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“É impossível conhecer o homem sem lhe estudar a morte, porque, talvez mais do que na vida, é na morte que o homem se revela. É nas suas atitudes e crenças perante a morte que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental.” Edgar Morin
A Morte, a figura sombria em que em nenhuma época o homem foi capaz de lutar contra ela. Um tabu que temos como a única certeza que temos na vida, que não conseguimos esquecê-la ou nega-la. Tentamos controla-la com os avanços da ciência, tendo a esperança de que as contribuições com a medicina, ciências humanas e sociais, possa tirar um pouco desta inquietude que nos persegue desde quando nos conhecemos por seres humanos. O Homem, segundo a ciência, é o único ser vivo que tem consciência da própria finitude. Desde os tempos mais remotos, constroem-se túmulos para sepultamento, fazem-se rituais, culminando em atos de grande inquietação, curiosidade, fascínio e medo. A nossa relação com a indesejada das indesejadas conta-nos uma história, que muitas vezes achamos que sempre foi imutável. Não, a Morte sofreu mutações com o tempo, e vamos contar com que olhos ela foi observado, desde a Pré-história até a nossa idade moderna. Prepara-se, vamos começar uma jornada minuciosa e incrível sobre aquela que nos encontra no final do túnel, carregada de metáforas, com sua foice e capa preta. Nossa velha amiga, aquela que nos espera no final da estrada.
Estudos apontam que o Homem de Neandertal foi o primeiro de nossa linhagem a enterrar os mortos. Como era antes disso? Bem, antes deste conceito, o homem pré-histórico era deixado à mercê dos animais. Nossos antepassados faziam várias oferendas, com os objetos mais próximos do morto, e os mesmos eram enterrados em cavidades abertas em rochas. O corpo era disposto de cócoras e em seguida coberto com pedras. Na época sucessiva ao Neandertal, o homem de Cro-Magnon colocava seus mortos em outra posição, geralmente deitado ou em posição fetal, mantendo as oferendas, na crença de que os mortos poderiam levar elas consigo. Na época do Mesolítico, predominou as sepulturas ovais. Os corpos continuaram a serem cobertos com pedras e geralmente eram adornados com materiais feitos de conchas e dentes de animais. No Neolítico e na Idade do Bronze, consolidaram-se as sepulturas coletivas e marcou o surgimento dos primeiros monumentos funerários.
Alcançar a vida eterna era um lema para os egípcios. Utilizou-se de feitiços, rituais, os embalsamamentos, e a construção de tumbas que entraram para a história. Coma crença de que cada um tinha uma espécie de “alma” que continuava após a morte, os egípcios colocavam uma série de objetos na tumba, a fim de que a “alma” pudesse usufruir-se deles depois da morte. Essa “alma” tinha o nome de “ka”. Sem os objetos, o “ka” não tinha como fazer uma ligação com o corpo físico, e este corpo-físico deveria estar muito bem conservado para que esta união acontecesse. Foi assim que surgiu a mumificação. E como era feita a mumificação? Primeiramente, o cadáver era submetido a um processo de embalsamamento, e o principal ingrediente era o sal, devido à sua grande capacidade de preservação de tecidos. Sobretudo, embalsamar é uma arte, e esta arte tem sua documentação lá no Egito antigo. É uma forma de proteger o corpo da decomposição, causada por bactérias. O legado antigo foi tão importante para a sociedade moderna, que hoje o processo é pai de várias técnicas utilizadas para translado de corpos em viagens aéreas de longo percurso. O processo no Egito demorava cerca de setenta dias. Primeiramente, o cérebro era removido através das fossas nasais e as vísceras, através de uma incisão localizada no lado esquerdo do tronco. Esvaziado, ou seja, eviscerado, as cavidades eram esterilizadas e as vísceras eram posteriormente tratadas através da desidratação. A desidratação era realizada com natrão, um composto de carbonato de cálcio hidratado. O corpo era preenchido de resinas perfumadas e imerso na solução de natrão. Ficava imerso durante 40 dias. Depois de todo este processo, os membros tinham o preenchimento subcutâneo feito com uma mistura de areia e argila. As cavidades eram preenchidas com panos cheios de resina, serragem e materiais conservantes. Para espantar o odor, compostos aromatizantes feitos de mirra, canela. Com uma espécie de resina derretida, o corpo era envolto e posteriormente envolvido nas famosas faixas de linho. Por fim, a tumba era decorada com os famosos hieróglifos e pinturas.
Os egípcios antigos deixaram um legado cheio de representações da Morte. Trata-se do livro “O livro dos Mortos”, o mais antigo livro ilustrado do mundo. Segundo estudiosos, surgiu na V Dinastia, aproximadamente em 2345 a.C. Este livro contém toda a forma de louvor que os egípcios tinham com seus mortos, desde hinos, preces, textos mágicos de proteção (contra animais necrófagos, violação de túmulos). Os egípcios acreditavam que quem levasse este livro na tumba, encontraria a salvação para alma, pois o livro continha toda a orientação para chegar ao além.
Os romanos foram os primeiros a dar início às esculturas nos túmulos, tal como podemos ver hoje nos cemitérios. Era uma forma de homenagear os entes queridos. Tinha também como característica cultural, a cremação dos mortos, pois a cremação era vista como uma forma de marcar uma nova etapa na vida deles, que era a condição de estarem mortos. Na sociedade Greco-romana havia distinções entre as pessoas que morriam. Os anônimos e os que pertenciam à sociedade comum eram cremados e depois as cinzas eram dispostas em valas coletivas. Aos olhos da sociedade, eram meros mortais. Membros da alta sociedade, considerados como heróis, tinham uma linda cerimônia, e a cremação era cheia de pompa, pois o morto tornar-se-ia um imortal.
Na Grécia, o sepultamento tinha uma série de rituais. O cadáver era desinfectado, lavado com essências aromáticas e envolto em um pano branco, para representar a pureza. Depois, é envolvido com faixas e disposto em uma mortalha, sempre com o rosto descoberto, pois é uma forma para que a alma possa enxergar o caminho que leva para o outro lado. Objetos de valor eram enterrados com o cadáver e muitas vezes, dependendo da época, colocava-se uma moeda em cima da boca. Como assim? Uma moeda? Sim, a moeda servia como uma espécie de pagamento para o barqueiro Caronte, pois era ele que atravessava as almas nos quatro rios do inferno de Hades. Algumas vezes, próximo ao cadáver, também era colocado um bolo de mel, para que agrade Cérbero, o cão de três cabeças, guardião da porta do inferno de Hades. Os mortos eram expostos em leitos, durante um ou dois dias dentro do cômodo mais importante da casa, sempre com os pés voltados para a porta. Os enterros em Atenas eram realizados antes do nascimento do sol, para que os raios do sol não fossem contaminados pela dor da Morte. As pessoas presentes no enterro se vestiam de preto, cinza ou branco e os cabelos eram cortados como símbolo de dor. Um vaso com cristais era colocado na porta da casa, a fim de absorver a contaminação da Morte. Os cemitérios eram sempre fora dos muros da cidade e então, o corpo era finalmente cremado e os restos recolhidos dentro de uma urna. Após todo este processo, os parentes do falecido tomavam um banho de renovação com água do mar, para retirar as impurezas que o rastro da Morte deixava. Um grande banquete era realizado, durante trinta dias após o falecimento e nos aniversários de falecimento, para dar memória ao falecido.
Na Idade Média, a relação Homem-Morte desenvolveu-se em duas fases, pois a Morte teve duas representações distintas neste período. Temos a Alta Idade Média, que vai do período do século V até meados do século XII, e a Baixa Idade Média, que vai do século XII até o século XV.
Na primeira fase, nos deparamos com o conceito de uma morte mais “íntima”, ou seja, a Morte era mais presente na sociedade, mais “domesticada” e “familiar”. Nesta época, o morrer era encarado com muita naturalidade. A consciência da Morte era tão intima, que o moribundo já sabendo de sua aproximação, fazia uma espécie de reconciliação, em que pedia perdão por todos os seus pecados. Toda essa reconciliação era a fim de obter a tão desejada paz e o caminho para o paraíso. Um moribundo que não confessasse pedindo perdão aos seus pecados era destino certo a queimar no inferno, e este era um dos maiores medos do homem medieval. A morte súbita era vista com muito temor, pois não teria como pedir o perdão e então, na mentalidade da época, inviabilizaria a ida da alma para o paraíso.
Nesta fase, os mortos eram envoltos em um sudário e não existiam caixões. Os corpos eram jogados em valas, na maioria das vezes em cima de outros cadáveres, sendo muito deles em adiantado processo de decomposição. Os pobres eram enterrados no pátio das igrejas e os mais ricos dentro da igreja. Acreditava-se que aqueles que eram enterrados dentro da igreja, estavam protegidos do inferno, pois os santos e os mártires os protegeriam de toda maldição. Outra característica desta época é a não separação destes ambientes. Nos cemitérios e igrejas, era muito comum ocorrer inúmeras reuniões e festividades, o que denota a principal característica do convívio do homem com a Morte, ambos eram tão íntimos, que não era problema conviverem lado a lado. Segundo o historiador francês Philippe Ariès, autor do livro “História da Morte no Ocidente: Da Idade Média aos dias atuais”,
“A atitude antiga em que a morte é ao mesmo tempo próxima, familiar e diminuída, insensibilizada, opõe-se demasiado à nossa onde faz tanto medo que já não ousamos pronunciar o seu nome. É por isso que, quando chamamos a esta morte familiar a morte domada, não entendemos por isso que antigamente era selvagem e que foi em seguida domesticada. Queremos dizer, pelo contrário, que hoje se tornou selvagem quando outrora o não era. A morte mais antiga era domada.”
Na segunda fase, com a ascensão definitiva da Igreja, a familiaridade com a morte tomou outro rumo. O julgamento da morte passa a ser sinônimo de fins dos tempos. A morte começa a tomar conta da literatura e pinturas europeias e esta caracterização é marcada como uma figura de horror, medo, podridão. Foi nesta época que surgiu o ícone que até hoje é tido como símbolo da Morte, o esqueleto e a foice. O conceito de que a morte é conhecida como a Ceifeira, vem do conceito de colheita. A Morte pode ceifar de maneira individual ou coletiva. A peste negra na Idade Média ilustra bem este conceito. Em quadros representativos, podemos ver a personificação da Morte, levando os pestilentos da terra. As guerras e as doenças levaram quase uma sociedade inteira. 1/3 da população europeia foi varrida do mapa por causa da peste bubônica, que era constantemente reintroduzida por causa das Cruzadas. Para tornar o cenário ainda mais mórbido, com a chegada da Inquisição, para punir os infiéis, fizeram que a sociedade da época estivesse ainda mais presente com a morte, todos os dias, sem exceção; e assim, a Morte torna-se um castigo de Deus para o Homem.
O filósofo Espinosa dizia que a sabedoria do homem não é uma meditação sobre a Morte, mas sim sobre a vida. O Homem livre não deveria pensar apenas na morte. Com a chegada do Iluminismo e o avanço da ciência e livre pensamento, o homem ocidental passou a repensar na forma de como encara a Morte. A morte, que antes era algo mais familiar, passou a ser reprimido, pouco falado, um verdadeiro tabu dos dias modernos. Constantemente negamos sua existência. Em 1794, o iluminista Condorcet teve uma visão de como nós encaramos a morte hoje:
“(…) um dia, chegará um período em que a Morte não será nada mais que o efeito de acidentes extraordinários ou da lenta e gradativa decadência de forças vitais: e no qual a duração do intervalo entre o nascimento de um homem e sua decadência não terá um limite que lhe possa ser atribuído”.
Foi durante o século XVII que o termo eutanásia passou a ser visto como um alívio àqueles que estavam sofrendo, e os mesmos médicos que trabalhavam com a cura, trabalharem também com uma morte mais tranquila. Hoje a morte é vista como uma espécie de escândalo, um mistério ao qual não temos do que se esconder. Cala-se e uma esfera de temor assombra em volta daqueles que ouvem falar seu nome. As revoluções científicas ocorridas a partir do século XV colocaram mais razão e intelecto nos pensamentos sobre o assunto. Com o declínio do pensamento religioso, a Morte que antes era vista de forma mais íntima, passou a ser cada vez mais vista como algo ruim. Com o crescimento da burguesia pós-revolução industrial, o conceito de higiene e sanitarismo aumentaram, entrando no concerne da saúde pública. Morrer é sujo, contamina, fede. A morte torna-se cada vez mais impessoal,
”Um tipo absolutamente novo de morrer apareceu durante o século XX, em algumas das zonas mais industrializadas, mais urbanizadas, mais tecnicamente avançadas, do mundo ocidental… Dois traços saltam aos olhos do observador menos atento: a sua novidade, evidentemente, a sua oposição a tudo o que precedeu, de que é a imagem revertida, o negativo: a sociedade expulsou a morte, exceto a dos homens de Estado. Nada avisa já na cidade que se passou qualquer coisa… A sociedade deixa de fazer pausas: o desaparecimento de um indivíduo já não afeta a sua continuidade. Tudo se passa na cidade como se já ninguém morresse.” (Ariès).
“O quarto do moribundo passou da casa para o hospital. Devido às causas técnicas médicas, esta transferência foi aceita pelas famílias, estendida e facilitada pela sua cumplicidade. O hospital é a partir de então o único lugar onde a morte pode escapar seguramente à publicidade – ou àquilo que resta – a partir de então considerada como uma inconveniência mórbida. É por isso que se torna o lugar da morte solitária.” (Ariès)
A Morte passou então a ser associada com tudo o que é ruim, não somente ao medo, à perda.
“O quarto do moribundo passou da casa para o hospital. Devido às causas técnicas médicas, esta transferência foi aceita pelas famílias, estendida e facilitada pela sua cumplicidade. O hospital é a partir de então o único lugar onde a morte pode escapar seguramente à publicidade – ou àquilo que resta – a partir de então considerada como uma inconveniência mórbida. É por isso que se torna o lugar da morte solitária.” (Ariès)
“O Beijo da Morte”, é considerado um ícone da arte fúnebre. Criada em 1930, encontra-se no cemitério de Poblenou, em
Barcelona, na Espanha. É a homenagem de uma família a um filho morto, representado como um deus grego na escultura.
A estátua, segundo boatos, influenciou Ingmar Bergman para a criação da obra-prima cinematográfica, “O Sétimo Selo”,
que retrata a vida e a morte e ilustra a imagem tema desta matéria, acima do título.
Cena da série “Six Feet Under”, de Allan Ball, produzida pela HBO.
A Morte é uma inconstante. Mesmo com o passar dos tempos, sempre nos restará dúvidas e perguntas sobre a Indesejada. A ciência já nos colocou diante da realidade, os aspectos da Morte, já nos debruçamos sobre este tema tentando aceitá-lo. Por que tanto medo? Por que tanto tabu em algo que tanto sabemos que não podemos escapar? Todos nós tempos medo da Morte, essa representação já tão antiga da entidade vestida de negro, o esqueleto que carrega a foice que ceifa vidas. Poucos se aventuram a entender todo o mistério sombrio que existe dentro do tema. E a grande questão deste enigma está na nossa sobrevivência à morte biológica. Será que um dia vamos enganar a morte? Existirá o dia em que ninguém mais morrerá? Pense, reflita. Neste mês o Literatortura trará a você uma série de matérias sobre o tema. Um novo olhar sobre aquela que ninguém escapa. Nem eu e você.
Fontes de Pesquisa:
ARIÈS, Philippe. A história da morte no ocidente.
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte.
BECKER, Ernest. A Negação da Morte.
GIMENEZ, Sonia Maria. Morte: Implicações ambientais e culturais.
HUIZINGA, Johan. O outono na Idade Média