sábado, 7 de abril de 2012

Jesus, o sábio da Galiléia nas fontes não cristãs nos sécs. I - II

Josefo

"Jesus o Homem Sábio": Flávio Josefo (93 DC)

Entre as fontes não-cristãs, a mais importante, sem dúvida, é a referência encontrada em Antiguidades Judaicas 18:63-64, do escrito judeu Flavio Josefo, texto conhecido como Testemunho Flaviano:

"Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio, se na verdade podemos chama-lo de homem. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como dentre muitos de origem grega. Ele era [o] Cristo [Messias], E quando Pilatos, por causa de uma acusação feitas pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-u a cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de faze-lo. Pois ele lhes apareceu no terceiro dia, novamente vivo, exatamente como os profetas divinos haviam falado deste e de incontáveis outros fatos assombrosos sobre ele. E até hoje a tribo dos cristãos, que deve esse nome a ele, não desapareceu"(Antiguidades Judaicas, 18:63-64)

O texto como está hoje é tão bom que levanta suspeita. Como Flavio Josefo, que se dizia fariseu, e que passou os anos finais de sua vida na corte dos Imperadores Romanos, poderia se referir a Jesus como o "Messias" ou que ele havia aparecido ao terceiro dia, ressureto? Isso levou muitos críticos a negarem a autoria josefana da passagem, afirmando que o texto seria uma interpolação cristão posterior.

Embora no século XIX e início do século XX a maioria dos estudiosos estivesse inclinado a crer na hipótese da interpolação total, desde a 1ª Guerra Mundial o consenso vem se alterando dramaticamente, devido a estudos linguísticos, uma nova compreensão da relação entre os primeiros cristãos, os fariseus e o Império Romano, e principalmente o estudo de versões latinas, síriacas, eslavas e árabes, a posição dominante hoje é que o texto é parcialmente autêntico e parcialmente interpolado. Haveria um texto originalmente de Josefo, que foi "embelezado" ou "turbinado" por escribas cristãos posteriores.

Alice Whealey, de Berkeley, no artigo "The Testimonium Flavianum controversy from Antiquity to the present", publicado e apresentado no Josephus Seminarem 2000, que reune alguns dos principais estudiosos de Josefo do mundo:

Fez um "review" da literatura sobre o Testemunho Flaviano, e concluiu:
"A controvérsia sobre o Testemunho Flaviano ao longo do século XX pode ser diferenciada da que houve no início do período moderno, por ser, em geral, mais acadêmica e menos sectária. (...) Em geral, pesquisadores protestantes, católicos, judeus e secularistas tem convergido em suas posições, com uma grande tendência de estudiosos, independentemente de sua filiação religiosa, de considerar o texto como majoritariamente autêntico.

O estudiosos judeu Geza Vermes, Professor Emérito de Judaismo Antigo da Universidade de Oxford, e uma das maiores autoridades vivas em judaismo do 2º Templo, cristianismo primitivo e Jesus Histórico observa:

"Estudiosos hipercríticos consideram a passagem totalmente espúria, isto é, um comentarista cristão inseriu nas Antiquidades para dar uma prova judaica do sec. I da existência de Jesus, que era o messias. Reconhecidamente, no pé em que se encontram as coisas, é improvável que o texto tenha se originado da pena de Flávio Josefo. As afirmações positivas, 'Ele era o Cristo" e de que sua ressurreição ao terceiro dia cumpria a predição dos profetas são estranhas a Josefo e devem proceder de um editor cristão posterior das Antiquidades. Não obstante, declarar que toda a notícia é uma falsificação significa jogar fora o bebê junto com a água suja do banho. De fato, nos anos recentes, a maioria dos especialistas, eu inclusive, tem adotado uma atitude branda, aceitando que parte do relato é autêntica".

O Professor Louis Feldman, da Yeshiva University, decano dos estudos sobre Flavio Josefo, afirma categoricamente:

"Quanto ao celebrado Testemunho Flaviano (Ant. 18:63-64) a grande maioria dos estudiosos o consideram como parcialmente interpolado, sendo esta também a minha conclusão. Que o núcleo básico é autêntico é reforçado pelo fato de que aparece em todos os manuscritos (ainda, que o mais antigo destes seja datado do XI século) e todas as versões, incluindo as traduzidas pelo latim pela Escola de Cassiodorus no século VI" .

Peter Kirby cita uma análise de Louis Feldmann, já mencionado, que revisou a literatura relevante sobre Josefo entre 1937 e 1980, em seu livro "Josephus and Modern Scholarship".

Dos 52 estudiosos que analisaram o Testemunho Flaviano no período (1937-1980)
4 (8 %) o consideraram totalmente autêntico,
6 (12 %) basicamente autêntico
20 (40 %) autêntico em parte, com algumas interpolações
9 (18 %) autêntico em parte, com várias interpolações
13 (25 %) totalmente falso

Desta forma, poucos aceitam a autênticidade total da passagem, e somente alguns crêem que ela seja uma interpolação completa. Assim, no período, 3 em cada 4 estudiosos creêm em uma menção a Jesus nessa passagem, sendo que a posição dominante (70 %) vê a passagem escrita por Josefo sobre Jesus alterada ou revisada por cristãos. Kirby, "completa" o trabalho Feldmann, de 1980 até 1996. Em sua própria leitura, o "placar" estaria em 10 a 3, favoravel a autencidade parcial. Christopher Price chega a um "placar" parecido, 15 a 1 favorável a autenticidade parcial.

Aceitando que Josefo escreveu algo sobre Jesus, o próximo passo é tentar descobrir o que ele possivelmente escreveu. A descoberta de uma versão em árabe do Testimonium, citada pelo Bispo cristão Agapio, no século X, fornece um interessante controle. Estudos de vocabulario e estilo são citados por G.J Goldberg:

"A passagem como um todo mostra vários exemplos de vocabulario e estilo que são típicos de Josefo, como discutido por Thackeray, Martin, Winter, e, com ajuda da concordância de Rengstorf, por Birdsall e, mais recentemente, por Meier. Destes, somente Birdsall acredita que a passagem foi completamente interpolada. Recentemente, entre os estudiosos cujos trabalhos favorecem a tese que o Testimonium é basicamente autêntico, estão John Dominic Crossan, Raymond Brown e James Charlesworth" .

Em vista dos estudos acima, e da tendência acadêmica recente, uma reconstrução que encontrou significativa aceitação, é a do estudiosos católico John P. Meier (que segue, de modo geral, a proposta dos acadêmicos judeus Joseph Klausner e Paul Winter). O texto proposto por Meier segue abaixo:

"Por esse tempo apareceu Jesus, um homem sábio. Pois ele foi o autor de feitos surpreendentes, um mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer. E ele ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como dentre muitos de origem grega. E quando Pilatos, por causa de uma acusação feitas pelos nossos homens mais proeminentes, condenou-u a cruz, aqueles que o haviam amado antes não deixaram de faze-lo. . E até hoje a tribo dos cristãos, que deve esse nome a ele, não desapareceu" (versão de Meier)

A versão acima é aceita por estudiosos de várias orientações religiosas como o protestante N. T. Wright, o católico (bem) liberal John Dominic Crossan (De Paul University, EUA), a judia Paula Frederiksen (Boston University) e o agnósticoBart Erhmann (Universidade da Carolina do Norte) entre outros. Geza Vermes, de forma independente, chegou a conclusões similares as de J.P. Meier, e enfatiza os adjetivos "homem sábio" e "realizador de feitos controversos", além do relato da crucificação por Pôncio Pilatos e não extinção do movimento cristão, como sendo autênticamente de Josefo .

Considerando agora a proposta de Meier. O texto reconstituído poderia mesmo ter sido escrito por Josefo? Que haja uma referência a crucificação de Jesus por Pôncio Pilatos, e de que ele foi o fundador do movimento cristão, que sobreviveu a sua morte, não parece estranho. Tácito nos diz a mesma coisa. Que Josefo diga que Jesus realizou feitos surpreendentes, no sentido de milagrosos, não é tão problemático como pode parecer a primeira vista, uma vez que a palavra utilizada, paradoxa, é ambigua (espetaculares, surpreendentes ou controversos). No século II, mesmo Celso, um violento crítico do cristianismo, não nega Jesus era capaz de realizar tais feitos, mas relata que fontes judaícas afirmavam que Jesus fazia seus paradoxa através do conhecimento de artes mágicas que adquiriu no Egito (Contra Celso 1:6; 16-17), assim como alguns rabinos posteriores no Talmude (bSanhedrin 43b). Em meados do século II, Justino e Tertuliano defendem Jesus da acusação de ser um mágico. Mesmo entre os mais ferrenhos adversários do cristianismo, a linha de ataque mais comum não era negar a capacidade de Jesus de fazer milagres, mas atribui-los a um suposto conhecimento de mágica e associação com poderes demoníacos.

Mas como Josefo poderia dizer que Jesus era um homem sábio, (...) e mestre de pessoas que recebiam a verdade com prazer?

Será que Josefo ficou maluco? Será que os distintos "scholars" ficaram malucos? Ou será que era realmente possível que um membro da aristocracia romana e judaíca pudesse ter um opinião neutra, ou até ligeiramente positiva de Jesus?

O que segue nos próximos posts é uma análise das opiniões de observadores não cristãos (Mara Bar-Serapion, Luciano e Galeno), no século II, a respeito de Jesus. E como ele e seus ensinos foram considerados de certo valor nos círculos intruidos, nos permitindo entender como Josefo poderia ter admirado Jesus, sem se tornar cristão.

Vamos continuar a contextualizar a visão de Jesus como homem sábio(...) mestre de pessoas que recebem a verdade com prazer", utilizando uma fonte um tanto desprezada, mas que pode bem ser a mais antiga referência não-cristã a Jesus. A Carta do estóico sírio Mara Bar Serapion.

Mara Bar Serapion (73 DC - 150 DC)

A (provável) menção a Jesus se dá em uma carta de exortação a excelência da sabedoria que sobrevive mesmo com as injustiças e eventual morte que sofre o sábio. Jesus é comparado a Pitágora e Sócrates.

"O que diremos, quando os sabíos são arrastados pelas mãos dos tiranos, e sua sabedoria os leva a perda da liberdade, e são despojados por causa de sua inteligência superior,sem a oportunidade de se defender? Mas eles não devem ser objeto de pena. Pois qual benefício obtiveram os atenienses por condenarem Socrátes a morte, uma vez que eles receberam em troca fome e peste? Ou os cidadãos de Samos por lançar Pitágoras as chamas? Num instante seu território se viu coberto de areia. Que vantagem obtiveram os judeus matando seu sábio Rei. Logo depois, seu reino foi destruido. Pois com justiça Deus vingou esses três sábios. Pois os atenienses morreram de fome, o povo de Samos foi coberto pelo mar, e os judeus, desolados e expelidos de seu reino, vagam dispersos por todas as terras. Socrates não morreu, por causa de Platão, ou Pitagoras, por causa da Estátua de Hera, nem tampouco o Sábio Rei, continuou a viver nos ensinamentos que transmitiu."

Professor Gerd Theissen , da Universidade de Heidelberg (Alemanha), eProfessora Annete Merz, Universidade de Utrecht (Holanda), fazem uma descrição da fonte:
"Curiosamente, o testemunho pagão supostamente mais antigo sobre Jesus é pouco conhecido. Encontra-se numa carta pessoal do estóico sírio, originário de Samosata, Mara Bar Serapion, que escreveu de uma prisão romana (em lugar desconhecido) ao filho Serapion. A carta tem por conteúdo numerosos conselhos e advertências que Mara faz ao filho em face de sua possível condenação"

Theissen e Merz observam que a datação da carta é controversa. A referência a dispersão dos judeus pode ser encaixada na Revolta de Bar Kochba (135 DC), ou na destruição de Jerusalém (70 DC). Ele acrescenta, que há na carta uma menção a fuga dos cidadãos anti-romanos da cidade de Samosata para Selêucia, que parece ser idêntico ao da destruição e expulsão do Rei Antioco IV de Comagene (que tinha por capital Samosata) pelos romanos no ano de 73 DC, relatado do Josefo em Guerras Judaicas 7:219-243.

Ainda segundo Theissen e Merz, "os dados sobre Pitagoras, os sâmios e os atenienses são historicamente muito imprecisos. Talvez Mara considere o filósofo e o escultor Pitagorá a mesma pessoa".

Mara não menciona Jesus pelo nome. A associação é feita baseada nas características:
1) Ele era judeu
2) Era um sábio
3) Ele era um "Rei"
4) Ele continuou vivo por meio de seus ensinamentos
5) Ele foi morto por seu povo
6) O reino judeu foi destruído após sua morte.

1) Jesus era judeu;
2) Era considerado como um sábio ou filósofo (Luciano; Evangelho de Tomé 13: Tu és como um sábio filósofo);
3) Era o "Rei dos Judeus"; (Titulus Crucis nos quatro evangelhos)
4) Seus seguidores mantiveram vivo seus ensinamentos após sua morte, e mesmo depois da destruição de Jerusalém. Trinta anos após a morte de Jesus, estavam solidamente estabelecidos em Roma ( Tácito, Suetônio).
5) Jesus foi morto sob Pôncio Pilatos, mas as autoridades do Templo exerceram uma papel importante. De qualquer forma, a pregação cristã logo tendeu a minimizar a responsabilidade romana e enfatizar a judia.
6) Cerca de 40 anos depois da morte de Jesus, Jerusalém foi destruida. (Elemento também presente na pregação cristã).

A identificação do sábio Rei referido por Mara com Jesus de Nazaré não é completamente certa. Contudo, que outro "candidato" preenche esses requisitos? Josefo lista quase uma dezena de pretendentes messiânicos, mas eles foram mortos pelos romanos, e seus ensinamentos, quando existiram, não sobreviveram a sua morte. Judas Galileu, inspirador dos zelotes e outros radicais anti-romanos, manteve seguidores após sua morte. Contudo, até onde se sabe, se ele foi executado, o foi pelos romanos e não pelos judeus; não foi chamado de "Rei dos Judeus"; e seu movimento não sobreviveu a queda de Jerusalém e, portanto, a época em que Mara escreveu.

Como observa FF Bruce (1910-1990), ex-Professor das Universidades de Sheffield e Manchester:
"Este escritor dificilmente poedria ter sido cristão; tal fosse o caso , haveria declarado que o Cristo continuou vivo e que ressuscitou dos mortos. Maior probabilidadee há de que fosse um filósofo gentio, pioneiro no que se veio depois tornar rotina comum - colocar Jesus em pedestal de igualdade com os grandes sábios de antanho".

Tudo indica que Mara foi influênciado pela pregação cristã, embora se mantivesse como pagão pois faz referência em alguns lugares da carta a "nossos deuses". Era, possivelmente, um simpatizante do cristianismo.

Theissen e Merz
, observam que as afirmações de Mara são parcialmente dependentes dos evangelhos. Primeiro, apenas os judeus são responsabilizados (ver I Tes. 2:15; Atos 4:10). Segundo, a derrota judaica perante os Romanos é resultado da crucificação de Jesus (cf Mt 22:7; 27:25). Terceiro, Jesus é chamado de Rei Sábio (ver Mt 2:6).

Thiessen e Merz complementam,
"Mara permite reconhecer em alguns pontos uma perspectiva externa em sua avaliação de Jesus e do cristianismo:
Na série de paradigmas de Mara, Jesus aparece como um de três sábios Mara não sabe nada da ressureição de Jesus, ou a reinterpreta tacitamente no sentido de sua cosmovisão caracterizada em sua carta da seguinte forma "A vida do homem, meu filho, sai do mundo, seu louvor e seus dons permanecem na eternidade". Isso se aplica da mesma forma a Socrátes como a Jesus. Para Mara, Jesus é importante sobretudo como novo legislador. Ele continua a viver em suas leis. Ao que parece, Mara vê os cristãos como aqueles que vivem segundo a lei do Rei Sábio, o que explica bem a postura do estóico em relação a eles"

Professor Robert Van Voorst, Western Theological Seminary, acrescenta:
"A mais antiga referência filosófica ao cristianismo de que se tem conhecimento, a carta de Mara Bar revela a atração que o cristianismo era capaz de exercer sobre alguns intelectuais. As observações positivas a Cristo e ao Cristianismo, no entanto, não devem ser lidas como um endosso, da mesma forma como sua menção a Sócrates e Pitágoras significam que ele era adepto de suas respectivas escolas filosóficas"

Admitindo a provável menção a Jesus de Nazaré como sábio Rei em Mara Bar Serapion, temos um retrato que é semelhante a descrição de Galeno e, até mesmo, com o de Luciano de Samosata (Samosata, inclusive, fica na mesma região daonde Mara é proveniente). Jesus é visto como um filósofo, que deixou leis e ensinamentos, que foi executado, mas cujo legado permanece, tendo díscipulos que vivem segundo suas leis. Luciano interpretou essas tradições de forma depreciativa aos cristãos. Galeno de forma positiva, embora condescencente. Mara, por sua vez, também as toma de maneira positiva, mas vê em Cristo um modelo de sabedoria.

Luciano de Samosata (165-175 DC)

Luciano de Samosata (125-180 DC, aproximadamente), escreveu a biografia zombeteira de um converso ao cristianismo e depois apóstata, Proteus Peregrino, em "A Passagem do Peregrino". Proteus era um fílosofo adepto da corrente cínica (não confundir com a concepção moderna, pejorativa, do termo). Os cínicos acreditavam que a felicidade dependia do desapego aos bens materiais e convenções sociais (status, poder..). O texto que menciona Jesus, como o "sofista crucificado" que era adorado pelos cristãos é apresentado abaixo:

“Foi então que ele [Proteus] conheceu a maravilhosa doutrina dos cristãos, associando-se a seus sacerdotes e escribas na Palestina. (...) E o consideraram como protetor e o tiveram como legislador, logo abaixo do outro [legislador], aquele que eles ainda adoram, o homem que foi crucificado na Palestina por dar origem a este culto.(...) Os pobres infelizes estão totalmente convencidos, que eles serão imortais e terão a vida eterna, desta forma eles desprezam a morte e voluntariamente se dão ao aprisionamento; a maior parte deles. Além disso, seu primeiro legislador os convenceu de que eram todos irmãos, uma que vez que eles haviam transgredido, negando os deuses gregos, e adoram o sofista crucificado vivendo sob suas leis." (Passagem do Peregrino, 11 e 13)

Segundo Luciano, Peregrino (100-165 DC), fugiu de sua cidade em sua juventude, acusado de matar seu pai. Tornou-se então um filosofo itinerante, tendo contato com várias idéias e filosofias. Quando estava na Palestina, ele se converteu ao cristianismo. Entre os cristãos, obteve rapidamente grande prestígio, se tornando "profeta", "presbítero", "chefe de sinagoga", compondo livros e os comentando, sendo reverenciado como mestre, legislador e até como um deus ("logo abaixo logo abaixo do outro, aquele que eles ainda adoram, o homem que foi crucificado na Palestina por dar origem a este culto"). Em suma, Luciano acusa Peregrino de usar seus conhecimentos de filosofia para abusar da credulidade dos cristãos. Ainda na Palestina, Peregrino é preso, e na cadeia recebe a atenção e cuidado de seus companheiros cristãos, que, segundo Luciano, "tudo fizeram para livra-lo, mas como isso não foi possível, dispensaram assistência constante para com ele" (Passagem do Peregrino 12) . Entretanto, o governador romano, também admirador da filosofia, o libertou após algum tempo. Anos depois, Peregrino rompeu com o cristianismo, tornando-se discípulo do renomado filósofo cínico Agatobulo, de Alexandria (Egito). Em seguida, ele viveu em várias cidades reunindo um grande grupo de seguidores, envolvendo-se em atividades anti-romanas. Em 161 DC, ele anunciou que se imolaria em uma fogueira nos jogos olímpicos seguintes, o que ocorreu no ano 165. Luciano, que presenciou o evento, escreveu então a "biografia" de Proteus por volta do ano 175.

O relato de Luciano é bastante hostil em relação a Peregrino, que tinha contudo seus admiradores, mesmo entre os letrados e ilustres. Luciano faz referência no texto ao filósofo Theagênes de Patras, ardoroso defensor de Proteus. Também o autor e gramático romano Aulio Gelio (125-180 DC), relata em seu livro "As Noites Áticas", que visitando Atenas, foi encontrar várias vezes o fílósofo Peregrino, chamado Proteus, um "homem de dignidade e coragem, que vivia fora da cidade" e que ouviu de Proteus "muitas coisas verdadeiras, úteis e nobres". É justamente para tentar refutar essa percepção, que parecia ser bastante popular, que Luciano escreve.

O texto estabelece paralelos entre Peregrino e Jesus, a quem Luciano retrata como um filósofo, sofista e primeiro legislador e mestre dos cristãos, acusado e preso (e realmente executado) como criminoso e acusado de envolvimento em ações contra Roma. Luciano não nega a reputação de Proteus como filósofo, nem seu conhecimento e credenciais, o que ele ataca é o uso que ele faz da filosofia, aproveitando-se da credulidade das pessoas. Da mesma forma, não é posta em dúvida a reputação de Jesus como filósofo, mas o fato de que os crédulos cristãos o elevaram injustificadamente a condição de grande legislador e digno de adoração, como também fizeram com Peregrino. Assim, a visão de Luciano em relação a Jesus, era de um simples sofista ou filósofo, que ensinou seus seguidores a abandonar os deuses gregos, condenado e crucificado como criminoso, a quem pessoas humildes e simplórias, como os cristãos, tinham como Deus e supremo legislador.

Luciano observa que Proteus tinha grande reputação, muitos discípulos e notaveis admiradores. Ele relata que entre alguns filósofos cínicos, a admiração a Proteus já começava a se transformar num verdadeiro culto. Considerando a comparação que Luciano faz entre Cristo e Proteus, pode ser inferido que Jesus também tivesse uma reputação de meste e sábio bastante disseminada, mesmo entre os mais instruídos. Aqui, é útil lembrar o comentário do Prof. Mark Alan Powell (Trinity Lutheran Seminar)- em relação a frase do celebrado Testemunho Flaviano de que Jesus era "um homem sábio" - de que pode implicar tanto como um elogio a qualidade de seus ensinos, quanto de que ele era um fílosofo, mestre ou rabi por profissão ou ofício.

Professor David Flusser (1917-2000), da Universidade Hebraica, comenta
"A palavra grega para "sábio" tem uma raiz comum com o termo grego "sofista" termo este que não possuia então a conotação negativa atual (...) O autor grego Luciano de Samosata (nascido em 120 e falecido após 180 DC) refere-se similarmente a Jesus como "o sofista crucificado".

Mas alguém tão crítico do cristianismo como Luciano, poderia considerar Jesus como um filíosofo ou sábio?

De qualquer forma, Luciano alude ao reconhecimento comum de Jesus como sofista/filósofo, legislador e mestre dos cristãos. Mas, para aprimorar nossa resposta, temos que ler "nas entrelinhas" o que Luciano escreve, e também comparar suas opinões com outros críticos do cristianismo daquele período.

Um ponto interessante é o cuidado que os cristãos dedicavam aos seus. John Dominic Crossan (De Paul University) e Jonathan Reed (La Verne University), citam o ensaio de Luciano de Samosata chamado "Da Amizade", no que se refere a assistência de Demétrio a Antífilo na prisão:

"Pediu-lhe que não tivesse medo, e dividindo sua capa em duas, vestiu-se com uma parte e deu outra metade a Antífilo, depois de lhe desvestir das roupas rasgadas e fétidas que usava. Daí para frente compartilhou sua vida em tudo, cuidando dele com carinho: trabalhando de manhã até o meio-dia como estivador no porto, ganhamdo bom dinheiro. Ao retorno de seu trabalho, dava parte de seu salário para o guarda, tornando-o tratável e pacífico. O que restava era suficiente para manutenção de seu amigo. Passava as tardes com Antífilo, com afeição, de noite durmia junto a porta da prisão onde arranjara um colchão de folhas para si (Da Amizade, 30-31)

Luciano também menciona serviços assistências como os oferecidos ao profeta cristão peregrino, mas nesse caso com certo menosprezo:

[Peregrino] recebia toda a forma de atenção, não esporádica mas assídua. Desde o amanhecer viúvas idosas e crianças orfãs podiam ser vistas esperando perto da prisão, enquanto seus oficiais dormiam junto a ele depois de subornar os guardas. Traziam-lhe refeições elaboradas e livros sagrados de onde liam passagens em voz alta. O notável Peregrino - pois ainda conservava esse nome - era chamado por ele de "o novo Sócrates" (Passagem do Peregrino, 12)"
.

Apesar do evidente menosprezo de Luciano aos cristãos, retratados como criaturas ingênuas e iludidas, a comparação com a atidude de Antífilo e Demetrio mostra suas virtudes. Eles ajudam um dos seus na prisão, com carinho, provendo roupas e comida, e até subornam os guardas, para permitir que Peregrino pudesse ser assistido (assim como Demétrio cuidou de Antífilo na prisão). Tais atitudes eram consideradas virtuosas, assim como a coragem mesmo diante da morte que os cristãos demonstravam. O problema não reside na falta de virtude dos cristãos, mas em sua (suposta) ingenuidade (que permite que qualquer espertalhão se aproveitasse). Mas teriam sido as virtudes apreendidas com os ensinos do "primeiro legislador"?
.
Cerca de 100 anos após Luciano ter escrito a Passagem do Peregrino, o fílosofo neoplatônico Porfírio de Tiro (232-305 DC), elaborou um violentos ataque a religião cristã, chamado Adversus Christianos ("Contra os Cristãos") em 15 volumes, e uma defesa a religião pagã, "Da filosofia dos oráculos". Estas obras não sobreviveram, mas partes significativas são citadas por autores cristãos posteriores como Eusébio, Metódio, Macário de Magnésia e Santo Agostinho. Em sua crítica aos cristãos Porfirio observa:

"O que nós diremos agora, certamente surpreenderá alguns. Pois os deuses declararam que Cristo foi muito piedoso, e se tornou imortal, e que eles prezam sua memória. Mas, os cristãos, no entanto, são impuros, contaminados e chafurdam no erro. E muitas outras coisas, dizem os deuses contra os cristãos.

Mas a aqueles que questionaram [deusa] Hecate se Cristo era Deus, ela respondeu: Tu conheces a condição da alma imortal (...) a alma a qual tu te refere e de um homem reconhecido por sua piedade, eles [os cristãos] o adoram porque são ignorantes da verdade (...) este homem virtuoso, assim, Hecate afirma que sua alma, como a alma de outros homens bons, foi coroada com a imortalidade, e que os cristãos, em sua ignorância, o adoram".

Agostinho observa também outra afirmação de Porfirio: "Os homens sábios entre os hebreus, dentre os quais esse Jesus, como ouviste dos oráculos de Apolo citados acima, acabaram transformando pessoas religiosas nestes demônios impíos e espíritos menores, ainda que eles tenham ensinado na verdade a veneração aos deuses celestes e especialmente a Deus Pai".

Trifo, um filósofo judeu que protagonizou um debate com São Justino Martir, por volta de 130-140 DC, afirma que tomou "conhecimento e leu com atenção os preceitos dos evangelhos cristãos, os considerou maravilhosos e grandes, de tal forma que suspeitava que ninguém seria capaz de cumpri-los"; No entanto, lamentava o fato de que os cristãos "dizendo serem piedosos, e considerando-se melhores que os outros, não haviam se separado dos impíos, ou alterado seu modo de vida em relação aos gentios, não observam as festas e o sabath, não se submetem ao rito da circunsição; e, mais, colocam suas esperanças sobre um homem que foi crucificado, e ainda assim esperam obter bençãos de Deus, mesmo não obedecendo seus mandamentos. Vocês não leram que serão apartados do seu povo, aqueles que não se circuncidarem no oitavo dia? (...) Mas vocês, desprezando os mandamentos, rejeitando seus deveres em consequencia, e tentando convencer a si mesmos que conhecem a Deus, quando, no entanto, não cumprem os deveres daqueles que são tementes a Deus"

Na mesma linha, a visão de Galeno, contemporâneo de Luciano, e médico da corte do Imperador Marco Aurélio também pode nos ajudar a entender a percepção de pagãos cultos dos ensinos e pessoa de Jesus, como veremos com mais detalhes adiante. Mais ou menos na mesma época em que Luciano escreveu, Galeno observou, em seu sumário da República de Platão (a obra esta perdida, mas o fragmento é preservado em citações de autores árabes), que os cristãos assim como "a maioria das pessoas não eram capazes de seguir uma linha contínua de raciocinio", no entanto, "mesmo extraindo sua fé de parábolas e milagres, agiam como aqueles que filosofavam". Galeno elogia também o fato dos cristãos desprezarem a morte, se dedicarem a abstnência e controle na sexualidade, comida e bebida, e sua ânsia pela justiça "assim como os verdeiros filósofos". Claramente, apesar de criticar os da "escola de Cristo" por serem pessoas simplórias e pouco letradas, que aceitam tudo pela Fé, tem em alta conta os valores morais extraidos do seu evangelho de "parábolas e milagres". Os ensinos de Cristo permitem aos seus discipulos atingirem as virtudes fundamentais de coragem, temperança e justiça.

Então, tanto o contemporâneo de Luciano, Galeno, quanto Porfírio, cem anos depois, e Trifo, quarenta anos antes, apontam alguns dos "defeitos" dos cristãos. Os quatro destacam o fato dos cristãos serem pessoas simplórias, até mesmo ingênuas. Mas o mais importante é o fato dos Cristãos deixarem de adorar os deuses gregos, tal como os outros gentios, ou não seguirem as leis mosaícas, tais como os judeus e prosélitos do judaísmo, era imperdoável. Logo, temos um eco das críticas de Luciano aos cristãos que "adoravam ao sofista crucificado" a ponto de cometerem a grave transgressão de abandonar os deuses gregos e costumes ancestrais, bem como de sua excessiva credulidade.

Por outro lado, Trifo, Galeno e Porfirio, reconhecem, em maior ou menor grau, os méritos dos cristãos e de seu líder. Porfirio chega a dizer que Jesus foi um homem e virtuoso e sábio, querido até mesmo pelos deuses. Trifo, reconhece os ideais elevados dos preceitos éticos dos evangelhos. Galeno admira o fato de que os seguidores de Cristo, embora inaptos a compreensão do raciocínio filosófico, eram virtuosos e se comportavam como filósofos fossem. Nisso temos um eco de Luciano, que é menos generoso que os outros, os cristãos, embora ingênuos, são corajosos diante da morte e são extremados em cuidar dos seus em situação adversa.

O grande desafio dessas afirmações para os apologistas cristãos, é que, ainda que reconhecendo alguns méritos nos evangelhos e na figura de Jesus, eles questionavam porque os cristãos transformavam um simples filosofo ou mestre (na melhor das hipóteses) em Deus, e, principalmente, porque eles romperam com os deveres cívicos, a religião e práticas de seus antepassados para seguir os preceitos do Evangelho. Vemos aqui como era difícil a vida dos primeiros cristãos.

J. P. Meier avalia o valor da fonte:
"Luciano sabe que o "sofista" reverenciado pelos cristãos - os nomes Jesus ou Cristo nunca são usados - foi executado na Palestina e, como Josefo, ele especifica a forma da morte, crucificação. Como Tácito, ele supõe que este mesmo crucificado introduziu a nova religião chamada cristianismo. Como Plínio, ele conta que os cristãos adoram seu fundador crucificado. Mais uma vez, ficamos sabendo o que um pagão culto do século II poderia conhecer sobre Jesus, mas sem dúvida Luciano reflete a informação que corria na época".

Chegamos ao final de nossa série sobre Jesus, como mestre e sábio. Após Josefo, Mara Bar-Serapion e Luciano, é a vez de Galeno, o filósofo, médico da corte imperial e eminente figura, que viveu na segunda metade do século II DC.

Galeno

Claudio Galeno ou Galeno de Pergamo (129-199 DC), iniciou-se na filosofia no ano 143. Quatro anos depois, ele passou a se interessar pela anatonia, e após a morte de seu pai, foi estudar medicina em Esmirna, Corinto e Alexandria. Em 157 DC ele se tornou médico da Escola de Gladiadores em Pergamo. Já no ano 161, ele deixou Pergamo e foi para Roma, onde trabalhou por cerca de 40 anos como Médico da Corte Imperial, nos reinados de Marco Aurélio, Cômodo e Sétimo Severo. Neste período, ele escreveu numerosos tratados, sobre vários assuntos, como anatomia, medicina e filosofia.

Galeno fez quatro breves referências aos cristãos em seus escritos:

"Pode-se ensinar coisas novas com mais facilidade aos seguidores de Moisés ou Cristo do que aos médicos e filósofos que se apegam a suas escolas" (De pulsuum differentiis, iii.3)

"Melhor seria apresentar alguma demonstração, boa ou má, mas uma razão suficiente, a fim de que logo e desde o início não se ouça falar - como quem se põe na Escola de Moisés ou de Cristo - de leis não demonstraveis e justamente na área em que são menos apropriadas" (De pulsuun differentiis, ii. 4) "

O parágrafo abaixo é encontrado apenas em citações em arábico:
"Se eu tivesse em mente aqueles que ensinam a seus pupilos da mesma forma que os discípulos de Moisés e Cristo ensinam os deles - pois eles os ordenam a aceitar tudo pela Fé-- Eu não teria dado uma definição."

Assim como esta referência, do Sumário elaborado por Galeno da República de Platão, (uma obra perdida), que é encontrado apenas em citações em textos em árabe.

"A maioria das pessoas não é capaz de acompanhar qualquer demonstração racional contínua; Assim, eles precisam de parábolas, para seu próprio benefício (...) Da mesma forma, nos vemos hoje essas pessoas chamadas de cristãos, que extraem sua fé de parábolas e milagres, ainda que algumas vezes agindo da mesma maneira (daqueles que filosofam). Pois seu desprezo da morte (e suas consequências) nos é manifesto todos os dias, assim como sua continência em coabitar. Por que eles incluem não só homens, mas também mulheres que se dedicam ao celibato, assim como numerosos indivíduos que, em auto-disciplina e auto controle em questões de bebida e comida, e por sua sedenta busca pela justiça, que atingiram uma condição não inferior a dos verdadeiros filósofos"

Galeno foi contemporâneo de Luciano de Samosata e Celso. Assim como estes, foi crítico do que ele considerava a falta de bases racionais da fé dos cristãos. Contudo, ele também reconheceu alguns méritos da nova religião.

Prof. Margareth Y. MacDonald, da St. Francis University (Canadá), observa que o último texto de Galeno, (o mais longo, e mais relevante) se baseia em uma fonte arábica traduzida e publicada por Richard Walzer em "Galen on Jews and Christians" (Londres, Oxford University, 1949). Ainda que exista o risco teórico do texto se tratar ou conter interpolações cristãs, os estudiosos, como Stephen Benko e Robert L. Wilken, tem tratado o texto, consistentemente, como genuíno. Em vista da autenticidade do texto não ser contestada seriamente, passamos agora a análise de seu conteúdo.

Margareth Mac Donald:
"Ainda que Galeno tenha sido crítico da falta de uma base racional para as crenças cristãs, sua rigorosa devoção a abstnência o levou a descrever seu modo de vida como característico daqueles que eram filósofos. O fato que Galeno se referia ao cristianismo como escola filosófica e não superstição, como outros critícos haviam feito, nos lembra a aceitação que os primeiros cristãos podem ter recebido no mundo greco-romano, mesmo nos círculos elitizados"

Professor Stephen Benko, Universidade do Estado da California
"Poderíamos listar ainda mais apologistas, mas o ponto central já esta claro: estes cristãos queriam que a igreja fosse respeitada como um dos muitos movimento filosóficos existentes.
Galeno realmente considerava a igreja dessa forma, marcando assim uma mudança substancial da visão dos pagãos relativa ao cristianismo. Para Galeno, os cristãos não eram conspiradores perigosos ou canibais abomináveis, mas seguidores de uma escola filosófica. Dessa forma, Galeno (embora não o público em geral) conferiu ao cristianismo uma certa respeitabilidade, e os cristãos tornaram-se socialmente aceitáveis. Entretanto, Galeno não estava satisfeito com a filosofia cristã. Ela lhe parecia sem uma base racional, ainda que os cristãos se apegassem a um modo de vida peculiar. Para o cientista e estudioso, acostumado a demonstrar a verdade e rejeitar evidências "de ouvir falar", esta aceitação de tudo pela fé parecia infantil e primitiva.
(...) Ainda assim, Galeno foi um observador simpático ao cristianismo. Ainda que ele criticasse a falta de treinamento filosófico dos cristãos, ele apreciava suas virtudes morais. Ele louva a coragem deles diante da morte, sua aceitação da privação física, e sua continua busca pela justiça. Segundo Galeno, a despeito de suas limitações, os cristãos agiam como verdadeiros filósofos"


Prof. Robert M. Grant, da Universidade de Chicago, também observa a insatisfação de Galeno com as bases racionais e filosóficas do cristianismo, e também seu louvor ao comportamento moral dos cristãos.

"Galeno escreve em três ocasiões diferentes, sobre leis não demonstradas aceitas pelos discípulos de Moisés e Cristo, possivelmente entre 176-180, mas já diferencia os cristãos por volta de 180. Ainda que não fossem filósofos, eles desprezavam a morte, exerciam auto-controle na sexualidade, comida e bebida, e buscavam a justiça. Walzer compara a admiração de Galeno por escravos incultos que em 185 foram torturados mas não trairam seus mestres. Ainda mais importante, Galeno trata o comportamento dos cristãos de forma similar ao encontrado nas "Exortações atribuidas a Pitágoras", que ele lia duas vezes por dia; Eles favoreciam não só o desapego de Epicuro da raiva, mas sua pureza no que concerne a glutonaria, luxúria, embriaguez, intromissão e inveja. Por essa época, ditos morais Pitagóricos eram atribuidos ao autor cristão Sextus".

Galeno, a respeito de suas reservas quanto a solidez filosófica e racionais do cristianismo, tinha os valores morais da nova religião em alta conta, e atribuia isso ao ensinos encontrados nos evangelhos. A "Escola de Cristo" conseguia transformar pessoas simplórias em seres humanos disciplinados, corajosos e ansiosos pela justiça, "verdadeiros filósofos".

Sobre o impacto que a figura de Cristo e seus ensinos tiveram, vale observar que algumas décadas depois de Galeno, já em meados do século III, Mani (216-276 DC), um filósofo que vivia na distante Mesopotâmia (atual Iraque), então sob dominio do Império Parto, fundaria um sistema religioso que combinava ensinos de Jesus, Zoroastro e Buda, chamado Maniqueismo, que rapidamente se tornaria popular entre as elites do Império Romano, e se expandiria da China ao confins ocidentais do mundo Romano nos séculos seguintes.

Outro caso é citado por John P. Meier, que observa que já no início do século III, o Imperador Alexandre Severo (222 a 235 DC), mantinha em sua capela particular imagens de vários imperadores divinizados, de Alexandre Magno e de vários homens santos, como Apolônio de Tiana, Jesus Cristo, Abraão e Orfeu [33]. Meier faz a significativa ressalva de que a fonte dessa informação é a problematica e, muitas vezes, pouco confíavel, "História Augusta" - uma coleção de biografias de Imperadores entre Adriano (117-138) e Numeriano (283-284), supostamente escrita por seis diferentes autores no início do séc. IV, hoje considerada pelos estudiosos como produto de um único autor por volta do final do século IV [33][34]. No entanto, apesar de suas limitações "Historia Augusta" ainda é uma das fontes principais ( e as vezes a única) de informações históricas para muitos os Imperadores Romanos dos séculos II e III, mesmo para figuras como Marco Aurélio, Adriano, Antonino Pio e Lucio Vero, trazendo informações que variam do "preciso e acurado até o evidentemente fictício"

Concluindo, é fato que os cristãos nos séculos II e III foram vistos com desconfiança e hostilidade pelas elites judaicas e greco-romanas. O cristianismo era, na visão de muitos observadores externos, uma superstição; nova emaligna (Suetônio, De Vita Nero, 16:2), depravada e irracional (Plínio, Cartas 10:96) e "daninha" (Tácito, Anais 15:44).

No entanto, esta não é história completa. Temos em Galeno um eco do Jesus o "homem sábio" de Josefo, e da surpresa de Plínio, que mesmo sendo hostil ao cristianismo e o considerando uma "superstição irracional e sem medida", nada encontrou além de pessoas que se reuniam para cantar hinos ao seu Mestre se comprometendo "sob juramento, não com algum crime, mas a abandonar o furto, o roubo, o adultério, a infidelidade e não se apossar dos bens a eles confiados".

Ao passo que muitos dos membros da elite do Império frequentemente tinham uma visão pejorativa dos cristãos, os seus méritos não passaram desapercebidos. Vemos em Galeno, um membro distinto da elite romana, a continuidade de uma tendência, já incipiente em observadores anteriores de ver algumas virtudes no cristianismo, principalmente na figura de Cristo como Mestre de verdades morais. E que se intensificaria um pouco mais (em críticos como Porfírio). Nesse contexto, é possível entender Josefo se referindo a Jesus como "homem sábio" e mestre.

O Jesus Mestre e Sábio é apenas uma das facetas de sua personalidade, o elemento que parece mais ter chamado a atenção de observadores simpáticos ou neutros. Não nos atrevemos, no entanto, a descrever tal figura na sua totalidade, pois, suspeitamos, parafraseando aqui o evangelho, "que nem toda a tinta e papel do mundo seriam suficientes".

terça-feira, 27 de março de 2012

Raymond E. Brown, “como se deve entender o beijo de Judas?"


Madrugada de quinta para sexta-feira, arredores de Jerusalém, Palestina ocupada. Lá vem ele. Acompanha-o uma turba armada “de espadas e paus”, segundo um dos principais cronistas do evento. Sua vítima o espera, cheia de angústia. Quando os dois se encontrarem, vai se dado a mais desprestigiosa utilização que uma saudação geralmente tida por amistosa já conheceu. O mesmo cronista informa que o homem vinha chegando combinara com a turba: “É aquele que eu beijar. Prendei-o e levai-o bem guardado”. Num beijo se concentrará a torpeza sem nome da traição! Nosso cronista, conhecido apenas por prenome, Marcos, prossegue: “Tão logo chegou, aproximando-se dele, disse:” Rabi!”E o beijou. Eles lançaram a mão sobre ele e o prenderam.”

Que havia nesse beijo, o mais escandaloso da História do mundo, ocorrido há mais ou menos 1.965 anos com o qual o vil aventureiro chamado Judas entrega Jesus? Ou, para colocar a questão nos termos de um dos maiores especialistas nos evangelhos, o padre americano Raymond E. Brown, no nível da História ou da verossimilitude, como se deve entender o beijo de Judas? Brown responde:

“Se o beijo era uma saudação normal, que podia ser usado por qualquer conhecido, ou numa saudação costumeira entre Jesus e os discípulos, então ele poderia convir à trama daqueles que tinham pagado Judas para evitar uma resistência ruidosa e conseqüentemente ao desejo de Judas de parecer normal. Se não era uma saudação normal, mas um gesto incomum, implicando especial afeição, então Judas era um hipócrita malévolo”.

Em nenhum outro lugar dos evangelhos Jesus e os discípulos são mostrados trocando beijos, mas esse silêncio “pode ser acidental”, escreve Brown. Ele se inclina para a hipótese de que o beijo era uma saudação normal, e Judas o aplicou para não parecer suspeito. Contra essa tese há uma objeção forte: se Judas acabara de estar com Jesus, na última ceia, por que saudá-lo de novo? Mas, conclui Brown, “a freqüência das saudações normais, por exemplo, o aperto de mão, varia grandemente entre os povos; e temos muito pouca idéia de quão freqüentemente os palestinos as trocavam”.

Transcrevem-se aqui as conjeturas sobre o beijo para exemplificar o nível de minúcia a que podem chegar os estudiosos de um texto como o de Marcos. Qualquer texto oferece a possibilidade de discussão. Quanto mais valha a pena, mais fecunda será sua dissecação, seja por que a ótica for - gramatical, literária, histórica, filosófica, sociológica, psicológica, antropológica ou teológica. Ao longo dos últimos vinte séculos, no entanto, nenhum texto foi objeto de tanta dissecação, e tanta discussão, quanto os evangelhos Marcos, Mateus, Lucas e João., os autores canônicos, ou seja “oficiais” da cristandade. E, dentro dos evangelhos, nenhum trecho despertou tanto interesse, tanta emoção e discussão quanto a paixão e a morte de Jesus que os cristãos comemoram a partis de quinta-feira, na Semana Santa.

Não há relato tão longo e detalhado, nos evangelhos. A infância só é abordada por dois evangelistas, Mateus e Lucas, e sumariamente. A parte do ministério de Jesus é uma coleção de pequenos episódios biográficos, milagres e parábolas. Já a paixão tem começo, meio e fim. Cada evangelista apresenta detalhes exclusivos - só Mateus dá conta da morte de Judas, por exemplo, e só João reproduz um longo diálogo entre Jesus e Pilatos. Apesar disso, com ligeiros desvios em João, que é o evangelho mais diferente, há uma seqüência comum delação, prisão, julgamento pelas autoridades religiosas judaicas, julgamento pela autoridade romana, execução e enterro, com episódios de zombaria de Jesus intercalando algumas dessas cenas. Tudo somado mostra-se uma peça de insuperável força dramática.

Com o beijo de Judas, estamos entrando nesse universo misterioso. E logo se impõe a pergunta: o beijo existiu de verdade? Acompanhe-se o raciocínio de um segundo autor, o israelense Haim Cohn. Jesus tomara-se conhecido em Jerusalém, onde tinha entrado triunfalmente, montado num asno. Diariamente estava no Templo, pregando. Então, por que alguém precisaria identificá-lo e entregá-lo? Prossegue Cohn: "A explicação em geral apresentada para tornar plausível a história é a de que os principais sacerdotes tinham muito medo do clamor popular". Por isso, determinaram prendê-lo à noite, e fora da cidade. No entanto, argumenta o autor, o evangelho de Lucas informa que toda noite Jesus ia ao "monte chamado das Oliveiras". O evangelho de João o confirma. As autoridades não precisariam de informante para apanhá-lo. Para Cohn, a história da traição de Judas é "tão improvável, tão incongruente", que merece crédito".

Um terceiro autor, o irlandês radicado nos Estados Unidos, John Dominic Crossan, tem uma posição mitigada. Ele aceita que Jesus tenha tido um seguidor chamado Judas, e que esse seguidor o tenha traído. Mas não aceita a cena do beijo, cuja intenção, a seu ver, é apresentar Judas em cores caricatamente cruéis. Crossan lança uma hipótese: Judas teria sido preso antes de todos, durante uma ação da qual se falará adiante, e teria delatado Jesus.

Judas é o ponto de partida. Este artigo seguirá a paixão e a morte, tendo por baliza três perguntas: quem matou Jesus? Por quê? Como? Advirta-se de antemão que não há respostas conclusivas. O que se apresentará são as teses dos eruditos. Especificamente, vai-se seguir a trilha de três livros, dos três autores já citados. O primeiro é The Death of the Messiah (A Morte do Messias), um monumental estudo de 1600 páginas e dois volumes lançado no ano passado nos Estados Unidos (Doubleday) pelo padre Raymond Brown, professor da Union Theological Seminary, de Nova York. O segundo é Who Killed Jesus? (Quem Matou Jesus?), que John Dominic Crossan, antigo padre, hoje professor de estudos bíblicos da Universidade DePaul, em Chicago, lançou há poucas semanas, também nos Estados Unidos (HarperSan Francisco), em resposta ao livro de Brown. O terceiro é O Julgamento e a Morte de Jesus, de Haim Cohn, um livro de 1967, lançado no ano passado no Brasil (Imago), que apresenta a originalidade de o autor ser judeu e ter ocupado os cargos de procurador-geral e, depois, juiz da Suprema Corte de Israel.

Daquilo que está nos evangelhos, o que realmente aconteceu? Não é à toa que esta é a pergunta mais recorrente, nesta matéria. Tem-se repetido sempre que o cristianismo é uma religião histórica, no sentido de que se apóia não em um deus ou deuses mitológicos, mas numa figura de existência real, que viveu numa determinada parte do globo, num determinado período, e teve sua trajetória condicionada pelas circunstâncias da época e do local. Brown, no entanto, adota uma abordagem que em primeiro lugar investiga o que o evangelista quis exatamente dizer - quais as tradições que inspiraram seu texto e que mensagens ele procura transmitir. Segundo ele, a "obsessão com a história pode constituir uma obstrução ao entendimento dos evangelhos". A intenção dos evangelistas, lembra ele, era evangelizar, e Brown não exclui que, para isso, se tenham utilizado de variados recursos - inclusive a ficção.

Os evangelistas, pessoas que mal se sabe quem são, e onde viveram, não trabalharam com informações de primeira mão. Há um consenso entre os eruditos, hoje, de que seus trabalhos datam de no mínimo quarenta anos depois da morte de Jesus, sendo o mais antigo o de Marcos (escrito por volta do ano 70 a.D.), e o mais novo o de João (cerca de 10 a.D.). Nas narrativas da paixão, os evangelistas incluíram personagens e situações inesquecíveis - as negações de Pedro antes de o galo cantar, os sumos sacerdotes Anás e Caifás, o bom e o mau ladrão - e uma bomba-relógio. A bomba-relógio são as fortes acusações contra os judeus, tratados como responsáveis pela morte de Jesus. Ela foi estourando com intensidade variada ao longo dos séculos. Na Idade Média, segundo informa o livro de Brown, cultivava-se em Toulouse, na França, uma cerimônia da paixão durante a qual um judeu era trazido à catedral para receber um soco do conde da cidade. Houve práticas mais atrozes, como se sabe.

Crossan escreve: “O que estava em jogo nas narrativas da paixão no longo curso da história, era o Holocausto judeu”.

A própria figura de Judas tem a ver com o que se está dizendo. Seu nome, nota Brown, é etimologicamente ligado a “judeu”. Na arte, muitas vezes, carregaram-lhe os traços considerados “semitas”. Seu gosto pelo dinheiro foi generalizado para um povo. Santo Agostinho sustentava que, enquanto Pedro representa a Igreja, Judas representa os judeus. A história da Paixão tem duas vítimas, como se mostrará nas páginas seguintes. Jesus é uma. O povo judeu é a outra.

Prisão

No jardim de Getsêmani, com o traidor, chega a tropa. Quem se encarregou de prender? E por quê? E quem mandou?

A agonia de Jesus começa num jardim. Ali, no lugar chamado Getsêmani, no Monte das Oliveiras, ele começou a "apavorar-se e angustiar-se” segundo Marcos, e rezou para o Pai: "Afasta de mim este cálice". Os discípulos dormiam, em vez de vigiar. Ele estava só. "A minha alma está triste até a morte", disse. Logo chega Judas, à frente do grupo que o iria prender. Que grupo era esse? Quem prendeu Jesus? Eis uma primeira questão crucial, quando se investiga quem o matou e por quê?

Marcos escreve que, com Judas, vinha "uma multidão trazendo espadas e paus, da parte dos chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos". Mateus o acompanha. Lucas acrescenta que, entre os que vieram prender Jesus, estavam “chefes dos sacerdotes, chefes da guarda do Templo e anciãos". João afirma que Judas levava uma “coorte", além de "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Escreve Brown: "Marcos e Mateus não dão sinal da presença de uma unidade militar ou policial regular no Getsêmani". Mas Lucas, ao acrescentar a presença dos chefes dos sacerdotes e da guarda do Templo, "afasta qualquer tom de uma populaça irregular”, segundo Brown. De todo modo, até aqui se sugere a predominância, se não a exclusividade, da presença de judeus. Já João dá conta de uma "coorte", e assim introduz a presença romana na cena. "Coorte" é uma fração do Exército romano, equivalente a 600 soldados, ou 1 décimo de uma legião.

Começa-se a desenhar a coligação que, segundo os evangelhos, vai encurralar Jesus até a cruz - a dos judeus com os romanos. Que peso atribuir a um e outro grupo, se é que, um e outro realmente merecem arcar com algum, é uma questão crucial. A interpretação convencional e popular, formulada a partir do valor de face dos evangelhos, é de que os romanos foram mais lenientes. A maior autoridade da região, Pôncio Pilatos, até queria soltar Jesus, mas esbarrou na intolerância dos judeus. Brown cita em seu livro o sumário de um autor alemão, J. Blinzler, reunindo os cinco níveis de envolvimento de um ou outro grupo, segundo as diversas conclusões dos eruditos: (1) Judeus totalmente responsáveis pela morte de Jesus, com os romanos reduzidos à sua mera implementação; (2) Judeus tendo um papel decisivo, cabendo aos romanos uma porção menor; (3) Judeus e romanos igualmente envolvidos, (4) Romanos tendo um papel decisivo, cabendo aos judeus uma porção menor; (5) Romanos totalmente responsáveis, sem envolvimento judeu.

Entre os diferentes graus dessa escala tem-se desenrolado a questão mais polêmica da paixão, e uma das mais polêmicas do mundo. Para situar a discussão, recordem-se os pontos fundamentais da situação política na Palestina, na época. Havia cerca de 100 anos, a região havia sido incorporada ao Império Romano. Do ponto de vista administrativo e judicial, porém, a situação era complexa. Na GaliIéia, ao norte, onde Jesus viveu e pregou a maior parte do tempo, reinava, embora devendo obediência à autoridade romana, um judeu, Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande. Na Judéia, onde fica Jerusalém, a autoridade romana era exercida diretamente, por meio de um governador, Pôncio Pilatos. Mas mesmo na Judéia os romanos permitiam a sobrevivência de órgãos judaicos de governo, o principal dos quais era o Sinédrio, do qual muito se ouve falar nos evangelhos. O Sinédrio era uma assembléia com supremo poder sobre questões religiosas, mas também algum poder em questões administrativas e judiciais. A situação confusa, sobre a qual há escassa documentação, é propícia a que se estabeleçam explicações e versões divergentes.

Somados, os evangelhos e as evidências da situação política na Judéia sugerem aos estudiosos que havia romanos na prisão de Jesus. Argumenta Brown que João não inventaria a participação romana, ele que se mostrará tão simpático a Pilatos, no julgamento. Mas teria sido mobilizada uma coorte inteira para a operação no Getsêmani? Os romanos, informa o livro de Brown, não tinham em Jerusalém um número tão grande de soldados que pudessem dispor de 600 deles só para esse fim. "Coorte", supõe Brown, teria sido usada pelo evangelista de uma maneira "popular, inexata", da mesma forma como se fala em "legiões romanas”, sem atenção à precisa quantidade das tropas.

No Getsêmani já se estrutura o Jesus de cada evangelista, na paixão. O de Marcos, seguido por Mateus, é aquele Jesus solitário que se apavora e se angustia. “Para Marcos/Mateus, a paixão é uma descida para o abismo durante a qual Jesus hesitará, ao não encontrar apoio humano”, escreve Brown. Abandonado pelos discípulos, ele atravessará um túnel escuro até, nota Brown, o grito desesperado na cruz: "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" O de Lucas não foi abandonado pelos discípulos nem se confessará "triste até a morte". "Os leitores ficam com a sensação de que Jesus está em comunhão com seu Pai todo o tempo, tanto que, apropriadamente, as últimas palavras do crucificado não são um grito angustiado para seu Deus por quem se sente abandonado, mas um tranqüilo. ‘Pai,em tuas mãos entrego o meu espírito'." 0 Jesus de João é triunfante. Ele estará sempre no controle da situação. Quando enfrenta Pilatos, até parece que ele é que julga o governador romano, não o contrário. No Getsêmani, quando chegam às tropas, Jesus adianta-se e pergunta: "Quem procuras?" Os soldados respondem procuram Jesus de Nazaré, e Jesus responde: "Sou eu". Nesse momento soldados recuam e caem por terra pelo poder de Jesus, mesmo sobre a tropa romana, é o interesse do evangelista”, escreve Brown.

Questão seguinte: quem mandou prender, e por quê? Marcos data dos incidentes do Templo, quando Jesus ali entrou, virou as mesas e cadeiras dos comerciantes, e os expulsou do local. O início da conspiração para matá-lo. Jesus passou a ensinar que aquela devia ser uma casa de orações, não um covil de ladrões. "Os chefes dos sacerdotes e os escribas ouviram isso”, prossegue o evangelista, “e procuravam como matá-lo: eles o temiam, pois toda a multidão estava maravilhada com o seu ensinamento”.

Os “chefes dos sacerdotes” e os "escribas”, com freqüência acompanhados dos "anciãos", formam uma tríade sempre ao encalço de Jesus, nas narrativas da paixão. Em certos momentos cruciais, a coroá-los, se mencionará o “sumo sacerdote”. Quem são essas figuras? O sumo sacerdote, no período da ocupação romana, era nomeado pelo governador, que o escolhia entre as famílias judias dominantes. Caifás era então o Sumo Sacerdote, genro de Anãs, cuja influência aparentemente ainda se fazia sentir. Os “chefes dos sacerdotes", segundo Brown, “eram provavelmente antigos sumos sacerdotes, ao lado de preeminentes membros de famílias entre as quais sumos sacerdotes recentes haviam sido recrutados, e algumas pessoas a que tinham sido confiadas especiais missões sacerdotais”. Os “anciãos" seriam patriarcas das famílias “mais ricas e distintas”, e os escribas, pessoas que se destacavam “pela inteligência e cultura", entre as quais se encontrariam os fariseus. Grosso modo, esses três grupos constituiriam o Sinédrio, que no total contava 71 membros.

João apresenta outra versão. Segundo ele, foi o fato de ter ressuscitado Lázaro que desencadeou a conspiração contra Jesus. Esse prodígio lhe atraíra muitos seguidores, informa esse evangelista. Os “chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram então o Conselho ­(Sínédrio) e disseram:” Que faremos? Esse homem realiza muitos sinais. “Se o deixarmos assim, todos crerão nele, e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e nação”. Conclui João que “a partir desse dia decidirão matá-lo”. Segundo Brown, o evangelho de João nesse ponto obedece a imperativos teológicos: ele quer contrastar a vida dada a Lázaro com a morte prometida a Jesus.

Brown é um comentarista tão informado quanto cauteloso. Seu livro, de vocação enciclopédica, resume e aprecia o trabalho e as teorias de mais de 2 000 eruditos, mas não se esperem dele teses audaciosas. Sua tendência é a interpretação conservadora dos evangelhos: as desordens no templo. Marcos situa o início da conspiração em seguida ao incidente no Templo, mas isso no contexto de uma disputa intra-religiosa e do ciúme de seguidores que Jesus vinha arregimentando. Crossan desprega-se da letra do texto evangélico para propor que o problema foi de ordem pública. O quebra-quebra é que incomodou.

O Templo era a expressão visível do judaísmo. “Assim como ha­ via um só Deus, havia um só Templo”, escreve Crossan. Era o lugar de onde emanava a suprema autoridade religiosa, mas dotada também de ampla autoridade temporal, com seu poder coercitivo de exigir obediência e cobrar taxas, num tempo - e num povo - em que mal se separavam os conceitos de autoridade religiosa e temporal. Era uma expressão do poder, portanto, e nessa qualidade, segundo Crossan, despertava sentimentos ambíguos entre os pobres filhos do campesinato como Jesus. “ Era ele (o Templo) o lugar das preces e sacrifícios ou o lugar dos dízimos e das taxas?”, escreve Crossan. "Era a morada divina ou o banco central? Era a ligação entre Deus e eles (os camponeses), entre o céu e a terra, ou a ligação entre religião e política, entre os colaboracionistas judeus e o ocupante romano?" Eram as duas coisas, conclui o autor.

O ato de Jesus contra o Templo, segundo Crossan, foi "bastante claro". Foi como, nos Estados Unidos, "invadir um centro de recrutamento, durante a Guerra do Vietnã, e virar todas as gavetas e suas fichas.” Teria sido um ato contra o poder e a política dominante, em suma, e acresce que isso ocorreu quando se aproximava, ou já se vivia, a festa do Pessah, a Páscoa do judeu, ocasião em que multidões de peregrinos acorriam a Jerusalém e mais nervosa se tornava a susceptibilidade quanto a pos­síveis desrespeitos à ordem. O Pessah comemora a libertação dos judeus da escravidão a que eram submetidos no Egito, "e esta lembrança anual deve ter sido especialmente difícil quando o Egito tinha sido substituído por Roma e a pátria judaica não era mais o lugar da liberdade, mas de ocupação colonial”, escreve Crossan. E acrescenta: “Imagine-se um grande número de pessoas reunidas num espaço muito confinado para celebrar sua antiga libertação da escravidão com um reizinho herodiano ou um prefeito romano agora no poder e soldados pagãos vigiando o Templo a partir da Fortaleza Antonina, no seu canto noroeste".

Causar turbulência no Templo era algo que as autoridades não poderiam tolerar, conclui Crossan, e é aqui que ele arrisca uma opinião sobre qual poderia ter sido o papel de Judas: "Minha suposição é de que Judas possa ter sido capturado entre os companheiros de Jesus, durante a ação no Templo, e em seguida contado quem tinha feito aquilo e onde se encontrava". A explicação de Crossan para a prisão e a morte de Jesus é conseqüência lógica de sua visão de que Jesus foi um insubmisso, com um programa de "radical igualitarismo" que, cevado no campesinato insatisfeito da Galiléia, desafiava os poderes constituídos.

Brown não concorda. Sua visão, mais uma vez, segue a letra dos evangelhos, onde Jesus afirma que seu reino "não é deste mundo". Brown alinha um elenco de razões pelas qual Jesus não era um subversivo: "Sua crítica dos ricos, em Lucas, não era parte de um projeto de reestruturação econômica; seus mais íntimos seguidores não eram camponeses, mas, até onde sabemos pessoas com ocupações independentes (inclusive pescadores e coletores de impostos); eles não eram muito numerosos e, certamente, não um grupo organizado e armado, nenhuma campanha militar foi conduzida contra ele; ele foi preso sozinho e desarmado; foi julgado e condenado de uma maneira ordeira, não morto numa batalha, ou depois dela".

Haim Cohn, o terceiro autor que estamos sumariando, começa seu raciocínio a partir das forças que prenderam Jesus, segundo João, “uma coorte romana” e "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Que guardas seriam estes? Cohn responde: “eram membros da polícia do Templo, uma organização cuja finalidade principal, manter a ordem nas instalações do Templo, não excluía eventuais missões fora. Se havia uma coorte era porque estava desencadeada uma operação romana, operação essa tão do interesse romano que o governador se mobilizara para um julgamento fogo na manhã seguinte. Mas, então, que estaria fazendo nela a polícia do Templo? Responde Cohn: se à polícia do Templo foi permitido estar presente, foi porque ela mesmo o solicitou.

Cohn desfia sua tese salpicando-a de suspense. "Deve ter uma forte razão”, escreve, para que a polícia judia pedisse para estar presente à operação. Ele acrescenta: "Tampouco devemos subestimar a importância de uma decisão de destacar um contingente de polícia do Templo para serviço fora das dependências do Templo numa noite como aquela, quando a cidade e o santuário transbordavam visitantes de todas as partes do país, toda a força sendo necessária para manter a paz e a ordem. Havia seguramente um grande interesse em jogo”. Que grande interesse era esse? Aguarde-se o próximo capítulo.

Julgamento

Primeiro as autoridades judias, depois Pilatos, condenarão o réu. Quem entre esses dois merece a maior culpa?

Estamos agora no palácio do sumo sacerdote. O preso é levado para dentro. 0 discípulo Pedro, que o acompanhara a distância, fica no pátio, aquecendo-se ao fogo com os criados. A noite é cheia de presságios.

Os quatro evangelhos reportaram que, uma vez preso, Jesus foi levado às autoridades judaicas. Marcos e Mateus, claramente, e Lucas, com menos clareza, dão conta de um julgamento, pelos dignitários judeus, ao fim do qual Jesus será condenado à morte. João relata um interrogatório, sem julgamento, mas já informara antes, quando da ressurreição de Lázaro, que o Sinédrio condenara Jesus à morte. Existiu ou não o julgamento judaico? Este é um dos pontos mais controvertidos da paixão. Haim Cohn aceita que o Sinédrio se tenha reunido, mas não para julgar, e muito menos para condenar. Mas então para quê? Por que razão teriam os membros do mais alto corpo judaico, pessoa, importantes da sociedade, se dado ao trabalho de sair de casa àquela hora da noite, e ainda por cima num dia festivo?

Retomemos a tese cheia de suspense de Cohn “O fato de que o Sínédrio teria sido convocado naquela noite particular para uma reunião na residência do sumo sacerdote e devesse, em última instância, passar ali longas horas até a manhã seguinte exige explicação muito forte e convincente para ser crível”, escreve ele. A conclusão do autor israelense é que só pode haver uma coisa na qual toda a liderança judia estava interessada: "Impedir a crucificação de um judeu pelos romanos e, mais particularmente, de um judeu que gozava do amor e afeição do povo". Segundo Cohn, o Sinédrio reuniu-se não para condenar, mas para salvar Jesus!

Não que as autoridades judaicas morressem de amores pelo pregador da Galiléia. Mas partindo da premissa de que Jesus era popular, Cohn afirma que o Sinédrio precisava tentar alguma coisa em seu favor, sob pena de cair em desgraça perante o povo. Tendo sabido que ele seria levado na manhã seguinte à máxima autoridade romana, e com toda a probabilidade sofreria uma condenação à morte, resolveu agir rápido. Primeiro conseguiu autorização para que sua polícia participasse da prisão. Depois, que o trouxesse à sua presença. Enfim, trancado com Jesus, tentou duas coisas: instruí-lo sobre o que responder no tribunal do governador e persuadi-lo a colaborar com o alto comando judaico. Jesus recusou-se a aceitar uma parceria com o Sinédrio, porém, o que implicaria a renúncia a seus pontos de vista dissidentes, e todo o esforço foi perdido.

Como encarar a tese de Cohn? Brown, ao referir-se a ela em seu livro, descarta-a como “ficção benevolamente imaginativa”. Não há nenhuma tradição judaica antiga, argumenta ele, que coloque em dúvida o envolvimento de autoridades judias na morte de Jesus. A veracidade do julgamento judeu tem sido contestada por argumentos que vão das questões procedimentais. como a realização de um julgamento noturno, quando a jurisprudência universal os recomenda à luz do dia, até o fato mais desconcertante de os evangelhos darem conta de dois julgamentos, um judeu e outro romano “por que tal sobreposição, com que fim e com que lógica?” Brown responde, quanto ao primeiro ponto, que o julgamento ter sido à noite é coerente com o que dizem os evangelhos - que não foram oferecidas as garantias de praxe ao réu. "Marcos informa que as autoridades judias o queriam preso e levado à morte em segredo, e com tão pouca atenção pública quanto possível", escreve Brown. "Procedimentos noturnos convêm a isso muito bem."

Para a bizarra duplicação dos julga­mentos, alguns oferecem a explica­ ção de que o procedimento judeu teria sido uma investigação preliminar, não um julgamento. Outros, no sentido inverso, afirmam que coube aos romanos apenas executar uma sentença judia. A chave para o entendimento da questão estaria num diálogo reportado por João, quando Pila­tos, não encontrando razões para assumir o caso de Jesus, diz aos judeus: "Tomai-o vós mesmos e julgai-o conforme a vossa lei". Os judeus respondem: "Não nos é permitido condenar ninguém à morte”.

Será que os judeus não podiam executar penas de morte? Estamos no intrincado, território das competências entre a Justiça romana e a judaica. Brown argumenta que em alguns casos de clara inspiração na lei, religiosa, como a proibição de circular em determinadas dependências do Templo, e talvez adultério, os judeus poderiam executar eles mesmos a sentença. Em outros, de interesse para a sociedade como um todo, eles teriam de repassar o “caso à autoridade romana, que resolveria se caberia ou não a pena de morte.

As acusações contra Jesus, no julgamento judeu foram as de proferir ameaças de destruição do Templo e proclamar-se o Messias. Brown comenta, sobre a primeira das acusações, que "o Templo era a instituição-chave da vida cívica e religiosa na Judéia e o tesouro da nação". Portanto, ações contra ele iam além do interesse teológico, para atingir os reinos sócio-econômicos e da política, e é bastante plausível que provocasse nas autoridades letal hostilidade. Estamos a alguns passos da tese de Crossan, de que Jesus caiu em desgraça por promover desordens no Templo, mas Brown não dará esses passos.

O fato é que apenas dois evangelistas, Marcos e Mateus, referem-se claramente à acusação pertinente ao Templo, e todos reportam a segunda acusação “a pretensão de Jesus a ser o Messias, ou o Filho de Deus. E é por admitir sê-lo”, segundo Marcos, acompanhado por Mateus, que Jesus será conde­nado pelo tribunal judeu, pois sua proteção messiânica foi considerada blasfê­mia. Cohn afirma que blasfêmia, para os judeus, era apenas, e estritamente, pronunciar o tetragrama, o nome proibido de Deus, e se não há notícia de que Jesus o tenha feito, então ele não pode ter sido condenado por esse crime. Além do mais, blasfêmia é crime puramente reli­gioso, que poderia ser punido pelos pró­prios judeus - e por apedrejamento, como impõe a Bíblia, não na cruz. Já Brown considera verossímil que Jesus tenha sido condenado por blasfêmia, cri­me que, para ele, neste caso tipificou-se pela "reivindicação arrogante de prerrogativas ou status mais propriamente associados a Deus.

Encerrados os procedimentos judeus, Jesus foi levado pela manhã a Pilatos. Quem era esse governador romano, tão célebre que entrou no Credo, garantindo-se, com sua participação nesse episódio uma memória histórica com que nem de longe na carreira mediana lhe faria supor? Um documento que se tem sobre ele é uma carta do dirigente judeu Herodes Agripa ao imperador Calígula, cerca de dez anos depois da morte de Jesus. Diz Agripa que Pilatos era "naturalmente inflexível e implacável", e cometia atos de corrupção, de insulto, de rapina, de ultrajes ao povo, de arrogância, assassinatos de vítimas inocentes e da mais violenta selvageria”. Haim Cohn considera esse documento 6 mais fidedigno entre os que dão conta da personalidade de Pilatos.

Brown, mais uma vez, oferece uma visão inversa, a partir de um episódio relatado pelo historiador judeu antigo Flávio Josefo. Uma vez Pilatos enviou a Jerusalém uma tropa levando estandartes com a efígie do imperador Tibério, algo considerado sacrílego pelos judeus. Estes organizaram expedições à cidade costeira de Cesaréa, onde residia o governador, para protestar e exigir que ele removesse os estandartes. As manifestações se sucederam dia após dia. No sexto, Pilatos ameaçou matar os manifestantes. Estes se deitaram no chão, dispostos a morrer. Admirado com a determinação dos judeus, Pilatos voltou atrás e mandou remover os estandartes. Brown comenta que o incidente "não sugere um tirano teimoso até a selvageria", e conclui que os evangelhos podem ter pintado um Pilatos não distante da realidade, ao mostrá-lo como um juiz tolerante, disposto a dar uma chance ao réu.

Perante o governador romano, a acusa­ção messiânica transmuda-se para o plano temporal. Agora Jesus é acusado de pretender-se "o rei dos judeus”. "Sob a lei romana, isso devia parecer sedição”, escreve Brown. Muitos eruditos concordam que Jesus pode ter sido enquadrado na famosa Lex lulia de Maiestate, ou seja, considerado culpado de crime de lesa-majestade.

A cruel questão da culpa judaica não se exprime apenas na condenação pelo Sinédrio. Mais polêmica ainda é a participação que é conferida à "multidão", incitada pelos "chefes dos sacerdotes e os anciãos", segundo Marcos e Mateus, ou os "judeus", pura e simplesmente, como quer João, no julgamento romano, interferindo agressivamente, e levando um relutante Pilatos a condenar o réu. "Que farei de Jesus, que chamam de Cristo?", pergunta Pilatos. As "multidões", segundo Mateus, respondem: "Crucifiquem-no”. Em João, em cenas de elaborada dramaturgia, Pilatos alterna diálogos filosóficos com Jesus, sobre a verdade e o reino deste mundo e do outro, com exortações ao populacho para que perdoe o réu. Não adianta, os "judeus” estavam-se inflexíveis: "À morte! À morte! Crucifica-o!"

Cohn aponta várias estranhezas, no episódio. Primeira: que fez com que os "judeus" ficassem tão hostis a Jesus, eles que o haviam recebido em triunfo em Jerusalém havia alguns dias? Segunda: como aceitar que um "onipotente governador romano? se sujeitasse a ficar pedindo aos nativos "conselho sobre como tratar um criminoso preso", e ao tomar a decisão se deixasse arrastar pelos "apelos populares histéricos"? Cohn considera o episódio "demasiado grotesco" para merecer crédito, mas Brown acredita em sua plausibilidade. 0 padre americano traça o cenário seguinte: "Pilatos suspeita que a verdadeira questão seja assunto religioso judaico, de que a verdadeira questão seja um assunto religioso judaico de interesse interno, e não um crime político contra a majestade do imperador. “A multidão pressiona Pilatos; e ele não deseja que o caso resulte num outro tumulto em Jerusalém, ainda mais no contexto de festival de Páscoa”. Daí ele ter-se sujeitado à pressão popular, da mesma forma que o fizera no caso dos estandartes com efígie do imperador.

Momento mais célebre da trajetória de Pilatos na história e no imaginário universais é quando ele lava as mãos. “estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa”, diz. Trata-se de um não romano, mas judeu. Está na Bíblia que, quando morre um inocente que não se sabe quem matou, os principais do lugar devem lavar as mãos e declararem-se inocentes daquele sangue. Brown, que geralmente tende a dar plausibilidade à letra dos evangelhos, dessa vez não vai por esse caminho. O pagão Pilatos, nesse momento, escreve ele, “age e fala como se fosse um leitor do Antigo Testamento e um seguidor dos costumes legais judaicos”. Outro momento ao qual Brown não empresta seu veredito de plausibilidade é quando Pilatos oferece a opção soltar Jesus ou o bandido Barrabás, segundo um suposto costume de soltar um preso na Páscoa. Não havia tal costume, conclui Brown, de acordo com a quase­ unanimidade dos eruditos, e mesmo se houvesse seria pouco sensato que o governador soltasse um homem que acabara de ser preso por homicídio durante um tumulto, caso de Barrabás.

No evangelho de Mateus, depois que Pilatos lava as mãos e diz “ A responsabilidade é vossa “, o povo responde: “ O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”. Ter o “sangue sobre”, segundo ensina Brown, é um expressão bíblica indicando quem é responsável por uma morte aos olhos de Deus. A frase é a mais terrível dos evangelhos, no que se refere ao anti-judaísmo. Orígenes, no século III, deu o tom de como a frase de Mateus ecoaria séculos afora: “Portanto, o sangue de Jesus derramou-se não só sobre os que existiam naquele tempo, mas também sobre todas as gerações de judeus que se seguiriam, até o fim dos tempos".

Brown reconhece a trilha de preconceito e de tragédias aberta com o tratamento dado aos judeus nas narrativas da paixão. "A observação de que efetivas autoridades judaicas (e algumas multidões de Jerusalém) tiveram um papel na execução de Jesus (...) teve efeitos duráveis." O pensamento cristão, segundo Brown, “chegou atrasado ao reconhecimento de que uma atitude hostil para com os judeus por causa da crucificação é religiosamente injustificável e moralmente repreensível".

O irlandês Crossan considerou insuficientes as justificativas de Brown e é por isso que escreveu um livro em resposta. O ponto de partida de Crossan é que Brown tende a aceitar demais a "verossimilhança", ou a plausibilidade", dos fatos nos evangelhos, sem arriscar contestar-lhes a historicidade. Com isso, endossa uma narrativa da paixão que, diz Crossan, "foi a sementeira do antijudaísmo cristão”. Sem esse antijudaísmo, acrescenta, “o letal e genocida anti-semitismo europeu seria impossível, ou pelo menos não tão bem-sucedido”. Para Crossan, as narrativas da paixão são peças de ficção. "E bastante possível entender e simpatizar com uma pequena seita judaica sem poderes, escrevendo ficção para se defender. Mas, uma vez que essa seita judaica se torna o Império Romano Cristão, a estratégia defensiva se toma a mais longa das mentiras.

A propósito, se Crossan aceita a historicidade de Jesus, que ele tenha sido preso e crucificado, mas não aceita a historicidade da paixão, o que teria acontecido, então? Simples. Jesus foi preso por promover desordens no Templo e executado sumariamente. Ele escreve: "A eliminação de um estorvo perigoso representado por um camponês como Jesus não precisaria envolver nenhum julgamento oficial nem consultas entre o Templo e as autoridades romanas. O caso foi, a meu ver, administrado de acordo com os procedimentos gerais de manutenção do controle das massas durante a Páscoa. Se alguém causa sério distúrbio no Templo, que se o crucifique imediatamente, como exemplo”.

Execução

De que forma era a cruz? Jesus carregou-a até o alto do calvário? Foi pregado ou amarrado a ela?

“Então o crucificaram”. É assim, dessa forma econômica e singela que Marcos dá conta desse momento tão capital da história que vem contando. Mateus escreve: “E após crucificá-lo, repartiram entre si as suas vestes, lançando a sorte”. Como nota Brown, a frase que dá conta da crucificação é subordinada à informação sobre a repartição das vestes. Lucas e João não são mais loquazes. "Alguma vez um momento tão crucial foi expresso de maneira tão breve e pouco informativa?", pergunta Brown. Nada é dito sobre o formato da cruz, ou como o condenado foi fixado nela.

A erudição de Brown nos servirá de guia na subida ao Calvário. Os quatro evangelistas informam que, encenado o julgamento perante Pilatos, Jesus foi levado por soldados romanos para a execução. Versão diferente aparece num texto apócrifo (isto é, não reconhecido pela Igreja), o chamado Evangelho de Pedro, do qual só nos chegou um fragmento, descoberto no século passado no Egito. Nesse texto os judeus têm todo o controle do processo, inclusive a execução do condenado na cruz.

Jesus carregou ele mesmo a cruz? João diz que sim, mas só ele. Os demais relatam que certo Simão Cirineu, "que passava por ali vindo do campo", segundo Marcos, foi requisitado para fazer o serviço, Brown estranha. O costume impunha que o condenado levasse a cruz ao local da crucificação, o que é atestado pelo historiador Plutarco: “Todo malfeitor que vai para a execução carrega sua própria cruz". A versão de João parece então mais verossímil. A menos, nota Brown, que Jesus estivesse tão debilitado pelos flagelos que lhe foram impostos que não lhe fosse possível suportar o peso.

Mas o peso de quê? O que, exatamente, se carregava? Não era a cruz inteira, informa Brown. Normalmente, a parte vertical ficava fixa no lugar da execução. O que o condenado carregava era a parte horizontal, patibulum em latim. Segundo Lucas, "uma grande multidão do povo' o seguia, inclusive as mulheres a que Jesus se referirá como "filhas de Jerusalém". Brown considera plausível que houvesse gente a segui-lo, com base na cínica observação de outro autor antigo, Luciano, segundo a qual "aqueles que eram levados à cruz (...) tinha um grande número de pessoas em seus calcanhares".

O local da execução é o lugar chamado GóIgota em hebraico ou aramaico, que tem 'Calvário" como equivalente latino, ou "Lugar da Caveira”, segundo traduzem os quatro evangelhos. O nome indica um monte arredondado na forma de uma caveira, ou crânio. Lá chegados, "então o crucificaram", para retomar Marcos. Mas crucificaram como? Para começar, não há informação precisa sobre a forma da cruz, e ela variava. A palavra "cruz", informa Brown, chegou às línguas modernas com o sentido de uma linha que cruza outra, mas nem o grego stauros nem o latim crux necessariamente têm esse significado. Ambas essas palavras, acrescenta Brown, "referem-se a uma estaca à qual as pessoas podiam ser atadas de várias maneiras: empaladas, penduradas, pregadas ou amarradas". O empalamento produziria uma morte rápida. A crucificação, uma morte lenta.

Originário da Pérsia, o método da crucificação era reservado no Império Romano em princípio às classes baixas, os escravos e os estrangeiros. Há pouca informação sobre ele, na literatura latina ou helenístíca, e isso se deve, segundo Brown, ao fato de que "os romanos educados o consideravam uma punição bárbara, da qual se devia falar o menos possível". Em qualquer período da História, acrescenta Brown, aqueles que praticam a tortura não são muito comunicativos sobre os detalhes. Para Cícero, era "a mais cruel e revoltante penalidade”, que devia ser reservada só para os escravos, e em último caso. "A própria palavra cruz devia não apenas ficar longe do corpo de um cidadão romano, mas também de seus pensamentos, seus olhos e seus ouvidos", escreveu o mesmo autor.

A pena de Jesus não foi de empalamento nem de enforcamento, mas resta saber a forma da cruz e a maneira com que ele foi fixado a ela. A cruz podia ser em forma de "X” ou de “T”, além da que normalmente se imagina. O condenado podia ser fixado nela de cabeça para baixo. Ocasionalmente, informa ainda Brown, uma estaca única, vertical, seria utilizada. O condenado seria pregado nela com os braços estendidos para cima. Se Jesus carregou a barra transversal até o local da execução, ou se a carregaram para ele, então é porque não foi crucificado nem na estaca vertical nem na cruz em "X", que ficavam fixas no solo. Era cruz com barra, portanto, mas essas poderiam ser também em forma de 'T'. Presume-se que não era 0 caso porque, segundo Mateus, "colocaram acima da sua cabeça, por escrito, 0 Motivo da sua condenação”. Isso significaria que sobrava um pedaço de estaca onde colocar a inscrição geralmente representada com a sigla “INRI”.

Os evangelhos não informam de maneira direta que Jesus foi pregado. Mas Lucas, ao relatar a aparição aos apóstolos, depois da ressurreição, escreve que ele disse ao incrédulo Tomé: “Vede minhas mãos e meus Pés", dando a entender que havia sinais perfuração. João, mais claro, ao relatar mesmo episódio, diz que Tomé queria colocar o dedo "no lugar dos cravos”. Os pregos não poderiam ter sido aplicados à mãos, no entanto, pois elas se rasgariam. O crucificado tinha de ser pregado à transversal pelos pulsos. Feito isso, a barra seria erguida por duas forquilhas até um encaixe talhado na barra vertical.

Jesus foi pregado também pelos pés? Fora dos evangelhos, não havia documento algum a atestar que se pregavam crucificados também pelos pés, até a descoberta, em 1968, em Jerusalém, de um túmulo contendo, entre outros, os ossos de um homem que se aproximava dos 30 anos. Tratava-se de um homem morto por Crucificação, e uma crucificação mais ou menos na mesma época de Jesus, pois esses ossos apresentavam sinais de que o homem fora pregado com dois pregos em baixo, cada prego num calcanhar. Pelos furos, imagina-se que ele foi fixado à cruz com as pernas abertas, cada uma colada a um lado da barra vertical. Os pregos foram-lhe então aplicados no lado do pé, à altura do osso do calcanhar. No caso de Jesus, a tradição atribui a Helena, a mãe do imperador Constantino, a descoberta de três pregos que o teriam pregado - só três. Daí o fato de os artistas ao redor do mundo passarem a representar a crucificação com um prego só prendendo os dois pés, um sobre o outro.

Sobre a cruz, resta acrescentar que algumas apresentavam a variante de ter um pequeno assento, outras um apoio para os pés. Não se tratava de misericórdia. Antes, de permitir que, tendo onde se sustentar, o crucificado durasse mais, e portanto sofresse mais. A inscrição que os evangelhos afirmam ter sido afixada à Cruz com as palavras "O Rei dos Judeus" (Marcos) ou “Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus” (João), é o titulus - uma placa indicando o crime cometido pelo executado. Em nenhum dos evangelhos, nota Brown, sugere-se que se tratasse de zom­baria contra Jesus. O titulus, ao informar ao público o crime cometido, reforça o caráter intimidatório das execuções públi­cas. Como observa magistralmente Brown, são as únicas palavras que se afirma ter sido escrita sobre Jesus, em sua vida.

“Jesus, então, dando um grande grito, expirou", informa Marcos. Era a hora nona, ou 3 da tarde, e assim esta história vai chegando ao fim. Ou melhor, seria dizer assim começa esta longa história. O que se colecionou nesta parte é apenas uma pequena amostra do torrencial volume de informações do livro de Brown. O que se transcreveu, desde o início, das pesquisas, concordâncias e discordâncias dos três autores citados é apenas uma pequena amostra dos infinitos caminhos a que tem levado o estudo e a reflexão sobre o assunto. Ele é tão vasto quanto o mundo, este assunto, tão vasto quanto a História e quanto qualquer vã filosofia. Só não é tão vasto quanto a que começa com a ressurreição e para a qual nem no controvertido tratamento do povo judeu, nem nas dúvidas históricas, nem em nada, há obstáculo.