quinta-feira, 20 de maio de 2010

Deus: Uma reflexão!

Em 1963 foi publicado um pequeno livro da autoria de um bispo anglicano, livro que causou um tumulto religioso no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em Honest to God, o Bispo John Robinson atreveu-se a sugerir que a ideia de deus que predominou durante séculos na civilização ocidental é irrelevante para as necessidades dos homens e mulheres de hoje em dia. A sobrevivência da religião no Ocidente, argumenta Robinson, exige que se rejeite esta imagem tradicional de deus, a favor de uma concepção profundamente diferente, concepção cuja emergência Robinson afirmou ter visto na obra de pensadores religiosos do século XX, como Paul Tillich e Rudolf Bultmann.

Robinson previu corretamente a reação que a sua tese ia provocar, sublinhando que encontraria inevitavelmente resistência, como traição daquilo que se afirma na Bíblia. Não só as pessoas ligadas à igreja, na sua vasta maioria, se oporiam à perspectiva de Robinson, como a afirmação de que a ideia de deus já morrera ou que pelo menos estava moribunda provocaria ressentimento nos que tinham rejeitado a sua crença em deus. Na correspondência com o diretor do londrino Times, em artigos de revistas acadêmicas e nos púlpitos de dois continentes, Robinson foi atacado como ateu disfarçado de bispo e só raramente defendido como profeta de uma nova revolução que ocorria no interior da tradição religiosa judaico-cristã. Um olhar sobre algumas das ideias de Robinson ajudar-nos-á a distinguir diferentes ideias de deus e a concentrarmo-nos naquela que será o centro das nossas atenções ao longo da maior parte deste livro.

Antes de surgir a crença de que o mundo no seu todo está sob o controlo soberano de um único ser, as pessoas acreditavam amiúde numa pluralidade de seres divinos ou deuses, posição religiosa a que se chama politeísmo. Na antiguidade grega e romana, por exemplo, os diversos deuses controlavam diferentes aspectos da vida, de modo que se venerava, naturalmente, vários deuses — um deus da guerra, uma deusa do amor, e por aí em diante. Às vezes, porém, podia-se acreditar que há diversos deuses mas venerar apenas um, o deus da própria tribo, posição religiosa a que se chama henoteísmo. No Antigo Testamento, por exemplo, há referências frequentes a deuses de outras tribos, embora os hebreus se mantenham fiéis ao seu próprio deus, Jeová. Lentamente, porém, surgiu a crença de que o nosso próprio deus é o criador do Céu e da Terra, o deus que não é apenas o da nossa própria tribo mas de todos, perspectiva religiosa a que se chama monoteísmo.

Segundo Robinson, o monoteísmo, a crença num só ser divino, sofreu uma mudança profunda, mudança que Robinson descreve com a ajuda das expressões “lá em cima” e “lá fora”. O Deus “lá em cima” é um ser localizado no espaço acima de nós, presumivelmente a uma determinada distância da Terra, numa região conhecida como “os Céus”. Esta ideia de Deus está associada a uma certa imagem primitiva em que o universo consta de três regiões, os Céus em cima, a Terra em baixo e a região das trevas sob a Terra. Segundo esta imagem, a Terra é frequentemente invadida por seres dos outros dois domínios — Deus e os seus anjos do Céu, Satanás e os seus demónios da região subterrânea — que combatem entre si pelo controlo das almas e do destino dos que habitam o domínio terreno. Esta ideia de Deus como ser poderoso que está “lá em cima”, numa determinada região do espaço, foi lentamente abandonada, afirma Robinson. Agora explicamos às crianças que os Céus não estão de fato sobre as suas cabeças, que Deus não está literalmente algures lá em cima, no Céu. Em lugar de Deus como “o velhote no Céu”, surgiu uma ideia de Deus muito mais sofisticada, a que Robinson se refere como a ideia de Deus “lá fora”.

Mudar do Deus “lá em cima” para o Deus “lá fora” é mudar de uma concepção de Deus como um ser localizado no espaço a uma certa distância da Terra para uma concepção de Deus como algo distinto e independente do mundo. Segundo esta ideia, Deus não está em qualquer local ou região do espaço físico. É um ser puramente espiritual, um ser pessoal, perfeitamente bom, onipotente, onisciente, que criou o mundo, mas não faz parte dele. É distinto do mundo, não está sujeito às suas leis, julga-o, orienta-o para o seu desígnio final. Esta ideia bastante majestosa de Deus foi lentamente desenvolvida ao longo dos séculos por grandes teólogos ocidentais como Agostinho, Boécio, Boaventura, Avicena, Anselmo, Maimónides e Tomás. Tem sido a ideia dominante de Deus na civilização ocidental. Se rotulamos o Deus “lá em cima” como “o velhote no Céu”, podemos rotular o Deus “lá fora” como “o Deus dos teólogos tradicionais”. E é o Deus dos teólogos tradicionais que Robinson considera ter-se tornado irrelevante para as necessidades das pessoas de hoje em dia. Quer Robinson tenha ou não razão — e é muito duvidoso que tenha — é inegavelmente verdade que quando nós, que herdamos maioritariamente a cultura da civilização ocidental, pensamos em Deus, o ser em que pensamos é em muitos aspectos importantes parecido com o Deus dos teólogos tradicionais. Será útil, portanto, ao clarificar as nossas próprias ideias acerca de Deus, explorar com maior detalhe a concepção de Deus que surgiu no pensamento dos grandes teólogos.

Os atributos de Deus

Vimos que, segundo muitos teólogos importantes, se concebe Deus como um ser perfeitamente bom, distinto e independente do mundo, onipotente, onisciente e criador do universo. Duas outras características que os grandes teólogos atribuíram a Deus são a auto-existência e a eternidade. A ideia de Deus que predomina na civilização ocidental é portanto a ideia de um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto e independente dele, todo-poderoso (onipotente), onisciente, eterno e auto-existente. Claro que esta lista dos elementos mais importantes dessa ideia de Deus só é esclarecedora para nós na medida em que compreendamos os próprios elementos. Como é ser onipotente? Como compreender a ideia de auto-existência? Como se concebe a distinção e independência de Deus perante o mundo? O que se quer dizer ao afirmar que Deus, e só Deus, é eterno? Só na medida em que pudermos responder a estas e a outras perguntas semelhantes compreenderemos a ideia central de Deus que surgiu na civilização ocidental. Antes de passarmos ao estudo da questão da existência de Deus, portanto, é importante enriquecer a nossa apreensão desta mesma ideia, procurando responder a algumas daquelas questões fundamentais.

Onipotência e perfeita bondade

Na sua grande obra, Summa Theologica, S. Tomás de Aquino, que viveu no século XIII, procura explicar o que é para Deus ser onipotente. Depois de indicar que, para Deus, ser onipotente é ser capaz de fazer tudo o que é possível, Tomás explica cuidadosamente que há dois tipos de possibilidade, a possibilidade relativa e a possibilidade absoluta, e investiga a que tipo de possibilidade se alude quando se afirma que a onipotência de Deus é a capacidade de fazer tudo o que é possível. Algo é uma possibilidade relativa quando um ser ou mais pode fazê-lo. Voar por meios naturais, por exemplo, é possível relativamente às aves mas não relativamente a meros seres humanos. Algo é uma possibilidade absoluta, porém, se não é uma contradição nos termos. Derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez é algo muito difícil de fazer, mas não é uma contradição nos termos; na verdade, isso já foi ocasionalmente feito. Mas derrotar um mestre de xadrez num jogo de xadrez depois de este nos ter colocado em xeque-mate não é apenas algo muito difícil de fazer: não se pode fazer sequer, visto que é uma contradição nos termos. Tornar-se um solteiro casado, fazer a mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada, derrotar alguém no xadrez depois de ele nos ter colocado em xeque-mate são coisas que não são possíveis em sentido absoluto; são atividades que, implícita ou explicitamente, envolvem uma contradição nos termos.

Tendo explicado os dois tipos diferentes de possibilidade, Tomás indica que tem de ser à possibilidade absoluta que se alude quando se explica a onipotência de Deus como a capacidade de fazer tudo o que é possível. Porque se nos referíssemos à possibilidade relativa, a nossa explicação não seria mais do que afirmar que “Deus é onipotente” significa que Deus pode fazer tudo o que está em seu poder. E embora seja seguramente verdade que Deus pode fazer tudo o que está em seu poder, isso nada explica. “Deus é onipotente”, portanto, significa que Deus pode fazer tudo o que não envolve contradição nos termos. Quererá isto dizer que há coisas que Deus não pode fazer? Num certo sentido, significa precisamente isso. Deus não pode fazer a mesma coisa ser ao mesmo tempo redonda e quadrada e não pode derrotar-me num jogo de xadrez depois de eu o ter colocado em xeque-mate. Claro que Deus podia sempre colocar-me em xeque-mate antes de eu conseguir fazer-lhe o mesmo. Mas se Deus — por uma razão qualquer — pudesse fazer-me entrar num jogo de xadrez e deixar que eu o colocasse em xeque-mate, então Deus não poderia ganhar aquele jogo de xadrez. Poderia aniquilar-me e ao tabuleiro de xadrez, mas não poderia ganhar aquele jogo. Portanto, há muitas coisas que Deus, apesar da sua onipotência, não pode fazer. Seria um erro, porém, concluir a partir daqui que o poder de Deus é de algum modo limitado, que há coisas que Deus não pode fazer mas que poderia fazer se o seu poder fosse maior. Pois o poder, como observa Tomás, abrange apenas aquilo que é possível. E nada há que seja possível fazer mas que Deus não possa fazer por falta de poder. Assim, conclui Tomás: “Tudo o que implique contradição não está no âmbito da onipotência divina, porque isso não pode ter o aspecto da possibilidade. Pelo que é mais apropriado afirmar que não se pode fazer tais coisas, do que afirmar que Deus não as pode fazer.”

Mas não haverá coisas que, ao contrário de fazer um quadrado redondo, não são contraditórias e no entanto Deus não as possa fazer? Cometer suicídio ou praticar uma má ação não envolvem contradição. Muitos teólogos, contudo, negaram que Deus possa autodestruir-se ou praticar o mal. Porquanto essas ações são inconsistentes com a natureza de Deus — com a sua eternidade e perfeita bondade. Poder-se-ia objetar que as perfeições de Deus implicam apenas que este não se autodestruirá nem praticará o mal, e não que não o possa fazer — Deus tem o poder de praticar o mal, mas, como é perfeitamente bom, nunca exercerá esse poder. O que escapa a esta objeção, contudo, é que atribuir a Deus o poder de praticar o mal é atribuir-lhe o poder de deixar de ter um atributo (a perfeita bondade) que faz parte da sua própria essência ou natureza. Ser perfeitamente bom faz tanto parte da natureza de Deus como ter três ângulos faz parte da natureza de um triângulo. Deus não poderia deixar de ser perfeitamente bom tal como um triângulo não poderia deixar de ter três ângulos. Perante esta dificuldade, talvez seja necessário corrigir a explicação de Tomás acerca do que significa Deus ser onipotente. Em vez da mera afirmação de que isto significa que Deus tem o poder de fazer tudo o que seja uma possibilidade absoluta, diremos que significa que Deus pode fazer tudo o que é uma possibilidade absoluta e que não seja inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais. Como praticar o mal é inconsistente com a perfeita bondade e como a perfeita bondade é um atributo fundamental de Deus, não haverá conflito entre o fato de Deus não poder fazer o mal e o fato de ser onipotente.

A ideia de que a onipotência de Deus não inclui o poder de fazer algo que seja inconsistente com qualquer um dos seus atributos fundamentais pode ajudar-nos a resolver aquilo a que se tem chamado o “paradoxo da pedra”. Segundo este paradoxo, ou Deus tem o poder de criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar, ou não tem esse poder. Se tem o poder de criar tal pedra então há algo que Deus não pode fazer: levantar a pedra que criou. Por outro lado, se não pode criar tal pedra, então há também algo que não pode fazer: criar uma pedra tão pesada que não a possa levantar. Em qualquer dos casos há algo que Deus não pode fazer. Logo, Deus não é onipotente.

A solução deste quebra-cabeças é ver que criar uma pedra tão pesada que Deus não a possa levantar é fazer algo inconsistente com um dos atributos essenciais de Deus — o atributo da onipotência. Porquanto se existe uma pedra tão pesada que Deus não tem o poder de a levantar, então Deus não é onipotente. Logo, se Deus tem o poder de criar tal pedra, tem o poder de fazer com que lhe falte um atributo (onipotência) que lhe é essencial. Então, a solução adequada do quebra-cabeças é afirmar que Deus não pode criar tal pedra, do mesmo modo que não pode praticar uma má ação. Isto não significa, evidentemente, que haja uma pedra na série infinita das pedras que pesam mil quilogramas, dois mil quilogramas, três mil quilogramas, quatro mil quilogramas, e por aí em diante, que Deus não pode criar. No caso de uma má ação, Deus não pode praticar essa ação porque a sua perfeita bondade lhe é essencial. No caso de uma pedra tão pesada que não a possa levantar, Deus não pode criar tal pedra porque a sua onipotência lhe é essencial.

Vimos que não se pode compreender a onipotência de Deus como algo que inclui o “poder” de causar estados de coisas logicamente impossíveis ou de realizar acções inconsistentes com seus os atributos essenciais. E quanto a mudar o passado? Evidentemente, Deus podia ter impedido que Barack Obama se tornasse presidente dos Estados Unidos. Mas poderá Deus fazê-lo agora? Um estado de coisas em que Obama nunca tenha sido presidente não é uma impossibilidade lógica; tão-pouco parece haver inconsistência entre causar esse estado de coisas e a bondade de Deus ou qualquer outro dos seus atributos essenciais. Mas parece que não está agora ao alcance de qualquer ser, mesmo um ser onipotente, fazer que Obama nunca tenha sido presidente. Assim, embora tenhamos aperfeiçoado a nossa compreensão da noção de onipotência e visto que a onipotência de Deus não é o poder de causar seja o que for em absoluto, não podemos afirmar ter dado uma explicação completa da ideia de que Deus é onipotente. Pois, como acabamos de ver, há acontecimentos do passado que não se pode mudar agora, mesmo que se seja omnipotente. E pode haver outros estados de coisas que um ser onipotente e divino não possa causar.

A ideia de que Deus tem de ser perfeitamente bom liga-se à perspectiva de que Deus é um ser digno de gratidão, louvor e veneração incondicionais. Pois nenhum ser é digno de louvor e veneração incondicionais a menos que seja perfeitamente bom. Assim, Deus não só é um ser bom como a sua bondade é insuperável. Além disso, Deus não é perfeitamente bom por acaso; esse modo de ser é a sua natureza. Logicamente, Deus não poderia deixar de ser perfeitamente bom. Esta é a razão de termos observado há pouco que Deus não tem o poder de praticar o mal. Porquanto atribuir tal poder a Deus é atribuir-lhe o poder de deixar de ser aquilo que necessariamente é.

Afirmamos que Deus é perfeitamente bom por definição? Sim. Mas vemos também que a definição de Deus como perfeitamente bom está ligada à exigência religiosa de que Deus seja um objeto de louvor e veneração incondicionais, se é que não está mesmo fundada nessa exigência. E esclarecemos também outra coisa. Porquanto afirmamos também que o ser que é Deus não pode deixar de ser perfeitamente bom. Um solteiro por definição não é casado. Mas uma pessoa solteira pode deixar de não ser casada. Claro que quando isto acontece (o nosso solteiro casa-se), a pessoa deixa de ser solteira. Ao contrário do nosso solteiro, porém, o ser que é Deus não pode abdicar de ser Deus. Pelo que não afirmamos simplesmente que Deus é por definição perfeitamente bom. Afirmamos também que um ser que seja Deus nunca pode ser outra coisa senão Deus. O solteiro que vive na porta ao lado pode deixar de ser solteiro. Mas o ser que é Deus não pode deixar de ser Deus. Podemos formular isto do seguinte modo: ser solteiro não faz parte da natureza ou essência de um ser que é solteiro. Pelo que, embora por definição ninguém possa ser solteiro estando casado, essa pessoa pode deixar de não ser casada porque pode deixar de ser solteira. Mas ser Deus faz parte da natureza ou essência do ser que é Deus. Então, uma vez que o ser que é Deus não pode deixar de ser Deus, esse ser não pode deixar de ser perfeitamente bom.

Mas o que é ser perfeitamente bom? Na medida em que Deus é insuperavelmente bom, tem todas as características que a bondade insuperável implica. Nestas se inclui a absoluta bondade moral. A bondade moral é uma parte vital, mas não o todo, da bondade, pois há também o bem amoral. Assim, distinguimos entre duas afirmações que se pode fazer a propósito da morte de alguém: “Empenhou-se em levar uma vida boa” e “Teve uma vida boa”. A primeira afirmação diz respeito ao bem moral, a última diz sobretudo respeito ao bem amoral, como a felicidade, a boa sorte, etc. A perfeita bondade de Deus tanto envolve o bem moral quanto o amoral. De interesse crucial aqui é o bem moral de Deus (perfeita justiça, benevolência, etc.), visto que durante muito tempo se pensou que a bondade moral de Deus é de algum modo a fonte ou o padrão da moralidade para a vida humana. Além disso, em virtude da sua perfeição moral essencial, pode-se fazer alguns juízos acerca do mundo que Deus criou. Podemos estar certos, por exemplo, de que Deus não criaria um mundo moralmente mau. Pode até ser verdade que em virtude da sua perfeição moral Deus seja levado a criar o melhor mundo, em termos morais, de que é capaz. Estes tópicos são importantes. Discutiremos mais tarde o segundo (que género de mundo Deus criaria), quando considerarmos o problema do mal. Será útil ponderar aqui brevemente a conexão entre a perfeição moral de Deus e a moralidade na vida humana.

Tem-se defendido que Deus é a fonte ou o cânone dos nossos deveres morais, tanto dos negativos (por exemplo, o dever de não tirar vidas humanas inocentes) como dos positivos (por exemplo, o dever de ajudar quem precisa). Geralmente, as pessoas religiosas acreditam que estes deveres se baseiam de algum modo em mandamentos divinos. Um crente no judaísmo pode ver os dez mandamentos como regras morais fundamentais que determinam pelo menos grande parte daquilo que estamos moralmente obrigados a fazer (deveres positivos) ou a abstermo-nos de fazer (deveres negativos). É claro que, dada a sua perfeição moral, aquilo que Deus nos ordena tem de ser o que é moralmente correto fazer-se. Mas serão estas coisas moralmente corretas porque Deus as ordena? Isto é, será que o bem moral destas coisas consiste apenas no fato de Deus as ter ordenado? Ou será que Deus ordena que se faça estas coisas porque são corretas? Se formos pela segunda opção, que Deus ordena estas coisas porque vê que são moralmente corretas, parece que estamos a sugerir que a moralidade existe independentemente da vontade ou dos mandamentos de Deus. Mas se formos pela primeira opção, que é o fato de Deus as querer ou ordenar que torna essas coisas corretas, parece que estamos a sugerir que não haveria bem nem mal se não houvesse qualquer ser divino para decretar tais mandamentos. Embora nenhuma das respostas seja improblemática, a que predomina no pensamento religioso acerca de Deus e da moralidade é que aquilo que Deus ordena é moralmente bom independentemente dos seus mandamentos. O fato de Deus nos ordenar certas ações não as torna moralmente retas; estas são moralmente retas independentemente das suas ordens e Deus ordena-as porque vê que são moralmente retas. Assim, em que sentido depende a nossa vida moral de Deus? Ainda que a moralidade em si não dependa necessariamente de Deus, talvez o nosso conhecimento da moralidade dependa dos mandamentos divinos (ou pelo menos seja auxiliado por eles). Talvez os ensinamentos da religião levem os seres humanos a ver que certas acções são moralmente retas e que outras são moralmente erradas. Além disso, pode ser que a crença em Deus ajude a prática da moralidade. Pois embora cumprir o dever por respeito ao próprio dever seja uma parte importante da vida moral, talvez seja exagerado esperar que os seres humanos comuns sigam inflexivelmente a vida do dever, mesmo sem razões para associar a moralidade ao bem-estar e à felicidade. A crença em Deus pode ajudar a vida moral dando uma razão para pensar que a relação entre esforçar-se por levar uma vida boa e ter uma vida boa não é meramente acidental. Ainda assim, o que faremos com a dificuldade de que certas coisas são moralmente rectas independentemente do fato de Deus no-las ordenar? Considere-se o fato de Deus acreditar que 2 + 2 = 4. Será 2 + 2 = 4 verdade porque Deus acredita que é? Ou será que Deus acredita que 2 + 2 = 4 por ser verdade que 2 + 2 = 4? Se vamos pela última, como parece que devemos fazer, estamos a sugerir que certas afirmações matemáticas são verdadeiras independentemente de Deus acreditar nelas. Portanto, parece que estamos já comprometidos com a perspectiva de que o modo como algumas coisas são não tem em última instância a ver com a vontade ou com os mandamentos de Deus. Talvez as verdades fundamentais da moralidade tenham o mesmo tipo de estatuto que as verdades fundamentais da matemática.

Auto-existência

A ideia de que Deus é um ser auto-existente foi desenvolvida e explicada por Santo Anselmo no século XI. Usando diversos argumentos, Anselmo persuadira-se de que entre os seres que existem há um que é perfeitamente grandioso e bom — nada que existe ou alguma vez existiu se lhe compara. De tudo o que existe, porém, Anselmo estava igualmente persuadido de que podemos perguntar o que justifica ou explica o facto de existir. Se nos deparamos com uma mesa, por exemplo, podemos perguntar o que justifica o fato de a mesa existir. E podemos responder à nossa pergunta, pelo menos em parte, verificando que um carpinteiro pegou numa porção de madeira e fez a mesa. Poderemos, de igual modo, quanto a uma árvore, montanha ou lago, perguntar o que explica o fato de existirem. Tentando descobrir mais acerca do ser perfeitamente grandioso e bom, Anselmo faz a mesma pergunta a respeito deste ser. O que justifica o fato de o ser perfeitamente grandioso e bom existir?

Antes de tentar responder a esta questão, Anselmo observa que há apenas três casos a considerar: ou a existência de uma coisa se explica por outra coisa, ou se explica por nada, ou por si mesma. É claro que a existência da mesa se explica por outra coisa (o carpinteiro). O mesmo acontece com a existência de uma árvore, montanha ou lago. Cada uma destas coisas existe por causa de outras coisas. Com efeito, tudo o que é familiar nas nossas vidas parece explicar-se por outras coisas. Mas mesmo quando não sabemos o que explica o fato de certa coisa existir, se é que algo o explica, é óbvio que a resposta tem de ser uma das três que Anselmo propõe. O fato de certa coisa existir explica-se ou por referência a outra coisa, ou por nada, ou pela própria coisa. Simplesmente não há mais hipóteses a considerar. O que dizer então da existência de um ser perfeitamente grandioso e bom? Será que a sua existência se deve a outra coisa, a nada, ou a si própria? Ao contrário da mesa, da árvore, da montanha, ou do lago, a existência do ser perfeitamente grandioso e bom não pode dever-se a outra coisa, argumenta Anselmo, pois nesse caso a sua existência dependeria dessa outra coisa e, consequentemente, não seria o ser supremo. A existência de qualquer coisa superior a todas as outras coisas não pode depender (nem ter dependido) de qualquer delas. A existência do ser supremo, portanto, tem de se explicar ou por nada ou por si própria.

Se a existência de algo se explica por nada então esse algo existe sem que haja qualquer explicação para o facto de existir em vez de não existir. Poderia haver algo assim — algo cuja existência é simplesmente um fato bruto ininteligível, sem qualquer explicação? A resposta de Anselmo, esteja ou não correta, é perfeitamente clara: “É em última análise inconcebível que aquilo que é alguma coisa exista por meio de nada”. Infelizmente, Anselmo não explica por que razão não podemos conceber algo cuja existência seja um fato bruto ininteligível. Presumivelmente, achou que isso era tão óbvio que não precisava de explicação. Em todo o caso, temos de observar com cuidado o princípio que Anselmo exprime aqui, pois figurará mais tarde num dos principais argumentos a favor da existência de Deus. A convicção fundamental de Anselmo é que para tudo o que existe tem de haver uma explicação da sua existência — tem de haver algo que explique o fato de a coisa existir em vez de inexistir, e esse algo tem de ser ou outra coisa ou a própria coisa. Negar isto é ver a existência de algo como irracional, absurda, completamente ininteligível. E Anselmo pensa que o ser supremo não pode ser assim, tal como nem uma árvore ou uma montanha o podem. A existência do ser supremo, portanto, não pode explicar-se por nada. Resta então a terceira via. Anselmo conclui que a existência do ser supremo se deve a si própria.

Claro que uma coisa é concluir que a explicação da existência do ser supremo tem de se encontrar na natureza desse mesmo ser, e outra coisa completamente diferente é compreender o que há na natureza do ser supremo que justifica a sua existência. Anselmo não afirma compreender o que há na natureza divina que justifica a existência de Deus. Nem compreende exactamente como a natureza de um ser poderá explicar a existência desse ser. Tudo aquilo de que afirma estar certo é que a existência do ser supremo se deve ao próprio ser supremo. Não quer com isto dizer, obviamente, que o ser supremo causou a sua própria existência. Pois nesse caso teria de existir antes de ter existido de modo a causar a sua própria existência e isto é claramente impossível. Além disso, como vimos, a eternidade é uma das características de Deus, pelo que é evidente que Deus não começou a existir num determinado momento.

Contudo, Anselmo apresenta uma analogia, procurando ajudar-nos a compreender esta ideia bastante difícil. Usando o nosso próprio exemplo, pode-se exprimir assim a ideia de Anselmo: suponha-se que numa noite fria encontramos uma enorme fogueira. Reparamos que uma pedra perto da fogueira está quente. Se perguntarmos qual a explicação deste fato acerca da pedra (o fato de estar quente), seria absurdo sugerir que a explicação tem de estar na própria pedra, que há algo na natureza da pedra que a faz estar quente. A fogueira e a proximidade entre a pedra e o fogo explicam o calor da pedra. Suponha-se que reparamos então que também a fogueira está quente. O que explica o fato de a fogueira estar quente? Aqui não parece absurdo sugerir que a explicação reside na própria fogueira. Pertence à natureza de uma fogueira o estar quente, tal como pertence à natureza de um triângulo o ter três ângulos. Para evitar a confusão, temos de estar claramente cientes de que procuramos explicar o fato de a fogueira estar quente e não o facto de a fogueira existir. O fato de a fogueira existir não se deve à fogueira mas ao campista que ateou a fogueira. O fato de a fogueira que existe estar quente, contudo, é um fato acerca da fogueira que se explica pela natureza da fogueira, pelo que é ser uma fogueira. Temos então aqui o exemplo de um fato acerca de algo (o calor da fogueira) que se explica não por outra coisa qualquer mas pela natureza da própria coisa (a fogueira). Anselmo espera que se virmos uma vez que um determinado fato acerca de algo se pode explicar não por outra coisa qualquer mas pela natureza dessa coisa, a ideia de auto-existência deixará de nos parecer tão estranha. Quer seja ou não assim, devia ser claro tanto o que se quer dizer com auto-existência como por que razão os teólogos tradicionais sentiram que se tratava de uma característica fundamental do ser divino. Ser um auto-existente é ter na sua própria natureza a explicação da sua existência. Como nada pode existir cuja existência seja ininteligível, sem qualquer explicação (o princípio fundamental de Anselmo), e como o ser supremo não seria supremo se a sua existência se devesse a outra coisa, a conclusão inevitável é que a explicação da existência de Deus (o ser supremo) está na sua própria natureza.

Distinção, independência e eternidade

Temos vindo a explorar as noções de omnipotência, perfeita bondade e auto-existência, procurando aprofundar a nossa apreensão da ideia dominante de Deus que emergiu na civilização ocidental. Explorar-se-á alguns dos outros elementos desta ideia de Deus em capítulos posteriores. Para completar esta exploração inicial, contudo, será instrutivo considerar a noção de que Deus é distinto e independente do mundo e a concepção de Deus como um ser eterno.

Vimos a emergência do monoteísmo a partir do henoteísmo e do politeísmo. O monoteísmo é a tradição dominante no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Há outra perspectiva de Deus que persistiu desde a antiguidade e continua a florescer, particularmente nas grandes religiões do Oriente, o budismo e o hinduísmo: uma perspectiva chamada panteísmo. Segundo o panteísmo, tudo o que existe tem uma natureza interna que é a mesma em todas as coisas e essa natureza interna é Deus. Mais tarde, quando examinarmos as experiências de alguns dos grandes místicos, consideraremos o panteísmo de um modo mais completo. A ideia fundamental no monoteísmo, de que Deus é distinto do mundo, constitui uma rejeição do panteísmo. Segundo a concepção judaico-cristã e islâmica, Deus e o mundo são inteiramente distintos: podia-se aniquilar por completo tudo o que há no segundo sem que ocorresse a mais ligeira mudança na realidade do ser divino. Claro que há coisas no mundo que se assemelham mais a Deus do que outras. Como os humanos são seres vivos e racionais, assemelham-se mais a Deus do que as pedras e as árvores. Mas ser como Deus e ser Deus são coisas bastante diferentes. O mundo não é o divino e a noção de que Deus é distinto do mundo visa salientar a diferença fundamental entre a realidade de Deus e a realidade do mundo.

O fato de Deus ser independente do mundo significa que não é regido por quaisquer leis físicas, que rejam o funcionamento do universo. Mas significa muito mais do que isto. Significa também que Deus não está sujeito às leis do espaço e do tempo. De acordo com a lei do espaço, nenhum objeto pode existir ao mesmo tempo em dois lugares diferentes. Claro que uma parte de um objeto pode existir numa região do espaço e outra parte do mesmo objeto (se for um objeto grande) pode existir numa região diferente do espaço. A lei não nega isto. Nega que um objeto no seu todo possa existir ao mesmo tempo em duas regiões diferentes do espaço. Se esta lei se aplicasse a Deus, ou Deus ocuparia qualquer região do espaço num determinado momento e não outras regiões do espaço nesse mesmo momento ou ocuparia todo o espaço ao mesmo tempo, mas com apenas uma parte sua em cada região do espaço. Nenhuma destas alternativas era aceitável para os grandes teólogos do passado. Na primeira alternativa, embora Deus pudesse estar presente em São Paulo num determinado momento, não podia nesse momento estar presente em Manaus. E na segunda alternativa, embora Deus pudesse estar presente em São Paulo e Manaus ao mesmo tempo, em São Paulo estaria uma parte de Deus e em Manaus estaria uma parte diferente de Deus. Na ideia tradicional de Deus, não só Deus tem de estar presente em todo o lado ao mesmo tempo como o seu todo tem de estar ao mesmo tempo em todos os lugares. Deus no seu todo está em São Paulo e em Manaus ao mesmo tempo — na verdade, todo o tempo. Mas esta perspectiva entra em conflito com a lei do espaço. Então a ideia de Deus que emergiu na civilização ocidental é a de um ser supremo independente das leis da natureza e que transcende mesmo a lei fundamental do espaço.

A ideia de que Deus não está sujeito à lei do tempo relaciona-se intimamente, como veremos, com um dos significados de eternidade. De acordo com a lei do espaço, nada pode existir inteiramente em duas regiões diferentes do espaço ao mesmo tempo. De acordo com a lei do tempo, nada pode existir inteira e simultaneamente em dois momentos diferentes. Para compreender a lei do tempo, basta considerar o exemplo do homem que existiu ontem, existe hoje e existirá amanhã. O homem no seu todo existe em cada um destes momentos diferentes. Isto é, não se trata de apenas o seu braço, por exemplo, ter existido ontem, a sua cabeça existir hoje e as suas pernas existirem amanhã. Mas ainda que o homem no seu todo exista em cada um destes três momentos, o todo da sua vida temporal não existe em cada um destes momentos. A parte temporal da sua vida que existiu ontem não existe hoje; quando muito o homem pode participar nela recordando-a. E a parte temporal da sua vida que existirá amanhã não existe hoje; quando muito pode participar nela antecipando-a. Embora o homem no seu todo exista em cada um destes três momentos, a sua vida inteira não existe em qualquer um deles. A sua vida, portanto, divide-se em muitas partes temporais e em cada momento particular só uma destas partes temporais lhe é presente. Assim, a vida de uma pessoa exemplifica a lei do tempo. Pois de acordo com essa lei as partes temporais individuais da vida de uma pessoa não podem estar presentes ao mesmo tempo. Por razões que não precisamos de desenvolver aqui, os grandes teólogos medievais hesitavam em dividir a vida de Deus em partes temporais e, portanto, adoptaram a perspectiva de que Deus transcende a lei do tempo tal como transcende a lei do espaço. Ainda que seja quase ininteligível, adoptaram a perspectiva, como Anselmo a exprime, de que “a natureza suprema existe num lugar e num momento de tal maneira que não a impede de existir desse modo simultaneamente, como um todo, em lugares e momentos diferentes”. De acordo com esta ideia, toda a vida ingénita e interminável de Deus lhe é presente em cada momento do tempo e Deus no seu todo está simultaneamente presente em cada região do espaço.

Eterno tem dois significados distintos. Num sentido, ser eterno é ter existência temporal interminável, sem começo nem fim; é ter duração infinita em ambas as direções do tempo. Nada há neste significado de eterno que entre em conflito com a lei do tempo. A lei do tempo implica apenas que qualquer coisa que seja temporalmente infinita terá uma infinidade de partes temporais compondo de tal modo a sua existência que em nenhum momento estará presente mais do que uma destas partes temporais; as outras partes temporais estão ou no seu passado ou no seu futuro. De acordo com o segundo significado de eterno, contudo, a vida de um ser eterno não se divide em partes temporais, pois não está sujeito à lei do tempo. Assim, de acordo com este significado de eterno, um ser que tivesse duração infinita em cada direcção do tempo e estivesse sujeito à lei do tempo não seria eterno. Como observou o estudioso romano Boécio (480-524 d.C.),

Tudo o que está sujeito ao tempo, mesmo aquilo que não tem começo e que não terá fim numa vida coextensiva com a infinidade do tempo — e foi assim que Aristóteles concebeu o mundo —, é tal que não se pode correctamente considerar eterno. Porquanto não abrange nem inclui o todo da vida infinita ao mesmo tempo, dado que não abrange o futuro, que está ainda por vir. Logo, só o que abrange e possui ao mesmo tempo toda a plenitude da vida infinita, da qual nada de posterior nem de anterior está ausente, se pode com justeza chamar eterno.

Boécio, Anselmo, Tomás, e outros teólogos tradicionais interpretaram a eternidade de Deus no segundo dos dois sentidos que acabamos de distinguir. Defenderam que Deus está fora do tempo, que não está sujeito à sua lei fundamental. Outros teólogos, contudo, adoptaram a perspectiva de que Deus é eterno no primeiro sentido — que tem duração infinita em ambas as direções temporais. O teólogo inglês do século XVIII Samuel Clarke, por exemplo, rejeitou como absurda a ideia de que um ser pudesse transcender o tempo e adoptou a perspectiva de que ser eterno é simplesmente ser perpétuo, existindo no tempo mas sem ter começo nem fim. Quando mais tarde estudarmos o problema da presciência divina e da liberdade humana, reconsideraremos estes dois sentidos de eternidade e observaremos as suas implicações para a doutrina da presciência divina. De momento, contudo, basta reconhecer que a eternidade é um elemento central na ideia tradicional de Deus e que foi interpretada de duas maneiras distintas.

Temos vindo a explorar algumas características fundamentais que constituem a ideia de Deus, que até agora têm sido centrais para a tradição religiosa ocidental. Segundo esta ideia, Deus é um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto e independente deste, onipotente, onisciente, eterno e auto-existente. Ao explorar esta ideia de Deus, vimos também muitas outras concepções do divino associadas ao politeísmo, henoteísmo, monoteísmo e panteísmo. A ideia de Deus que será de importância central para este livro, porém, foi elaborada pelos teólogos tradicionais ocidentais. É a ideia central de Deus das três grandes religiões da civilização ocidental: judaísmo, cristianismo e islamismo. Até aqui usamos a expressão de Robinson “o Deus lá fora” e a expressão “o Deus dos teólogos tradicionais” para referir esta ideia de Deus. Doravante, contudo, chamaremos a esta perspectiva acerca de Deus “ideia teísta de Deus”. Ser teísta, portanto, é acreditar na existência de um ser perfeitamente bom, criador do mundo mas distinto e independente deste, onipotente, onisciente, eterno (em qualquer dos nossos dois sentidos) e auto-existente. Um ateísta é alguém que acredita que o Deus teísta não existe, ao passo que um agnóstico é alguém que ponderou na ideia teísta de Deus mas que não acredita na existência nem na inexistência do Deus teísta.

Acabamos de usar os termos teísta, ateísta e agnóstico num sentido restrito ou circunscrito. No sentido mais amplo, um teísta é alguém que acredita na existência de um ser ou seres divinos, mesmo que a sua ideia do divino seja bastante diferente da ideia de Deus que temos vindo a descrever. De igual modo, no sentido mais amplo do termo, um ateu é alguém que rejeita a crença em toda a forma de divindade, não apenas no Deus dos teólogos tradicionais. Para evitar a confusão, é importante ter em mente tanto o sentido circunscrito destes termos como o mais amplo. No sentido mais circunscrito, o teólogo protestante Tillich é um ateísta, pois rejeitou a crença naquilo a que chamamos “Deus teísta”. Mas no sentido mais amplo é um teísta, dado que acredita numa realidade divina, embora diferente do Deus teísta. Na maior parte deste livro usarei os termos teísmo, ateísmo, e agnosticismo no sentido mais circunscrito. Assim, quando ponderarmos na questão dos fundamentos do teísmo, a nossa preocupação será saber se a existência do Deus teísta (o Deus dos teólogos tradicionais) tem uma base racional. E quando perguntarmos, por exemplo, se os factos acerca do mal no mundo sustentam a verdade do ateísmo, estaremos a perguntar se a existência do mal nos dá uma base racional para concluir que o Deus teísta não existe.

Tendo clarificado a ideia do Deus teísta, podemos agora considerar algumas destas questões mais amplas. E começaremos com a questão de saber se se pode ou não justificar racionalmente a crença na sua existência.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Entre o Histórico e o Mitológico


De um modo geral, o cristão leigo conhece muito pouco sobre a história dos primeiros tempos do cristianismo e das origens dos textos e dogmas cristãos. O seu conhecimento se limita àquilo que o clero oficial da igreja e as cúpulas de liderança das muitas seitas atestam como verdadeiro. De tal modo, é nebulosa a história desses primeiros tempos, envolta nas muitas disputas teológicas que, remontá-la em detalhes é uma tarefa quase impossível. Contudo, as informações e os dados históricos aqui apresentados estão acessíveis a qualquer pesquisador. Encontram-se em diversos documentos e livros de pesquisadores imparciais e mesmo de teólogos cristãos. Não obstante tenham sido estabelecidas polêmicas sobre os diversos fatos históricos que deram origem aos dogmas, nenhum dos defensores das posições da Igreja Romana jamais negaram esses mesmos fatos. E é a partir deste ponto pacífico que iniciamos esta análise tentando lançar luz sobre os fundamentos dos dogmas aceitos pela cristandade e permitir ao leitor a reflexão sobre a validade dos mesmos.

Capítulo 1 - Da Origem dos Textos Canônicos

É crença aceita pela cristandade a origem divina (por inspiração ou revelação) de todos os livros que compõem o atual cânon bíblico (69 livros para os católicos, 66 para os protestantes). A compilação definitiva da bíblia tal como hoje a conhecemos foi realizada no século IV após o concílio de Cartago (397 d.c.), após diversas alterações no decorrer de 3 séculos. Livros que nas primeiras compilações não constavam, foram incluídos e livros como o Evangelho de Tomás foram por fim retirados, inclusive alguns livros antes aceitos pelo clero como de origem divina, foram depois perseguidos e incluídos no Index de obras proibidas. É conveniente que façamos algumas considerações:

1. Existindo centenas de textos e havendo pois, uma seleção dos textos feita por homens (clérigos), adotou-se certos critérios para realizá-la, logo não seria necessário apenas a origem divina dos textos, mas também a inspiração divina por parte dos selecionadores, de outro modo como poderiam definir o que era e o que não era de origem autenticamente divina?

2. Aceita a hipótese de inspiração divina dos compiladores, surge uma outra questão: Porque a seqüência de mudanças, a inclusão e a exclusão constante de textos por 3 séculos? Que espécie de “inspiração divina” poderia gerar tanta indecisão e equívoco? Acrescente-se a isso que os presbíteros desse período deixaram uma série de cartas e livros onde demonstram freqüente discordância entre si sobre quais seriam os livros inspirados e os que não o eram. Alguns bispos como Marcion foram excomungados e martirizados por aceitar livros não aceitos pela Igreja, e rejeitar obras já contidas no Cânon. Reportemos a história para buscar respostas para essas e outras questões:
O período em que a compilação bíblica se realizou sucedeu a oficialização da Igreja pelo Estado Romano. Longe de uma unidade, desde os primeiros tempos as comunidades cristãs se dividiram em diversas posições teológicas conflitantes. A igreja liderada por Paulo era mais uma, que com o decorrer do tempo conseguiu suplantar as demais, graças a aliança com o império.
Iniciou-se um período de cruel perseguição aos bispos e igrejas que se opunham às inovações que se firmavam com essa aliança. Para o império Romano o cristianismo na medida que se expandia surgia como um fator de unidade, e por isso mesmo a oficialização da Igreja de Roma poderia suprimir os conflitos e as revoltas populares que se verificavam especialmente no norte da África. Muito embora a Igreja Romana reivindicasse para si o título de Igreja de Cristo, legatária do apostolado de Pedro e de Paulo, várias outras igrejas também tinham sido originadas de apóstolos de Jesus e de seus discípulos contemporâneos. A igreja de Paulo não foi, portanto, a primeira, e jamais foi unanimidade entre os primeiros cristãos.

O primeiro século assistiu a duras disputas entre diversas igrejas que discordavam sobre diversas questões sobre Jesus, sua natureza, sua doutrina, os acontecimentos de sua vida, etc. A maior oposição a Paulo até o ano 70 d.c. foi a igreja formada por judeus cristianizados (que haviam aceito a Jesus) reunida em torno de sua família; Simão Cleofas, primo de Jesus, a liderou e esta igreja foi majoritária até a intervenção militar de Roma em Jerusalém no ano 70.

A razão maior das disputas se originou do fato de não haver nenhum texto do período imediato dos acontecimentos (ou que fosse reconhecido por todos como tal). Todos se baseavam apenas em relatos orais que na maioria das vezes demonstravam pontos discordantes (ainda que concordassem em linhas gerais).

Os quatro evangelhos canônicos só começaram a ser escritos por volta do ano 60 e só foram definitivamente reconhecidos e incluídos no cânon no ano de 170. Mesmo a crença difundida que tenham sido escritos pelo próprio punho ou na presença das pessoas a quem são atribuídos não é aceita nem pelos estudiosos cristãos. É mais plausível que seguidores dos apóstolos tenham recolhido relatos de episódios e dizeres e tenham mais tarde redigido os textos, seja como for, isto só foi realizado muito tempo depois dos acontecimentos.

As epístolas de Paulo (que surgiram antes dos 4 evangelhos) discorrem sobre algumas das divergências correntes na época, as quais se acentuaram nos séculos seguintes, até que a Igreja Romana se apossasse dos textos discordantes e os destruísse (calcula-se cerca de 300 livros proscritos). Ainda assim, alguns desses textos apócrifos chegaram até nossos dias, como o polêmico Evangelho de Barnabé que apresenta os fatos e a doutrina de Jesus de modo diverso do apresentado nos evangelhos aceitos no cânon oficial.

De fato, entre os primeiros presbíteros, Clemente e Policarpo citam em seus escritos dizeres de Jesus numa forma diferente daquelas encontradas nos 4 evangelhos. Em suas epístolas, Policarpo censura com veemência “os homens que distorcem os dizeres de Jesus em prol de sua própria cupidez” o que denota que as contradições nas tradições orais haviam se tornado comuns.

Hoje, após cuidadosas pesquisas históricas levadas a cabo por pesquisadores imparciais e alguns de confissão cristã concluiu-se que grande parte (cerca de 60%) dos dizeres atribuídos a Jesus nos evangelhos canônicos não podem ser considerados como “palavra textual” do Messias e alguns desses dizeres foram considerados como inserções flagrantes. Do mesmo modo, esses evangelhos não são considerados do ponto de vista histórico como documentos confiáveis. Com freqüência encontram-se referências a um livro anterior a estes evangelhos. Alguns estudiosos lançam a hipótese que tenha existido um evangelho denominado “Q” o qual teria servido de base para a composição dos 3 evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas).

Clemente de Alexandria, no final do século II, reconhecia como autênticos uma epístola de Barnabé e um Apocalipse de Pedro, infelizmente estes textos estão entre os proscritos e destruídos pela Igreja. À medida que a Igreja de Roma se fortalecia politicamente, os seus líderes foram moldando o seu parecer teológico e com isso selecionando o que atestava suas crenças e destruindo e perseguindo o que as contradizia.

Capítulo 2 – Os 4 Evangelhos, um Exame Objetivo e Revelador

Como já dissemos, estes 4 evangelhos surgiram a partir do ano 60 d.c.. Ao que parece, haviam escritos esparsos que foram tomados por base. Entretanto, já as primeiras cópias foram redigidas em grego; o que por si só se constitui num motivo de objeção: se houvesse qualquer documento redigido por algum apóstolo, somente poderia estar escrito em hebraico. Porém, nenhuma cópia destes textos escrita em hebraico existe no mundo e mesmo a igreja jamais reivindicou a posse de tal documento.

Os mais antigos manuscritos ou fragmentos existentes estão escritos em grego. Isto demonstra inclusive, que estes manuscritos são do período em que o império romano já havia se dividido, por volta de 100 ou 200 anos depois de Jesus (no tempo de Jesus, a língua oficial do império era o latim não o grego).

O códex Sinaiticus que se encontra no museu britânico, um dos primeiros e mais completos desses manuscritos gregos, data do século II. A mais antiga cópia dos 4 evangelhos em poder do Vaticano está em pergaminho escrito em grego datado do século IV e mesmo a fidelidade desta cópia é sempre posta em dúvida por teólogos da própria igreja.

O Evangelho de Mateus

Sobre este texto consta a seguinte observação incluída na introdução à 42º edição bíblica do Padre Matos Soares: “O texto original não chegou até nós pois perdeu-se talvez nas agitações e destruições da guerra de 70 d.c., porém desde os primeiros anos seguintes, fez-se a redação ou melhor a versão grega do texto sem contudo podermos saber qual o autor...”

Se um padre, um tradutor oficial, afirma que a igreja não sabe quem foi o autor, como afirmar que o texto seja de Mateus? Esta versão grega surgiu em Antioquia, o autor (desconhecido) provavelmente fez uso do documento Q e do Urmarcus (já perdidos). Decerto que se Mateus escreveu algo o fez em hebraico, e não há como provar a fidelidade desta versão em grego.

O Evangelho de Marcos

Marcos não foi discípulo de Jesus, ele era criança quando este estava a pregar aos judeus. Primo de Barnabé, é provável que Marcos tenha tomado por base os relatos deste e de Pedro para compor seu texto muito depois dos acontecimentos.

O documento denominado Urmarcus data de meados de 65 d.c. e é aceitável que o texto atribuído a Marcos tenha sido composto a partir deste. Todavia as cópias mais antigas contém 15 capítulos e não 16 como nas bíblias atuais. A inserção de um capítulo nunca foi muito bem explicada pelos teólogos de Roma.

O Evangelho de Lucas

Lucas jamais conheceu a Jesus, ele era médico e amigo de Paulo. O texto foi escrito em algum lugar da Grécia em torno de 80 d.c.. Em vista das relações pessoais de Lucas com Paulo o texto reflete um alinhamento com o ponto de vista de seu mentor, sua composição tomou por base pelo menos 3 documentos perdidos. Trata-se de uma apologia dirigida aos gentios, o que é evidente pela linguagem simples utilizada.

O Evangelho de João

O mais polêmico dos evangelhos canônicos, é em essência e forma diferente dos evangelhos sinóticos anteriores.

C.J. Caudoux escreve: “Os discursos neste evangelho são tão diferentes dos demais e tão parecidos aos comentários do próprio autor, que nenhum deles pode igualmente ser confiável como registro do que Jesus teria dito...”

Porém, a maior dúvida e razão para debate entre estudiosos imparciais e mesmo teólogos da Igreja é sobre a autoria do texto. É de forma unânime aceito que tenha sido escrito entre 110 e 115 d.c. em Éfeso e aí surge a objeção. Nenhum estudioso sério considera-o como obra de João, discípulo de Jesus, filho de Zebedeu, pois este, segundo as pesquisas históricas de diversas fontes foi martirizado por decapitação em 44 d.c. pelo Rei Agripa I, muito antes deste evangelho ser escrito por um outro João, um presbítero.

A Igreja reconhece a existência deste presbítero homônimo ao apóstolo, mas insiste que o citado evangelho tenha sido de autoria de João, filho de Zebedeu, embora mesmo alguns teólogos cristãos contestem tal autoria. O que poderia explicar a disparidade de linguagem e de conceitos presente neste evangelho em relação aos demais talvez seria o fato de ter sido escrito muito mais tarde.

A influência da filosofia grega é evidente nele, especialmente na abordagem da natureza de Jesus (divinizando-o) o que não é afirmado em nenhum dos outros evangelhos. De fato, alguns conceitos teológicos afirmados nesse evangelho, são inimagináveis para o mundo judaico em que Jesus viveu, flagrantes adaptações da filosofia grega (como o conceito da pré-existência de Jesus).

Estes 4 evangelhos foram compostos depois que os primeiros cristãos se dividiram em diferentes correntes de doutrina, afirmar categoricamente que seus autores tenham sido os mesmos a quem são atribuídos só é possível no caso de Lucas e com alguma probabilidade no de Marcos.

Surge outra questão: a quem e por que foram escritos?

A igreja de Roma que entitulou-os de “testamentos” pretendeu com isso identificar estes textos como uma mensagem católica (universal). Entretanto, seja quem tenham sido os autores, pareciam ter diferente propósito, principalmente porque é sabido que os primeiros cristãos acreditavam na proximidade eminente do fim dos tempos o que explica o fato que o texto atribuído a Mateus e o atribuído a Marcos possuírem uma linguagem mais próxima dos judeus enquanto os demais focam seu discurso nos gentios. De modo que, podemos aceitar que foram redigidos segundo as necessidades do momento e refletiam o caráter de coletânea de passagens e dizeres.

De maneira nenhuma podemos aceitar a hipótese de que os autores tenham escrito com o intuito de legar uma mensagem aos povos e gerações futuras quando, é plenamente sabido que os cristãos do primeiro século tinham a convicção que “o fim estava próximo” e o identificavam com a “iminente queda do império romano”.

Tampouco seus autores pretendiam “redigir a palavra textual de Deus”, mas sim relatar acontecimentos e ensinamentos recolhidos da tradição oral, relatos que corroboravam certas posições teológicas de uma ou outra facção, sob o ponto de vista humano dos autores.

O reverendo T.J. Tucker comenta sobre os manuscritos e textos deste período: “Não existia escrúpulo em alterar ou fazer acréscimos ou em omitir aquilo que não servisse aos propósitos de quem escrevia”. Se um teólogo cristão assim declara, não há nenhuma evidência racional para que se diga que os 4 Evangelhos são a palavra pura, inspirada e verídica sobre Jesus e os acontecimentos de sua vida.

Acrescente-se a isso, o fato de que como estes textos não eram reconhecidos como sagrados até o segundo século, os copistas não teriam o porquê de não alterá-los segundo os propósitos do momento. Existem consideráveis divergências entre os manuscritos mais antigos ainda existentes (CODEX SINAITICUS, CODEX VATICANUS E CODEX ALEXANDRINUS), remanescentes de uma infinidade de versões copiadas em grego, versões que devido à imprecisão levariam a Igreja a convocar concílios para resolver a questão.

As Epístolas, As Igrejas

Não obstante não haja nenhuma objeção quanto à autoria destas epístolas, o que se coloca como uma dúvida é até que ponto podemos considerá-las como escrituras inspiradas.

Ao analisarmos o teor delas percebemos uma profunda ruptura com a herança religiosa dos profetas, seu pertinaz afastamento, ou melhor, a apresentação da figura de Jesus e de sua missão não como o próprio Jesus se deu a conhecer, mas sim, segundo a interpretação pessoal de Paulo, o qual se auto-anuncia como portador da “Inspiração divina”. Contudo, muitos dos pontos da doutrina apresentada nela não encontram similaridade nos evangelhos e nem nas palavras de Jesus.

Um outro ponto a se chamar a atenção é que embora o autor exponha com veemência suas afirmações e reivindique inspiração divina no que escreve, em algumas passagens ele “sugere” ensinamentos. Ora, nas escrituras divinamente reveladas em que Deus fala aos profetas, diretamente ou por meio de seu Anjo, não há “sugestões”, mas sim “ordens”, porque Deus não acha, Deus tem certeza. Quando Paulo expõe, por exemplo, sua opinião sobre o casamento e o celibato deixando clara sua opção pessoal pelo segundo ele está honestamente dando o seu parecer, o parecer de um homem não uma ordem ou inspiração divina.

Na verdade, é preciso compreender que a razão dessas epístolas era aconselhar as igrejas, detalhar princípios de organização e expor os argumentos do autor a favor de sua doutrina. Essas epístolas só foram consideradas inspiradas pelos seguidores de Paulo e mais tarde pelas igrejas que seguiram esta diretriz doutrinária.

O Velho Testamento

A compilação da Igreja engloba o Pentateuco, os Salmos, alguns dos livros aceitos como divinos pelos judeus e alguns que não eram reconhecidos por eles. É pertinente dizer que os originais dos livros mais antigos da lei foram perdidos e reescritos por Ezra. De maneira similar ao que ocorreu aos evangelhos canônicos, os mais antigos documentos se perderam inteiramente. Os pesquisadores aceitam que os textos hoje existentes foram compostos com base em cópias antigas cuja fidelidade não pode ser comprovada.

A existência de pelo menos 4 versões e a constante prática dos rabinos de incluir ou omitir palavras no texto (prática denunciada por Jesus) não nos permite afirmar que não tenha havido nenhuma intromissão humana nos textos. Um exemplo dessa impossibilidade pode ser verificado em um desses textos adotados como fonte para as cópias: O chamado “pentateuco samaritano” apresenta 6000 variantes no texto, 2000 delas são variantes do sentido do texto.

Ao tratar-se das possíveis adulterações, pelo menos duas são flagrantes: com a intenção de afirmar a crença da exclusividade da herança abraâmica ao povo judeu a versão de Gênesis carrega a contradição que embora afirme que Ismael foi o primogênito de Abraão mais a frente afirma que Abraão tinha um único filho, Isaac. Pretendiam os copistas com isso negar aos descendentes de Ismael qualquer direito à promessa feita a Abraão. O texto omite o fato de que o sacrifício pedido a Abraão aconteceu antes do nascimento de Isaac, portanto a criança levada para o sacrifício foi Ismael (o próprio texto afirma que quando a primeira aliança foi estabelecida e a ordem da circuncisão foi dada, o único filho de Abrão era Ismael, o qual foi circuncidado).

Uma segunda adulteração foi a infâmia lançada sobre o profeta Lot, em que os autores acusam-no de ter deitado com suas próprias filhas (depois de ser salvo da destruição de Sodoma). Um sério pesquisador e teólogo católico explicou que esta caluniosa acusação aconteceu em razão de que dois dos povos inimigos de Israel descenderam dessas filhas de Lot, de maneira que os judeus para ridiculariza-los propagaram esta mentira sobre Lot (o qual foi um profeta e um justo e se assim não fosse não teria sido salvo de Sodoma).

De fato, pretende-se aos livros do chamado antigo testamento uma posição de “escritura divina” e no entanto, as próprias origens e a história de sucessivas perdas e assimilações operadas na trajetória do povo judeu, demonstram que há pouquíssima chance para que esses textos representem realmente algo que tenha sido legado aos profetas de Israel.

Estudiosos sérios e imparciais do mundo inteiro têm apontado para a intervenção flagrante dos copistas de diversas épocas presente nesses textos. É sintomática a posição da igreja de Roma, que pouco a pouco, diminui sua ênfase em relação ao compêndio do velho testamento, considerando-o mais de valor histórico, para a compreensão do cristianismo, do que palavra textual de Deus.

De fato, a posição de “escrituras inspiradas”, encontra muita dificuldade para se sustentar quando as muitas contradições presentes são conhecidas. Tais como a citação no Livro do Êxodo que, por quarenta anos os judeus praticaram sacrifícios no deserto, enquanto segundo o Livro de Amós e o de Jeremias, não se praticou sacrifício algum.

Mesmo como documentos históricos, os livros reunidos no velho testamento pouco podem ser considerados. Sua imprecisão referente a datas e acontecimentos não auxiliam os pesquisadores há determinar com exatidão a veracidade de muitos dos fatos ali relatados.

As Escrituras atuais são as Escrituras Antigas?

Mesmo antes de abordarmos o problema das traduções, surge a falaciosa crença que tenta confundir duas realidades históricas bastante diferentes. Os prosélitos cristãos, católicos ou protestantes, com freqüência apóiam seus argumentos num sofisma que apresenta as atuais traduções bíblicas como sendo as mesmas escrituras as quais Jesus e os apóstolos se referiam, ludibriando assim as pessoas desinformadas ou pouco atentas. Ora, como já vimos, a compilação final do atual cânone bíblico foi realizada no século IV, portanto qualquer tentativa de ligar as palavras de Jesus, dos apóstolos ou dos profetas antigos a estes textos atuais como “escrituras sagradas” é uma fraude.

Quando se diz que Paulo pregava examinando as escrituras (Atos: 13:10,11) ou que Jesus tenha dito: “Está escrito” (Mateus4:4,7) Lucas ( 24:27) deve-se entender que se referiam à “Torá Hebraica” e não a uma “Bíblia” que só surgiria séculos depois deles. Ou seja, Jesus não poderia atestar como escritura divina ou inspirada textos que nem sequer ainda existiam. Quando, pois, Jesus afirmava “este evangelho” não poderia estar se referindo senão a “Boa Nova”, jamais a estes textos que chegaram a nós.

Assim, de modo capcioso os prosélitos cristãos usam tais afirmações de Jesus e de Paulo para creditar a todos os livros da Bíblia moderna a posição de “escritura divina”.

Capítulo 3 – A Delicada Questão das Traduções e das Cópias

A complexidade dos idiomas utilizados nos textos constituiu um problema decisivo para a perpetuação da fidelidade dos mesmos. Consideremos que a tradução de um idioma de um tronco lingüístico para outro de um tronco lingüístico diverso é uma missão dificílima, mesmo para alguém que domine a ambos, na verdade uma tradução neste caso é sempre uma adaptação.

Os primeiros copistas da Igreja possuíam as versões gregas dos livros atribuídos aos apóstolos e diversos manuscritos em hebraico e aramaico dos livros dos judeus. Não se pode precisar em que grau havia concordância entre as cópias do século II (praticamente nada dessa época permaneceu).

Com a adoção no século V do latim como língua canônica da igreja, São Jerônimo recebeu a missão de transladar o cânon oficial. Surgiu então a Vulgata Latina, a qual a igreja pretendia manter como fonte para as futuras traduções. Contudo, tanto as cópias anteriores em grego, inclusive a Septuagint (composta por uma equipe de 72 sábios judeus trabalhando em períodos diferentes) e a própria Vulgata com o passar do tempo suscitaram cópias divergentes. Inúmeras versões se popularizaram nos séculos seguintes o que gerou profundas divergências no seio da Igreja, esta se viu obrigada a convocar sucessivos concílios para reavaliar a Vulgata para que o senso de unidade fosse mantido.

O presente texto padronizado como é aceito pela Igreja foi elaborado pelo Papa Clemente VIII (1592-1605). Considere-se ainda que as cópias aceitas pelas igrejas orientais como a compilação siríaca do século IV diferiam sobremaneira das demais e a influência do tempo, dos idiomas diversos e das interpretações teológicas produziram mais e mais discrepâncias.

Desde que não podem ser apresentados textos originais, nem sequer cópias destes no idioma original, toda e qualquer discordância nas cópias que as igrejas mais antigas detém se assemelha a uma situação a de uma propriedade da qual inúmeras pessoas apresentem escrituras de posse sem que nenhuma delas seja autêntica. O conjunto dos dados aqui apresentados obriga-nos a uma refutação racional à crença popularizada do “status de Escritura Divina” da bíblia de nosso tempo. Em conseqüência disso, muitos dos dogmas e interpretações teológicas dos sacerdotes cristãos e protestantes são igualmente duvidosos.

Do mesmo modo que um matemático ou um físico não chega a uma conclusão correta a partir de uma equação que contenha erros ou dados imprecisos, um teólogo cristão não pode concluir a partir do que é duvidoso ou impreciso. O capcioso argumento da fé utilizado pelos teólogos, nesta questão não é de modo nenhum aceitável. Se alguém tenha ardorosa fé que o sol gire ao redor da terra e mesmo que se prove a ele que isso seja um disparate e então persista tenazmente agarrado a esta crença, tal atitude não será mais fé, será mera teimosia ou soberba. Não nos parece admissível num diálogo sério ouvir de um prosélito cristão: “A palavra de Deus diz...” A pergunta seria: “Onde, quando e como se pode assegurar a veracidade desta afirmação?”

Capítulo 4 - Cristianismo Primitivo versus Cristianismo Ocidental

O cristianismo de nossos dias é o resultado de inúmeras assimilações culturais operadas desde o segundo século. O fator desencadeante deste processo de transformação teve lugar um pouco antes disso. A conversão de Paulo de certa forma marcou o nascimento deste “novo cristianismo” que se moldou ao pensamento grego, rompendo com a tradição semita, porque esta nova visão da mensagem cristã é antes de tudo a doutrina de Paulo e não a dos apóstolos que conheceram e conviveram com Jesus.

Paulo era judeu de origem, tornou-se cidadão romano e foi educado como tal o que significa que sua compreensão do mundo e da vida correspondia ao pensamento helenista. Convertido ao Cristianismo se destacou por sua brilhante inteligência e espírito de liderança, não há dúvida que se dedicou de corpo e alma na defesa de sua fé e em breve tempo sob sua liderança a igreja cresceu em número e em senso de organização.

Possivelmente sua ênfase em direcionar a pregação aos gentios levou-o a formular a doutrina com uma linguagem e conceituação própria da filosofia grega o que se chocava com a prática e crença existente antes dele. A medida que suas idéias se desenvolviam, a doutrina se afastava de tudo o que a ligava ao judaísmo, o que a tornava mais atraente e aceitável aos gentios. Havia em sua abordagem um pragmatismo estranho à mensagem dos profetas e do próprio Jesus. Crenças como a da divindade de Jesus e a da expiação dos pecados pelo sangue surgiram (ou passaram a ser destacadas) a partir de sua pregação, crenças que só existiam no paganismo grego.

Paulo atribuía a si próprio como suporte inquestionável de autoridade espiritual a “inspiração divina”, apresentava as circunstâncias de sua conversão (uma visão de Jesus) como suficiente atributo a sua condição de intérprete da palavra revelada. Toda a temática das epístolas gira em torno dessa autoridade espiritual, que buscava colocar todo opositor ou discordante na condição de desviado da verdade.

Podemos dizer que através desse discurso em que se colocava como porta-voz exclusivo da verdade, Paulo ousou fazer algo que jamais qualquer apóstolo de Jesus fez. Estes se mantiveram ligados ao que testemunharam e ouviram de Jesus, o que lhes parecia suficiente. Os cristãos de hoje atribuem a Paulo essa autoridade de inspiração divina ainda que nada saibam acerca das demais igrejas primitivas que não aceitavam sua doutrina.

O afastamento de Barnabé após a viagem de evangelização que fizeram juntos é citado na Bíblia, cita-se também de modo superficial uma discordância entre Paulo e alguns discípulos sobre o alimento impuro e a circuncisão. Apresentam-se os argumentos de Paulo, porém não os argumentos dos que discordavam.

Na verdade a discordância era muito maior: Paulo pregava ensinamentos que os discípulos que haviam vivido com Jesus jamais haviam ouvido de sua boca. Também nunca tinham ouvido Jesus abolir a proibição da carne impura ou pregar contra a circuncisão, ademais nunca o viram comer carne impura e era sabido que tinha sido circuncidado segundo a Lei.

Em adição a isso, o Evangelho de Barnabé inicia-se com um alerta dizendo que “Paulo e outros haviam se desviado e deturpavam a verdadeira mensagem de Jesus”. Nos séculos seguintes, a Igreja de Roma trataria de destruir textos e cartas que de algum modo discordassem com a pregação e a doutrina paulina. Nos dias de hoje diversos estudiosos imparciais tem afirmado que “o Cristianismo de Paulo não é o Cristianismo de Jesus”.

Jesus afirmou que “a salvação consistia em guardar os mandamentos da lei”. Ou seja, seu ensinamento corroborava a verdade revelada anterior a ele. A fé e a obediência aos preceitos divinos. Paulo por sua vez afirma que “a salvação é crer no sacrifício da cruz para que o sangue livre dos pecados”. Há nessa afirmação um sentido claro de ruptura com o ensinamento dos profetas. Paulo desenvolveu sua doutrina sobre este fundamento, e trouxe ao cristianismo uma nova visão repleta de conceitos filosóficos que mais tarde permitiram a outros teorizar a Trindade e revestir o cristianismo com um caráter ocidental e diversos formalismos e rituais de origem pagã. Não por acaso, Paulo é considerado por muitos pesquisadores e historiadores como “o fundador do Cristianismo moderno”, tal o caráter pessoal de sua doutrina.

A tradição paulina (não a de Jesus) legou também um novo entendimento da autoridade religiosa. A partir de Paulo, o pregador, o sacerdote ou o “pastor” se revestiu de uma autoridade sobre a comunidade (a igreja) até então desconhecida entre os primeiros cristãos. Aquilo que no princípio respondia a uma necessidade prática de organização comunitária, resultou com o passar do tempo numa instituição do “poder sobre os fiéis”. Este aspecto autoritário e frequentemente tirânico e intolerante tem marcado a história da Igreja, não apenas de Roma, mas também, do protestantismo em suas várias denominações.

O Dilema das Interpretações

Outro fator que intensifica a babel reinante na cristandade é a ausência de uma clareza teológica sobre o significado real dos conceitos e passagens bíblicas. Cada organização religiosa, cada teólogo ou líder religioso tece a sua interpretação utilizando a metodologia que lhe pareça mais conveniente, o que gera mais divisões e seitas.

Como os textos são antes de tudo, narrativas atreladas a um contexto histórico muito particular, não pareceu aos autores ser necessário adicionar notas explicativas para as gerações futuras (cabe lembrar a crença comum dos primeiros cristãos da proximidade do fim dos tempos). Na realidade, a própria forma em que os fatos e dizeres são apresentados nos 4 evangelhos permite interpretações das mais variadas. Isto se deve por que os autores não imaginavam escrever algo que se destinaria a épocas e povos diversos (não familiarizados com as tradições e a cultura judaica).

Por exemplo, na questão da Lei Mosaica: era inconcebível para qualquer judeu contemporâneo de Jesus que alguém compreendesse nas palavras do Messias o abandono da Lei, apenas os carentes de discernimento que se seguiram depreenderam da mensagem de Jesus alguma inovação das palavras eternas do Deus todo-poderoso.

Entre os primeiros presbíteros sempre houve diferentes interpretações dos textos aceitos, quando o Poder Papal se estabeleceu a excomunhão passou a ser empregada contra os que divergiam com a diretriz teológica oficial.

O protestantismo gerou uma nova situação, com a popularização dos textos as divergências se multiplicaram, movimentos como os anabatistas, o pentecostalismo e o adventismo surgiram desse processo de livre interpretação. Todas as facções surgidas reivindicavam a “autoridade espiritual através da profecia ou inspiração divina”.

Mas afinal, qual a probabilidade de que qualquer uma das muitas facções cristãs tem de representar a “verdade revelada” se tomam por base textos em que comprovadamente a palavra divina se confundiu com a palavra humana? E se a doutrina que pregam não é o Monoteísmo dos profetas (e do próprio Jesus)?

Imaginemos que a constituição de um país pudesse ser interpretada livremente por cada cidadão, o que aconteceria a esse país? Diante de tal libertinagem de interpretação a possibilidade de retornar a pureza original da mensagem em seu real contexto é praticamente nula. Seja se apoiando em supostos “dons divinos” ou em performances de forte apelo emocional, verdadeiros shows onde Jesus e a salvação ora são vendidos como um produto, ora a religiosidade é banalizada ao extremo.

Quanto à metodologia adotada especialmente nos meios evangélicos é o “uso do texto como pretexto”, ou seja, despreza-se o contexto e extrai-se o dizer ou versículo distorcendo-o segundo a vontade do intérprete. “O novo evangelismo americano” adotou esse método de pregação e mesmo setores católicos aderiram ao mesmo, que não passa de uma bizarra manipulação dos textos.

Capítulo 5 – Derrubando Mitos, Desmascarando Dogmas

Não é possível discernir e definir tudo o que no decorrer dos séculos foi introduzido na mensagem cristã, nem tudo o que foi banido, oculto ou distorcido. Nem o mais ingênuo crítico teria dúvidas que a julgar pelos rumos que a Igreja adotou ao estabelecer a aliança com o poder Romano, que o clero não teria escrúpulos para produzir sua própria versão do cristianismo, que atendesse a seus objetivos de poder espiritual e temporal.

Neste período (meados do séc. IV) a conturbação teológica nos meios cristãos era imensa e ameaçadora. A igreja enfrentava cisões e discórdias e isto representava perigo a ordem social, o que desagradava a Roma. Os bispos se dividiam entre duas posições opostas: os unitaristas (que acreditavam na Unicidade de Deus) e os trinitários (defensores da crença da Trindade).

O Dogma da Trindade, crença cristã ou de origem pagã?

Para responder a esta pergunta cabe reportarmos os primeiros tempos (primeiro e segundo século).

Entre os primeiros cristãos esta crença era absolutamente desconhecida (o que nos leva a crer que nas primeiras cópias dos textos e em vários outros livros não havia citações sobre isso).

Os primeiros presbíteros acreditavam no subordinacionismo: Somente Deus era o criador e senhor do universo e Jesus seria seu subordinado, dissociado de sua divindade.

Embora majoritária nos primeiros anos, esta crença viria a ser contestada por uma tendência que baseada na filosofia grega acreditava na natureza divina de Jesus e em sua condição de “pessoa na divindade”. Esta crença trinitária (que é um empréstimo do paganismo grego) se fortaleceu a partir do final do segundo século. Sua origem é inegavelmente não-cristã, e assumiu variantes entre algumas seitas da época (malkenitas, jacobitas, nestorianos, etc), que polemizavam com suas teorias sobre a natureza não-humana de Jesus ou uma suposta encarnação divina. Teorias que de modo flagrante se originavam das especulações filosóficas dos gregos e das crenças mitológicas do paganismo.

Contudo, em certas regiões do império a crença na Unicidade Divina permaneceu majoritária até o século V, diversos bispos condenavam a crença trinitária como uma heresia pagã e argumentavam que por milênios o Deus Vivo se deu a conhecer aos profetas como um Deus Uno, que não era homem e que não tinha filhos gerados, que ninguém compartilhava de sua natureza divina, pois do contrário seu poder não seria absoluto, mas sim relativo, e aduziam que “em nenhuma passagem dos Livros constava que Jesus tivesse citado a trindade” (o que demonstra que na época as passagens apontadas pelos trinitaristas como respaldo a sua crença não existiam nos evangelhos).

O historiador Arthur Weigall reitera que “Jesus nunca mencionou tal fenômeno e em parte alguma do Novo Testamento aparece a palavra “trindade”. As passagens comumente apresentadas como “provas” da trindade (Coríntios 1 12:4-6, 2 13:13 e 14, Mateus 28:12 apenas citam Deus, o Espírito Santo e Jesus juntos, mas não afirmam que constituam uma divindade trina. Outra referência se encontra em algumas traduções antigas em João (5:7). Peritos reconhecem porém que estas palavras não se encontravam nas cópias mais antigas, foram pois adicionadas muito mais tarde. Algumas traduções modernas omitem a parte espúria desse versículo.

A respeito da muito citada passagem de João 10:30, o próprio Calvino, um trinitarista, comenta que “os antigos usaram mal esta passagem para provar que Cristo é da mesma essência que o Pai, pois Cristo não argumenta a respeito da unidade em essência, mas sim a respeito da concordância dele com o Pai”. De fato, os defensores da doutrina da Trindade usam e abusam da livre interpretação para inferir do texto bíblico o que o texto não diz.

O bispo Arius (250-336) liderou a refutação à crença na trindade, a cúpula da Igreja o excomungou e o recebeu de volta várias vezes devido sua forte influência sobre o povo. As insurreições se sucederam entre os unitaristas e os trinitários até que o Imperador Constantino se viu forçado a convocar um concílio em Nicéia para resolver a controvérsia.

Os partidários da Trindade (todos próximos a corte) liderados por Atanásio negociaram concessões com o império e conseguiram se impor sobre os unitaristas. Seguiu-se um horrível massacre de cristãos que não aceitavam a crença na trindade. Tornou-se também um crime sujeito à pena capital a posse de algum livro não autorizado pela igreja (nesta ocasião destruiu-se cerca de 270 livros e evangelhos).

Em 346, o imperador persuadido pela princesa Constantina que professava a fé cristã como seguidora de Arius, ordenou sua volta. Arius foi aclamado ao visitar a catedral de Constantinopla e repentinamente apareceu morto. A igreja chamou a isto de “milagre” porém, o Imperador descobriu que Arius tinha sido assassinado, então, baniu Atanásio e outros dois bispos. O imperador formalmente aceitou o cristianismo e foi batizado por um bispo ariano.

Assim, o monoteísmo de Arius tornou-se a doutrina oficial da Igreja. Constatino morreu em 337, seu sucessor também aceitou o unitarismo. Em 341 o unitarismo foi plenamente aceito como a correta interpretação dos evangelhos, o que foi confirmado em Sirmium em 351. São Jerônimo escreveu em 359 que “o mundo cristão regozijava-se de encontrar-se Ariano”. Porém, as maquinações dos partidários da trindade em concílios posteriores suscitaram por fim a revisão do conceito monoteísta.

Em 385 Nestorius, bispo de Constantinopla e enérgico defensor do unitarismo foi martirizado. Apenas o Papa Honório daí por diante, ousou refutar a trindade. Em suas encíclicas ele reafirmou a crença na Unicidade de Deus com consistentes argumentos teológicos.

Em 680, 42 anos depois de sua morte ele foi anatematizado, evento único na história do papado. Finalmente a crença da trindade tornou-se dogma em todo ocidente. Seus defensores, diante da impossibilidade de explicá-lo, frequentemente recorrem ao sofisma de justificar a trindade por meio de um “mistério da fé”, o qual não pode ser compreendido racionalmente.

Verdadeira Natureza do Espírito Santo

Traduções confusas e as interpolações humanas produziram errôneas concepções que com o passar do tempo, foram usadas para corroborarem a doutrina da trindade.

A tradição judaica possuía uma clara compreensão que Deus se manifestava por intermédio de seus anjos e a expressão “anjo do Senhor” surge em diversas passagens dos textos do velho testamento, esses anjos eventualmente manifestavam a força divina de sinais, revelação e inspiração.

O nome do arcanjo Gabriel em hebraico Jabr - El (força de Deus) por si explica essa realidade espiritual, para os judeus não havia sentido em se crer que esta força se constituísse em algo distinto de Deus como uma personalidade ou divindade, ou seja, era o que parecia ser: a força manifesta de Deus, espírito no sentido de sopro (em hebraico, Ru'ahh - fôlego, verbo, espírito / em grego Pneuma, com um sentido similar), pois na tradição judaica a palavra espírito não tem necessariamente a conotação de alma individual, por isso esta Manifestação tinha o caráter de dons espirituais conferidos aos profetas e em casos especiais (como no dos apóstolos) a seus seguidores.

Esse “espírito santo” respondia a uma necessidade específica ligada à mensagem divina, uma assistência de Deus para a salvaguarda da mensagem e dos seus profetas e apóstolos. Jamais foi uma assistência sem uma razão que a justificasse. Com o advento das especulações filosóficas que deram origem a crença na trindade, lançou-se a hipótese que esta “força manifesta de Deus” seria a terceira pessoa da tríade. Nada na tradição semítica é encontrado sobre isso, apenas no paganismo grego.

Um segundo equívoco na tradição teológica cristã referente ao “Espírito Santo” diz respeito ao “advento do espírito” anunciado por Jesus, segundo o Livro de João. Os teólogos cristãos, baseados num erro de tradução acreditam que a palavra grega Parakletos se refere ao Espírito Santo. Este “erro” é bastante estranho, nada poderia justificá-lo, segundo a lógica do idioma grego. A palavra se encontra no gênero masculino, e é utilizada com pronome masculino. Quando usada em grego a palavra pneuma (espírito) é um pronome neutro (não masculino). Logo, Parakletos se refere a uma “pessoa”, a um “homem” e não a um espírito. Assim, se Jesus se referia ao “espírito Santo” no texto constaria a palavra “pneuma” e não Parakletos. Evidentemente, os tradutores trinitaristas sempre buscaram ocultar esse fato. Como sabemos, Jesus jamais falou grego. Seu idioma era o aramaico.

A palavra grega parakletos (que pode ser traduzida como “o que será louvado” ou “o que traz o louvor”) constante no texto grego de João, deve ser a tradução literal da palavra aramaica “Ahmath”. Assim, a anunciação feita por Jesus se referia a um Profeta a ser enviado cujo nome (em aramaico) seria Ahmath.

A crença de que a anunciação de Jesus se referia ao advento de um novo Mensageiro de Deus, permaneceu por séculos em algumas comunidades cristãs primitivas do oriente. Quando o Profeta Mohammad (cujo nome é a tradução árabe da palavra Ahmath) surgiu, alguns monges e sábios conhecedores dos textos antigos reconheceram o cumprimento da profecia de Jesus e se converteram ao Islam, o que confirma a existência de comunidades cristãs que sabiam do sentido correto da anunciação.

A Correta distinção do Espírito Santo

Quando se diz que este Espírito apenas se manifestava com uma missão justificável é para que se faça correta distinção do fato de pentecostes das muitas supostas manifestações, reivindicadas por várias facções e seitas da cristandade.

A manifestação de pentecostes correspondeu uma necessidade imediata para que a mensagem fosse levada aos povos. Portanto, aqueles seguidores próximos de Jesus que haviam se comprometido a propagar a verdade, foram assistidos pelo espírito de modo a cumprirem sua missão. Porém, como sabemos a mentira sempre está a se confrontar com a verdade e em pouco tempo os dons divinos autênticos foram misturados com as inventivas de Satã.

Mesmo Paulo nas epístolas, deixa claro sua preocupação com a proliferação de “dons” que alimentavam a confusão espiritual e a divisão já existente. A glossolassia (dom de línguas) tornou-se um problema, pois já haviam tantos abusando desta crença que o próprio Paulo escreveu: “Se há o dom de línguas, que haja intérprete”.

Não há de fato nada que sustente a crença que os dons autênticos tenham permanecido após a morte dos apóstolos (que foram próximos de Jesus). Do contrário, a divisão não se instalaria e a doutrina original não seria substituída pelas inovações.

A partir do século III a igreja de Roma tomou a resolução de abolir inteiramente esta crença, pois não havia como “distinguir os espíritos” na prática, logo estas crenças foram condenadas como heréticas pois geravam mais dissensões teológicas.

Com a reforma, o pentecostalismo ressurgiu na Europa. A ânsia de retomar as origens tornou-o redivivo quase como uma negação da letra morta em que a igreja tinha reduzido seus ensinamentos.

Este delírio místico desde então tem concorrido para suscitar mais e mais seitas e novamente o “Espírito Santo” que tantos reivindicam só tem servido para aumentar as dissensões, jamais para unificar a cristandade.

Na verdade, certos princípios discernentes devem ser empregados se desejamos analisar com correção as muitas manifestações atribuídas ao Espírito Santo.

Consideremos que tais manifestações espirituais podem ser de 3 naturezas: De natureza humana, de Natureza demoníaca ou de natureza Divina.

O primeiro caso se refere ao fato de que a criatura humana é dotada de dons psíquicos que em determinadas circunstâncias se manifestam e produzem fenômenos que desafiam a razão. Tais fenômenos ocorrem em todas as épocas, culturas, povos e religiões. A própria fé pode representar esta força psíquica em potencial que pode explicar muitos dos fenômenos produzidos (como as curas que ocorrem em todas as religiões e seitas cristãs ou não). O estado de transe (que pode ser induzido ou auto-induzido) no qual uma pessoa eventualmente pode produzir fenômenos que podem ser compreendidos como extraordinários, é comum a todas as culturas e tradições religiosas.

O segundo caso (de natureza demoníaca) é quando estes dons psíquicos inerentes ao homem são postos conscientemente ou não a serviço de Satã. Ciências ocultas como a quiromancia, a necromancia, as várias modalidades de magia e as manifestações falsamente atribuídas ao Espírito Santo, são manifestações demoníacas para desviar o homem da Senda Divina. Não há sinal ou prodígio que Lúcifer e seus asseclas não consigam reproduzir, portanto, os que se baseiam em sinais e prodígios (e não consideram a coerência com a Verdade revelada aos Profetas) se tornam as principais vítimas dessa trama satânica.

O terceiro caso (natureza divina) é a manifestação da assistência divina no que se refere a Senda da Verdade, esta assistência se operava por sinais quando os Profetas e seus apóstolos se encontravam diante de perigos ou de desafios no cumprimento de sua missão.

Após a revelação concluída das escrituras sagradas (com o advento do Alcorão) e desde que a Verdade tenha se tornado conhecida e detalhada para toda humanidade e estar acessível a todo aquele que a busque, a assistência divina do Espírito se restringe “a orientação para a fé” e “a luz do discernimento espiritual” que é a graça divina que é concedida àqueles a quem o Altíssimo cobrir com sua misericórdia. E este discernimento espiritual capacita aos que se apeguem a fé monoteísta (adoração exclusiva a Deus) e a obediência a suas leis separar a verdade do erro e não serem ludibriados por Satã.

Na questão abordada o discernimento espiritual nos aponta certas diretrizes de grande importância para os que buscam a verdade e se firmam a ela:

1. A assistência divina do Espírito foi dada aos profetas do Altíssimo e (eventualmente) aos seus apóstolos que se mantinham firmes ao que foi revelado. Jamais esta assistência foi ou será dada aos que se afastam da palavra revelada e criam inovações, seitas, doutrinas estranhas ao Monoteísmo Original de Abraão, Moisés, Jesus, Mohammad e dos demais profetas, logo, os seguidores de crenças falsas como a Trindade, ou a salvação pelo sangue, e que seguem sacerdotes ou pastores ou que devotam adoração a qualquer criatura junto ao Deus Único não contam com assistência alguma senão de Satã que os ilude e os desvia mais ainda da Senda Divina.

2. Todas as manifestações do Espírito relatadas nas escrituras se referiam a salvaguarda da Mensagem Divina e dos que se apegavam a ela, assim o Espírito da Santidade não se relaciona com assuntos mundanos ou questões pessoais, toda e qualquer manifestação espiritual voltada para isso não pode ser de natureza divina.

3. A análise histórica e dos textos sagrados demonstra que a assistência do Espírito se caracterizava pela coesão e pela coerência da Mensagem divina. Ou seja, embora em épocas diferentes, a verdade revelada para Abraão foi a mesma verdade revelada para Moisés, para Jesus e Mohammad, de maneira que nenhum deles ou qualquer dos outros profetas de Deus jamais fundaram igrejas ou seitas. Havia uma única verdade e uma única religião (Islam - submissão a Deus) e o Espírito zelava pela unidade dessa mensagem.

Em contrapartida, ao analisarmos as diversas manifestações atribuídas ao “espírito santo” reivindicadas pelas igrejas e seitas chegaremos às seguintes conclusões: Estas manifestações em nada tem contribuído para unir ou manter qualquer senso de unidade, ao contrário promovem uma progressiva divisão e crescente profusão de doutrinas e interpretações contraditórias entre si. Tais manifestações são flagrantemente falsas, uma vez que reafirmam crenças que a própria história registra como criações humanas (se alguma fosse verdadeira conclamaria a senda original monoteísta revelada aos profetas, negaria a doutrina da trindade, por exemplo).

A Salvação: Fé e Conversão ou o Resgate pelo Sangue?

De todas as doutrinas estranhas à mensagem de Jesus, forjadas após sua missão, a crença do resgate pelo sangue é a mais declaradamente de origem pagã e sua inserção no cristianismo foi providencial: para sustentar e justificar uma das versões (hipóteses) surgidas entre os cristãos sobre a suposta morte de Jesus na cruz. Um dos fatos que os líderes religiosos ocultam dos seus seguidores é: a versão da morte de Jesus na cruz e sua posterior ressurreição não era unânime entre os cristãos primitivos. Ninguém dentre eles negava que a crucificação teria acontecido, a dúvida, porém, era: seria Jesus o homem que foi supliciado e suspenso na cruz?

A divergência estabeleceu-se de imediato, devido a dispersão em vários grupos por todo o país (e especialmente para a Síria), o temor da perseguição e a comoção que tomou todos os apóstolos e seguidores mais próximos (um grupo que chegou à cerca de setenta e dois), logo uma série de hipóteses surgiram.

A versão da crucificação de Jesus e sua ressurreição era sustentada por um grupo de testemunhas oculares. Porém uma dessas testemunhas oculares, Barnabé, registrou em seu evangelho que o próprio Jesus apareceu dias depois a alguns seguidores e declarou que não tinha sido crucificado (que outro homem havia sido supliciado em seu lugar). Barnabé ainda escreveu em seu evangelho que Jesus permaneceu 3 dias com eles e convocou os discípulos e seguidores que ainda haviam permanecido na cidade e declarou a estes que NÃO HAVIA MORRIDO e os alertou para que não se deixassem ludibriar por aqueles que pregariam sua morte na cruz e a sua ressurreição; pois muitos dos que tinham fugido para outras regiões já propagavam estas e outras hipóteses sobre os fatos. No terceiro dia Jesus foi arrebatado aos céus no monte das oliveiras à vista de um grande número de pessoas. Em outros escritos apócrifos encontram-se diferentes versões quanto à pessoa que tenha sido levada ao madeiro no lugar do Messias (A.S.).

Os seguidores dispersos continuaram a conjecturar sobre sua suposta morte na cruz nos anos seguintes. O pequeno grupo composto por Maria, Marta, Madalena e Barnabé, entre outros, passaram a tratar esta questão com sigilo, pois as autoridades romanas proibiram por um bom tempo qualquer debate público sobre Jesus. De fato, em muitos agrupamentos cristãos dos primeiros tempos a crença era de que Jesus não havia morrido na cruz, enquanto em outros grupos, acreditava-se na sua morte e ressurreição.

Ao se converter, Paulo também encontrou essa questão perturbadora a dividir os cristãos, muitos deles tentavam entender e racionalizar sobre os desígnios divinos: Se Jesus, o Messias tinha sido preso e morto como um criminoso apesar de inocente onde e como a justiça divina se conformava a isso? Qual a razão e o propósito de sua morte?

Paulo não se diferenciava dos demais nesta questão e mais uma vez recorreu ao pensamento grego para encontrar uma resposta a esse questionamento. Sendo um dos que acreditavam na morte na cruz e na ressurreição isso o obrigava a encontrar uma razão para o acontecimento.

O sacrifício de sangue inocente para aplacar a ira divina era crença e prática amplamente conhecida em todas as tradições pagãs; porém a razão que justificaria neste caso seria o objetivo maior da crença cristã: a salvação. Assim, Paulo organizou sua pregação aliando a visão gentílica à conclamação cristã da salvação “resolvendo” o perturbador questionamento que permanecia na mente dos cristãos que acreditavam na crucificação de Jesus.

Segundo Paulo e os que o seguiram, em razão do pecado haveria a necessidade do resgate, portanto, o sangue inocente do messias “pagaria” os pecados dos homens. Tomavam como argumento em apoio o sacrifício animal praticado pelos profetas e sacerdotes (embora a expiação não fosse a razão para esse preceito).

Para o mundo gentílico, esta doutrina era absolutamente lógica e correspondia às suas concepções de divindade onde Deus ou os deuses pensam e agem como os homens, segundo os padrões destes.

Nas mitologias pagãs existe esta mesma teorização, senão vejamos:

Um Deus de forma humana, que tem filho (gerado dele), envia-o ao mundo na forma humana (pois este é um Semideus ou um outro deus), e então exige em sacrifício o sangue e a vida de seu próprio filho para aplacar sua ira contra os homens.

Como vimos, a “salvação a preço de sangue” se enquadra perfeitamente ao pensamento gentílico, mas, e quanto a tradição profética (mensagem divina) que foi a única e verdadeira doutrina de Jesus? Se opõe sem dúvida a tudo o que os profetas e o próprio Jesus predicou.

1. O Deus vivo, Deus de Abraão, de Moisés, de Jesus e de todos os profetas enviados, o que confirma os ensinamentos e mensagens destes é absolutamente justo. Portanto não promoveria a injustiça exigindo o sangue de um inocente, uma de suas mui amadas criaturas, para redimir a culpa e o pecado de outros. Se o fizesse iria contra sua própria justiça, se colocaria na mesma condição dos falsos deuses e dos homens, o que é inconcebível.

2. O sacrifício animal praticado pelos profetas jamais foi o “preço do resgate”. O perdão divino não tem preço, é graça de Deus sobre o arrependido e o penitente. O sacrifício simbolizava a submissão, a devoção e o reconhecimento da glória de Deus, por exemplo: quando Abraão levou seu filho para o sacrifício não o fez para expiar pecados, mas para demonstrar sua submissão incondicional, seu amor a Deus sobre todas as coisas, e Deus aceitando o que havia em seu coração poupou seu filho (pois o Deus verdadeiro não aceita o sangue humano por sacrifício) e ordenou o sacrifício de um animal. Apenas quando os judeus se tornaram insubmissos e seus sacerdotes passaram a propagar que os pecados poderiam ser expiados por sacrifícios (sem um sincero arrependimento e o abandono do pecado) desviando a muitos da senda correta, é que Deus não mais aceitou seus sacrifícios.

3. Jesus pregou por três anos o arrependimento, a conversão e a penitência, reafirmou a Lei eterna e o apego aos mandamentos, princípios que formam o conjunto da FÉ. Se a salvação se originasse de algum sacrifício de sangue inocente todos esses princípios e toda sua pregação e missão seria vã e ele não precisaria ter chegado à idade madura, bastaria que Herodes conseguisse seu intento e o desígnio do resgate pelo sangue estaria consumado.

A Crença na Filiação Divina e na Natureza Divina de Jesus

Uma viciosa interpretação das passagens bíblicas desprovida de um conhecimento apurado da linguagem e do pensamento corrente da época gerou no segundo século o equívoco e a especulação de uma suposta filiação divina. Deus, não sendo criatura, mas sim, Criador, não sendo homem ou mulher, não teria um filho no sentido atribuído de reprodução ou geração.

A palavra do aramaico utilizada por Jesus, ABBA, tem em seu sentido literal a tradução de “Senhor” e não pai, mesmo se tivesse sido expressa Abbi poderia ser meu Senhor ou meu pai. A versão para o grego (e na ausência de textos em aramaico ou hebraico) possibilitou a assimilação do conceito Pai- filho tal como é comumente compreendido. A sensata interpretação é de que se essas palavras foram utilizadas estariam expressando um sentido figurado de amor entre Deus e seus servos diletos, pois nos textos aceitos encontramos a expressão filho de Deus utilizada para Jesus, Davi, Salomão e Adão; e o próprio Jesus dizendo “sois filhos de Deus”. (Em vista disso percebe-se a contradição na expressão bíblica de “filho unigênito (único) de Deus, ou seja, os textos se contradizem). Na crença da filiação divina de Jesus percebe-se claramente a nefasta influência do pensamento gentílico que atribuía filhos aos deuses.

A crença da natureza divina de Jesus como uma pessoa da trindade também surgiu dessa especulação filosófica de origem helênica que, pouco a pouco, se introduziu no pensamento cristão. O texto atribuído a João, que destoa sobremaneira dos demais evangelhos canônicos, é o texto que demonstra a forte influência dos conceitos filosóficos pagãos que buscavam interpretar a natureza e a vida de Jesus sob uma ótica absolutamente estranha àquela do mundo e da cultura semita. A divinização de Jesus seria na verdade impensável dentro do universo judaico em que os apóstolos e primeiros seguidores viveram, para esses primeiros cristãos a convicção de que Jesus teria sido um profeta, um homem como os outros, não obstante os milagres que Deus tenha operado por intermédio dele, era inquestionável.
Porém, a partir do segundo século, com a conversão em massa de gentios, a crença de que Jesus tivesse uma natureza divina, ou que fosse ele próprio “Deus” se tornava plausível, pelo menos entre o povo comum. Enquanto que, entre os primeiros presbíteros havia reticência quanto à aceitação de tais crenças. Como ocorreu com a crença da trindade, por pelo menos três séculos posições contraditórias se digladiaram até que o poder da igreja de Roma impôs a unificação por meio da força e da supressão dos seus opositores.

O texto tardio atribuído a João tem sido utilizado como base de argumentação por aqueles que professam a crença na “natureza divina” de Jesus. Como sabemos, o texto em questão surgiu por volta de 110 d.c., redigido provavelmente em grego, portanto, toda sua abordagem já se encontra dirigida pela tendência dominante de sua época: o pensamento gentílico. Logo, não é estranho que se proponha a propagar crenças que não se encontram nos evangelhos de Mateus, Lucas e Marcos.

A passagem de João 1:1 é comumente apresentada como “prova da natureza divina e da pré-existência de Jesus”. Contudo, o texto grego não parece afirmar nem uma coisa nem outra. A tradução mais comum dessa passagem: “No princípio era o verbo e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus”. (Trad. João F. Almeida) simplesmente propõe duas expressões contraditórias. Antes de tratarmos do que há de incorreto nesta tradução, segundo as regras do idioma grego, é interessante observarmos algumas das várias “traduções” bíblicas divergentes para esta passagem:
1. New Testament in an improved version (1808) “ ...e a palavra era um Deus”.

2. J.M.P. Smith and J. Goodspeed (1935) “...e a palavra era divina”.

3. Johannes Schneider (1978) “e de sorte semelhante a Deus era o Logus (Palavra)”.

Algumas outras versões bíblicas apresentam variações de tradução para esta passagem, sem que considerem certas regras elementares da gramática grega. O substantivo Theos (Deus) ocorre duas vezes. Na primeira se refere a Deus Todo-Poderoso com quem a palavra (logus) estava. Este primeiro Theos é precedido do artigo definido Ton (o), o qual denota uma identidade (a referência a Um Ser, ou seja, O Deus Criador). No segundo theos, porém, não existe artigo, isto é, a referência ao verbo divino (Criador) não se faz aqui, a nenhuma entidade (pessoa). O que se diz é que a palavra criadora era divina e não “o próprio Deus”.

Jesus aboliu alguma lei?

A interpretação dos teólogos cristãos sobre esta questão reflete a tendência comum da igreja de Paulo em reinterpretar os princípios e adaptá-los ao que entendiam como necessidade do momento. Esta facção de seguidores reunidas em torno de Paulo, decidiu pelo afastamento das tradições judaicas, entretanto, nenhuma correta distinção entre a Lei Divina e as tradições tinha sido feita por eles. Provavelmente a intolerância dos judeus para com os primeiros cristãos pesou na decisão tanto quanto a estratégia paulina de tornar a doutrina mais aceitável aos gentios.

Um grupo de teólogos recorrem a argumentos astutos para justificar essa atitude. Afirmam por exemplo, que ao dizer: “Eu cumpri a lei”, Jesus não estava dizendo que havia observado a lei (portanto não era um transgressor), mas estava dizendo: “Eu revoguei a lei ao cumpri-la, vocês estão livres dela”. Na verdade Jesus jamais se insurgiu contra a Lei, muito ao contrário, reafirmou-a como prova manifesta da fé, do temor e da obediência. Sua declaração que toda lei se resumia em “Amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a tí mesmo” consagrava a essência da lei a qual estava sendo negligenciada pelos judeus (pois eles não cumpriam a lei mas, fingiam fazê-lo). A declaração não era autorização para abandonar os outros princípios da lei (ele não estava dizendo para ninguém adulterar, roubar, desobedecer aos pais etc.). A defesa que fez da adúltera ressaltava o cumprimento da lei com sabedoria e não com hipocrisia e farisaísmo como havia se tornado comum entre os judeus.

Jesus jamais pregou ou praticou qualquer desobediência a lei mosaica, jamais deu autoridade a nenhum discípulo para que saísse pelo mundo a dizer: “vocês estão livres para consumir a carne impura, livres da circuncisão” ou coisas do tipo. O que Jesus fez foi uma perfeita distinção entre a Lei Divina e os muitos costumes inventados e inseridos nas escrituras antigas pelos sacerdotes e escribas, insurgiu-se contra todas essas invenções e denunciou-as ao povo convocando-o ao Monoteísmo Original, ao abandono da hipocrisia que anula a fé e conduz ao inferno. Não obstante, entre os exemplos práticos de Jesus e as inovações de Paulo, os cristãos modernos em sua maioria seguem o segundo, embora afirmem a fé nas palavras do primeiro.

A Lei que tenha sido proferida pelo Deus vivo não pode ser abolida por pregadores ou seguidores dos profetas, seja Pedro, Paulo ou qualquer outro. Não havendo nenhum texto original e autêntico em que conste que Jesus tenha declarado a abolição da lei anterior a ele (como pretendem os inovadores e teólogos) a ninguém mais é dada autoridade de duvidar da validade permanente da Lei.

Um Comentário Final

As várias questões aqui levantadas se relacionam a uma questão central que na realidade deve ser considerada de modo prioritário por qualquer pesquisador ou pessoa que se sinta comprometida com a busca da verdade: Em que se baseia a “autoridade” de todos os reformadores e intérpretes da mensagem de Jesus?

O argumento largamente usado primeiro por Paulo e seus seguidores mais próximos, foi a da assistência divina do Espírito Santo. Sobre este argumento respaldado pelos fatos extraordinários relatados em atos (por eles próprios) Paulo manteve seu embate teológico com as outras facções cristãs da época. Como os relatos desses outros grupos de cristãos primitivos foram destruídos pela Igreja talvez jamais saberemos se tais sinais e prodígios eram ou não exclusivos ou mesmo se alguém (que não os seguidores) havia testemunhado os mesmos. De um modo ou de outro o papado foi instituído sobre esta argumentação: os Papas seriam os vigários de Jesus na terra, herdeiros de Pedro e de Paulo e como estes (segundo a crença) infalíveis e santos.

A história da Igreja e suas muitas alterações teológicas é prova suficiente que a infalibilidade nunca existiu. As outras facções cristãs de nosso tempo também reivindicam a herança de Pedro e Paulo, porém não fogem da regra das inovações, divisões e sub-divisões que colocam em cheque qualquer credibilidade neste sentido. São estes homens herdeiros de Jesus ou de qualquer um de seus apóstolos como dizem? Afinal que verdade é esta que pregam que em tempos em tempos pode ser alterada segundo o entendimento de suas lideranças? Que conclusões teológicas são estas que se baseiam em comprovadas inserções humanas nos textos nos quais insistem em denominar de “palavra de Deus”?

Os sofistas cristãos se defendem com slogans e argumentos vazios como “Jesus é o mesmo ontem e hoje”. Sim, isto é verdade, porém a bíblia tal como a conhecemos não foi sempre a mesma. Se pudéssemos por lado a lado um judeu ou um muçulmano dos primeiros tempos do judaísmo ou do Islamismo com um judeu ou um muçulmano de nossos dias, veríamos que os dois creriam no mesmo e praticariam o mesmo judaísmo ou Islamismo. Se o fizéssemos com um cristão primitivo e um cristão da atualidade pensaríamos que os dois professariam duas religiões diferentes. Será que um cristão primitivo entenderia um show de Rock Gospel, ou a encenação dos pastores televisivos ou a performance dos padres da moda como pregação real? Um cristão primitivo aceitaria as muitas crenças e dogmas que jamais conheceu e que hoje são consagradas como pilares da fé cristã? De que modo reagiria diante da Glossolassia (Dom de línguas) tal como é distorcida em nossos dias pelas inúmeras seitas onde nem quem fala e nem quem ouve entende coisa alguma? Aceitaria a doutrina da prosperidade forjada pelos chamados pastores para legitimar o individualismo capitalista? Entenderia os rituais das missas, os confessionários e o culto aos santos como a mensagem de Jesus?

Igreja e Idade Média

Em meio à desorganização administrativa, econômica e social produzida pelas “invasões” ou migrações germânicas e ao esfacelamento do Império Romano, praticamente apenas a Grande Igreja, com sede em Roma, conseguiu manter-se como instituição. Vemos os Vândalos na África, os Visigodos na Hispania, os Francos na Gália, os Anglos e Saxões nas Ilhas Britânicas, os bárbaros(Germânicos) na Itália. Consolidando sua estrutura religiosa, a Igreja foi difundindo o cristianismo entre os povos “bárbaros”, enquanto preservava muitos elementos da cultura greco-romana. Valendo-se de sua crescente influência religiosa, a igreja passou a exercer importante papel em diversos setores da vida medieval, servindo como instrumento de unificação, diante da “fragmentação política” (processo de atomização do poder – poder local forte) da sociedade feudal.

OBSERVAÇÃO: O termo católico (adjetivo grego que significa “Universal”) é usado a partir do Concílio de Trento (1545 - 1563) para designar a Igreja Romana em oposição às Igrejas da Reforma. Antes, o termo utilizado era Cristandade.

Entendendo a periodização

A Idade Média (Medium Aevum ou Middle Age) É o termo usado para o período situado entre a Antiguidade e a Idade Moderna. Conceito estipulado no período do Renascimento Cultural (século XVI) voltado somente para a região da Europa Ocidental, ou seja, não há Idade Média na África, Japão, China... Cada um desses locais possuem denominações próprias para esse período.

Tem como marco inicial o ano de 476 d.C (com o fim do Império Romano no Ocidente – tomada de Roma, pelo imperador germânico Odoacro) e tem seu término no ano de 1453 d.C (com o fim do Império Romano no Oriente - Tomada de Constantinopla pelos Turcos Otomanos). Suas características, entretanto, nunca foram às mesmas no tempo ou no espaço, pois não havia unidade nesse período. É preciso dizer o contexto específico.

O período está dividido em: Alta Idade Média (séc. VI - X), Idade Média Central (séc. XI - XIII) e Baixa Idade Média (séc. XIV e XV). Há até hoje um forte preconceito sobre este período, tomado como “Idade das Trevas”, “Escuridão”, de “Pestes e Guerras”, não havia “cidades, nem comércio”, dentre outros adjetivos. Contudo, deve ser levado em consideração que num período de mil anos, não houve apenas pestes, guerras... Temos que ter um olhar consciente: Nesse período houve a criação das Universidades, da letra minúscula, do parlamento, Hospitais, Tribunal com Júri, aperfeiçoamento da Matemática, geografia, escrita...

Entendendo o Surgimento da Cristandade

Entende-se Cristandade por um sistema de relações da Igreja e do Estado (ou qualquer outra forma de poder político) numa determinada sociedade e cultura. Ela perdura até praticamente a Revolução Francesa (1789), com várias modalidades dentro desse processo através dos séculos. Na história do cristianismo, o sistema iniciou-se por ocasião da Pax Ecclesiae em 313 (paz concedida pelo imperador Constantino à Grande Igreja), com o Edito de Milão (ele põe fim às perseguições) e deu origem à primeira modalidade de Cristandade dita “constantiniana”; a qual se apresenta como um sistema único de poder e legitimação da Igreja e do Império tardo-romano.

As características gerais desta modalidade “constantiniana” são, entre outras, o cristianismo apresentar-se como uma religião de Estado, obrigatória, portanto para todos os súditos; a relação particular da Igreja e do Estado dar-se num regime de união; a religião cristã tender a manifestar-se como uma religião de unanimidade, multifuncional e polivalente; o código religioso cristão, considerado como o único oficial, ser, todavia diferentemente apropriado pelos vários grupos sociais, pelos letrados e iletrados, pelo clero e leigos. A figura do “Monograma de Cristo”, da época de Constantino. É formado por duas letras entrelaçadas, as letras gregas "chi" (X) e "rô" (P). Essas letras são as iniciais de "Christós", em grego: CRISTOS.

Os Padres da Igreja

Os tempos de ouro da Patrística foram os séculos IV e V, embora possa se entender que se estenda até o século VII a chamada "idade dos Padres". Os principais Pais do Oriente foram: Eusébio de Cesaréia, Santo Atanásio, Basílio de Cesaréia, Gregório de Nisa, Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo e São Cirilo de Alexandria. Os principais Padres do Ocidente são: Santo Agostinho, autor das "Confissões", obra prima da literatura universal e Santo Ambrósio; Eusébio Jerônimo, dálmata, conhecido como São Jerônimo que traduziu a Bíblia diretamente do hebraico, aramaico e grego para o latim. Esta versão é a célebre Vulgata, cuja autenticidade foi declara pelo Concílio de Trento. Outros pais que se destacaram foram São Leão Magno e Gregório Magno, este um romano com vistas para a Idade Média, as suas obras "os Morais e os Diálogos" serão lidas pelos intelectuais da Idade Média, e o canto "gregoriano" permanece vivo até os dias de hoje. Santo Isidoro de Sevilha, falecido em 636, é considerado o último dos grandes padres ocidentais.

A Cristandade Medieval

A Cristandade medieval ocidental é, em certa medida, a continuadora da Cristandade antiga, a do “Império Cristão” dos séculos IV e V. No contexto medieval, acentuaram-se muito mais a situação de unanimidade e conformismo, obtida por um consenso social homogeneizador e normatizador, consenso este favorecido pela constituição progressiva de uma vasta rede paroquial e clerical. As instituições todas tendiam, pois, a apresentar um caráter sacral e oficialmente cristão. Sabemos que nela predominou, em geral, a tutela do clero. Não, todavia durante os séculos IX e X, quando a tutela dos leigos sobre as instituições eclesiais a levou à sua feudalização, o que provocou a partir do século XI, o grito dos reformadores, sobretudo eclesiásticos: libertas Ecclesiae. Ocorreu então a reforma “gregoriana”, no século XI, que operou a síntese de uma reforma na e da Igreja, de uma reforma “na cabeça e nos membros”.

Alguns Fatos Históricos Importantes ocorridos no Período da Idade Média

A Distinção Gelasiana (494)

O Bispo de Roma, o Papa Gelásio I (492-496) efetuou a distinção entre o poder temporal dos imperadores e o espiritual dos papas, considerando superior o poder destes últimos. Envia um documento ao imperador do Oriente (Anastácio). Definiu a teoria dos dois poderes: o poder temporal (poder do imperador) e o poder espiritual (poder dos bispos). Os bispos, de acordo com essa teoria, seriam superiores ao poder temporal. Estabelecido ainda que a figura do papa não poderia ser julgada por ninguém. Dizia que o papel do Pontífice era antes ouvir do que julgar.

As Heresias

Define-se como negação ou dúvida pertinaz de uma verdade que se deve crer com fé divina e católica, por quem recebeu o batismo. Ao longo da história da Igreja vemos: O Gnosticismo (séc. II); Maniqueísmo (séc. III); Arianismo (séc. IV); Pelagianismo (séc. V); Iconoclastas (séc. VIII); Cátara e valdense (séc. XII-XIII); Protestantismo e Anglicanismo (séc. XVI); Jansenismo (séc. XVII); Modernismo (séc. XIX). O relativismo doutrinal e moral são tidos como a grande heresia atual. O rigor da Igreja no combate às heresias e cismas variou ao longo dos tempos, com períodos de grande repressão, sobretudo quando tais desvios eram cominados com penas graves pelo poder político.

Os Mosteiros

Vemos com São Bento de Nursia (529), uma retomada e revigoramento dos mosteiros. Os ermitões (Ermo – significa desertos) atuavam sozinhos e passam a se organizar em pequenos grupos. São Bento traça uma regra, dando uma forma a vida monástica, a qual passa a ser copiada em outros mosteiros. O dia do monge é dividido em 7 momentos de oração, mais o trabalho manual (penitência), produz seu alimento. “Ora et Labora”. Não é necessário buscar mosteiros distantes, mas se santificar com aqueles que convive. Deu forma ao monasticismo medieval. Ao longo da Idade Média vemos que os mosteiros preservam as escrituras sagradas, tornam-se refúgio, guardam as obras de arte e cultura...

Fragmentação do Império Romano no Ocidente

Com as migrações germânicas e a queda do Império Romano no ocidente (476) os bispos começam a buscar a unificação. Apelam para a elite romana “Romanitas”, que passam a defender os valores cristãos. Os reis bárbaros vão se convertendo ao longo dos anos. Vemos a ação do papa Gregório I, o Magno (590-604) assinala que “todo o poder foi dado ao alto aos meus senhores para ajudar os homens a fazer o bem”. Assim os bispos e o Imperador e os reis têm a função de ajudar o bem e punir o mal. Primeiro papa monge, intitulava-se Servidor dos Servidores de Deus. Aproveitou-se da falência imperial na Itália para assumir o poder temporal. Desligou-se da influência bizantina e aproximou-se dos germânicos. Visigodos, suábios e lombardos se converteram. Agostinho foi à Inglaterra e converteu os anglo-saxões. Os escritos de Gregório Magno instruíram o clero e fortaleceram a religiosidade dos fiéis. Sua Regra Pastoral serviu de manual para os padres em toda a Idade Média.

As Cruzadas

Atendendo ao apelo do papa Urbano II, em 1095, foram organizadas na Europa expedições militares conhecidas como cruzadas (esses missionários assim se chamavam pela cruz de pano que levavam na veste), cujo objetivo oficial era conquistar os lugares sagrados do cristianismo (Jerusalém, por exemplo) que estavam em poder dos muçulmanos e turcos. Entretanto, além da questão religiosa, outras causas motivaram as cruzadas: a mentalidade guerreira da nobreza feudal, canalizada pela Igreja contra inimigos externos do cristianismo (os muçulmanos); e o interesse econômico de dominar importantes cidades comerciais do Oriente. Os cristãos eram estimulados pelas indulgências que lhes prometiam o perdão dos pecados e a posse do céu. De 1095 a 1270, a cristandade européia organizou oito cruzadas, tendo como bandeira promover guerra santa contra os infiéis. Era a guerra santa, justa, pois eles estavam difamando o santo sepulcro, a terra santa. Foram, ao todo, oito grandes incursões. Vemos a Cruzada Popular ou dos Mendigos (1096), Primeira Cruzada (1096-1099), Segunda Cruzada (1147-1149), Terceira Cruzada (1189-1192), Quarta Cruzada (1202-1204), Cruzada Albigense, Quinta Cruzada (1217-1221), Sexta Cruzada (1228-1229), Sétima Cruzada (1248-1250), em março de 1270, o rei Luís IX, São Luís, decide organizar uma nova cruzada - Oitava Cruzada (1270), a qual fracassa e ele morre em combate.

Querela das Investiduras

A Questão das Investiduras refere-se ao problema de a quem caberia o direito de nomear sacerdotes para os cargos eclesiásticos, ao papa ou ao imperador. No século X, o imperador Oto I, do Sacro Império Romano Germânico, iniciou um processo de intervenção política nos assuntos da Igreja a fim de fortalecer seus poderes. Fundou bispados e abadias; nomeou seus titulares (abades leigos) e, em troca da proteção que concedia ao Estado da Igreja, passou a exercer total controle sobre as ações do papa. Durante esse período, a Igreja foi contaminada por um clima crescente de corrupção, afastando-se de sua missão religiosa e, com isso, perdendo sua autoridade espiritual. As investiduras (nomeações) feitas pelo imperador só visavam os interesses locais. Os bispos e os padres nomeados colocavam o compromisso assumindo com o soberano acima da fidelidade ao papa. No século XI surgiu um movimento reformista, visando recuperar a autoridade moral da Igreja, liderado pela Ordem Religiosa de do mosteiro de Cluny (França). Esses ideais foram ganhando força dentro da Igreja, culminando com a eleição, em 1073, do papa Gregório VII, antigo monge daquela ordem reformista.

A Reforma Gregoriana (Século XI)

Os papas escolhidos passam a ser de origem germânica (monges), logo os papas romanos saem de cena, pois os primeiros não teriam parte com a política local. Com isso as reformas têm inicio com esses papas de origem monástica, com amplas mudanças de cima para baixo, hierarquizada, uma reforma das instituições. Hildebrando, reformador ligado ao movimento de Cluny, tinha acesso ao papa e, sob sua influência, Nicolau II criou em 1059 o Colégio dos Cardeais, com finalidade de eleger o papa, limitado o cesaropapismo. Primeiro, há uma reforma do clero, contra os abusos existentes, das instituições (reforma da Igreja). Também havia a necessidade da mudança dos corações, dos pensamentos (reforma na Igreja). A reforma viria do papado, passaria pelos bispos, presbíteros e monges até chegar aos leigos. Esse espírito de reforma foi lento e progressivo, aos poucos, vemos os abusos sendo retirados. Em 1073, Hildebrando foi eleito papa, com o nome de Gregório VII. Instituiu totalmente o celibato dos sacerdotes, em 1074, e proibiu que o imperador investisse sacerdotes em cargos eclesiásticos, em 1075. O Imperador alemão Henrique IV reagiu dando o papa como deposto. Desenvolveu-se, então, um conflito aberto entre o poder temporal do imperador e o poder espiritual do papa. O papa considerou o imperador igualmente deposto, excomungando-o, e proibindo os vassalos de lhe prestar serviço, sob pena de excomunhão. Há uma interdição (sem batismos, sem eucaristia, sem extrema unção). Henrique foi ao Castelo de Canossa em 1077 e pediu perdão ao papa, que o concedeu. Esse conflito foi resolvido somente em 1122, pela Concordata de Worms, assinada pelo papa Calixto III e pelo imperador Henrique V. Adotou-se uma solução de meio termo: caberia ao papa a investidura espiritual dos bispos (representada pelo báculo), isto é, antes de assumir a posse da terra de um bispado, o bispo deveria jurar fidelidade ao imperador.

Hospitalários (Ordem dos)

O ideal cavalheiresco da Idade Média levou à criação de várias instituições de apoio aos doentes internados, ordem leiga de caráter assistencialista (1113), hospital para os peregrinos que vinham feridos e cansados.

Os Templários

Ordem fundada em França (1119) para lutar contra os infiéis. O nome veio-lhes da casa que tiveram em Jerusalém sobre as ruínas de uma mesquita (cavaleiros da Ordem doTemplo). Fazem votos dados pelo patriarca de Jerusalém. Em 1129, vê-se a implantação militar. Prestaram notáveis serviços na Terra Santa e no Sul da Europa, chegando a ter 5 províncias e 4000 membros. É oficializada em 1199. As benesses recebidas de reis e papas deram-lhes grande poder financeiro, o que levou Filipe o Belo, rei de França, a acusá-los, com a conivência da Inquisição, de crimes graves, obrigando o Papa (Clemente V) a suprimi-los. Muitos foram mortos. Os seus bens, em França, foram confiscados pelo rei; em Portugal, passaram para a Ordem de Cristo, fundada por D. Dinis.

O Cisma do Ocidente (1378-1417)

Resultante da coexistência de papas e antipapas foi fruto de rivalidades dentro e fora da Igreja. Não há um “cisma” de fato, pois o que se dividiu é a obediência a dois papas e não à obediência eclesial.

Após a morte do papa Gregório XI, há um conclave com 16 cardeais e depois de muitas dificuldades elegem um italiano, Urbano VI. Ele era intransigente, rude, indelicado e os cardeais assinalam que querem rever a decisão e pedem a sua renúncia. Ele rejeita. Grande parte dos cardeais vão para Nápoles e realizam novo Conclave, elegendo Clemente VII. A Igreja passa a ter “dois papas”. Eles ficam em Avinhão (França). A obediência fica dividida, ambos governando. Estados que apoiavam Urbano VI (Escandinávia, Flandres, Inglaterra, o Imperador e a maioria dos príncipes) usam a força para destituir Clemente VII (apoiado pelos parentes do rei da França Carlos V, Escócia, Castela), como uma cruzada. Essa seria a “Via Facti”. Os reis, os prelados, os párocos, as ordens religiosas tomam partido e ajudam nessa adesão de obediências. Em 1394, morre Clemente VII e é eleito Bento XIII. Também morre Urbano VI e é eleito Gregório XII. Continuam dois papas a governar. Em 1409, os dois grupos buscam uma via conciliar para resolver a situação, com o Concílio de Pisa, destituem os dois papas e elegem Alexandre V (com a maior parte das Ordens Religiosas decididas a fazer uma inteira reforma na Igreja). Os dois papas não aceitam e a igreja passa a ser governada por 3 papas. Alexandre V morre e é eleito João XXIII (nome depois cancelado e renascido somente no século XX - e já no ano seguinte tomou posse da catedra romana). Apenas em 1417, vemos uma solução: João XXIII se demite, Gregório XII abdica e Bento XIII é deposto e se isola na Catalunha, sem apoio. Martinho V (1417-1431) é eleito e traz a unicidade novamente. Retorna para Roma. Em 1439, ainda teríamos o antipapa Félix V, contudo, não avança tal fato.

A Inquisição

Tribunal eclesiástico para averiguar e julgar os acusados de heresia. A sua instituição jurídica data de 1232 (Inquisição Medieval); pelo papa Gregório IX, para disciplinar as freqüentes práticas persecutórias da parte do povo e dos príncipes, muitas vezes sob a forma de linchamentos. A desmoralização pública era a maior pena para os hereges condenados pelos inquisidores (bispos).

No séc. XI apareceu uma heresia fanática e revolucionária, como não houvera até então: o Catarismo (do grego katharós, puro) ou o movimento dos Albigenses (de Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco principal). Em geral, a Inquisição quando condenava um herege entregava-o ao braço secular, para lhe aplicar o castigo previsto nas respectivas leis e costumes, incluindo a morte na fogueira. A Igreja aplicava a condenação espiritual, “no outro mundo”. O seu funcionamento dependia muito dos inquisidores, que eram normalmente dominicanos, alguns deles elevados às honras dos altares (como S. Pedro de Verona, morto às mãos dos Cátaros). Devem reconhecer-se, além da crueza própria dos costumes de então, verdadeiros abusos e injustiças (como a condenação dos Templários e de Sta. Joana de Arc). Ficou também célebre a condenação (sem execução) de Galileu.

Nos séculos. XV e XVI, a Inquisição foi reorganizada para enfrentar a heresia protestante, em geral, a pedido dos príncipes católicos. Em Espanha foi autorizada em 1478, em moldes que a fazia depender muito do poder civil. Em Portugal teve acuação moderada desde o séc. XIV, mas só se tornou particularmente rigorosa com D. Manuel I e D. João III, pelas medidas discriminatórias contra judeus e cristãos-novos.

A Inquisição é inconcebível para a atual mentalidade, mas a sua correta apreciação deve ter em conta os tempos em que vigorou, em que a heresia era sentida como perigo grave para a unidade da Igreja e do Estado, e em que as penas aplicadas eram comuns no direito corrente dos povos. A Igreja aplicava as penas espirituais (na outra vida), tais como a excomunhão. Os condenados pela inquisição eram entregues às autoridades administrativas do Estado, que se encarregavam da execução das sentenças seculares. As penas aplicadas a cada caso iam desde a confiscação de bens até a morte em fogueiras.

A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento da inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da forma física e da pena de morte aos hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse energicamente; provocaram certos abusos motivados pela cobiça de vantagens políticas ou materiais.

OBS.: De resto, o poder espiritual e o temporal na Idade Média estavam, ao menos em tese, tão unidos entre si, que lhes parecia normal recorrer um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. Quanto a Inquisição Romana instituída no séc. XVI era herdeira das leis e da mentalidade da lnquisição medieval.

“Em nossos tempos, o Papa Bento XVI (Joseph Ratzinger) pede perdão repetidamente por falhas dos filhos da Igreja. É de notar que não mencionou "falhas da igreja", mas "falhas dos filhos da Igreja". Implicitamente retomou a distinção entre pessoa e pessoal da Igreja: pessoa seria a Igreja Esposa de Cristo, que o Senhor vivifica e à qual garante a fidelidade ao Evangelho; pessoal seriam os fiéis, que nem sempre obedece às normas da Santa Mãe Igreja. O pecado está na Igreja, mas não é da Igreja; é resquício da velha criatura dentro da novidade da criatura oriunda do Batismo e da inserção em Cristo.”