terça-feira, 5 de novembro de 2019
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
O Zohar: Compreensão e Importância dos Sonhos
Os sonhos vêm fascinando os homens ao longo da História. Tornaram-se símbolos de esperança de um futuro melhor, inspiraram místicos e poetas, cientistas e filósofos. E, desde as mais remotas épocas, o homem tem procurado entender as mensagens E significados desses fenômenos intrigantes, envoltos em mistério.
Os sonhos vêm fascinando os homens ao longo da História. Tornaram-se símbolos de esperança de um futuro melhor, inspiraram místicos e poetas, cientistas e filósofos. E, desde as mais remotas épocas, o homem tem procurado entender as mensagens E significados desses fenômenos intrigantes, envoltos em mistério.
O que tem variado, ao longo do tempo, é a importância que lhes é atribuída e a compreensão que se tem dos mesmos. No judaísmo, sempre tiveram um papel importante. Para os profetas da Torá, prediziam o futuro, trazendo advertências e mensagens Divinas. Para o Talmud, os sonhos são um meio de comunicação entre o Divino e os homens. O Zohar leva este conceito mais adiante, afirmando que num mundo onde não há mais profetas, a Sabedoria Divina pode vir a ser revelada através dos sonhos. Numa visão mais terrena, mais concreta, são vistos como a chave para uma auto-avaliação pessoal pois, ainda segundo o Livro do Esplendor - o Zohar, já citado, tem o potencial de nos auxiliar em nosso cotidiano.
Mas, alertam nossos sábios, nem todos os sonhos são mensagens e nem todas as mensagens são verdadeiras. Por isso, antes de adentrar neste mundo e na riqueza de suas interpretações, precisamos de muita cautela e uma certa desconfiança. A própria Torá nos exorta a ficar longe de quem usa os sonhos como presságios, bem como daqueles que afirmam ver a presença Divina em seus sonhos, usando tal argumento como "prova" para apregoar que D'us os teria investido de algum tipo de autoridade.
Na história
As culturas antigas os consideravam portadores de importantes mensagens. Diziam que seus ancestrais e deuses se comunicavam através dos sonhos. Mas, a partir da Era Moderna, do cientificismo, o homem ocidental abandonou a ideia de que os sonhos podiam ter algum significado e suas interpretações passaram a ser vistas como meras superstições. Quando Freud começou a pesquisar a literatura médica de sua época em busca de informações sobre os sonhos, descobriu que pouco havia sobre o tema. Em 1899, ao publicar "A interpretação dos sonhos", foi ridicularizado por seus pares e sua teoria de que continham significados foi considerada absurda, durante vários anos.
Hoje, a ciência moderna, principalmente a psicologia, vê os sonhos como poderosa ferramenta para aperfeiçoar o bem-estar emocional e físico do homem. Afinal, o sono e a produção da mente humana durante esse período desempenham um papel vital em nossa vida, pois passamos um terço da mesma dormindo e, durante o sono, sonhamos em um quarto desse tempo. A ciência caminhou bastante no conhecimento dos mecanismos do sono e seus ciclos. Sabemos que nele há duas fases: A primeira, chamada NREM - em português, Não-REM, de Non-Rapid Eye Movement, movimentos oculares não rápidos - que ocupa 75% do tempo que dormimos. Nesta fase, a pressão sanguínea e o batimento cardíaco decrescem e o cansaço físico é eliminado. A segunda, a fase REM, de movimentos rápidos dos olhos, ocupa os restantes 25%. Esta fase é a base de nossa recuperação psíquica e é nela que ocorrem os sonhos.
Após a ciência ter estabelecido que todo homem sonha, cientistas e psicólogos vêm tentando explicar a razão e o mecanismo que nos fazem sonhar. Várias são as teorias sobre o assunto. Umas afirmam que sonhar nos permite processar as experiências de nosso cotidiano; outras que os sonhos podem, de forma simbólica e em linguagem própria, revelar questões de nossa personalidade que precisam ser trabalhadas, além de apresentar soluções para os problemas do cotidiano e regular emoções internas. De forma simplista, os sonhos são "avisos" de que algo precisa ser feito. Outra linha de pensamento os vê como uma forma de acessar nosso inconsciente coletivo. Numa visão mais biológica, o sonhar permite ao sistema nervoso livrar-se de memórias "desnecessárias" e, ao fazê-lo, estimula a mente.
O judaísmo leva muito a sério este assunto, sendo surpreendente a quantidade de referências que há sobre o fenômeno, na Torá, no Talmud, noMidrash, assim como em obras filosóficas, códigos de leis judaicas e especialmente na Cabalá e na Chassidut. Nestas e em outras obras, os sábios discutem e tentam responder a perguntas do tipo "como e por quê sonhamos"; "como e quem pode interpretar um sonho"; "qual a importância que se deve atribuir aos sonhos", se é que se deve. E, finalmente, "o que fazer quando ficarmos perturbados por um sonho negativo".
O sono: viagem da alma
De acordo aos textos sagrados do judaísmo, o sono e os sonhos desempenham um papel importante em nossa vida. O primeiro contribui diretamente à saúde física e mental. Por isso, o ser humano não deve negar a si próprio um descanso adequado, pois é através deste que recuperamos energias e abrimos nossa mente a influências superiores. Além do mais, ensina a Cabalá, o sono tem um propósito espiritual, como também o têm outras atividades necessárias ao corpo, tais como comer e beber.
Quando dormimos, explica o Zohar, algo extraordinário nos acontece: a alma - que pode ser comparada a um periscópio que tudo vê, até mesmo o que os olhos não alcançam - liberta-se das limitações e vínculos que o corpo lhe impõe enquanto acordado e se eleva em direção à sua fonte espiritual. Lá se "recarrega" e, ao despertarmos, retorna para começar um novo dia. Apenas uma pequena parte de nossa alma fica ligada ao corpo enquanto dormimos.
O quanto a alma consegue se elevar e atingir esferas espirituais superiores depende das ações e conduta do homem, durante o dia. Quanto mais puro for o coração de uma pessoa e quanto mais honesta sua vida, mais altas serão as esferas com as quais sua alma conseguirá conectar-se. Enquanto está em sintonia com sua fonte - onde não há limitações de tempo e espaço impostas por nosso mundo material - a alma recebe avisos ou visões de eventos futuros. Mas, se a alma não atingir igual pureza e as ações do homem não tiverem igual retidão, sua alma fica retida em uma esfera mais baixa, onde forças impuras a impedem de se elevar. Estas próprias forças impuras podem revelar à alma certos assuntos mundanos e terrenos. Muitas das "revelações" são falsas, enquanto outras podem conter algum fundo de verdade. Há sábios que dizem que estas forças negativas são o nosso próprio ego.
Todos esses vislumbres são, em seguida, filtrados de volta para o corpo. E, após serem mentalmente "processados" e transformados em símbolos, tomam a forma de sonhos.
Tipo de sonhos
Segundo o Talmud, um sonho é uma forma menor de profecia (Berachot, 57b). Desta afirmação pode-se concluir que o mesmo pode conter predições ou advertências, mas há que se fazer a respeito importantes ressalvas. Todos os sonhos, alertam nossos Sábios, mesmo os que vêm das esferas mais elevadas, contêm alguma coisa inverossímil, algo que não é verdade. "Assim como é impossível encontrarem-se espigas de milho sem palha", ensina o Talmud, "assim também não existem sonhos sem aspectos vãos".
Há que se diferenciar, também os sonhos proféticos de outro tipo de sonhos. Mesmo em se tratando de sonhos decorrentes de alguma conexão da alma com esferas espirituais superiores, nem todos os sonhos são iguais. Raros são os sonhos proféticos que transmitem a Voz e a Vontade Divina. Maimônides, em cuja obra podemos encontrar vasta análise sobre sonhos proféticos, afirmava que muitos profetas "viram" suas profecias em sonho. Numa categoria inferior estão os sonhos que contêm visões. Apesar destes terem um significado básico positivo ou negativo, não têm, como os proféticos, um significado absoluto. Podem, portanto, ser influenciados de alguma forma pela interpretação que lhes é atribuída.
Como vimos anteriormente, nem todo sonho é de origem Divina. Alguns ocorrem quando a alma fica à mercê de forças espirituais negativas, das quais recebe, por assim dizer, "informações". Há uma outra categoria de sonhos, aqueles que são simples reflexos de nossa mente. Resultam de pensamentos e acontecimentos do cotidiano de cada um de nós. Nada mais são do que consequências naturais de nossa constituição psicológica e física, "incrementadas" pelo pode de nossa imaginação. Um acontecimento que deixe forte impressão, ou uma refeição pesada, podem ser responsáveis por um sonho perturbador. A maior parte de nossos sonhos é composta por uma mistura de imagens criadas pela mente com algum vislumbre vivenciado pela alma. Para os místicos, deve-se atentar mesmo para os sonhos que são reflexos de nossa mente, já que podem revelar emoções profundas e ocultas que devem ser confrontadas. Não é correto ignorá-los ou descartá-los como "irrelevantes".
Outra característica básica dos sonhos é seguirem uma lógica diferente da que elaboramos quando despertos, na qual podem coexistir opostos, paradoxos e contradições. Quando estamos acordados, somos seres racionais, realistas, ao passo que ao sonhar vivemos experiências totalmente diferentes, sem limitações temporais ou espaciais.
Sonhos proféticos na Torá
São de nossos patriarcas os primeiros sonhos proféticos relatados na Torá. O primeiro é de Abraão. Ao cair em sono profundo, ouviu D'us lhe prometer que seria pai de uma grande nação e lhe mostrar o futuro de sua descendência, assegurando-lhe que deles seria a Terra de Israel. O segundo pertence a Jacó. Enquanto dormia, viu uma escada que se erguia do solo e cujo topo chegava aos Céus, pela qual anjos subiam e desciam. No alto, estava o Eterno, que falou a Jacob (Gênese, 28: 12-13). Prometeu-lhe proteção e assegurou-lhe que a terra pertenceria à sua descendência. Através desse sonho extraordinário, D'us desvenda a Jacob não apenas o seu próprio destino, mas principalmente o futuro de seus descendentes.
O terceiro sonho profético relatado na Torá é de José, que sonhou com os feixes nos campos. Chamado por seus irmãos de "sonhador" e "mestre dos sonhos", José, que tanto em seus sonhos como em suas interpretações via a Mão de D'us, é sem dúvida o mais famoso interpretador de sonhos de toda a Torá. Estes têm um papel muito importante em sua vida e, consequentemente, na história do povo judeu. Se por causa de um sonho iniciaram-se suas atribulações, a solução do enigma contido em vários outros sonhos funcionou como um tapete voador em seu caminho rumo ao poder, no Egito. Outras figuras bíblicas receberam mensagens Divinas em seus sonhos, entre os quais o Rei David, o Rei Salomão e os profetas Samuel e Daniel. Outros ouviram a Voz de D'us através de sonhos e receberam mensagens que sustentaram o povo judeu particularmente no exílio. Ensina o Talmud, "Mesmo que esconda Meu rosto a Israel, comunicar-Me-ei com ele por meio de sonhos" (Talmud Chaguigá, 5b).
Interpretação de sonhos
Se os sonhos têm fascinado os homens através dos tempos, tentar desvendar suas mensagens constituíram um fascínio ainda maior. O tratado Berachot, do Talmud, que consagra muitas páginas à sua interpretação, afirma que "Um sonho não interpretado é como uma carta não aberta" (Talmud Berachot, 55a).
Mas quem estaria habilitado a interpretá-los? Houve sábios judeus que se dedicaram ao estudo dos sonhos e de suas interpretações. Os reis da antiga Israel contavam com assessores que possuíam o dom e o conhecimento para fazê-lo. Sabiam que os sonhos clarividentes só podiam ser interpretados por alguém com espírito elevado e em conexão com a Fonte Divina. Pois que é D´s, Ele Mesmo, em Sua Plenitude, quem provê a chave para se deslindar o segredo dos sonhos.
O Todo Poderoso, se comunica através de imagens e a solução do enigma de cada sonho nele mesmo é contida. Mas, se a maioria deles não são proféticos, como interpretá-los? O Talmud ensina que "o sonho segue o poder dos lábios" - ou seja, segue a interpretação que lhe for dada, contanto que esta seja consistente com seu conteúdo. Pois está escrito que "assim como nos foi interpretado, assim aconteceu". Sendo assim, temos que procurar sempre interpretar os sonhos para o bem.
Somente os sonhos proféticos, que transmitem a Voz e Mensagem Divina, têm significado absoluto. Isto quer dizer que não podem ser mudados por diferentes interpretações, como no caso dos sonhos dos patriarcas. Por outro lado, mesmo os que são definidos como "visões" e que contêm avisos e um significado básico, podem ser, de alguma forma, influenciados por diferentes interpretações. Os sonhos chamados de "falsos"ou "comuns" são sujeitos a distintas interpretações. Não podem ser entendidos como presságio definitivo sobre algum evento futuro, nem como significado único. Têm uma multiplicidade de significações plausíveis. Neste caso, lhe é atribuída uma explicação, e, enquanto o sonho não for interpretado, oculto permanecerá o seu significado.
O Talmud relata que na época do Segundo Templo havia em Jerusalém 24 pessoas com o dom de interpretar sonhos. Houve mesmo situações em que para um mesmo sonho foram dadas 24 interpretações diferentes, todas consistentes - e, o que mais impressiona - todas se realizaram (Berachot, 55b). Perguntamo-nos, por quê? Os sábios explicam que a maioria dos sonhos contêm vários significados possíveis, que são "acionados" por suas respectivas interpretações.
Mas, como é possível que a palavra tenha o poder de definir o significado de um sonho? Esta pergunta foi amplamente discutida. Segundo o Zohar e o Talmud, sua interpretação tem um papel decisivo em seu significado porque o sonho é uma "profecia menor" - ou, para sermos mais exatos, o sonho é o nível mais baixo da Revelação Divina. Sua mensagem resulta de uma mistura de "revelações" com os produtos de nossa imaginação. É sobre este último aspecto do sonho que o poder da palavra exerce influência determinante. A palavra, arma potente que pode ser usada pelo homem tanto para o bem como para o mal, tem o poder de influenciar o aspecto espiritual da realidade. No caso dos sonhos, a palavra os concretiza, dá-lhes forma e "direção". É como se fosse o primeiro passo para sua materialização.
Isto posto, não é difícil entender por que nossos sábios nos alertam sobre com quem devemos compartilhá-los. Não devemos fazê-lo com qualquer pessoa, pois, como vimos, sua importância depende não só da compreensão de quem os sonhou, como também da interpretação que outros lhe possam acrescentar. O Zohar nos exorta a revelar nossos sonhos apenas ao amigo mais próximo, a alguém que zele por nosso bem. Tamanha cautela decorre do medo de que o ouvinte perverta seu significado. Um sonho ruim pode transformar-se em bom, desde que seja interpretado para o bem - e vice-versa.
A preocupação com a inveja, o charlatanismo e o "comércio da espiritualidade" está presente nessas advertências. Ao ler as páginas do Talmud, podemos observar que a interpretação dos sonhos sempre foi "um bom negócio", como na história de Bar Hedia (Berachot, 56a). Especializado em interpretar sonhos, ele o fazia de uma forma bem peculiar: quanto melhor o pagamento, mais favorável a revelação do sonho...
Transformando Sonhos
Uma das perguntas mais frequentes é o que se deve fazer ao ter um sonho bom. E quando for ruim?
Ensina o Zohar que se o sonho é bom, devemos lembrá-lo para que se realize, pois "um sonho esquecido nunca se cumpre". Mas, nunca se cumprirá em sua totalidade, pois como Rav Chisda afirmava, "um sonho positivo não se destina a se realizar em toda a sua plenitude, assim como um negativo tampouco se cumprirá em sua totalidade (Berachot, 55a)".
E os sonhos ruins? Como vimos acima, há sonhos que nada significam, são simples fruto de nossa imaginação ou de algum mal-estar físico. Aliás, os sábios alertam que, se durante o dia tivermos sérias preocupações ou motivos para angústia, não devemos preocupar-nos com um eventual sonho negativo. Além do mais, até que seja interpretado, o sonho não é nem positivo nem negativo.
Relata o Talmud: quando Samuel tinha um sonho ruim, recitava o seguinte verso "Os sonhos contam-nos mentiras". E, com isso, desmistificava a noção de que tinham um significado. Por outro lado, quando se via diante de um sonho positivo, dizia: ... "Mas será que mentem os sonhos? Pois que está escrito que 'Em um sonho Eu falarei a ele...' - o que implícita que os sonhos podem conter mensagens verdadeiras". Há, também, inúmeros exemplos no Talmud do que dissemos acima, que um sonho negativo pode ser transformado em positivo pela interpretação que recebe, e vice-versa. Por exemplo, há uma passagem em que Bar Kapará disse ao Rebi: "Em sonhos, vi que minhas mãos haviam sido cortadas". E Rebi lhe respondeu que "isto significa que você não mais precisará do trabalho de suas mãos". Em outras palavras, ele ia prosperar e, no futuro, não precisaria executar trabalho manual para garantir seu sustento.
Mesmo os sonhos negativos têm, na literatura rabínica, o seu lado positivo. Podem levar-nos a uma auto-análise, a rever nossas ações. Consta, também, que a tristeza ou o sofrimento mental que sentimos no decorrer do sonho serve como forma de expiação de nossas falhas. Mas, se apesar de todas essas explicações - de certa forma "aliviadoras" - a pessoa continua impressionada com algum sonho, há várias formas de se despreocupar. Entre outras, a oração e a tzedaká, pois ambas têm o poder de afastar "decretos negativos". Há também uma oração descrita no Talmud para "remediar" os supostos maus desígnios contidos em um sonho. Durante a oração intitulada Hatavat Chalom - o "aperfeiçoamento do sonho" - aquele que teve um sonho ruim apresenta-se diante de três amigos que, por meio de fórmulas rabínicas e combinações dos Salmos, simbolicamente "revertem" o aspecto negativo do sonho, restaurando a confiança na pessoa angustiada.
As Sefirot e a Teoria das Cordas
O Rabi Moshe Chaim Luzzatto (1707-1746), um dos maiores Sábios e cabalistas na história judaica, escreveu que o mundo físico é um espelho do mundo espiritual. Cada fenômeno que existe em nosso mundo é um reflexo de uma realidade sobrenatural.
Como ensina o Midrash, D'us buscou na Torá e criou o mundo. Isto significa que a Torá é o plano-mestre de toda a criação e o mundo é o produto resultante. Fazendo-se uma analogia: se o mundo fosse um computador e as Ciências o estudo de seu funcionamento, a Torá - e particularmente a Cabalá - seria o manual que descreve sua conceituação e modelagem.
A Torá se inicia com o relato da Criação do Universo por D'us. Como tudo o que existe foi emanado de Um D'us, único e indivisível, deve existir uma unidade subjacente no cerne de toda a Criação. Por outro lado, como relata a própria Torá, D'us criou um mundo de enorme diversidade. E, com efeito, assim é o mundo - contém uma multiplicidade de seres, geralmente em vastas quantidades.
A Cabalá explica a Criação - a forma como a diversidade se originou da Unicidade Absoluta - através da doutrina das Sefirot. Estas são o modo mais básicos do poder criativo de D'us, que criou o universo emanando dez de Seus próprios atributos. Estes constituem a estrutura interna e externa do universo. É através das Sefirot que D'us interage com Sua criação e nada existe ou acontece no universo que não seja através das mesmas.
Por isso, por um lado deve haver unidade em toda a Criação, já que todas as Sefirot se originam de D'us, Fonte da unidade absoluta. Por outro, as Sefirot são dez, e não apenas uma, e sua combinação é o que responde por um mundo com tanta diversidade. Há uma boa razão para as Sefirot serem descritas como "os membros e funções do corpo humano". No corpo humano, todos os sentidos e funções biológicas são, a um só tempo, diferenciados e interdependentes. Coração e cérebro são órgãos diferentes, mas são interdependentes. De modo similar, as Sefirot são forças diferentes que funcionam em sincronia.
Há várias definições para o termo Sefirá, entre as quais, Safar (número) e Sefar (limite). As Sefirot geralmente são chamadas de Midot, literalmente "medidas" ou "dimensões". De acordo com a Cabalá, o universo tem dez dimensões e tudo o que existe em nosso mundo é constituído por uma ou mais das Sefirot. No Sefer Yetzirá, obra mais antiga da Cabalá, está escrito que as Dez Sefirot são as dimensões que constituem a totalidade da existência. Estas dez dimensões definem um caminho até o Ser Infinito que está além de toda a Sua Criação.
As Dez Sefirot
Nossa proposta, neste artigo, não é fazer uma descrição profunda de cada uma das Sefirot, portanto, apenas o faremos de forma breve. Estes atributos são divididos em duas categorias: três são intelectuais e sete, emocionais. A alma do homem possui esses dez atributos e isto explica o significado da afirmação de que o ser humano foi criado à imagem de D'us. Como dissemos, a Criação consiste das Dez Sefirot. Assim sendo, cada uma das criaturas, fenômenos, ações e eventos pode ser explicada através da manifestação de uma ou mais Sefirot.
Comecemos com as três Sefirot intelectuais. Para explicá-las, descreveremos uma experiência familiar a quase todos nós: a tentativa de solucionar difíceis problemas matemáticos. Um aluno está petrificado diante de um problema, mas nada lhe vem à mente. De repente, um estalo! Apesar de ainda não ter resolvido o problema, ele já não está no escuro; surgiu-lhe uma idéia. Este estalo é Chochmá (Sabedoria) - a primeira Sefirá intelectual. Mas Chochmá, por si só, não basta. Para solucionar o problema, o aluno terá que encontrar um caminho pela dificuldade, analisar tudo, talvez fazer alguns gráficos ou plugar alguns números. Este processo de análise é Biná (Compreensão) - a segunda Sefirá intelectual. É a ponte entre Chochmá e o terceiro atributo intelectual, Daat (Conhecimento). Quando o aluno solucionar o problema, obtiver a resposta correta e internalizar o conhecimento adquirido no processo, terá atingido a Sefirá de Daat.
As outras sete Sefirot referem-se às emoções. A primeira é Chessed (Bondade, Benevolência), que é a origem de todas as interações humanas. É através de Chessed que nos aproximamos e nos doamos aos outros. A segunda Sefirá emocional é Guevurá (Justiça, Disciplina, Força, Contenção). Guevurá é o meio pelo qual nos concentramos e direcionamos nossos esforços. Enquanto Chessed nos impele a chegar até os outros, a Guevurá nos permite estabelecer limites e fronteiras. A terceira Sefirá, Tiferet (Compaixão, Verdade, Beleza), mescla Chessed com a disciplina da Guevurá. Tiferet é o caminho intermediário, que integra amor e disciplina de maneira equilibrada e saudável.
Descendo pela Árvore das Sefirot, estão outros três Atributos da emoção. A quarta, Netzach, é a Sefirá das emoções da Ambição, Vitória, Eternidade, que dá origem à ambição e determinação, dando ao homem a força de lutar por suas crenças e o ímpeto de realizar seus objetivos. A quinta Sefirá emocional, Hod (Humildade, Submissão), é a raiz dos sentimentos de humildade, que nos permite deixar de lado nosso próprio ego. É, também, o que nos dá o poder de enfrentar um desafio e submeter nossa própria vontade à vontade de D'us. A sexta é Yessod (Vínculo, Fundamento). Constitui a essência da conexão emocional. É a capacidade que temos de nos ligar a outros - família, amigos, mestres. É o que cria o canal de vinculação entre quem dá e quem recebe, canalizando todas as outras cinco Sefirot emocionais em um único elo construtivo, criando a união entre os seres humanos.
A décima Sefirá é Malchut (Liderança, Nobreza, Soberania). É o que nos dá um sentido de propósito, independência e confiança, e um sentimento de certeza e autoridade. Esta Sefirá é, também, associada com a capacidade da comunicação e tradução dos pensamentos e sentimentos em ações.
Este mundo e tudo o que contém são produto da Emanação Divina através das Sefirot. D'us emana Chochmá, Biná, Daat, Chessed, Guevurá, Tiferet, Netzach, Hod, Yessod e Malchut, por meio das quais o mundo existe. Estas Sefirot são a base de tudo. Uma pessoa criativa personifica Chochmá; um grande analista emprega, em geral, Biná ; a pessoa que adquiriu grande conhecimento possui Daat. Açúcar e água são a objetificação da Sefirá de Chessed, ao passo que pimenta e fogo são a objetificação de Guevurá. Uma paisagem bonita e um belo ser humano refletem Tiferet. A pessoa ambiciosa personifica Netzach, enquanto a humilde, Hod. Carisma é o reflexo de Yessod, ao passo que liderança e autoridade refletem Malchut.
As Sefirot são os blocos formadores do Universo. A estrutura interior do mundo e de todos os seus constituintes é formada pelas Sefirot. A maçã, o peixe, a alma humana, um pensamento, decisão, palavra ou ação - todos partilham a mesma origem: as dez emanações cuja fonte é Deus, Uno e Único. É imperativo observar que nenhuma das Sefirot é D'us, Ele Próprio. Alertaram-nos os Sábios que aqueles que confundem as Sefirot com D'us estão cometendo grave erro, tão grave como a idolatria. As Sefirot, como tudo a mais, inclusive o Universo como um todo, emanam e residem dentro de D'us, mas não constituem D'us, Todo Poderoso. O Criador transcende tudo, inclusive todos os Atributos e toda a Criação.
Teoria das Supercordas
Em 1931, o jornal The New York Times reportava que Albert Einstein tinha terminado sua teoria do campo unificado - uma teoria que prometia reunir todas as forças da natureza em uma única trama matemática. Einstein pode não ter sido um judeu observante, mas algo em seu íntimo o levou a desvendar a subjacente unidade do universo. Einstein tinha a obsessão de comprovar pela Ciência algo que é um tema recorrente no estudo da Cabalá: o fato de que apesar da multiplicidade que há no mundo, existe uma unidade subjacente em toda a Criação que reflete a unidade absoluta de seu Criador.
A teoria do campo unificado de Einstein demonstrou ser falha, mas ele não desistiu. Mesmo em seu leito de morte, continuava rabiscando equações sem fim, na esperança desesperada de que se materializasse sua teoria. O que não ocorreu. Mas sua esperança estimulou outros cientistas a irem em busca da teoria unificada. Estes tinham percebido que sem tal teoria, muitas questões fundamentais sobre o universo não poderiam ser estudadas. Nos últimos 300 anos, o estudo das Ciências seguiu o caminho da unificação e consolidação: conceitos outrora considerados totalmente estanques demonstraram ser profunda e inextricavelmente vinculados. No século 17, Isaac Newton descobriu as leis do movimento, aplicáveis tanto a um planeta que se move pelo espaço quanto a uma maçã que cai da árvore. Newton revelou ser uma única a Física na Terra e nos Céus. Duzentos anos mais tarde, Michael Faraday e James Clerk Maxwell demonstraram que as correntes elétricas produzem campos magnéticos e que os ímãs em movimento podem produzir correntes elétricas. Os dois cientistas demonstraram que essas duas forças são unidas. No século 20, Albert Einstein provou que espaço, tempo e gravidade são entrelaçados. Seu sonho era descobrir uma teoria superior a todas as demais, que fundiria a gravidade e o eletromagnetismo em uma única teoria-mestre sobre as forças da natureza.
Após sua morte, outros grandes físicos continuaram a busca da teoria unificada. Na década de 1960, as pesquisas de Sheldon Glashow, Abdus Salam e Steven Weinberg, que lhes valeram o Prêmio Nobel, revelaram que quando submetidas a elevadas energias, as forças eletromagnéticas e as baixas forças nucleares combinavam de forma perfeita. Em trabalhos subseqüentes, outros demonstraram que submetida a energias ainda mais altas, uma força nuclear mais forte também combinaria. Isto convenceu muitos físicos de que não havia obstáculo fundamental em unificar três das quatro forças existentes na natureza. Durante décadas, a força da gravidade foi a única força que apresentou problema para a teoria da unificação. O problema que tanto perturbara Einstein foi a disjunção entre sua própria teoria da relatividade geral, que é relevante para objetos extremamente maciços, como as estrelas, e a mecânica quântica, que é a estrutura usada pela Física para tratar dos objetos muito pequenos, como os átomos e suas partes constituintes. Alguns dos mistérios resultantes dessas teorias conflitantes incluem o motivo da gravidade ser tão fraca em relação a outras forças físicas fundamentais, tais como o eletromagnetismo, e a razão para o universo ser tão grande. Essas questões surgem porque em uma escala diminuta ao extremo, as partículas que compõem nosso mundo parecem comportar-se de maneira totalmente diferente do que se poderia imaginar. Na década de 1980, emergiu, na Física, uma nova abordagem a esse enigma científico. É chamada de Teoria das Supercordas, ou simplesmente, Teoria das Cordas. Os difíceis e complexos cálculos dos físicos John Schwarz e Michael Green, que passaram anos imersos em sua pesquisa, trouxeram fortes evidências de que a nova teoria não apenas unificaria a gravidade e a mecânica quântica, mas também as demais forças da natureza.
A Teoria das Cordas oferece uma nova perspectiva sobre os componentes fundamentais da matéria. A matéria era vista como constituída de pontos ínfimos, quase sem tamanho - os átomos, que são compostos de prótons, nêutrons e elétrons - e os quarks, que são um tipo genérico de partículas físicas que se combinam de formas específicas para formar prótons e nêutrons. A Teoria das Cordas revela que os componentes de qualquer matéria são, pelo contrário, filamentos minúsculos e vibrantes, como cordas. Assim como diferentes vibrações de um violino produzem diferentes notas musicais, as diferentes vibrações das cordas da teoria produzem diferentes tipos de partículas. Os pioneiros estudiosos da teoria perceberam que uma dessas vibrações produziria a força gravitacional, demonstrando que a Teoria das Cordas abrange ambas, a gravidade e a mecânica quântica. Portanto, soluciona a incompatibilidade entre a mecânica quântica e a relatividade geral.
A Teoria das Cordas está sendo aqui descrita de maneira genérica, praticamente sem usar linguagem científica, mas se trata de um estudo que envolve uma análise rigorosa e complexos cálculos matemáticos. Há mais de 20 anos vem-se pesquisando intensamente a Teoria das Cordas, que tem sua coerência matemática comprovada por cálculos longos e intrincados. Até o presente, não houve contestação quanto à sua exatidão. Impressiona, também, o fato de que muitas descobertas na Física, nos últimos dois séculos, encontram-se na Teoria das Cordas. Isto indica que a mesma é a chave de entrada para esta complexa ciência.
Não causa surpresa o fato de que esta teoria tenha chamado a atenção de tantos cientistas e matemáticos. Muitos deles acreditam que a mesma forneça a infra-estrutura para a construção da tão buscada teoria unificada. Como ensina que qualquer coisa em seu nível mais microscópico consiste de combinações de cordas em vibração, esta teoria fornece um marco único de explicação capaz de englobar não apenas tudo o que é matéria, mas também todas as forças. As partículas da força são associadas a padrões específicos de vibração de corda. Assim como a matéria, estas partículas são unificadas sob a mesma rubrica de oscilações microscópicas das cordas.
A teoria das cordas às vezes é descrita como a teoria de tudo - a teoria final, suprema. Muitos de seus defensores acreditam que uma tal teoria explicaria as propriedades das partículas fundamentais e as propriedades das forças que as fazem interagir e influenciar umas às outras. De modo mais simplista, tudo o que existe e tudo o que ocorre no universo é uma reação entre as partículas fundamentais que, de fato, são cordas que vibram.
A Cabalá e a Teoria das Supercordas
Ensina-se, na Cabalá, que D'us criou o mundo através das Dez Sefirot. Na verdade, existe um atributo adicional, Keter. Esta Sefirá está tão além de nossa compreensão que não costuma ser incluída como uma das Sefirot. Exprime a Vontade de D'us - Seu desejo de criar. Como não podemos sequer pretender imaginar os desejos Divinos, a Cabalá costuma mencionar apenas as Dez Sefirot. No entanto, o desenho da Árvore das Sefirot obrigatoriamente inclui a décima-primeira, Keter.
Assim como a Cabalá fala das Dez Sefirot, que, de fato são onze, também a Teoria das Cordas fala de dez dimensões, que, na realidade são onze. Alegam os cientistas que para que as cordas formem adequadamente nosso universo, elas devem vibrar em onze dimensões. Todos podem observar três dimensões espaciais e uma temporal, mas os modelos da Física sugerem outras sete.
A doutrina das Sefirot e da Teoria das Supercordas dizem, essencialmente, a mesma coisa através de linguagens diferentes. A teoria é a descoberta científica dos fenômenos que os cabalistas conhecem há milênios. Quer saiba ou não, um físico que estuda as Supercordas está estudando a Cabalá pelo prisma das Ciências. As cordas são a manifestação física das Sefirot. De fato, muito antes da descoberta dessa teoria, a Cabalá falava de cordas sobrenaturais. Ao descrever a criação do universo, o misticismo judaico revela que D'us escondeu Sua Luz Infinita, criando, destarte, um espaço que parece despojado de Sua Presença. Neste domínio, que parece ser um vácuo, Ele criou nosso mundo. E o fez através de um raio da Luz Divina, chamado de "corda". Através dessa corda inicial, foram emanadas as Dez Sefirot - as outras dez cordas - e estas, continuamente criam tudo o que existe e tudo o que transpira no universo. É interessante observar que há um mandamento particular na Torá, o de Tsitsit, que envolve cordas.
Os homens judeus são obrigados a atar Tsitsit - cordas de lã - a roupas com quatro cantos. Este mandamento é tão importante que é considerado equivalente em importância a todos os demais, juntos. É, também, um dos poucos mandamentos mencionados no Shemá Israel: "Isto vos servirá de Tsitsit, cordas visíveis, e vendo-o recordar-vos-ei de todos os mandamentos do Eterno, para observá-los". O Talmud coloca uma questão: como Tsitsit é uma palavra no plural, não deveria, então, estar escrito: ... e vendo-os"...? E responde que quando olhamos para os Tsitsit, o que devemos ver não é "a elas" - as cordas ou franjas do Tsitsit - mas a "Ele" - D'us, em toda a Sua plenitude.
À luz do que discutimos acima - as Sefirot e a Teoria das Cordas - podemos inferir que o Shemá Israel, prece de suma importância e misticismo, sugere que os Tsitsit simbolizam as cordas que constituem a Criação unificada, encaminhando-nos na direção de D'us Único. Em outras palavras, os blocos formadores do universo, quer os denominemos de Sefirot ou de cordas, quer sejam discutidos por cientistas ou por estudiosos da Torá, apontam na direção do Infinito Criador.
Muitas pessoas erroneamente acreditam que Torá e Ciências são conflitantes. Pois não o são: como indicou o Rabi Luzzatto, o físico é uma mera reflexão do espiritual. Aquele que crê que Torá e Ciências estão em contradição certamente não entende bem uma das duas. Isto explica a razão para que muitos de nossos maiores sábios - o Rambam, o Gaon de Vilna, o Baal HaTanya e o Lubavitcher Rebe - tivessem tamanha compreensão das Ciências.
A Teoria das Supercordas é a Cabalá estudada sob a lente da Física. E assim como o estudo das Sefirot, a teoria nos ensina que este universo de diversidades e de multiplicidades é, com efeito, elegantemente disposto e unificado. A unidade do universo é o reflexo da Unicidade de D'us e o fato de ter sido elegantemente projetado nos faz lembrar que foi concebido por um Desenhista Perfeito. `
Diz-se que uma rosa é uma rosa, ainda que lhe troquemos o nome.
De forma similar, D'us, seja encoberto pela linguagem da Física ou pela da Cabalá, é D'us, Único, Senhor dos Céus e da Terra, e de tudo o que contêm estes dois mundos.
Revisitando o Jardim do Éden
E plantou o Eterno, D-us, um jardim no Éden, no Oriente, e lá colocou o homem que criou. E fez brotar da terra, o Eterno, D-us, toda árvore cobiçável aos olhos e apetitosa ao paladar, e nesse jardim estavam a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal’ (Gênese, 2: 8-9).
A história do Jardim do Éden - de Adão e Eva e a serpente, e da partilha do fruto proibido - é universal em seu escopo. Apesar de ser uma história da Torá, não é dirigida exclusivamente ao Povo Judeu. Envolveu pai e mãe de toda a humanidade, pertencendo, portanto, a todos os seres humanos de todas as gerações. De fato, o ocorrido no Jardim do Éden, não constituiu um evento singular em um passado longínquo; constitui uma história recorrente na vida de qualquer homem e qualquer mulher.
A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal
O pecado de Adão e Eva é por demais conhecido. Enquanto viviam no Jardim do Éden, tinham permissão para comer de todas as árvores, exceto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. D'us previne Adão que a consequência de se violar a proibição seria a morte. Mas, a despeito do severo alerta, Eva se deixa seduzir pela serpente e partilha do fruto proibido, o qual, mais tarde, oferece ao marido e a todos os animais. Em decorrência disso, a morte é introduzida no mundo e Adão e Eva são banidos do Éden para sempre.
O mais peculiar em todo o incidente é a natureza da proibição, em si. Por que razão haveria de ser proscrito o conhecimento e associado ao pecado e à morte? A superioridade do homem perante os demais reinos reside não apenas em sua capacidade espiritual, mas também na mental. Com efeito, essa mesma Torá, que conta a história de Adão e Eva, exacerba o valor supremo do aprendizado e da busca pelo saber e pela verdade. Como diz o Talmud, quem possui conhecimento, tudo possui; quem não o possui, nada possui.
Outro problema intrigante é o argumento usado pela serpente para convencer Eva a provar do fruto proibido. Era verdadeira a sua alegação de que "No dia em que do fruto comeres, teus olhos se abrirão e serás como D'us, que conhece o bem e o mal". Isto traz à tona a pergunta: por que razão D'us, que criou o homem à Sua imagem, não quis que desfrutasse de parte de Sua sabedoria?
Ao tentar responder a tais perguntas, é preciso, primeiro, conhecer mais sobre a natureza do primeiro homem e da primeira mulher. Antes de incidir em pecado, a existência física do homem era pura santidade. Como nos ensina Rabi Shimon bar Yochai, autor do Zohar, até o mais espiritual dos seres humanos na História não consegue se equiparar à estatura espiritual de Adão. Ele nasceu para ser imortal e para viver livre de preocupações, esforços e sofrimentos. Sua missão consistia em tornar o Éden mais perfeito e poderoso para que tal perfeição e força pudessem estender-se por todo o mundo.
Adão nasceu sem maldade; mas isso não significa que o mal não existisse no mundo. De fato, o antagonista na história - a serpente - era a própria encarnação do Mal. Os livros místicos sugerem que a serpente, que também personificava a Árvore do Conhecimento, estava exasperada pela imunidade humana ao mal. Ressentia-se do fato de o homem viver livre dos conflitos e tormentos, e, por isso, tentou atraí-lo para um círculo vicioso de luta e sofrimento. Várias outras são as explicações para o que teria levado a serpente a tentar Eva, mas esta, em especial, alinha-se com os ensinamentos cabalísticos de que o mal sente uma irresistível atração pela bondade. Parasita por excelência, o mal se alimenta de santidade e é a bondade o que lhe dá sustento e significado. Exemplificado de forma simplista: o homem malvado apenas ascende ao status de "super-vilão" quando se lança em guerra contra um "super-herói"; caso contrário, não passa de um simples malfeitor. De modo similar, o Mau Instinto não demonstra grande interesse nos indivíduos que com ele naturalmente se alinham. Ao invés disso, não mede esforços tentando atrair os bons e puros. Isto explica o ensinamento talmúdico de que "quanto maior o homem, maior seu instinto maligno". É por isso que Adão e Eva foram presa fácil da tentação: o Mau Instinto sobre eles lançou potentes forças hostis que os levaram a pecar.
Uma das lições óbvias do episódio da Árvore do Conhecimento é que o homem tem atração pelo que lhe é proibido. A Torá reconhece que… "As águas roubadas são doces…" (Provérbios, 9: 17) - ou seja, é do gênero humano cobiçar o proibido. O fruto proibido se tornou uma metáfora, um símbolo da atração e do fascínio pelo pecado. Desde o Jardim do Éden, isto tem sido uma realidade na vida de praticamente todos os seres humanos. Para alguns, pode tratar-se de algo tão mundano quanto o alimento que não deve ser ingerido; para outros, pode ser uma tentação mais destrutiva, como um relacionamento proibido. Mas, qualquer tentação empalidece face ao que a serpente, falando em nome da Árvore do Conhecimento, ofereceu a Adão e Eva. O partilhar do fruto proibido significava a realização do maior desejo dos homens: a capacidade de se parecer a D'us - controlar o próprio destino e exercer poder sobre o mundo. Sem dúvida, a perspectiva mais atraente que pode ser oferecida a um ser humano: a possibilidade de "cruzar a barreira", de ir além e se tornar divino. Desde os dias de Adão, o homem tem tentado fazê-lo. Atrai-o a magia, o conhecimento esotérico, o misticismo, tudo na esperança de se sobrepor às dimensões do humano.
À semelhança de outros vilões da história, a serpente foi fiel à sua palavra. Entregou o que prometera. Assim que Eva e Adão comeram do fruto da Árvore do Conhecimento, passaram a possuir algo que era reservado a D'us, algo com que nem mesmo os anjos mais elevados contavam - o livre arbítrio. Por ter provado do fruto do bem e do mal, descobriram dentro de si novas aptidões, tornando-se fatores mais dinâmicos no Universo. Como D'us, ganharam o poder de querer, criar e destruir.
A serpente demonstrou astúcia extraordinária, pois contou a verdade a Eva - mas não a contou por inteiro. Após daquele fruto comer, o homem efetivamente passou a conhecer o bem e o mal; mas, ao contrário do Criador e dos seres espirituais, ele interiorizou tal conhecimento. Os animais não são dotados de livre arbítrio, nem os anjos, que são meros mensageiros divinos, e, portanto, impenetráveis ao mal. O homem, vulnerável a qualquer influência, não tem o dom de conhecer o maligno e permanecer imune ao mesmo. Uma vez tendo provado do fruto proibido, pode continuar sendo boa pessoa, mas jamais recuperará a inocência perdida. Não há riqueza nem sabedoria, por maior que seja, que possa restaurá-la.
Em vista do que acabamos de discutir, podemos tratar do motivo para que o fruto da Árvore do Conhecimento fosse proscrito. Como se pode prever, as respostas são várias. Uma destas diz que o homem não foi criado para saber tudo. De fato, quantas pessoas excelentes e talentosas caíram vítima da confusão intelectual e espiritual, do vício e do comportamento destrutivo, simplesmente por buscarem conhecer e experimentar tudo o que a vida lhes tinha a oferecer? Adão foi proibido de comer da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal porque o homem não tem condições de se manter totalmente alheio e imune àquilo com o que tem contato. D'us sabia que se o homem viesse a conhecer a maldade os resultados seriam desastrosos, pois ele ficaria atraído pelo mal. E foi exatamente o que ocorreu. Após sentir o gosto do fruto proibido, bem e mal se fundiram no interior de Adão e Eva.
Na língua hebraica, a palavra lada'at - "conhecer, saber" - contém um elemento emocional. O versículo que aparece no mesmo capítulo do relato sobre a Árvore do Conhecimento - e que conta que "Adão conheceu Eva, sua mulher" - não contém um eufemismo, como se pensa. Pelo contrário. Conta-nos que um relacionamento físico entre duas pessoas nunca é completamente desvinculado de um elemento emotivo-relacional. Assim o ensinou Rashi, clássico comentarista da Torá: "Conhecer alguém é amá-lo". E como o amor é um vínculo mais profundo do que qualquer ato da mente ou do intelecto, conhecer algo significa estabelecer uma conexão com este algo. O homem foi criado para jamais conhecer o mal, assim como há situações às quais nenhuma criança jamais deveria ser exposta. Mas desde o pecado de Adão e Eva, a maldade se tornou parte intrínseca de seus descendentes. Sequer importa o que se pensa sobre isto - se o indivíduo desfruta do mal ou se este o repulsa. O simples ato de conhecer implica em arcar com as conseqüências. D'us queria que o homem continuasse santificado, como fora criado, e que não caísse presa da tentação. Pois que a presença da maldade no homem, especialmente em pessoa boa e conscienciosa, é fonte de contínuo sofrimento. É difícil ser bom e, mais ainda, ser espiritual, pois, no decorrer da vida o ser humano freqüentemente se encontra diante da escolha entre duas alternativas terríveis: a frustração de um desejo não realizado ou - infinitamente pior - o amargo gosto do pecado, a dizer, a culpa e a vergonha e o temor da retribuição, quer humana quer Divina.
Desde que provou do fruto proibido, o homem se tornou uma mescla entre bem e mal, luz e escuridão. Explica o Tanya, obra clássica da Cabalá, que o mal se manifesta, no homem, de inúmeras formas: como desejo pelo proibido; como orgulho e raiva indevidos; como depressão e indisposição para fazer o certo; e, talvez o mais freqüente, como frivolidade e desperdício - em outras palavras, o uso inadequado da capacidade, energia e tempo que D'us confiou a cada um de nós. Somente Tzadikim Gamurim - homens e mulheres perfeitamente justos, como Avraham, Moshê Rabenu e Rabi Shimon bar Yochai - são totalmente destituídos de maldade. Mas, infelizmente, tais seres são raríssimos e mesmo esses podem errar. Ademais, mesmo o Tzadik Gamur é forçado a viver em um mundo em que coexistem bem e mal, no qual este ser "justo e puro" se vê cercado de situações em que sempre há uma opção reprovável, não importa em que ambiente se encontre. Consta que Moshê perdeu a paciência em várias ocasiões. Sua fúria, sem dúvida, foi uma falha de comportamento; mas as situações a que foi submetido não lhe permitiram agir de outro modo.
A expressão da raiva foi o único meio que encontrou para corrigir alguns dos problemas surgidos em meio ao povo judeu durante sua jornada de 40 anos a caminho da Terra Prometida.
Um dos temas atemporais na história de Adão e Eva é o fato de que, desde o Jardim de Éden, todos nós, em maior ou menor grau, mantemos um relacionamento de amor e ódio com a serpente. Como está na Torá, "Na porta jaz o pecado; e a ti fazer pecar é o desejo do Mau Instinto; mas tu podes dominá-lo" (Gênese, 4: 7). A serpente aparece de diferentes formas para diferentes pessoas. Muitos seres humanos, como o primeiro casal da Terra, sucumbem a seu encantamento. Outros conseguem dominá-la. Mas, à exceção dos Tzadikim Gamurim, os justos perfeitos, a humanidade é fascinada pela mesma. Isto explica a razão para a mídia e a indústria do entretenimento nos sufocarem de notícias e imagens, a cada dia mais violentas e impróprias: fazem-no porque atraem nosso interesse, mesmo que em sã consciência consideremos repulsivas as imagens - em outras palavras, a serpente. Se o homem apenas fizesse o que Eva devia ter feito, a dizer, ignorar a "tentação", esta "serpente" perderia sua razão de existir e acabaria desaparecendo. Não nos referimos, aqui, ao mal que se manifesta de forma explícita no mundo e que deve ser combatido e vencido. Estamos falando da "serpente" que vive dentro de cada um de nós. Esta não pode ser vencida enquanto estivermos obcecados, nela pensando e falando. Esta se encolhe e morre somente depois que o homem transfere seu pensamento para outros assuntos, de preferência mais elevados, os quais, pela própria natureza, são diametralmente opostos aos argumentos e tentações lançados pelo Mau Instinto.
Banidos do Jardim do Éden
Pouco após comer da fruta da Árvore do Conhecimento, Adão e Eva são expulsos do Jardim do Éden, pois D'us não permitiria que o homem "estendesse sua mão, retirasse algo da Árvore da Vida, o ingerisse e vivesse para sempre".
O motivo de sua expulsão traz à tona outra pergunta: por que o homem não podia comer da Árvore da Vida e viver para sempre, eliminando a maldição imposta pelo pecado inicial? Porque a Árvore da Vida não poderia servir como antídoto. Apenas agravaria o problema, pois, uma vez incorporado o mal no ser humano, a Vida Eterna significaria que também o mal viveria para sempre. Há uma história no Zohar que elucida a idéia. Consta que Rabi Acha, de Kfar Tarsha, tentou expiar uma pestilência em uma aldeia queimando incenso. Disseram-lhe que aquilo era inútil, pois os habitantes do vilarejo não haviam expiado seus próprios pecados. Tivessem eles demonstrado arrependimento, a oferenda do incenso promoveria a expiação; caso contrário, apenas serviria de paliativo para desaparecerem os sintomas, mas jamais traria cura à peste. De forma similar, o fruto da Árvore da Vida poderia curar a morte - sintoma do pecado - mas não o pecado em si.
Após o pecado de Adão e Eva, era preciso corrigir as consequências de seu ato. Os limites entre bem e mal tinham sido confundidos não só no homem, mas em todo o mundo. Daí ter D'us expulso o ser humano do Jardim de Éden para que fosse cultivar a terra. Para corrigir o dano que causara, o homem teria que refinar o mundo, extirpando o bem que havia no mal. Isto só é alcançado através do cumprimento dos Mandamentos Divinos, meio pelo qual Ele ensinou ao homem o que não fazer, de modo a não aumentar as forças do mal. E pelo qual também determinou quais as ações a realizar com a matéria física, de modo a que o bem que há no mundo pudesse ser espiritualmente elevado.
Neste ponto, a identidade do fruto proibido adquire relevância. Com certeza, esse fruto não era a maçã. Entre nossos Sábios predominava a opinião de que se tratava de uvas, que Eva comeu e utilizou para fazer vinho, que então serviu ao companheiro. Como as uvas foram o elemento físico envolvido no pecado inicial, ajudamos a retificar espiritualmente sua utilização imprópria mediante a oração do Kidush, com vinho - ao santificar o Shabat e as festas judaicas. E, assim fazendo, a mesmíssima fruta que foi consumida em pecado é usada em um ato de santificação - para proclamar que D'us é o Criador do mundo e para santificar Seus dias sagrados. A isto se chama, na Cabalá, Tikun - retificação espiritual. Esta retificação do mundo ocorre quando o homem santifica o mundo físico, utilizando seus elementos com propósito sagrado. Por exemplo, quando o couro é usado para fazer os Tefilin, realiza-se um ato de fissão espiritual: são liberadas as centelhas sagradas existentes na matéria física. Se isso ocorresse constantemente - se o ser humano apenas fizesse o certo sem nunca errar - a "serpente" definharia até a morte, por inanição. O pecado de Adão e Eva seria, então, retificado e suas consequências - luta e sofrimento e morte - deixariam de ser parte integral da vida.
O banimento do homem do Jardim do Éden acabou sendo mais uma consequência do que uma punição. Ele teria que trabalhar com afinco para reparar o dano causado a si próprio e ao mundo. E pode-se dizer que até mesmo a praga de que "com o suor de teu rosto comerás o teu pão" não veio isenta de alguma bênção em seu interior. Pois o trabalho é o que dá significado à vida do ser humano. E o que se consegue com muita facilidade, dificilmente é valorizado.
A serpente, grande vilã e instigadora, foi punida com exatamente o oposto - uma praga terrível que mais parece uma bênção. Diferentemente do homem que precisa se empenhar para ganhar o seu sustento, a serpente é amaldiçoada por D'us a buscar na terra a sua sobrevivência. De relance, isto parece uma bênção: como o solo é tão abundante, o réptil jamais passará fome. Mas, no íntimo, este decreto é o próprio significado do inferno. A serpente pode ser comparada a um filho que cometeu uma maldade tão monstruosa que leva o pai a expulsá-lo de casa. E lhe diz: "Eu o criei e, portanto, não posso deixá-lo morrer de fome. Por isso, dou-lhe agora todo o dinheiro de que necessitará, na vida, para que nunca mais me procure - pois jamais quero tornar a vê-lo ou saber de seu paradeiro".
Aqui jaz outra grande lição na história do Éden. Por vezes, D'us provê pessoas malvadas de tudo o que necessitam e desejam porque Ele não deseja contatos com esses indivíduos. Ao mesmo tempo, muita gente boa passa por dificuldades na vida exatamente pelo fato de D'us se preocupar em ouvir suas preces. Ele sente falta desses Seus filhos e quer ver melhorar o seu comportamento, ligando sua alma a Ele por meio da prece, do estudo da Sabedoria Divina e da realização de atos de caridade e bondade.
A pergunta de D'us a Adão
Ao estudar a história do Jardim do Éden, não podemos esquecer um princípio básico no judaísmo: sob circunstância alguma acreditamos na existência de poderes independentes; nada, nem mesmo o Mal, consegue se opor a D'us. A serpente personificou o Mau Instinto, que é o próprio Anjo da Morte. E, por se tratar de um anjo - simples mensageiro de D'us - entranhado na carne de um animal, este não possuía livre arbítrio. O castigo da serpente simboliza a maldição que é lançada contra os malfeitores, especialmente aqueles que influenciam terceiros a fazer o mal.
Já que a serpente, agindo em nome da Árvore do Conhecimento, apenas desempenhava sua tarefa, podemos especular - como ousaram fazer alguns comentaristas - que D'us teria feito propositalmente com que Adão e Eva deslizassem, caindo em pecado. Pois se D'us não desejasse que o homem comesse do fruto proibido, por que razão teria criado a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal? A resposta não pode ser o "livre arbítrio", porque vimos acima que antes do pecado original, o homem não fora agraciado com esse dom divino. E, assim, ao contrário do que sugerimos acima, talvez o homem não tenha nascido para viver livre do mal. Como ensinam os livros místicos, se D'us tivesse desejado que o homem fosse perfeito, que orasse e estudasse a Torá todas as horas do dia, ele poderia ter criado milhões de anjos mais, que nada fazem além de O servir e louvar. Ao invés disso, criou um ser diferente dos anjos e dos animais - uma criatura que pode livremente escolher entre o bem e o mal. Não fosse o pecado original, isto jamais teria sido possível.
Como explica o Tanya, D'us permitiu que existisse o mal porque sem este o homem viveria sem se esforçar. Se não houvesse batalhas, não haveria vitórias. A existência humana adquire significado na batalha entre o bem e o mal: a bondade ganha força quando luta e vence o Mau Instinto. Retornando a uma analogia acima utilizada, um vilão necessita de um super-herói para justificar sua existência. Mas o oposto também é verdadeiro: se não houver vilões, para que heróis? O homem é a jóia da coroa da Criação porque, contrariamente a todas as demais criaturas, ele pode vencer batalhas interiores, em sua alma, e optar por fazer o certo - a despeito de todas as tentações, interiores e exteriores, com que sempre se defronta.
Uma história que reflete o que talvez seja a maior mensagem que D'us nos transmite através do relato sobre o Éden envolve o autor do Tanya, Rabi Shneur Zalman de Liadi. Enquanto encarcerado em uma prisão russa - após a falsa acusação de atividades subversivas contra o Czar - ele foi submetido a intenso interrogatório. As autoridades carcerárias sabiam tratar-se de um grande erudito e filósofo, daí terem-no engajado em horas a fio de discussões teológicas e filosóficas. Certa vez, o investigador-chefe lhe perguntou: "Sua Torá relata que após o pecado de Adão, comendo do fruto da Árvore do Conhecimento, D'us o confronta com a pergunta: 'Onde estás?' D'us obviamente sabe onde estão os homens!" O Rebe, Baal HaTanya, retrucou: "Você acredita que a Torá é eterna e que suas lições se aplicam a todos os homens, em todas as épocas? Quando o russo respondeu que sim, o Rabi Shneur Zalman começou a explicar: 'Onde você está' é o chamado de D'us a todos os homens da Terra. Ele está perguntando: 'Em que ponto de sua jornada você se encontra?'. Cada um de nós recebeu tantos dias e tantos anos na Terra, e portanto é necessário nos perguntarmos, constantemente, o que conseguimos realizar nesses anos e quanto de bem contribuímos ao mundo".
A pergunta de D'us a Adão, pai de toda a humanidade, ecoa na eternidade. Continua a ser constantemente feita a todo ser humano. Quando o homem ousa respondê-la - quando percebe que não veio ao mundo por acaso, mas foi enviado por D'us para aqui cumprir uma missão Divina, ele atinge um nível mais alto de conscientização e embarca em um caminho que o levará a uma existência mais significativa. Esta percepção do homem - de que D'us o chama e sente sua falta, de que espera que ele faça algo construtivo e belo de sua vida e de seu mundo - esta percepção é o início de uma jornada longa e árdua, às vezes dolorosa, mas que o conduzirá de volta ao Jardim do Éden.
Os Segredos da Guimátria
'Desvenda meus olhos para que eu possa perceber as extraordinárias maravilhas ocultas em Tua Torá'. (Salmo 119:18)
Nossos mestres ensinam que há quatro níveis de interpretação no estudo da Torá. O primeiro nível, Pshat, é o significado literal do Texto Sagrado. O segundo nível, Remez, é o significado figurativo, o ensinamento insinuado, contido em cada uma das palavras e dos versos dos Cinco Livros de Moisés. O terceiro nível, Drush, é o significado interpretativo e homilético - o ensinamento moral e filosófico que a Torá visa transmitir. Por fim, o quarto nível e o mais profundo é chamado de Sod, segredo - é o significado esotérico e místico das palavras da Torá, popularmente chamado de Cabalá. Pshat, Remez, Drush e Sod formam um acróstico em hebraico, a palavra Pardês, que significa "Pomar". Pois estudar a Torá em seus quatro níveis significa adentrar-se pelo "Pomar de D'us", ou seja, no Paraíso.
O Zohar, que é a obra fundamental do misticismo judaico, assim afirma: "Se você não aceita ou acredita na tradição mística, chamada "Alma da Torá", obviamente não compartilhou da Revelação da Torá, no Monte Sinai". Em outras palavras, um estudo da Torá que não inclua seus segredos é um corpo sem alma.
Apresentaremos aqui uma introdução a uma faceta dos níveis de interpretação da Torá: a Guimátria, ou Numerologia Judaica. Antes de enveredarmos pelos ensinamentos básicos da Guimátria, é fundamental ressaltar um princípio do judaísmo: de que D'us, ao outorgar a Torá no Monte Sinai ao povo de Israel, entregou a Moisés não apenas a Torá Escrita, mas transmitiu-lhe, também, a Torá Oral. O núcleo desta é o Talmud, que explica e elucida a Torá Escrita e suas leis.
Um dos famosos ensinamentos do Talmud é a afirmação de Rabi Eliezer ben Yossi Haglili, que formula 32 regras para explicar a Torá. A 29a regra é a Guimátria. Este sistema de numerologia judaica baseia-se no fato de cada uma das 22 letras do alfabeto hebraico, do Alef ao Tav, possuir um valor numérico. As primeiras 9 letras estão associadas às unidades (1, 2, 3, ..., 9); as 9 letras seguintes estão associadas às dezenas (10, 20, 30, ..., 90); e as últimas quatro estão associadas às centenas (100, 200, 300, 400).
Muitos trechos do Talmud citam a Numerologia Judaica como sendo um instrumento de apoio muito valioso na tomada de decisões, principalmente no que diz respeito à Lei Judaica (Halachá). Aprendi com meu professor, o rabino Y. David Weitman, que o Rabi Yossef Caro, autor do Shulchan Aruch, Código de Lei Judaica, revelou que a palavra Guimátria pode ser dividida em outras duas: Guei (vale) e Mitúria (da montanha). Rabi Yossef Caro explicou que quando temos uma dúvida sobre algo que, a princípio, não entendemos na Torá, esta nos parece ser uma "montanha", de difícil escalada. E a Guimátria, disse o Sábio, transforma a montanha à nossa frente em um "vale" de compreensão.
Vejamos um exemplo de Guimátria aplicada, que se encontra numa passagem talmúdica que discute as leis de um nazirita - pessoa que, nos tempos bíblicos, fazia votos de se abster de tomar vinho, cortar o cabelo e ter contato com os mortos. No Talmud, Rabi Matná afirma que a duração do nazirato é de 30 dias. Esta lei não é explicitada na Torá Escrita, mas na Torá Oral. Contudo, Rabi Matná, ao fazer uso da Guimátria, demonstra que esse ensinamento sobre o nazirato também se encontra, mesmo que de forma oculta, no Pentateuco. Rabi Matná aponta que a palavra "yihye - será" (Números 6,5), que no Texto Sagrado é usada para se referir ao nazirita, tem valor numérico de 30, revelando, portanto, que a duração do nazirato deve ser de 30 dias.
Associando números às letras hebraicas
A Torá possui 304.805 letras, formando 79.976 palavras. Ao analisar o verbo "contar", podemos defini-lo como: "verificar o número", "a quantidade de", "computar". O verbo contar também significa - em alguns idiomas além do português - "narrar" ou "relatar", como em "contar uma história". Desta forma, fica ressaltada a interação muito íntima entre números e letras, já que o verbo contar pode englobar os dois significados.
A palavra grega "geometria", um ramo da matemática que estuda as dimensões e suas relações numéricas, assemelha-se à palavra hebraica "Guimátria", que, na língua portuguesa é chamada de "gemátria". Mais tarde, surgiu o termo latino "gramática" para identificar o estudo da língua. Outra vez, vê-se a ligação entre números e letras, pois "Guimátria", "geometria" e "gramática" parecem ter a mesma etimologia. É notável que Guimátria faz lembrar duas outras palavras da língua grega: Gama e Tria. Sabe-se que a letra Gama é a terceira - Tria - do alfabeto grego, assim como a letra Guímel também é a terceira letra do alfabeto hebraico, possuindo um valor numérico de três.
Quando engenheiros ou arquitetos planejam construir algo, começam por desenvolver um projeto, uma planta. De forma similar, o Midrash cita que D'us, ao criar este mundo, utilizou a Torá como sua planta e as letras do alfabeto hebraico como agentes criadores. As letras hebraicas do Lashon Hakodesh, a Língua Sagrada, são consideradas como "pedras", enquanto as letras das demais línguas são os "tijolos". Pedras são criadas por D'us, tijolos são feitos pelos homens.
A Guimátria o confirma: a palavra hebraica Kochav significa "estrela". Esta palavra é composta das letras Kaf, Vav, Kaf e Beit e pode ser desmembrada em dois conjuntos de duas letras cada. O primeiro conjunto, com as letras Kaf (valor numérico 20) e Vav (6), soma 26 e é o valor numérico do Tetragrama (o Nome mais elevado de D'us); o segundo, com as letras Kaf (20) e Beit (2), soma 22, em uma alusão ao número de letras que compõem o alfabeto hebraico. Daí deduzimos que a Luz Divina ilumina todo o espectro do Universo, gerado pela combinação das 22 letras do alfabeto hebraico.
Um dos elementos relacionados à Criação do mundo é o conjunto das 10 Sefirot (no singular, Sefirá, palavra que também significa "contagem", como na expressão Sefirat Haômer - a Contagem do Ômer). A Torá também é chamada de Sefer Torá (Livro da Torá) e a pessoa habilitada a escrever a Torá é o Sofer, o escriba, que também conta as letras da Torá para saber qual a posição exata de cada uma. A palavra hebraica para "número" é Mispar, similar à palavra hebraica Sipur, que significa "história", "conto", "narração". Vemos, pois, que Sefirá, Sefer, Sofer, Mispar e Sipur são palavras que têm em comum, em sua raiz etimológica, estas três letras: Samech, Pei e Reish, cujos valores numéricos somados dão 340 (60 + 80 + 200) - exatamente o mesmo que na palavra Shem (nome), formado pelas letras Shin (300) e Mem (40). Notamos, uma vez mais, a associação entre números e nomes.
Conseqüentemente, percebe-se que a Criação do mundo é interpretada como uma fusão de padrões numéricos. Já que as letras estão associadas a números, a obra cabalística Tanya, escrita pelo Alter Rebe, Rabi Shneur Zalman de Liadi, explica que uma vez que D'us criou o mundo através da fala, os padrões numéricos criados pelas letras dos Dez Pronunciamentos da Criação refletem a interação das forças criativas de D'us. Os místicos judeus atribuíam especial importância à Guimátria, pois, conforme vimos acima, D'us criou o mundo com as letras do alfabeto hebraico. Usavam a Guimátria para descobrir os significados secretos dos Textos Sagrados, para, combinando várias letras, encontrar poderosos Nomes de D'us ou de anjos ou, mesmo, determinar o número exato de palavras que cada prece deveria conter.
A aplicação da Guimátria é feita, basicamente, de quatro maneiras:
A primeira implica em substituir uma palavra por outra de igual valor numérico. Por exemplo, diz o Midrash (Bereshit Rabá 68,12) que a palavra Sulam (escada) tem valor numérico de 130, idêntico à palavra Sinai. Esta aplicação de Guimátria faz referência a uma passagem no primeiro livro da Torá, Bereshit, em que é relatado um enigmático sonho do patriarca Jacob: "E saiu Jacob de Beersheva, e foi a Haran. E chegou ao lugar e lá pernoitou, porque já se pusera o sol. E tomou das pedras do lugar, e colocou-as à sua cabeceira, e deitou-se naquele lugar. E sonhou, e eis que uma escada (sulam) apoiava-se na terra, e seu topo chegava aos céus .... ".
A Guimátria, ao demonstrar que as palavras sulam e Sinai têm o mesmo valor numérico, oferece uma das várias interpretações do sonho de Jacob: de que a escada, que ascendia aos Céus, simbolizava a Revelação da Torá que seria entregue a seus descendentes no monte Sinai.
Um outro exemplo: O nome Avraham (Abraão) possui o valor numérico de 248, que é o mesmo de Raziel, um anjo cujo nome, em hebraico, significa "segredos de D'us". Além de ambos os nomes, em hebraico, possuírem 5 letras, há vários paralelos entre Avraham e Raziel e a Guimátria os confirma. Raziel foi quem revelou os segredos celestiais ao primeiro homem, Adão, e estes foram escritos em um livro feito de safira, chamado Sefer Raziel. Trata-se de obra de grande santidade e serve como segulá (remédio espiritual) para proteger o lar contra o fogo e outras calamidades. O patriarca Avraham também conhecia os mistérios celestiais e foi o autor do Sefer Yetzirá, o Livro da Formação, que contém muitos segredos a respeito da Criação do mundo. O Sefer Raziel e o Sefer Yetzirá são considerados os dois mais antigos textos do misticismo judaico.
A segunda aplicação da Guimátria implica em interpretar cada letra, em separado. O nome Yaacov, por exemplo, compõe-se das letras Yud (valor numérico 10), Ayin (70), Kuf (100) e Beit (2). O nome do patriarca, portanto, faz referência aos "10" mandamentos, aos "70" anciãos de Israel, à dimensão do Tabernáculo, de "100" amot (medida talmúdica de comprimento), e às "2" Tábuas da Lei.
Segundo seu valor numérico, pode-se substituir um número por uma palavra. Exemplo: Em Bereshit 14:14, lemos que Avraham foi em socorro de seu sobrinho Lot com 318 servos. Sabemos que o único servo de Avraham citado na Torá pelo nome é Eliezer, palavra com valor numérico também de 318. Os místicos deduzem daí que Avraham foi à guerra para salvar o sobrinho acompanhado de apenas um único homem, Eliezer.
A terceira aplicação: podemos, segundo o seu valor numérico, substituir uma palavra por um número. Em Bereshit 42:2, encontra-se a palavra Redu, que significa "descer para lá" (para o Egito) - cujo valor numérico é 210. A palavra faz alusão aos 210 anos em que os judeus viveram no Egito.
Não podemos deixar de mencionar que a Guimátria é uma ferramenta muito importante para o estudo da Cabalá. Com o decorrer dos anos, principalmente em virtude de uma maior disseminação desta ciência, nossos sábios passaram a utilizar outros sistemas mais complexos de numerologia judaica. Entre eles podemos citar as transformações Atbash, Albam, Atbach, Achas-Beta, Ayak-Bachar, Ach-Bi, além dos sistemas, Kollel, Milui, Neelam, Rashei e Sofei Teivot, afora outros.
Há ainda um exemplo interessante de Guimátria que leva em consideração a forma gramatical da palavra. Em Êxodo 35:1, encontramos a frase: Eleh Hadevarim - "Estas são as coisas (ou palavras)...", seguida pelo versículo que trata das leis do Shabat. Nossos sábios interpretam a palavra Eleh ("estas" com as letras Alef, Lamed e Hei), tendo o valor numérico de 36. Os místicos consideram que a palavra "Hadevarim - palavras ou coisas" alude ao valor de 3 (três), pois, como explica o Rabino Yossef ben Hanina, se o texto usasse a forma singular Davar, poderíamos acrescentar 1; se usasse a forma plural contraída Divrei, poderíamos acrescentar 2. Mas como o texto usou a palavra no plural, escrita por extenso, Devarim, deve-se acrescentar 3. Portanto, Eleh Hadevarim somam um valor de 36+3=39. Este número faz alusão aos 39 principais trabalhos proibidos no Shabat.
A aplicação da Guimátria, assim como a própria Torá, é infinita. O antigo texto cabalístico do Sefer Yetzirá revela que podemos calcular o nome de uma pessoa juntamente com o da sua mãe, determinando assim muitas informações a respeito das influências astrológicas sobre a sorte dessa pessoa (Mazal), indicando desta forma o seu signo, planeta e anjo associados, além do dia da semana mais propício a atrair as boas influências, entre muitas outras informações.
Exemplificando: suponhamos que uma pessoa tenha o nome hebraico de Mazal e o de sua mãe seja Esther. Ao calcular a soma de Mazal (77) com Esther (661), temos o valor de 738. Com este número, utilizando as tabelas e cálculos apropriados, encontramos as seguintes associações para esta pessoa: Signo: Libra (Moznaim); planeta: Júpiter (Tsedek); metal: Ferro (Barzel); dia da semana: 5ª feira; anjo: Tsidkiel; letra hebraica: Tav; emanações (Sefirot): Fundamento (Yessod) com Reinado (Malchut); cor: Azul (Cachol); além de outras informações tocantes à personalidade da pessoa.
É verdade que nossos sábios ensinam "Ein Mazal LeIsrael" - ou seja, que o povo de Israel não está limitado ao poder dos astros, mas mesmo eles admitem que cada um de nós nasce com uma influência astrológica que influenciará na determinação de suas características e talentos. O estudo da Torá e a prática dos mandamentos Divinos, principalmente de boas ações, são a forma correta de canalizar as influências Divinas que têm o poder de tudo transformar para o bem.
Fica subentendido que, na visão judaica, cada número tem o seu significado e o seu porquê, tanto no conceito positivo como no negativo - pois D'us criou o mundo onde predomina a dualidade e a pluralidade. Com exceção de D'us, tudo no mundo tem o seu oposto. Ainda assim, não há número que seja "ruim". É verdade que, no judaísmo, há números de significado muito especial, como o 18, que representa Chai - vive. Também o 77, que é valor da palavra Mazal - sorte. Os atributos da Misericórdia Divina estão associados ao número 13, assim como a força (Koach) tem valor numérico de 28. No que toca ao número 7, sabemos que todos os sétimos são queridos, pois o número sete também faz alusão à palavra Sova - abundância. É também famoso o número 5, que além de lembrar a alegria do Criador, ajuda a afastar as influências negativas. Outro número muito importante é o 26, que é o valor do Nome Inefável de D'us, ou Tetragrama, conhecido por "Ha-va-ie". Este Nome Divino é formado por quatro letras: Yud (10), Hei (5), Vav (6) e Hei (5) e se refere ao Eterno, ou seja, a D'us Infinito, que transcende a Criação, a natureza, o tempo e o espaço em sua totalidade; ou seja, é o nível de Divindade que criou o Universo do nada e que continuamente sustenta toda a Criação.
Em nosso livro, "Numerologia judaica e seus mistérios" (editado no Brasil pela editora Maayanot), mostramos muitos tipos diferentes de codificações na Torá por meio dos números, tabelas, além de uma enorme quantidade de aplicações com exemplos e explicações, de acordo com a mais seleta tradição judaica, sobre os significados de nomes, astrologia judaica e, principalmente, dos números. Não podemos deixar de mencionar o Pirkei Avot, um dos tratados mais estudados da Mishná: "Rabi Eleazar, filho de Hismá, dizia: Os cálculos das épocas do ano e a numerologia judaica (Guimátria) são os aperitivos da sabedoria". Muitos dos nossos sábios, tais como os rabinos Moshe Cordovero, Shlomo Alkabets, Avraham Abuláfia, Yossef Gikatilla, Nathan Nata ben Shlomo Spira, o Arizal, o Baal Haturim (que fez seus comentários das parashiot, ou "porções" da Torá, embasados principalmente na Guimátria), entre muitos outros, concordavam que a ciência da Guimátria estimula a alma e atiça a vontade de se aproximar, cada vez mais, da Infinita Sabedoria de D'us.
Já que estamos às vésperas do Ano Novo Judaico de 5767, vamos analisar o que a Guimátria diz sobre o número 67. Seguem-se duas excelentes expressões, em hebraico, cujo valor numérico é 67. A primeira é Kol Tuv (tudo de bom) e a segunda é Yom Chag (dia de festa). O acróstico com as letras que compõem o próximo ano é formado por Tav, Shin, Samech, Zayin (5767), podendo ser lido como: "Que seja um ano com tudo de bom" ou, "Que seja um ano em que cada dia seja alegre como um dia de festa".
Que possa ser a vontade do Todo-Poderoso iluminar os nossos caminhos para que possamos entrar numa nova era e navegar no mar da Torá com grande sabedoria e, principalmente, com muita paz e felicidade.
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