido, da UFRJ, uma das maiores especialistas sobre o assunto.

A magia romana tem antecedentes em outras civilizações como a etrusca?

Por meio de documentação textual e das escavações arqueológicas podemos afirmar que as práticas mágicas visando o benefício da coletividade, como fertilidade do solo, dos animais e das mulheres, circularam por todo o mundo antigo; era prática comum. Entretanto, o hábito mágico de remover sepulturas com o intuito de atender interesses individuais devido à incompetência em gerir negócios, inveja pelo sucesso do adversário ou a cobiça; o local mais remoto a ser identificado é somente entre os atenienses do V século a.C. A partir deles que esse hábito se difunde para os romanos. Os etruscos são especialistas na arte da adivinhação e dos presságios.

O quanto das antigas crenças chegou até a Idade Média?

A partir do Império Romano, vários manuais foram escritos e passados adiante pelos aprendizes de feiticeiro. O imperador Otavio Augusto determinou a queima de vários manuais que ensinavam os procedimentos mágicos, mas outros sobreviveram e chegaram até a Idade Média onde foram guardados em segredo. Já as lâminas de chumbo deixaram de ser usadas no século VI depois de Cristo e só foram descobertas pelos pesquisadores durante escavações arqueológicas no cemitério do Kerameikos em Atenas no século XIX.

Qual o objeto mágico mais usado?

Dependendo da intenção do solicitante da magia, pode ser lâmina de chumbo, vísceras de animais como salamandras, ervas e raízes diversas, vinho, azeite, cera, recipientes para queimar algo que pertença ao inimigo. O ritual era realizado sempre à noite, de preferência na lua cheia, em lugares sagrados como fendas de santuários, cemitérios, leito de rios e poços de água, locais de acesso a um mundo subterrâneo.
Pode nos contar algum ritual mágico completo que tenha um significado histórico?

Foi somente no III século que o poeta Teócrito nos apresentou o ritual mágico para trazer de volta a paixão e a pessoa amada através da destruição da rival. Antes, tínhamos somente algumas poucas informações de Platão.

Não podemos esquecer que as práticas mágicas assim como os rituais de mistérios, eram ações às quais se guardava o silêncio, o segredo e não pretendo quebrar essa tradição, portanto, não vou falar mais...

"Foram encontradas aproximadamente duas mil lâminas de chumbo, sendo que somente 600 foram catalogadas"
O que os historiadores podem aprender com o estudo das práticas mágicas antigas?

Os pesquisadores de magia e religião aprendem, por meio dos documentos e dos vestígios arqueológicos, que o mundo é, foi e será sempre composto pela diversidade de crenças e práticas mágico-religiosas muito singulares e interessantes. É de fundamental importância estudá-las pelo viés científico, visando entender as motivações, seus ritos, cultos e comportamentos dos antigos e comparar com as práticas encontradas nos dias atuais.
Há algum culto antigo que tenha se metamorfoseado quando do advento do cristianismo e que esteja em uso ainda hoje?

Tanto os cultos quanto os ritos, por exemplo, o uso do incenso e do lume nos templos, estão presentes nas missas do catolicismo. Entrar na residência com o pé direito e sempre se benzer com a mão direita, enfim, passaríamos um bom tempo enumerando os usos do passado na atualidade. Alguns procedimentos considerados mágicos tornaram-se saber científico na modernidade, tais como o efeito de folhas das famílias das mentas ser muito útil para os problemas menstruais, as dores de varizes serem amenizadas com fricção de folhas de hera, a cebola selvagem e o alho triturados com óleo e vinho serem eficazes para conter sangramentos e secreção vaginal, uma planta como a belladona poder ser usada como calmante, mas em porções concentradas, tornava-se abortiva, e as ervas da família do opium serem eficazes como analgésicos ideais para as mulheres em trabalho de parto.
Sabe-se que a prática dos bonecos vudu tem raízes mais antigas. Havia equivalentes na antiguidade?

Achei interessante esta pergunta, pois existe o preconceito de colocarem as práticas mágicas identificadas como vudu como sendo oriundas dos negros africanos. Tal fato me permite alertar aos pesquisadores que no período de Péricles já existia a magia de amaldiçoar os inimigos por meio de bonequinhos de chumbo, argila ou cera, enterrando-os em sepulturas. Percebe-se um certo constrangimento dos europeus ao tratar o tema magia, pois estas bonequinhas, assim como as lâminas de chumbo, estão mantidas na área de reserva técnica, fora das vistas dos visitantes dos museus europeus. Foram encontradas aproximadamente duas mil lâminas de chumbo, sendo que somente 600 foram catalogadas (nós temos no NEA/UERJ a imagem e inscrições de aproximadamente 230 delas em processo de tradução e catalogação).

Algumas foram encontradas junto com essas figuras humanas espetadas com estiletes tipo prego, localizadas em determinadas sepulturas do cemitério de Kerameikos. Não sabemos como os atenienses as chamavam, como algumas eram de chumbo, os pesquisadores por convenção as denominam de katadesmos. Nos papiros mágicos estão descritos procedimentos na confecção das bonecas vudu, a saber: pegar chumbo ou cera e confeccionar a figura humana, cujos órgãos genitais devem ser bem demarcados, as mãos devem ser atadas às costas e os pés presos.

Em seguida, devem ser selecionadas treze pequenas estacas de ferro tipo prego, recitando enquanto perfura o boneco: "Eu estou perfurando este prego no cérebro de Fulano, enterro dois nos seus ouvidos, dois nos seus olhos e um na boca... Dois em seu peito... Um em sua mão... Dois eu enterro na genitália (pênis ou vagina) e dois nos seus pés. Eu enterro estes pregos em cada uma das parte de Fulano para não se interessar por ninguém, mas somente por mim, só pense em mim". Como podemos observar, essa é uma magia amorosa denominada de philtros katademos, pelo fato de ser acompanhada por uma lâmina de chumbo com os dizeres acima e cuidadosamente colocada na sepultura de um indíviduo morto antes do tempo.

Qual o ritual mágico mais curioso de que se tem notícia?

O ritual de preparação do feiticeiro que realiza a magia com o auxílio da deusa Circe, Hécate e Medeia. O feiticeiro se banhava visando a purificação do seu corpo, ficava três dias em total abstinência sexual e alimentar, colocava roupas limpas, e no terceiro dia, antes do nascer do Sol, saía em busca de determinadas ervas e raízes mágicas que só podiam ser arrancadas da terra usando os três dedos da mão direita e, durante a colheita, entoava alguns cânticos para a divindade Hécate. Em geral esta prática mágica tinha por fim atender ao solicitante que desejava reaver um amor perdido para outra pessoa. As ervas e raízes são usadas em banhos de imersão de forma a tornar o solicitante irresistível aos olhos do ser amado. O mais interessante é que ao final do ritual, o solicitante levava para casa uma poção mágica e/ou unguento. A poção deveria ser colocada aos poucos na bebida ou comida do ser amado, se colocasse em altas doses, causava a morte. O unguento aromático deveria ser colocado nas parte íntimas, fato que causava, depois de algum tempo, a impotência masculina.

"E sse tipo de magia não está ao alcance da população de poucos recursos, somente os indivíduos muito ricos tinham condições financeiras para pagar o feiticeiro e solicitar a sua realização"
As antigas placas de maldição romanas, placas de cera com inscrições vistas em seriados como Roma, da HBO, eram mesmo usadas?

Sim. Usadas entre os romanos, gregos, iberos e britânico na antiguidade. Achei muito interessante o episódio veiculado pela série Roma. A prática exibida denomina-se magia dos defixiones ou katadesmoi, que consiste em selecionar uma lâmina de chumbo e inscrever o nome do inimigo ou adversário na sua superfície. O solicitante escreve a maldição que deseja para o seu inimigo: se for contra um artesão de sucesso, o solicitante pede a Hermes que retenha a sua mão, raciocínio de forma que ele não consiga administrar o seu negócio de sucesso. Aristóteles, na obra Retórica, chama essa ação de inveja.

Caso o inimigo seja alguém que vai levá-lo ao tribunal, o usuário da magia deve escrever o nome do acusador e suas testemunhas e pedir que eles não consigam chegar ao tribunal. Existe também as imprecações contra as atividades esportivas, em que o adversário coloca o nome do oponente na lâmina e pede às potências do mundo subterrâneo que seu inimigo não tenha forças para derrotá-lo. O período mais remoto dessa prática foi detectado entre os atenienses no V século a.C., e a tragédia Medeia de Eurípides seria uma forma de denúncia sobre a magia dos defixiones em Atenas. Somente com Platão, na obra As Leis, que vamos descobrir o nome dessa prática mágica, e com Teócrito, na poesia Idílio a Samatha, que conhecemos o seu procedimento.

Esse tipo de magia não está ao alcance da população de poucos recursos, somente os indivíduos muito ricos tinham condições financeiras para pagar o feiticeiro e solicitar a sua realização. O alto preço se deve ao fato de ser proibido remover os túmulos de pessoas mortas. O ato consiste em crime previsto pela legislação dos atenienses e dos romanos. As lâminas de chumbo foram encontradas no cemitério do Kerameikos em Atenas, em santuários de deuses como Deméter. Perséfone, Hermes e também em poços d'água na região da Ágora, de Atenas. As sepulturas selecionadas para o ritual eram aquelas de pessoas que morreram antes do tempo: suicidas, vítimas de assassinato, crianças e mulheres que morreram de partos.
Como era a figura do mago nas antigas civilizações? Corresponde ao que conhecemos ou era algo mais elaborado?

A documentação nos aponta que os magos e feiticeiros eram pessoas comuns que, por alguma razão, como ascendência familiar, foram iniciados nas práticas da magia. O saber mágico consistia em conhecer a noite de lua certa para entrar em contato, por meio das palavras, cânticos e entonação, com as potências sobrenaturais: deuses, mortos e forças da natureza. A documentação do V século nos aponta para as mulheres feiticeiras denominadas de pharmakides como Circe, Calipso, Medeia e Hécate. Nos discursos, como oradores áticos século IV a.C. temos Andocides, Demóstenes e outros identificando como pharmakides, a sacerdotisa Ninos, a hetaira Frinea de Thespis e Theoris de Lenmos como praticantes da magia que trazia prejuízo para a coletividade ao disponibilizar os seus saberes mágicos a quem tivesse recursos para pagá-las por um alto preço.

Como podemos observar, a documentação nos aponta para as mulheres estrangeiras como as especialistas nas práticas mágicas; as razões são diversas, tais como a proximidade com o preparo de ervas como alimento, o conhecimento de chá abortivo, de unguento que servia como estímulo sexual masculino e as poções mágicas visando despertar o amor eterno no ser amado. Entretanto, havia magos denominados de pharmakeus que exerciam as práticas mágicas proibidas às mulheres como o psychagogos, cujo ritual consistia em entrar em contato com os seres divinos como o realizado pelo filósofo Empendocles de Agracas e o ritual de nekromancia, atividade de evocação dos mortos. O ritual consistia em trazer de volta a alma desses mortos à superfície a fim de atender a solicitação que podia ser uma informação ou um pedido do feiticeiro.