quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Helmut Koester, Elaine Pagels sobre o Gnosticismo no cenário religioso do cristianismo primitivo

A descoberta

Em dezembro de l.945 um camponês árabe fez uma descoberta arqueológica espantosa em Nag Hammadi, vilarejo do Alto Egito a 500 km do Cairo: um pote de cerâmica de quase 1 metro de altura que continha 13 papiros encadernados em couro!

Foi o início de uma história dramática e policialesca que terminou com 10 destes livros - posteriormente chamados códices - confiscados pelo governo egípcio e depositados no museu copta do Cairo; os demais códices foram contrabandeados para fora do Egito, finalmente caindo nas mãos de estudiosos de várias linhas filosóficas e religiosas.

Hoje encontram-se todos traduzidos, permanecendo o centro da atenção dos historiadores para uma nova interpretação da história.

A língua e as datas

Os papiros estavam escritos em copta, que é uma língua camito-semítica do sec. III DC., com características gregas, e que hoje é usada apenas como língua litúrgica; eram traduções de originais escritos em grego ( a língua do Novo Testamento), entre os anos 400 a 500 D.C.

E quanto às datas dos textos originais, os estudiosos divergem: alguns não poderiam ser posteriores a 120 ou 150 DC, pois Irineu, o bispo ortodoxo de Lyon, escrevendo por volta de 180 DC, declarou que "os hereges dizem possuir mais evangelhos do que realmente existem ", e lastima que nessa época esses escritos tivessem atingido grande circulação - da Gália até Roma, e da Grécia até a Ásia Menor !

O pesquisador Quispel e seus colaboradores sugerem que os originais sejam datados por volta do ano 140 DC; um alemão, prof. Helmut Koester, de Harvard, sugeriu que uma das coletâneas, a do Evangelho de Tomé, talvez inclua algumas tradições ainda mais antigas que os evangelhos do novo testamento, contemporâneas ou anteriores a Marcos, Mateus, Lucas e João (escritos por volta de 50 a 100 DC).

O assunto dos textos

Um dos mais eminentes pesquisadores foi o professor Gilles Quispel, um historiador da religião em Utrech, Holanda. Ao examinar a primeira linha de um texto ficou estupefato e incrédulo com o que leu: "Essas são as palavras secretas que Jesus, o Vivo, proferiu, e que o seu gêmeo Judas Tomé, anotou " - O texto continha O Evangelho Segundo Tomé, que ao contrário do Novo Testamento, se apresentava como "secreto".

Quispel viu que o texto continha muitos ensinamentos presentes também no Novo Testamento; mas esses mesmos dizeres, colocados em contextos pouco familiares, sugeriam outras dimensões de significados!

Verificou, ainda, que algumas passagens diferiam totalmente de qualquer tradição cristã conhecida: Jesus, o Vivo, por exemplo, fala de maneira tão intensa e enigmática quanto os Koans Zen. Jesus disse: "Se manifestarem aquilo que têm em si, isso que manifestarem os salvará. Se não manifestarem o que têm em si, isso que não manifestarem os destruirá". O que Quispel tinha em mãos era apenas um dos 52 textos descobertos em Nag Hammadi.

Encadernado no mesmo volume do Evangelho de Tomé estava o Evangelho de Filipe. Em outro volume encontraram-se ensinamentos criticando crenças cristãs bastante comuns, como a concepção imaculada - ou a ressurreição corporal, considerando-as ingenuamente equivocadas!

Boa parte da literatura encontrada em Nag Hammadi é nitidamente cristã . Certos textos, contudo , mostram pouca ou nenhuma influência cristã; alguns provêm de fontes ditas pagãs, e outros fazem uso extenso de tradições judaicas.

Os Textos

LISTA DOS TEXTOS ELABORADA PELO PROJETO CANADENSE DA BIBLIOTECA COPTA DE NAG HAMMADI

Prece do Apóstolo Paulo Fragmento de A Republica

Epístola Apócrifa de Tiago Octoade e Eneade

Evangelho da Verdade Prece de Ação de Graças

Tratado sobre a Ressurreição Asclépio

Tratado Tripartite Paráfrase de Sem

Apócrifo de João Segundo Tratado do Grande Set

Evangelho de Tomé Apocalipse de Pedro

Evangelho de Filipe Ensinamento de Silvano

Hipóstase dos Arcontes As Três Estelas de Set

Escrito sem título Zostriano

Exegese da Alma Epístola de Pedro a Filipe

Livro de Tomé, O Atleta Melquisedec

Apócrifo de João Noréia

Evangelho dos Egípcios Testemunho de Verdade

Eugnosto, o Bem-aventurado Marsano

Sabedoria de Jesus Cristo Interpretação da Gnose

Diálogo do Salvador Exposição Valentiniana

Evangelho dos Egípcios Batismo A

Eugnosto, o Bem-aventurado Batismo B

Apocalipse de Paulo Eucaristia A

1o- Apocalipse de Tiago Eucaristia B

2o- Apocalipse de Tiago Alógeno

Apocalipse de Adão Hypsiphrone

Atos de Pedro e dos 12 Apóstolos Sentenças de Sexto

Bronté ou Trovão Evangelho da Verdade

Authentikos Logos Protenóia Trimorfe

Conceito de Nossa Grande Força Escrito sem título

Agrupamento de assuntos:

Coletânea das palavras de Jesus/diálogos com seus discípulos:

Evangelho de Tomé

Diálogo do Salvador Epístola de Pedro a Filipe

Relatos apócrifos sobre Jesus e seus discípulos:

Epístola Apócrifa de Tiago

Evangelho de Maria

Apocalipses:

• Adão

Pedro

Paulo

Tiago


Tratados sobre as origens do mundo visível/invisível:

Tratado Tripartite

Apócrifo de João

Origem do mundo

Tratados filosóficos sobre a alma/destino humano:

Exegese da Alma

Marsano

Zostriano

Tratado Hermético:

As Três Estelas de Set

Coletânea de sentenças de sabedoria (tipo monástico):

Sentenças de Sexto

Ensinamentos de Silvano


As origens do Gnosticismo

Hipólito, um cristão de Roma, escrevendo em grego por volta do ano 225, ouvira falar dos brâmanes indianos - e inclui a tradição destes entre as fontes de heresia: "Há, entre os indianos, a heresia daqueles que filosofam entre os brâmanes - que vivem uma vida auto-suficiente abstendo-se de ingerir criaturas vivas e todo alimento cozido. Eles afirmam que Deus é luz, não como a luz que se vê, nem como o sol ou o fogo. E para eles Deus é discurso; não o discurso que se expressa em sons distintos e inteligíveis, mas o do conhecimento (gnose) através do qual os mistérios secretos da natureza são apreendidos pelos sábios"!

Já Edward Conze, o estudioso britânico do budismo, sugere que "os budistas mantiveram contato com os cristãos tomistas (i.é., cristãos que conheciam e usavam escritos como o Evangelho de Tomé) no sul da Índia!". As rotas comerciais entre o mundo greco-romano e o extremo oriente estavam sendo abertas na época em que o gnosticismo floresceu (entre os anos 80 e 200 DC); missionários budistas vinham pregando em Alexandria já há gerações!.

O estudioso do Novo Testamento, Wilhelm Bousset, remontou a origem do Gnosticismo às antigas tradições babilônicas e persas, declarando que "o gnosticismo é antes de tudo um movimento pré-cristão cujas raízes estão em si mesmo. Deve, portanto, ser compreendido... em seus próprios termos, e não como uma ramificação ou sub-produto da religião cristã"! O filólogo Richard Reitzenstein concordou com este ponto, mas argumentou que o gnosticismo proveio da antiga religião iraniana, e que foi influenciado por antigas tradições do zoroastrismo.

Os atuais estudiosos e pesquisadores acima citados não fizerem mais do que corroborar o que HPB já revelara no final do século passado. Já havia um certo conhecimento sobre o gnosticismo em sua época, além da literatura católica que anatematizava os gnósticos, de alguns textos originais em grego descobertos em outras regiões: o próprio Evangelho de Tomé (descoberto em meados de 1895); e a Pistis Sophia, descoberto em meados do sec. 18), contendo muitas páginas onde o próprio Jesus instruía seus discípulos sobre a reencarnação, ensinamento comum nos primeiros tempos do cristianismo primitivo.

Helena P. Blavatsky escreveu vários artigos sobre "O Caráter Esotérico dos Evangelhos" destacando sempre que Jesus ensinava aos seus discípulos uma doutrina esotérica: "A vós vos foi dado o mistério do Reino de Deus; aos de fora, porém, tudo acontece em parábolas" (Marcos 4:11). Em Isis sem Véu, HPB menciona que no Evangelho de João e nos atos de São Paulo, o Novo Testamento apresenta um grande número de expressões gnósticas, como admitem os eruditos hoje.

George R.S. Mead, secretário particular de HPB entre os anos de 1887 a 1891, recebeu dela a incumbência de que "se dedicasse ao estudo e à pesquisa na área do Gnosticismo" (o que ele realizou com brilhantismo). Em um de seus trabalhos, O Hino de Jesus - Um Rito Gnóstico, encontramos o que segue: "Como está atualmente provado, e fora de qualquer dúvida, que a Gnosis é pré-cristã , estamos então tratando com uma gnosis cristianizada que existia demonstradamente no tempo de Paulo e que este encontrou já existindo nas igrejas". Sem dúvida, a gnosis era pré-cristã no sentido de que já existia no sec. I AC, especialmente na região da Samaria e da Síria.

A catedrática Elaine Pagels, da Universidade de Colúmbia, que escreveu "Os Evangelhos Gnósticos", diz que "a maioria dos estudiosos hoje concorda que o que nós chamamos - gnosticismo - foi um movimento muito difundido cujas fontes podem ser encontradas em diversas tradições".

O Gonosticismo e o cenário religioso da época

Elaine Pagels explora uma linha de pesquisa que busca a relação entre o Gnosticismo e o cenário religioso da época; ela mostra, em parte, como as formas gnósticas de cristianismo primitivo interagiram com as formas ortodoxas, que mais tarde deram origem ao Catolicismo.

Sendo este também um dos objetivos deste trabalho, podemos colocar as seguintes questões : por que esses textos foram enterrados? por que não foram usados pela igreja cristã , posteriormente institucionalizada? e por que os cristãos gnósticos foram chamados de "hereges", e perseguidos pelos cristãos ditos "ortodoxos" ( aqueles que pensam corretamente)?

As considerações abaixo apontarão algumas respostas a tão cruciais questões!:

No século IV, na época da conversão do Imperador Constantino e quando o cristianismo tornou-se religião oficial do Império Romano, os bispos cristãos, anteriormente perseguidos pela polícia da época, passaram a comandá-la! Possuir livros denunciados como heréticos tornou-se crime civil - assim, quase toda a literatura gnóstica preciosa foi destruída pelo fogo; mas, no alto Egito, possivelmente um monge do mosteiro de São Pacômio (próximo ao vilarejo de Nag Hammadi), teve a feliz inspiração de enterrar os textos, hoje estudados! Antes desta valiosa descoberta, tudo o que sabíamos daquela época é de origem ortodoxa. A supressão dos textos cristãos gnósticos é o resultado de toda uma disputa crítica para a formação da igreja católica.

Muitos autores gnósticos afirmavam apresentar tradições sobre Jesus que eram secretas, ocultas dos "muitos" (os que passaram a ser conhecidos como ortodoxos). A palavra "Gnósis" geralmente é traduzida por "conhecimento", mas a Gnose não é, primordialmente, um conhecimento racional; a língua grega distingue entre o conhecimento científico (ele conhece matemática) e, reflexivo (ele se conhece), experiência que é Gnose, percepção direta daquilo que é, percepção interior, um processo intuitivo de conhecer-se a si mesmo. Como um ensinamento dessa natureza poderia ser utilizado pela igreja?.

Aqueles que não participavam da mesma interpretação de "textos sagrados" (no mais das vezes simples interpolações dogmatizadas!) dada pelos padres, passaram a ser denunciados como "heréticos" ( aquele que pratica doutrina contrária ao que foi definido pela igreja em matéria de fé). No entanto, essa campanha contra a heresia envolvia um reconhecimento de seu poder de persuasão! ... e no entanto, foram os bispos que prevaleceram.

Traçaremos, agora, um paralelo entre o que acreditavam e o que falavam os cristãos ortodoxos e os gnósticos seguidores de Valentino, um dos líderes moderados da época, e que até pretendia a união entre as duas facções, pretensão esta repudiada por Irineu e outros bispos:

os cristãos ortodoxos:

-Uma distância abissal separa a humanidade de seu criador. Ele é inteiramente distinto de Sua criação.

os gnósticos valentinianos:

- Negam essa distância e afirmam que o conhecimento de si mesmo é conhecimento de Deus; o "eu" e o "divino" são idênticos.

-Jesus fala em "pecado" e "arrependimento".

- Jesus fala em ilusão e iluminação.

- Jesus é o Senhor e o Filho de Deus, de uma maneira única e singular; permanece eternamente distinto do resto da humanidade que veio "salvar".

- Jesus veio como um guia que abre o acesso para o entendimento espiritual, e quando o discípulo se ilumina, ele deixa de ser seu Mestre, pois ambos se tornam semelhantes.

- Seguindo os tradicionais ensinamentos judaicos, "todo sofrimento vem do pecado", que teria maculado uma criação originalmente perfeita .

- É a ignorância e não o pecado que leva uma pessoa a sofrer. No Evangelho da Verdade encontra-se: "...a ignorância...trouxe angústia e terror. E a angústia tornou-se espessa como uma neblina, de modo que ninguém conseguia enxergar. Por isso o erro é tão poderoso..." Isto significa que a maioria das pessoas vivem no oblívio, na inconsciência. Sem jamais se tornarem cientes de si mesmas, elas não têm raízes.Os que vivem deste modo sofrem "terror, confusão, instabilidade, dúvidas e desunião", sendo enredados por "muitas ilusões".

- A paixão e a morte de Jesus como um sacrifício que redime a humanidade da culpa e do pecado. E a única chave para abrir o Paraíso é "o nosso próprio sangue".

- A "crucificação" é o momento para descobrirmos a essência divina em nós mesmos. O "Testemunho da Verdade" declara que aqueles que se entusiasmam com o martírio não sabem "quem é o Cristo". O autor ridicularizava a crença de que o martírio assegura a salvação e diz que os ortodoxos o veem como uma oferenda a Deus e pensam que ele deseja sacrifícios humanos!". Cristo é um ser espiritual e apenas a sua natureza humana sofreu.

- A ressurreição de Jesus e do cristão.

A "Fé dos Tolos". A existência humana comum é morte espiritual. É necessário receber a ressurreição espiritual enquanto vivem!.

- A discriminação da mulher: Tertuliano, nos preceitos da "disciplina eclesiástica para as mulheres", especificava: "Não é permitido a nenhuma mulher falar na igreja, nem é permitido que ensine ou que batize, ou que ofereça a eucaristia’ ... para não falar em qualquer cargo sacerdotal. Em 1.977, o papa Paulo VI declarou que a mulher não pode ser padre "porque Nosso Senhor era homem".

- Entre alguns grupos gnósticos , as mulheres eram consideradas iguais aos homens; algumas ensinavam, outras evangelizavam e curavam.

- A fé ortodoxa diz que o ensinamento original dos apóstolos é a norma e o critério; aquilo que se afastar é heresia!

- Os escritos gnósticos previam que o futuro propicia um aumento ininterrupto do conhecimento!

- Os três evangelhos sinóticos do Novo Testamento, em sua maior parte, traçam uma biografia da vida de Jesus em ordem cronológica, fazendo dele o Messias esperado pelos judeus. O destino humano depende dos eventos da "história da salvação", particularmente da sua vinda, vida, morte e ressurreição como fato histórico.

- Os gnósticos aceitavam os acontecimentos históricos como secundários; interessavam-se, acima de tudo, pelo significado interior dos acontecimentos e parábolas. Tanto o gnosticismo como a psicoterapia valorizam sobretudo, o conhecimento - o autoconhecimento que é a percepção interior. De acordo com o "Diálogo do Salvador", quem não compreender os elementos do Universo, e de si mesmo, está fadado ao aniquilamento: "... quem não compreender como o corpo veio a existir, há de perecer com ele. Quem não compreender como veio, não há de compreender como irá...".!

- Os ortodoxos concebiam o "Reino de Deus" literalmente, como se fosse um lugar específico. Segundo Mateus, Lucas e Marcos, Jesus proclamou o advento próximo do Reino de Deus, quando "os encarcerados obteriam a sua liberdade, os doentes seriam curados, os oprimidos receberiam alívio, e a harmonia prevaleceria sobre todo o mundo". Marcos afirma "que os discípulos esperavam que o reino se instaurasse num evento cataclismico que ocorreria ainda durante suas vidas", pois Jesus dissera que alguns deles viveriam para ver "o reino de Deus chegando com poder".

- No Evangelho de Tomé, Jesus teria ridicularizado aqueles que concebiam o Reino de Deus literalmente:

"...antes, o reino de Deus está dentro de voces; e está fora de voces. Quando vierem a se conhecer, então se farão conhecidos, e perceberão que são os filhos do Pai Vivo. Mas se não conhecerem, existirão em pobreza". O "Reino" então simboliza um elevado estado de consciência.

- Os líderes criaram um arcabouço simples e claro, constituído de doutrina, ritual e estrutura política que provou ser um sistema extraordinariamente eficaz de organização. Criou-se uma hierarquia de três níveis - bispos, padres e diáconos, e a concepção: "Um Deus, um Bispo". Clemente diz que Deus delega sua autoridade para reinar a líderes e governantes na terra!. Separar-se do bispo é separar-se da igreja e de Deus ! Fora dessa igreja não há salvação - "Ela é a entrada para a vida!".

- Os gnósticos foram potencialmente "subversivos" quando diziam que os "muitos" (os ortodoxos) eram "canais sem água"! Afirmavam oferecer a todo iniciado um acesso direto a Deus, sem representantes ou intermediários. Em o "Testemunho da Verdade " encontramos que "obediência à hierarquia clerical exige que os fiéis se submetam a guias cegos"; a fé nos sacramentos demonstra um raciocínio mágico e ingênuo. Contra essas mentiras o gnóstico declara que, quando um homem se conhecer a si mesmo, e ao Deus que está acima da verdade, ele será salvo.

- A autoridade da igreja é incontestável e é a base para a "infalibilidade papal ". Concebiam Jesus como Senhor, identificando-o como alguém exterior e superior aos seus discípulos. Em Marcos encontramos: "E Jesus partiu com seus discípulos...No caminho perguntou-lhes: "Quem dizem os homens que eu sou?" Ao que replicaram: "João Batista; outros, Elias, outros ainda, um dos profetas" E ele perguntou: "Mas quem vocês dizem que eu sou?" Pedro respondeu: "És o Cristo". Mateus acrescenta que Jesus abençoou Pedro pela sua acuidade, e em seguida declarou que a igreja seria edificada sobre ele e sobre o seu reconhecimento de Jesus como o Messias.

- O Evangelho de Tomé narra o episódio de maneira diferente; Jesus disse a seus discípulos: "Comparem-me e digam-me com quem me pareço eu". Disse Simão Pedro: "És semelhante a um anjo justo". Disse-lhe Mateus: "És semelhante a um filósofo sábio". Disse-lhe Tomé: "Mestre, minha boca é totalmente incapaz de dizer com quem tu és semelhante". Jesus disse: "Não sou o seu Mestre. Porque vocês beberam, ficaram embriagados da fonte borbulhante da qual eu lhes servi". Jesus não nega aqui o seu papel de Mestre. Mas os discípulos e suas respostas representam um nível inferior de compreensão. Daí Tomé, que reconhecia a impossibilidade de atribuir qualquer papel específico a Jesus, transcendeu , naquele instante de reconhecimento, a relação discípulo/mestre.

O modelo gnóstico aproxima-se do modelo psicoterapeutico: ambos admitem a necessidade de orientação, como medida provisória apenas. O propósito de aceitar a autoridade é aprender a superá-la; aquele que se torna maduro não precisa mais de uma autoridade exterior.

Quem alcança a gnose torna-se "não mais um cristão, mas um Cristo" E quem esperava "tornar-se Cristo", dificilmente poderia admitir que as estruturas institucionais da igreja - seus bispos e padres, seu credo e cânone, e seus ritos - possuíssem a autoridade suprema.

- Aquele que confessasse o Credo, aceitasse o ritual do batismo, participasse do culto e obedecesse ao clero, pertencia à igreja.

- Os gnósticos afirmam que o que distingue a verdadeira da falsa igreja não é a sua relação com o clero, mas o nível de compreensão dos seus membros e a qualidade das relações que esses mantém entre si, unidos pela amizade e amor fraternal.

Conclusão

Vimos que a corrente filosófica e religiosa de nome Gnosticismo foi um movimento pré-cristão, cfe. os atuais estudiosos Bousset/Reitzenstein, que vieram a corroborar as pesquisas de George R.S. Mead, erudito secretário de HPB durante os últimos anos de vida desta grande iniciada.

Podemos dizer que essa grande corrente - O Gnosticismo - pode ser dividida em: uma popular (influenciada pelas antigas religiões, notadamente o Zoroastrismo - 1400 AC , que também veio a influenciar o Catolicismo contribuindo com as "crenças no céu, no inferno, na ressurreição dos mortos e no juízo final"); e outra esotérica, de origem grega (pelo Orfismo do VI sec. AC, e o Neoplatonismo, através de Plotino, entre 204 AC e 70 DC ) - doutrinas que professavam, entre outros aspectos, a purificação da alma para evitar futuros renascimentos.

Esta corrente helenística influenciou notavelmente os primeiros padres cristãos (que eram gregos), inclusive o conhecido São Paulo, que era um judeu helenizado e com uma visão universalista cristã, contrária ao segregacionismo judaico. Mas, aos poucos, o cristianismo puro de Jesus foi sendo dominado, com a emergente igreja católica assimilando cada vez mais, através dos concílios, ensinamentos do Velho Testamento, tornando-se, na realidade, uma igreja judaica-cristã. Muitas interpolações foram feitas nos evangelhos ditos canônicos, com evidente objetivo.

Ao estudarmos as origens do Catolicismo começamos a entender o por que da sua sobrevivência por quase 2000 anos! É a façanha de uma organização hierarquizada que se autodenominando representante de Deus na face da terra, através de seus clérigos, procurou nivelar as consciências por meio de dogmas. E tal organização jamais iria abrir mão da sua "representatividade", pois sem ela não haveria razão para a sua existência!

O dogmatismo e a intolerância advindas dessa imposição (como se o homem fosse um ser estático, não passível de evolução), castraram o desenvolvimento de muitas consciências, e as que se rebelaram sofreram restrições terríveis. Suficiente é nos lembrarmos da "Santa Inquisição" e dos "trabalhos" de catequese que tiraram de muitas sociedades o direito de seus membros à liberdade de culto! E em muitos casos, as suas riquezas materiais...

Sylvia Cranston, em sua recente obra Helena Blavatsky, relata que "o trabalho da Teosofia ... foi reconhecido na Encyclopaedia Britannica num artigo sobre o Cristianismo pelo historiador da religião, Ernst Wilhelm Benz... definindo-a (a teosofia) como "caracterizada principalmente por uma combinação de tradições e ensinamentos cristãos e elevadas religiões asiáticas" , concluindo a seção com um comentário surpreendente: ..."Muitos eruditos estão convencidos de que, no século vinte, é necessário um Cristianismo Esotérico para cumprir uma tarefa positiva como um contra movimento capaz de compensar a perda de substância espiritual na organização institucional, social e dogmaticamente estática da Igreja".

Em Isis Sem Véu, HPB cita Max Müller, que escreveu em l860: "A ciência da religião está só começando... Durante os últimos 50 anos, documentos autênticos das religiões mais importantes do mundo foram recuperados de maneira inesperada e quase miraculosa..." (e até então, nada se sabia de Nag Hammadi!) . E ela pergunta se a freqüente ocorrência dessas descobertas não obedece a algum propósito pré-determinado: "Será tão estranho pensar que os guardiões da sabedoria "pagã", vendo que chegou o momento certo, façam com que o documento, livro, ou relíquia necessários cheguem como que por acaso às mãos do homem certo?".

--------------------------------------------

Bibliografia:

Pagels, Elaine - Os Evangelhos Gnósticos ; Ed. Cultrix, 1979

Kuntzmann, R - Nag Hammadi - O Evangelho de Tomé ; Edições Paulinas, 1990

Mead, George R.S. - O Hino de Jesus - Um Rito Gnóstico ; Ed. Teosófica, 1994

Rodhen, Huberto - O Quinto Evangelho ; Ed. Alvorada

Le Cour, Paul - O Evangelho Esotérico de São João ; Ed. Pensamento, 1980

Hinnells, John R. - Dicionário das Religiões ; Ed. Cultrix, 1984

Cranston, Sylvia - Helena Blavatsky - A Vida e a Influência Extraordinária da Fundadora do Movimento Teosófico Moderno ; Ed. Teosófica, 1997


segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Josh McDowell, Thomas Paine, Gleason Archer, e as sólidas credenciais do Messias

O Velho Testamento... contém várias centenas de referências ao Messias. Todas se cumpriram em Cristo e estabelecem uma confirmação sólida das suas credenciais como o Messias.

Josh McDowell (1972), p. 147

Examinei todas as passagens do Novo Testamento que são citações do Velho [Testamento], e as assim chamadas profecias a respeito de Jesus Cristo, e não encontro qualquer profecia a respeito de tal pessoa, e nego que [essas profecias] existam.

Thomas Paine (1925), p. 206

Estas duas citações expressam pontos de vista diametralmente opostos sobre a questão de saber se a vida de Jesus conforme é descrita nos evangelhos do Novo Testamento cumpre profecias do Messias judeu que se encontram nas escrituras hebraicas. O ponto de vista de Josh McDowell é o ponto de vista padrão dos missionários, que encontramos em inúmeras obras apologéticas cristãs. Contudo, o ponto de vista expresso por Thomas Paine é muito menos conhecido. É pena que assim seja, pois Paine está certo. Todo o caso de alegado cumprimento de profecias messiânicas sofre de um dos seguintes defeitos:

(1) a alegada profecia nas Escrituras Hebraicas não é uma profecia messiânica ou nem sequer é uma profecia de todo;

(2) a profecia não foi cumprida por Jesus;

(3) ou a profecia é tão vaga a ponto de não ser convincente na sua aplicação a Jesus.

O Significado das Profecias Messiânicas

Antes de examinar alegações específicas de profecias messiânicas cumpridas, devem ser feitas algumas observações sobre o seu significado. O cumprimento de profecias bíblicas é um pilar central nos argumentos apologéticos missionários que pretendem provar a verdade e a exatidão da Bíblia. A Bíblia contém muitas declarações sobre eventos futuros que pretendem ser proféticos — os livros dos profetas, como os de Isaías e Jeremias, estão cheios desse tipo de declarações, no entanto muitas destas declarações são sobre eventos históricos reais do passado. Tendo em consideração o nosso conhecimento atual da cronologia da escrita da Bíblia, contudo, na maioria dos casos não pode ser demonstrado que as declarações proféticas não são posteriores aos eventos "preditos". No caso das profecias das Escrituras Hebraicas a respeito do Messias, porém, temos documentos (por exemplo, os Rolos do Mar Morto) que realmente são anteriores ao tempo em que se acredita que o Jesus histórico tenha vivido. Se encontrássemos nas Escrituras Hebraicas profecias numerosas e específicas condizentes com a vida do Jesus histórico, isto providenciaria considerável evidência em apoio da fé cristã. É exatamente isto que os missionários tentam fazer.

Por outro lado, se descobrirmos que não existem tais profecias específicas cumpridas por Jesus, ou que existem profecias messiânicas específicas que não foram cumpridas por Jesus, isto seria evidência contra a veracidade do Cristianismo. Como o Cristianismo alega exatidão e verdade tanto das Escrituras Hebraicas como do Novo Testamento, está vinculado aos padrões bíblicos para um profeta verdadeiro de D'us delineados nas escrituras hebraicas. O livro de Deuteronomio apresenta estes padrões quando diz que Moisés, falando em representação de D'us no capítulo 18 versículo 22, proclamou que "Quando um profeta fala no nome do Senhor, se a coisa não suceder nem se realizar, essa é a coisa que o Senhor não falou. O profeta falou-a presunçosamente; não terás medo dele." No versículo 20, ele diz que: "... o profeta que falar presunçosamente em meu nome uma palavra que não lhe ordenei, ou que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá." Por outras palavras, qualquer profecia de D'us é necessariamente exata, e qualquer profecia que não seja de D'us mas dada em seu nome resultará na morte do profeta.

Embora estes padrões requeiram que profecias de D'us sejam exatas, a verdade de uma profecia não garante que vem de D'us. Deuteronómio 13:1-5 indica que falsos profetas também podem ser exatos, mas profetas verdadeiros nunca desencaminharão os judeus da sua religião, sob pena de morte.

Conforme vamos mostrar, existem profecias messiânicas que não foram cumpridas por Jesus (e que não serão cumpridas no futuro, pois segunda vinda não é um padrão das Escrituras Hebraicas), então estes padrões têm como consequência que ou Jesus não foi o Messias, ou as profecias em questão não foram feitas por um verdadeiro profeta de D'us. Ambos os extremos do dilema têm a consequência de que é falsa qualquer forma de Cristianismo que mantenha a infalibilidade da Bíblia.

Profecias Relacionadas com o Nascimento

Existem várias alegadas profecias messiânicas sobre o nascimento de Jesus: profecias sobre o local, modo e tempo do seu nascimento, sobre a sua genealogia, e sobre eventos que deviam ocorrer no momento do seu nascimento.

Nascido de uma virgem

Provavelmente a profecia mais famosa de entre estas é aquela que diz que Jesus nasceria de uma virgem. Os evangelhos de Mateus (1:18-25) e Lucas (1:26-35) alegam que Jesus nasceu de uma virgem, mas só Mateus (1:23) apela para as escrituras hebraicas como explicação para a razão por que isto devia acontecer. O versículo invocado é Isaías 7:14, que diz: "Por isso, o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a Virgem concebeu e dá à luz um filho, e o chama Emanuel." (Bíblia Missionários Capuchinhos)

Existem várias dificuldades nesta passagem. Conforme muitos observaram, a palavra hebraica traduzida por "virgem" neste versículo é "almah", que é traduzida de forma mais exata simplesmente como "jovem mulher". A palavra hebraica "bethulah" significa "virgem". No livro de Isaías, "bethulah" aparece quatro vezes (23:12, 37:22, 47:1, 62:5) sempre dando sentido de "jovem mulher", portanto o autor desse livro conhecia a palavra "almah" e seu significado. Na tradução da Bíblia New American Standard Translation, todas as outras ocorrências de "almah" são traduzidas simplesmente como "moça", "menina" ou "donzela" (a saber, Gênesis 24:43, Êxodo 2:8, Salmos 68:25, Provérbios 30:19, Cântico de Salomão 1:3, 6:8). Assim, o alegado cumprimento acrescenta uma condição biologicamente impossível que nem sequer está presente na profecia original.

Outro problema é que em nenhum lado no Novo Testamento Maria, a mãe de Jesus, se lhe refere como "Emanuel". Portanto não temos evidência de que uma das condições da profecia se tenha alguma vez cumprido.

Mas o problema mais sério desta alegada profecia messiânica é que foi tirada fora do contexto. Analisando por inteiro o sétimo capítulo de Isaías, torna-se claro que a criança em questão nasceria como um sinal para Acaz, Rei de Judá, garantindo que ele não seria derrotado em batalha por Rezim, Rei da Síria, e Peca, filho do Rei de Israel. O nascimento de Jesus não podia ser esse sinal pois veio com sete séculos de atraso. Em Isaías 8:3-4, uma profetisa dá à luz um filho — Maer-Salal-Hás-Baz — que é claramente descrito como o cumprimento da profecia de Isaías 7:14.

J. Edward Barrett (1988, p. 14) apresenta evidência em como os Cristãos primitivos rejeitavam o nascimento virginal. Um elemento da evidência de Barrett é que em 1 Timóteo 1:3-4, o escritor (que pode ou não ter sido o apóstolo Paulo) aconselha a sua audiência a "impedir que certas pessoas ensinassem doutrinas estranhas, e se interessassem por fábulas e genealogias intermináveis que ocasionam disputas em lugar de promoverem a obra de D'us que se baseia na fé." (MC) O evangelho mais antigo, Marcos, não tem um relato do nascimento de Jesus, tal como João, o evangelho mais tardio, também não tem. O nascimento virginal é muito relevante para a genealogia, e tanto Mateus como Lucas apresentam a genealogia de Jesus próxima da história [do nascimento virginal].

Nascimento em Belém

Uma segunda alegada profecia relacionada com o nascimento é que Jesus nasceria na cidade de Belém, citada nos evangelhos de Mateus (2:1-6), Lucas (2:4-7) e João (7:42). Destes, Mateus e João referem-se a uma profecia nas escrituras hebraicas. A passagem mencionada é Miquéias 5:2, que diz: "E tu, Belém Efrata, pequena demais para chegar a estar entre os milhares de Judá, de ti me sairá aquele que há de tornar-se governante em Israel, cuja origem é desde os tempos primitivos, desde os dias do tempo indefinido." (Tradução do Novo Mundo) "Efrata" é o antigo nome de Belém (Gênesis 35:19, Rute 4:11) mas a situação é mais confusa pois "Belém Efrata" também é o nome de uma pessoa: Belém o filho (ou neto) de Efrata (1 Crônicas 4:4, 2:50-51). Portanto esta profecia podia-se referir tanto a um nativo da cidade como a um descendente de uma pessoa. Se for este último caso, Jesus não se qualifica, pois nenhuma das suas alegadas genealogias (informação adicional sobre este assunto será apresentada mais adiante) inclui Belém ou Efrata. Se o primeiro caso for verdadeiro (o que é mais provável, visto que Belém foi o local onde nasceu o Rei Davi, de quem o Messias será descendente), então Jesus qualifica-se por local de nascimento mas falha a verificação da condição de ser "governante em Israel". Os missionários alegam que esta é uma profecia que se cumprirá numa segunda vinda.

Genealogias

Existem várias profecias genealógicas sobre os ancestrais do Messias. As profecias sobre os ancestrais do Messias dizem que ele seria da tribo de Judá (Gênesis 49:10, Miquéias 5:2), da família de Jessé (Isaías 11:1, 10), e da casa de Davi (Jeremias 23:5, 2 Samuel 7:12-16, Salmos 132:11). Algumas destas profecias messiânicas parecem simplesmente referir-se a reis futuros. Todos estes versículos se referem a reis — e por isso nenhum deles foi cumprido por Jesus, que não foi rei de reino algum.

Mas os problemas destas profecias são ainda maiores. Será que Jesus é realmente da tribo de Judá, da família de Jessé, e da casa de Davi? A única evidência para isto são os dois conjuntos de genealogias de Jesus, em Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38. Ambos traçam a linhagem de Jesus através do seu pai, José. Se a história do nascimento virginal for levada a sério, então Jesus não tem os ancestrais próprios. Por outro lado, se a genealogia de Mateus for levada a sério, então Jesus tem um ancestral chamado Jeconias (Mateus 1:12), sobre o qual o profeta Jeremias disse: "Inscrevei este homem como sem filhos, como varão vigoroso que não terá bom êxito nos seus dias; pois, dentre a sua descendência, nem um único será bem sucedido, sentado no trono de Davi e governando ainda em Judá." (Jeremias 22:30, TNM) A genealogia de Lucas sofre do mesmo problema, pois inclui Sealtiel e Zorobabel, que são descendentes de Jeconias.

Por fim, um problema muitas vezes notado é que as genealogias de Mateus e Lucas se contradizem mutuamente e contradizem as escrituras hebraicas. O avô paterno de Jesus foi Jacó (Mateus 1:16) ou Eli (Lucas 3:23)? O pai de Sealtiel foi Jeconias (1 Crônicas 3:17, Mateus 1:12) ou Néri (Lucas 3:27)? Mateus 1:11 omite Jeoiaquim (que em Jeremias 36:29-30 recebe uma maldição similar à do seu filho Jeconias) entre Josias e Jeconias (1 Crônicas 3:15) e Mateus 1:4 omite Admin entre Rão [ou Arni] e Aminadabe (Lucas 3:33, MC). Finalmente, Mateus 1:13 diz que Abiúde é filho de Zorobabel, Lucas 3:27 diz que Resa é filho de Zorobabel, mas 1 Crônicas 3:19-20 não menciona qualquer deles como sendo filhos de Zorobabel.

A matança das crianças

Outra profecia relacionada com o nascimento de Jesus é a alegação de que o Messias nasceria numa altura em que o Rei Herodes mataria crianças. Só o evangelho de Mateus (2:16-18) alega isso, citando uma profecia de Jeremias (31:15, TNM) que diz que "Ouve-se uma voz em Ramá, lamentação e choro amargo; Raquel chorando por seus filhos. Negou-se a ser consolada por causa dos seus filhos, porque eles já não existem." Existem dois problemas com esta alegada profecia messiânica: não é uma profecia sobre matança de crianças e é duvidoso que alguma vez tenha existido tal matança de inocentes por Herodes. "Raquel chorando por seus filhos" refere-se à mãe de José e Benjamim (e esposa de Jacó) chorando pelos seus filhos levados cativos para o Egito. No contexto, este versículo refere-se ao cativeiro Babilônico, que o seu autor testemunhou. Versículos subsequentes falam do regresso das crianças, e portanto referem-se ao cativeiro em vez de assassinato. A matança feita por Herodes também é duvidosa pois o escritor de Mateus é a única pessoa que menciona esse evento. O historiador Flávio Josefo, que relatou cuidadosamente os abusos de Herodes, não o menciona.

Levado para o Egito

Mateus prossegue dizendo que para fugir aos assassinos de Herodes, Jesus foi levado enquanto criança para o Egito. Isto é feito, segundo Mateus 2:15 (TNM), "para que se cumprisse o que fora falado por Jeová por intermédio do seu profeta, dizendo: Do Egito chamei o meu filho." Isto é uma referência a Oséias 11:1, que não é de modo nenhum uma profecia. É uma referência ao Êxodo dos Judeus do Egito.

"Será chamado Nazareno"

No fim do mesmo capítulo de Mateus (2:23, TNM), o seu autor escreve que Maria, José e a criança Jesus estabeleceram-se em Nazaré "para que se cumprisse o que fora falado por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno." Não existe tal profecia nas escrituras Hebraicas, embora alguns aleguem que isto se refere a Juizes 13:5. Este versículo descreve um anjo a falar com a mãe de Sansão, dizendo-lhe que o filho dela "se tornará nazireu". Não só isto não é uma profecia messiânica como também não pode ser aquilo a que Mateus se referia. Um nazireu é muito diferente de um Nazareno. Um Nazareno é um habitante de Nazaré, ao passo que um nazireu é um Judeu que tomou votos especiais para se abster de todo o vinho e uvas, não cortar o cabelo e realizar sacrifícios especiais (veja Levítico 6:1-21). Jesus bebeu vinho (Mateus 26:29, Marcos 14:25, Lucas 22:18), portanto não pode ter sido um nazireu.

Profecias sobre o ministério

Alegadas profecias sobre a vida e o ministério de Jesus dizem que ele seria precedido por um mensageiro (isto é, João Baptista), que ele teria um ministério na Galileia, que ele realizaria milagres, e que teria uma entrada triunfal na cidade de Jerusalém, montado num jumento.

Precedido por um mensageiro

A primeira destas, que ele seria precedido por um mensageiro, refere Isaías 40:3, que reza: "Uma voz grita: Abri no deserto um caminho para o Senhor, aplanai na solidão as veredas para o nosso Deus." (MC) Este versículo não fala de um mensageiro do Messias, fala dos Judeus sendo libertados do cativeiro Babilônico. Outro versículo que se diz apresentar a mesma profecia é Malaquias 3:1, que diz: "Eis que vou mandar o Meu mensageiro, o qual preparará o Meu caminho diante de Mim...." (MC) Esta pode ser tomada plausivelmente como uma profecia messiânica. Mas será que João Baptista realmente 'preparou o caminho' como mensageiro para Jesus? O historiador Flávio Josefo escreve sobre João Baptista mas não relaciona o seu nome com o de Jesus (Antiquities of the Jews 18.5.2; Josefo (1985), p. 382). Os escritos cristãos mais antigos, as cartas de Paulo, não fazem qualquer referência a João Baptista. Os evangelhos (e o livro de Atos, escrito pelo autor de Lucas) são a única evidência real de um elo [entre João Baptista e Jesus]. Mas a evidencia dos evangelhos não é consistente. O evangelho de João mostra João Baptista reconhecendo explicitamente Jesus como o Messias (João 1:25-34) antes de ser lançado na prisão por Herodes (João 3:23-24). Mas os evangelhos de Mateus (11:2-3) e Lucas (7:18-22) descrevem João Baptista, na prisão, enviando os seus discípulos a Jesus para perguntar se ele alega ser o Messias. Se a história de João fosse verdadeira, João Baptista não teria razão para fazer aquela pergunta.

Ministério na Galileia

Missionários alegam que o ministério de Jesus na Galileia é profetizado em Isaías 9:1, que diz: "... no tempo passado humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali, no futuro cobrirá de glória o caminho do mar, a Transjordânia e a Galileia das nações." (MC) A única coisa que este versículo diz é que D'us fará a área "gloriosa" — não diz nada sobre o ministério do Messias. Os versículos seguintes (Isaías 9:6-7) falam de uma criança que nasceria no futuro e que seria rei, "o qual se chamará Conselheiro admirável, Deus forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz." A tradição judaica diz que isto se refere ao Rei Ezequias, não ao Messias (Sigal, 1981, pp. 29-32). Isaías 9:7, se aplicado a Jesus, não se cumpriu, pois fala do seu reino.

Milagres

Profecias sobre as curas milagrosas de Jesus são supostamente encontradas em Isaías 35:5-6 e Isaías 32:3-4. Este texto não menciona curas, mas diz que "Os olhos dos que vêem não se ofuscarão, e os ouvidos dos que ouvem estarão atentos. Os espíritos dos insensatos entenderão a ciência, e a língua dos tartamudos exprimir-se-á com prontidão e clareza." (MC) Diz-se ainda que isto ocorrerá durante o reinado de um rei (Isaías 32:1), o que não ocorreu em Israel durante o ministério de Jesus. O outro texto, por outro lado, descreve pessoas sendo curadas ("Então se abrirão os olhos do cego, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos", MC) mas também, nos versículos 7 e 8, descreve a terra como sendo "curada". Não existe aqui qualquer indicação clara de que estas curas tenham algo que ver com o Messias, em vez disso, é o próprio D'us que faz as curas. Os evangelhos não contêm qualquer relato de Jesus curando a terra.

Entrada triunfal em Jerusalém, montado num jumento

Uma última profecia relacionada com a vida e o ministério de Jesus é Zacarias 9:9, que diz: "Eis que o teu Rei vem a ti... humilde, montado num jumento, no potrinho de uma jumenta." (MC) Novamente, Jesus não era rei, portanto esse aspecto da profecia continua sem cumprimento. O alegado cumprimento desta profecia também é problemático. Segundo Marcos (10:11-19), Lucas (19:28-38) e João (12:12-19), Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento. Mas Mateus 21:1-11 apresenta Jesus montado tanto num jumento como num potro, o que indica que ele se equivocou com a profecia.

Profecias sobre a traição

Várias das alegadas profecias estão relacionadas com a traição de Jesus por Judas. Estas incluem profecias de que Jesus seria traído por um amigo por trinta moedas de prata e que este dinheiro seria lançado no templo e usado para comprar um campo de um oleiro. Dois versículos que são tomados como profecias de traição por um amigo são Salmos 41:9 e Salmos 55:12-14, o último dos quais diz: "Mesmo o meu amigo próximo, em quem eu confiava, que comia o meu pão, levantou o seu calcanhar contra mim." Ambos são salmos que falam de sentimentos de dor por ter sido traído por um amigo próximo em quem se confiava. Mas Jesus já tinha presciência da sua traição por Judas (João 13:21-26), e por isso não deve ter confiado nele. Quando o evangelho de João (13:18) cita o Salmo 41:9, admite tacitamente este problema ao omitir a expressão "em quem eu confiava". Nenhum destes versículos das escrituras hebraicas dá qualquer indicação de ter sido originalmente escrito com intenções proféticas.

Mateus 26:14-15 declara que foram pagas a Judas Iscariotes trinta moedas de prata pelos sacerdotes Judeus como pagamento pela sua traição. Mateus 27:9-10 alega que isto é feito para cumprir uma profecia de Jeremias:

"Cumpriu-se, assim, o que fora dito pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço em que foi avaliado Aquele que os filhos de Israel avaliaram, e deram-nas pelo campo do oleiro, como o Senhor me havia ordenado."

O problema aqui é que o versículo citado não aparece em nenhuma parte do livro de Jeremias. Existe um versículo que é muito similar no livro de Zacarias, mas ali o profeta Zacarias está a falar de si mesmo e não está envolvida qualquer traição. O missionário Gleason Archer (1982, p. 345) tenta resolver este problema citando vários versículos em Jeremias que se referem ao "profeta comprando um campo em Anatot por um certo número de siclos" (32:6-9), "o profeta vendo um oleiro modelando vasos de barro na sua casa" (18:2), "um oleiro perto do templo" (19:2), e D'us dizendo: "Quebrarei este povo e esta cidade como se parte um vaso de oleiro" (19:11). Porque é que Archer escreve "um certo número de siclos" em vez de dar o número especificado em Jeremias? Porque Jeremias 32:9 diz dezessete siclos, não diz trinta. O que Archer fez aqui foi simplesmente procurar as palavras "oleiro", "siclo" e "campo", numa tentativa de argumentar que Mateus estava realmente a referir-se a Jeremias em vez de Zacarias. Mas realmente não há dúvida que Mateus se queria referir a Zacarias em vez de Jeremias. Compare com Zacarias 11:12-13:

"Eu disse-lhes: Se vos parece bem, dai-me o meu salário; se não, guardai-o. Eles pagaram-me pelo meu salário trinta moedas de prata. O Senhor disse-me: Arroja esse dinheiro no tesouro, essa bela soma pela qual avaliaram os teus serviços. Tomei as trinta moedas de prata e lancei-as no tesouro da casa do Senhor."

Novamente, isto é Zacarias falando da sua própria experiência em vez de ser uma profecia messiânica. Mas Mateus 27:5-7 tenta cumprir esta não-profecia contando uma história de Judas Iscariotes lançando o seu pagamento no templo antes de cometer suicídio, depois do que os sacerdotes usam o dinheiro para comprar um campo de um oleiro. Esta história não aparece nos outros evangelhos (embora Atos 1:18-19 diga que foi o próprio Judas, em vez de serem os sacerdotes, quem comprou o campo com o dinheiro (cuja quantidade não é especificada) ganho com a sua traição.

Outro problema com esta alegada profecia é que os manuscritos mais antigos (Siríaco) de Zacarias versículo 13 nem sequer contêm a palavra "oleiro" — em vez disso, têm "tesouro", que faz mais sentido mas prejudica ainda mais a sua credibilidade como profecia. (A Revised Standard Version apresenta o versículo como "Lancei-o no tesouro", com a tradução "para o oleiro" relegada para uma nota de rodapé.)

Profecias sobre a crucificação

Os missionários talvez estejam muito impressionados com várias alegadas profecias relacionadas com a crucificação de Jesus. Eles alegam que as escrituras hebraicas contêm profecias de que Jesus seria crucificado, que as suas vestimentas seriam divididas através do lançamento de sortes, que lhe dariam vinho misturado com fel ou mirra, que ele gritaria sobre ser abandonado, e que nenhum dos seus ossos se quebraria.

Seria crucificado

Existem vários versículos que são encarados como referindo-se à crucificação: Salmos 22:16, Zacarias 12:10, e Zacarias 13:6 são exemplos típicos. Salmos 22:16 diz: "Sou rodeado pelos cães; envolvido por um bando de malfeitores; trespassaram as minhas mãos e os meus pés". Este é um salmo de Davi que não dá indicação de ser profético e que se descreve a si mesmo sendo caçado e morto em vez de ser crucificado. Gerald Sigal (1981, p. 98) argumenta que a palavra hebraica traduzida aqui por "trespassaram" significa "leão", e portanto uma tradução mais exata seria "como um leão [eles estão a morder] as minhas mãos e os meus pés." [N. do T.: a tradução Missionários Capuchinhos (católica) diz, numa nota de rodapé: "O hebraico] diz: «como um leão, as minhas mãos e os meus pés». O targum explica: «eles morderam como um leão»."] Gleason Archer (1982, p. 37), contudo, argumenta que "eles trespassaram" está correto, baseado na tradução Septuaginta e noutras considerações.

Zacarias 12:10 (MC) diz "... eles voltarão os seus olhos para Mim. Quanto àquele que traspassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho único; chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogénito." O evangelho de João (19:37) encara isto como sendo uma profecia cumprida na crucificação de Jesus, mas não há indicação de que Zacarias fale de crucificação. Além disso, o 'ele' sendo lamentado não é o 'eu' que está sendo traspassado. A interpretação Judaica deste versículo é que D'us está a falar do povo de Israel sendo "traspassado" ou atacado (Sigal 1981, pp. 80-82).

Zacarias 13:6 (MC) diz: "Que ferimentos são esses nas tuas mãos [a RSV diz "entre os teus braços"]?", referindo-se a alguém que afirma não ser profeta e que foi vendido como escravo na sua juventude (Zacarias 13:5). Ferimentos entre os braços não são característicos de crucificação e Jesus nem foi vendido como escravo nem afirmou que não era profeta.

Lançadas sortes sobre as vestimentas

Apenas o evangelho de João fala das vestimentas de Jesus sendo divididas entre os soldados e o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:23-24), e ele cita Salmos 22:18 como a profecia que é cumprida dessa forma. Este último versículo diz: "repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre elas." Este versículo conta um evento — roupas sendo divididas através do lançamento de sortes. Mas João transforma-o em dois eventos: primeiro a divisão da roupa de Jesus sem incluir a túnica (João 19:23) e depois o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:24). Parece que João criou uma história numa tentativa de providenciar um cumprimento para a sua compreensão equivocada de um versículo que não dá qualquer indicação de ter sido originalmente uma profecia.

Vinho misturado com fel ou mirra para beber

Mateus (27:34) fala de terem dado a beber a Jesus "vinho misturado com fel" e Marcos (15:23) diz que lhe ofereceram "vinho misturado com mirra". Ambos os versículos são encarados como referências a Salmos 69:21, que diz "Por alimento servem-me veneno, por bebida contra a minha sede, dão-me vinagre." A palavra hebraica traduzida aqui por "veneno" é "rosh", que significa veneno ou fel, e refere-se a alguma planta venenosa. O versículo diz que veneno está sendo colocado na comida, o que não se aplica à crucificação. Mirra, que não é venenosa, é referida pela palavra hebraica "mor", que não aparece em Salmos 69:21. Este salmo, que fala repetidamente de águas de uma inundação, não dá qualquer indicação de ser profético nem de se aplicar a Jesus.

"Por que me abandonaste?"

Os evangelhos de Mateus (27:46) e Marcos (15:34) dizem que as últimas palavras de Jesus foram: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?", uma citação do Salmo 22:1. Lucas (23:46) diz que as últimas palavras de Jesus foram "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito", enquanto João (19:30) apresenta Jesus a dizer: "Acabou-se." Só a primeira destas frases é alegadamente um cumprimento de profecia, no entanto dificilmente se poderá dizer que é miraculoso ter Jesus feito tal declaração. Presumivelmente Jesus estava familiarizado com as escrituras hebraicas. Tal observação, contudo, é inconsistente com a teologia cristã. Por que é que Jesus, que é supostamente D'us encarnado, falaria de ser abandonado por si mesmo em qualquer circunstância, quanto mais na culminação do seu plano para a salvação humana? Também não é evidente que Salmos 22 quer seja profético, quer aplicável a Jesus (veja Sigal, 1981, pp. 95-99).

Nenhum dos seus ossos seria quebrado

Uma última profecia que desejo examinar, relacionada com a crucificação de Jesus, é que os ossos dele não seriam quebrados. Só o evangelho de João (19:32-36) afirma isso, dizendo que os soldados quebravam as pernas das vítimas da crucificação para apressar as suas mortes, no entanto pouparam Jesus pois ele já estava morto. João 19:36 cita Salmos 34:20: "Ele guarda cada um dos Seus ossos, nem um só será quebrado", como sendo a profecia que é cumprida dessa forma. Não há qualquer indicação de que Salmos 34 tenha sido escrito com intenções proféticas, nem que se aplique a Jesus. A intenção do evangelho de João é representar Jesus como um sacrifício, correspondendo especificamente ao cordeiro pascal (por exemplo, João 1:29, 36). Um requerimento do cordeiro pascal é que nenhum dos seus ossos seja quebrado (Êxodo 12:46, Números 9:12). Mas esta analogia falha por várias razões: o cordeiro pascal não era para expiação de pecado, e requeria-se que os sacrifícios judeus estivessem completamente sem deformidades físicas, chagas ou ferimentos (Levítico 22:20-25) ao passo que Jesus foi açoitado [chicoteado] e mutilado (João 19:1; Sigal 1981, pp. 265-268).

Conclusões

Vale a pena examinar brevemente algumas conclusões a respeito de profecias messiânicas, que diferem das minhas, apresentadas por Peter Stoner (1952) (e repetidas por McDowell (1972)). Stoner calcula a probabilidade de apenas oito profecias messiânicas serem cumpridas como sendo 1 em 10^21 (McDowell (1972), citando uma edição mais recente do livro de Stoner, apresenta a probabilidade como sendo 1 em 10^17. Jeffrey (1990, pp. 17-20) apresenta uma lista de onze profecias messiânicas7 e uma probabilidade de 1 em 10^19.) Existem vários problemas com os cálculos de Stoner. A probabilidade de cada profecia ser cumprida por acaso foi obtida de uma estimativa feita por "uma classe sobre Evidências Cristãs" em Pasadena City College patrocinada pela Inter-Varsity Christian Fellowship (Stoner 1952, p. 71). [N. do T.: ou seja, fundamentalistas!] Estas estimativas não consideraram nenhuma das acima mencionadas objeções a estas profecias, nem consideraram a possibilidade de cumprimento intencional. (Por exemplo, um pretendente a Messias podia contratar um mensageiro do gênero de João Baptista para o preceder, ou poderia montar um jumento intencionalmente e entrar na cidade de Jerusalém.) Outro problema com esse método [de Stoner] é tais estimativas de probabilidades não serem de confiança. Destes problemas, o mais grave é o fracasso de Stoner em considerar as objeções que apresentei acima, e este fato por si só é suficiente para invalidar os seus cálculos.

Examinei mais de duas dúzias de alegadas profecias messiânicas que os missionários dizem terem sido cumpridas em Jesus. Embora existam muitas outras de tais alegadas profecias (por exemplo, McDowell (1972) enumera 61 com algum detalhe e refere-se a numerosos versículos adicionais sem detalhes), estes são os melhores exemplos, segundo o reconhecimento dos próprios apologistas.9 Este exame mostra que nenhuma delas é uma predição específica, detalhada e exata de um evento que tenha ocorrido na vida de Jesus. Em vez disso, as supostas profecias parecem ser o resultado de tentativas deliberadas por parte dos escritores dos evangelhos para encontrar similaridades post hoc entre eventos descritos no Novo Testamento e nas escrituras hebraicas. As profecias messiânicas, contrariamente ao que os missionários dizem, não fornecem evidência em apoio da fé Cristã.

Tradução Jonas Stefani

Todas as citações da Bíblia, salvo indicação em contrário, são [tradução livre para português] da New American Standard Translation.

Notas

1 - Poderia argumentar-se (e é o que têm feito Judeus desde o terceiro século) que Jesus desencaminhou os Judeus da sua religião e por isso era um falso profeta. Veja Sanhedrin 43a no Talmude Babilônico (Epstein 1935, p. 281).

2 - Deve-se notar que alguns missionários alegam que o sentido pretendido é "virgem" porque os tradutores judeus do Velho Testamento para o grego (a Septuaginta) usaram a palavra grega "parthenos" ("virgem") para "almah" ao traduzirem este versículo. Isto provavelmente indica, em vez disso, que Mateus usou a Septuaginta. Gerald Sigal (1981, p. 24) indica um caso (Gênesis 34:3) em que a Septuaginta usa "parthenos" para a palavra hebraica quando a mulher em questão não é de modo nenhum uma virgem (veja Gênesis 34:2). Nahigian (1993, p. 13) também indica que traduções posteriores de Isaías, por Aquila, Theodocion, Lucian e outros não usaram "parthenos" ao traduzir "almah" em Isaías 7:14.

3 - A resposta missionária usual é invocar a doutrina do "duplo cumprimento" das profecias. Note que isto, combinado com a opinião cristã de que "almah" significa "virgem", implica que o Cristão tem de aceitar dois nascimentos virginais.

4 - O evangelho de João não diz nada sobre Jesus ser de Belém, mas em vez disso diz que ele é de Nazaré, na Galileia. Veja João 1:45-46 e 7:41-42, 52.

5 - Existem duas tentativas que costumam ser feitas para resolver estas contradições. A mais comum entre os missionários é alegar que a genealogia de Lucas é a de Maria, não a de José. Isto não explica a repetida convergência seguida de divergência que notamos à medida que analisamos as duas genealogias. Também não explica por que é que a genealogia de Lucas contém quase duas vezes mais ancestrais do que Mateus no mesmo período de tempo. Ainda outro problema é que essa explicação entra em conflito com a tradição católica que diz que os pais de Maria foram Joaquim e Ana. Uma segunda explicação, preferida pelos católicos, é que cada caso de divergência é o resultado de casamento de Levirato. Isto é, os pais discrepantes são irmãos uns dos outros, e quando um deles morreu, o outro casou com a esposa do seu irmão (veja Deuteronómio 25:5). Esta explicação também não explica a diferença no número de ancestrais.

6 - Miquéias 5:2 (nascido em Belém), Malaquias 3:1 (precedido por um mensageiro), Zacarias 9:9 (entra em Jerusalém montado num jumento), Zacarias 13:6 (traído por um amigo, ferido nas mãos), Zacarias 11:12 (traído por trinta moedas de prata), Zacarias 11:13 (prata lançada no templo e usada para comprar campo de oleiro), Isaías 53:7 (fica silencioso perante acusadores) e Salmos 22:16 (mãos e pés traspassados). Todos estes, exceto o versículo de Isaías, foram examinados acima (veja a [nota 9]).

7 - Jeffrey apresenta as mesmas oito de Stoner e McDowell (substituindo Isaías 40:3 por "precedido por um mensageiro" e Salmos 41:9 por "traído por um amigo") e acrescenta Isaías 53:5 (ferido e chicoteado por inimigos), Isaías 50:6 (cuspido e golpeado), e Isaías 53:12 (crucificado com ladrões). Estes últimos três versículos não são abordados neste artigo, veja a [nota 9].

8 - Veja Kahneman, Slovic e Tversky (1982) e Falk (1982).

9 - Profecias que não abordei incluem os escritos de Isaías sobre o "Servo Sofredor", que são tratados por Sigal (1981, pp. 35-68) e no número 30 (Junho de 1985) da revista Biblical Errancy [Erros Bíblicos].

Referências

  • Archer, Gleason (1982) Encyclopedia of Bible Difficulties. Grand Rapids, Mich.: Zondervan Publishing House.

  • Barrett, J. Edward (1988) "Can Scholars Take the Virgin Birth Seriously?", Bible Review, October, pp. 10-15, 29.

  • Epstein, Rabbi Dr. I., editor (1935) The Babylonian Talmud: Sanhedrin. London: The Soncino Press.

  • Falk, Ruma (1982) "On Coincidences," Skeptical Inquirer 6(Winter 1981-82):18-31.

  • Jeffrey, Grant R. (1990) Armageddon: Appointment with Destiny. N.Y.: Bantam.

  • Josephus, Flavius (1985) The Works of Josephus. Peabody, Mass.: Hendrickson Publishers. Translated by William Whiston.

  • Kahneman, Daniel, Slovic, Paul, and Tversky, Amos (1982) Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases. Cambridge: Cambridge University Press.

  • McDowell, Josh (1972) Evidence That Demands A Verdict. San Bernardino, Calif.: Here's Life Publishers.

  • Miosi, Frank T. (1993) "Who Was John the Baptist?" Free Inquiry 13(2, Spring):38-45.

  • Nahigian, Kenneth E. (1993) "A Virgin-Birth Prophecy?" The Skeptical Review 4(2, Spring):13-14, 16.

  • Newman, Robert C. (1990) "The Time of the Messiah." In Robert C. Newman, editor, The Evidence of Prophecy, second printing with corrections. Hatfield, Penn.: Interdisciplinary Biblical Research Institute, pp. 111-118.

  • Paine, Thomas (1925) "Examination of the Prophecies." In William M. Van der Weyde, editor, The Life and Works of Thomas Paine, volume IX. New Rochelle, N.Y.: Thomas Paine National Historical Association, pp. 205-292.

  • Sigal, Gerald (1981) The Jew and the Christian Missionary: A Jewish Response To Missionary Christianity. N.Y.: Ktav Publishing House, Inc.

  • Stoner, Peter W. (1952) Science Speaks: An Evaluation of Certain Christian Evidences. Wheaton, Ill.: Van Kampen Press, Inc


terça-feira, 9 de agosto de 2011

A dimensão política de Jesus

A busca pelo Jesus da História

Cristo foi batizado por João Batista no Rio Jordão, escolheu doze discípulos, pregou pela Galiléia durante menos de um ano e foi crucificado. Mas essas poucas certezas sobre sua vida só tornam ainda mais instigante aquilo que não se sabe – e provavelmente nunca se saberá – sobre ele

A fé cristã se fortaleceu no decorrer dos últimos vinte séculos não por se constituir em um impecável museu de relíquias capazes de narrar de forma coerente e incontestável a história de Jesus. A fé cristã se enriqueceu da adversidade e construiu uma vigorosa verdade teológica apesar das falhas gritantes dos registros históricos sobre o homem que mandou o apóstolo Pedro construir a sua Igreja. Sua passagem terrestre, no entanto, deitou sobre o tempo histórico marcas muito tênues. Fora os Evangelhos, textos sagrados do cristianismo, a figura de Jesus aparece citada apenas de forma cifrada ou pouco clara em obras escritas dezenas de anos depois de sua morte. Por essa razão, as raras descobertas arqueológicas que iluminam o período histórico de Jesus na Palestina são recebidas com grande curiosidade pelos estudiosos. Há dois anos, foi encontrada uma urna funerária de pedra gravada com a inscrição em aramaico "Tiago, filho de José, irmão de Jesus". Passada a excitação inicial com o que parecia ser a primeira prova não textual da existência física de Jesus, as dúvidas prevaleceram. O fato de a relíquia ter sido removida há muitos séculos da terra, só agora encontrada e não se poder precisar onde andou por tanto tempo contribuiu para que a descoberta não fosse considerada definitiva. O episódio, porém, encerra a lição de que a força da palavra de Jesus independe das provas históricas. Estas, por sua vez, continuarão a ser buscadas com afinco e precisão crescentes.

AP
A ilustração da aparência provável de Jesus, moreno e de cabelos crespos, é muito diversa da iconografia a seu respeito e também da face que aparece no Santo Sudário. À direita, uma reconstituição da crucificação do jovem judeu Yehohanan, cujo esqueleto é o único encontrado até hoje em Jerusalém de alguém submetido a esse tipo de execução

O Natal é uma data cristã em que a tradição menos se harmoniza com a história. Jesus não nasceu no ano que dá início à sua era, mas sim algo como seis anos antes – culpa de uma confusão entre os calendários romano e cristão. O local de nascimento de Jesus também é fonte de questionamentos. Ignora-se por que seus pais, Maria e José, que moravam em Nazaré, estariam em Belém no momento do parto. A explicação tradicional, de que teriam retornado à cidade natal de José para um censo, esbarra na falta de registros de alguma grande convocação desse tipo nesses anos. Os romanos, que dominavam a região, faziam censos em seu império para recolher tributos – e a lógica sugere que eles registravam seus contribuintes nos locais em que trabalhavam e residiam. Os Evangelhos de Lucas e Mateus, com pequenas discrepâncias, fazem narração semelhante do nascimento. Até o século XVIII, não havia a preocupação de procurar fatos que comprovassem os Evangelhos. Isso mudou. Diz o teólogo espanhol Julián Carrón: "Desde o início, a Igreja Católica acreditou que os Evangelhos tivessem origem na figura histórica de Jesus, e sempre os considerou testemunhos de fatos acontecidos. Apesar disso, a partir do iluminismo alguns estudiosos começaram a achar que os Evangelhos não tinham valor histórico e que era preciso encontrar outro tipo de correspondência entre eles e os fatos".

Os especialistas discutem livremente a função de proselitismo dos Evangelhos. A própria narração do Natal é interpretada como sendo uma espécie de esforço de propaganda. Belém era a cidade do rei Davi, uma ótima maneira de reforçar, a posteriori, a afirmação de que Jesus era o Messias: ele seria, assim, descendente pela linha paterna de um dos fundadores do judaísmo, e teria nascido na mesma cidade que ele. A estrela de Belém, citada apenas por Mateus, é outro mistério. Nascer no leste, aparecer sobre Jerusalém e então virar-se para o sul, na direção de Belém, como descreve o evangelista, é um comportamento no mínimo estranho para uma estrela. O enigma astronômico há séculos intriga os cientistas. Uma primeira resposta foi aventada em 1604, pelo astrônomo alemão Johannes Kepler. Ao observar uma conjunção de Júpiter, Saturno e Marte, ele calculou que o fenômeno teria ocorrido também em 6 a.C. – o possível ano do nascimento de Jesus –, produzindo impressão semelhante àquela descrita por Mateus. Outros estudiosos acreditam que o evangelista ficou tão encantado com a passagem do cometa Halley, em 66 d.C., que o teria incluído em sua narrativa. E há os que acham que a estrela de Belém não passa de um símbolo, lendário do começo ao fim, da chegada de um rei. "Os astrônomos nunca vão encontrar a verdadeira estrela de Belém, porque ela é produto da nossa imaginação: é a luz que brilha sobre o Cristo criança", diz A.N. Wilson, autor de Jesus: A Life. Atribui-se, ainda, à imaginação dos artistas (e ao eurocentrismo) o aspecto físico com que Jesus passou à história. Os longos cabelos castanho-aloirados, os traços esculpidos e os olhos claros são incongruentes com o biotipo de um palestino do século I. O mais provável é que ele fosse moreno, com olhos escuros e cabelos crespos – bem diferente, portanto, não só do Jesus da iconografia, como da imagem impressa no Sudário que está exposto em Turim, na Itália.

A busca pelo Jesus histórico – como de resto da maioria das investigações materiais da Antiguidade – produz mais dúvidas do que respostas. Nem a morte do Nazareno na cruz, uma das poucas certezas da história, deixa de suscitar interrogações. No mundo greco-romano, não havia desonra maior do que a morte sem sepultura. Um corpo exposto ao tempo, aos olhares de estranhos, às feras e às aves era um insulto público, e significava também a destruição da identidade – um fim sem epitáfio e portanto sem posteridade, uma preocupação suprema da Antiguidade. Por isso, para acrescentar injúria à tortura, os romanos crucificavam os escravos desobedientes e os presos políticos. Mesmo após o condenado expirar, os soldados continuavam a montar guarda: baixar um morto da cruz era um privilégio que exigia súplica, influência ou propina, ou todas as três coisas. Não é de estranhar que, dentre os milhares de pessoas que se calcula terem sido crucificadas nos arredores de Jerusalém durante o domínio romano, um único esqueleto tenha sido encontrado – o de um judeu de seus 20 anos de idade chamado Yehohanan, filho de Hagkol, como consta da inscrição em seu ossuário.

AP
O arqueólogo Shimon Gibson mostra a caverna (abaixo, à esq., sua entrada), localizada num kibutz próximo a Jerusalém, que João Batista pode ter usado para ungir seus seguidores. O óleo e a água do sacramento escorreriam por uma abertura na pedra (à dir., abaixo)
AP
AFP

A análise da ossada de Yehohanan, localizada em 1968, revela que suas mãos não foram pregadas à cruz: provavelmente, seus braços foram amarrados à trave, enquanto seus pés foram dispostos lateralmente à viga e atravessados por trás, na altura do calcanhar, por um pino de ferro. Como o pino entortou, não foi possível despregar o pé direito de Yehohanan, e sua família teve de enterrá-lo com um pedaço da cruz preso ao osso. Na suposição de o jovem judeu preservado no ossuário servir de modelo para a morte de Jesus Cristo – e ele é o único de que se dispõe –, ele levanta duas questões relevantes. A primeira é que é, sim, possível que Jesus tenha ganho uma sepultura, apesar de não ser esse o costume. A outra é que, se as mãos e os pés de Jesus não foram perfurados por cravos, as chagas com que ele é descrito nos Evangelhos e habitualmente representado não correspondem aos seus ferimentos reais. Essas são meras suposições, claro, e é quase certo que nunca será possível prová-las ou desprová-las. Na tentativa de retraçar os passos de Jesus, historiadores e arqueólogos esbarram continuamente em dilemas semelhantes: as evidências concretas são ínfimas, e por isso mesmo nem se pode descartá-las, nem tomá-las como indícios seguros.

A procura por traços concretos da existência de Jesus é relativamente recente. Começou com os movimentos racionalistas da virada do século XVII para o XVIII, quando ganhou força a idéia de que qualquer dúvida ou mistério poderiam ser desfeitos pela ciência – e, no espírito da época, o objetivo era menos verificar a existência de Jesus e mais negá-la como um mito comparável a tantos outros presentes na Bíblia. Hoje, não há mais como pôr em disputa o fato de que Jesus existiu. Ele é citado, ainda que de passagem, por dois cronistas não-cristãos do período, o judeu Josefo e o romano Tácito. As fontes mais aceitas sobre a trajetória de Jesus – os Evangelhos Sinópticos, de Mateus, Lucas e Marcos – são consistentes com o que se sabe sobre a Palestina do século I, de forma que a chance de serem fruto da imaginação de seus autores é desprezível. Muitas informações podem ser tiradas também das Cartas de Paulo (anteriores aos Evangelhos em sua forma escrita), o mais instruído dos discípulos, e de fontes não-canônicas, especialmente do Evangelho de Tomé, cujo texto integral foi descoberto em 1945 e desde então vem sendo objeto de grande atenção. Ainda que os consensos sobre a trajetória de Jesus sejam frágeis, os historiadores acreditam ser fato que ele tenha sido batizado no Rio Jordão pelo profeta João Batista, que tenha escolhido doze apóstolos, que tenha pregado pela Galiléia – talvez numa missão muito curta, de menos de um ano –, e que tenha sido crucificado, muito provavelmente durante uma Páscoa. Essas certezas, porém, só tornam ainda mais instigante aquilo que não se conhece sobre Jesus, e que vai do prosaico, como a sua aparência física, ao absolutamente cifrado – de que forma ele teria passado os anos de sua adolescência e juventude, sobre os quais nenhuma pista confiável sobreviveu.

Mesmo o local mais sagrado da religião a que Jesus deu origem, a Igreja do Santo Sepulcro – erigida sobre a caverna em que o corpo de Jesus teria sido colocado por José de Arimatéia –, não está a salvo de incertezas. A igreja foi consagrada em 335, a mando do imperador Constantino (que instaurou o cristianismo como religião oficial do Império Romano), quando uma tumba que se acredita ser a de Cristo foi descoberta sob um templo pagão. Se sua descrição e localização conferem com os Evangelhos e a crônica do período, não há, por outro lado, provas arqueológicas que confirmem ser essa a sepultura de Jesus. Muito mais tênue ainda é a ligação que se pretende estabelecer entre Jesus e a seita dos essênios, cujos célebres Manuscritos do Mar Morto foram encontrados no fim da década de 40. Praticantes de um judaísmo ascético e radical, os essênios pareciam ter, conforme os documentos que legaram, muito em comum com o pensamento de Jesus – daí a hipótese de que Cristo tenha passado a juventude com eles. A teoria tem muitos adeptos, e outros tantos detratores. Itzhak Magen e Yuval Peleg, dois arqueólogos israelenses ligados aos órgãos históricos de seu país, argumentaram que um exame mais detido das cavernas de Qumran, onde estavam os manuscritos, sugere que elas funcionavam não como um refúgio de ermitãos, mas talvez como olaria, e que os pergaminhos foram simplesmente levados da biblioteca do templo de Jerusalém para lá, para sua proteção. Não seria, portanto, um lugar de estudo onde um jovem fosse se iniciar.

São remotas as chances de que, algum dia, venham a surgir as evidências diretas que tanto se buscam sobre Jesus. A Palestina era uma província menor, que interessava ao Império Romano apenas na medida em que se situava entre o Egito e a Síria. Menos importância equivale a menos documentos e monumentos – a primeira dificuldade no caminho da arqueologia. O ossuário do sumo sacerdote judeu Caifás, que entregou Jesus ao governador romano Pôncio Pilatos e exigiu sua execução, é dado como genuíno. Mas só há poucas décadas se encontrou uma laje com a inscrição do nome de Pôncio Pilatos. Até autenticar-se esse fragmento de pedra, o nome do governador romano existia apenas na literatura. Escavar em Jerusalém e arredores é, além disso, uma proposição delicada. A cidade vive uma divisão conflituosa entre as três religiões para as quais é sagrada – o cristianismo, o judaísmo e o islamismo –, e expedir uma autorização é uma questão que exige sensatez política e diplomática. Em anos recentes, com o recrudescimento das hostilidades entre israelenses e palestinos, a situação se agravou: das quase cinqüenta grandes escavações em andamento em Israel, apenas quatro continuam em atividade. Não há como garantir a segurança das demais. Finalmente, a região é o paraíso dos caçadores de troféus, que retiram peças de seu contexto para vendê-las – e, assim, eliminam quase todo o seu valor científico –, e dos arqueólogos ambiciosos, que anunciam descobertas bombásticas antes que elas possam ser analisadas por seus pares. Em agosto deste ano, por exemplo, o arqueólogo britânico Shimon Gibson anunciou com grande alarde ter encontrado a suposta caverna de João Batista, localizada no que é hoje um pequeno kibutz. Há indícios de que seguidores de João, ao menos, tenham usado o local, que conta com o que se julga ser uma pia batismal por onde escorreriam o óleo e a água empregados na unção. Qualquer outra hipótese, porém – como a de que João ou mesmo Jesus tenham administrado batismos ali, conforme especula Gibson –, é prematura.

A fé, claro, não precisa de provas que a confirmem, ou não levaria o nome de fé. Não precisa, mas, de alguma forma, sempre as deseja. Os Evangelhos descrevem a relutância de Jesus em fazer milagres, mas deixam entrever sua visão de que, ocasionalmente, esses sinais eram necessários. Conta-se também como, após a Ressurreição, Cristo deixou que o incrédulo São Tomé tocasse suas chagas para comprovar que era ele mesmo, o Filho de Deus, quem estava ali. Desde que o cristianismo começou a se espalhar – e ele se alastrou como um rastilho de pólvora pela Palestina e logo também por todo o mundo romano em suas primeiras décadas –, começaram a surgir também as relíquias: fragmentos da Cruz Verdadeira (que, fossem todos eles autênticos, teria dimensões descomunais), ossos de santos, frascos de sangue e toda uma miríade de testemunhos físicos de que Cristo, seus apóstolos e mártires caminharam sobre a Terra, gerando um culto que poderia muito bem ser caracterizado como fetichismo ou superstição. Na Idade Média, a Igreja muitas vezes se valeu da venda de relíquias e de indulgências como fonte de renda – um comércio que, durante uma visita a Roma, horrorizou o padre Martinho Lutero e acabou servindo como um dos estopins para a Reforma Protestante. Hoje o Vaticano desencoraja esse tipo de apego, ou, quando muito, o tolera, e trata as descobertas de possíveis relíquias com o máximo de circunspecção. Mesmo assim, elas ainda pipocam.

Quando se pensa no homem que fundou a maior religião monoteísta do planeta, resistente a 2.000 anos de sismos políticos e sociais, ao crescimento de outras religiões e às cizânias em seu próprio interior, é natural imaginá-lo voltado para nós, transmitindo para as gerações vindouras sua mensagem. Esse Jesus, contudo, é o da teologia. De acordo com a historiadora Paula Fredriksen, professora de escritura da Universidade de Boston, para encontrar o Jesus histórico deve-se visualizá-lo de outra forma: de costas para nós, e voltado para os seus contemporâneos e conterrâneos. O problema imediato de Jesus era fazer-se entender por eles, e foi para pessoas como ele próprio que Cristo elaborou seu discurso, ou que os evangelistas escreveram seus relatos. É preciso, então, primeiro entender a Palestina do século I e, em seguida, contrapor a ela os relatos dos Evangelhos – um exercício que pode render frutos surpreendentes.

Diz a máxima – quase sempre verdadeira – que quem escreve a história são os vencedores. Os Evangelhos, porém, são a mais notável exceção a essa regra. Tudo sugere que os relatos de Mateus, Lucas, Marcos e João começaram a ganhar forma na segunda metade do século I, quando o cristianismo ainda era um movimento marginal, que apenas começava a ensaiar o seu passo decisivo – o de transpor a esfera do judaísmo para conquistar os gentios e se alastrar pelo mundo romano. Os Evangelhos estão carregados de marcas dessa trajetória. Eles assinalam, por exemplo, a relutância do romano Pôncio Pilatos em aceitar as acusações do sacerdote judeu Caifás e condenar Jesus à morte. Nas menções a Pilatos que sobreviveram na crônica política da época, contudo, o governador é retratado como um oficial brutal, que se excedia no zelo com que executava prisioneiros a ponto de incomodar Roma. Esse é um dos pontos em que os estudiosos convergem: a maneira como os Evangelhos mitigam a culpa de Pilatos, transferindo-a quase toda para o clero judaico, é uma herança clara do momento que o cristianismo atravessava por volta dos anos 60 e 70, de tentar seduzir Roma e forjar laços com ela. Do ponto de vista de um historiador, portanto, até em suas omissões ou contradições os Evangelhos são um documento historiográfico riquíssimo, repleto de pistas sobre as intenções de Jesus e sobre as tensões políticas a que ele e seus seguidores estavam submetidos.

Essa tática – a de estudar o que não é dito – é, segundo Paula Fredriksen, útil também no caso do historiador judeu Josefo. O mais ativo cronista da região no século I, Josefo forneceu descrições detalhadas dos acontecimentos políticos e sociais. Mas não menciona fome, impostos escorchantes, violações flagrantes da lei judaica (por parte de Herodes Antipas, rei da Galiléia, ou dos oficiais romanos) nem forte presença de tropas do invasor. Não relata, enfim, turbulências além do normal. O retrato consensual que se tem da região no início do século I é o de uma terra cultivada, muito populosa – outro cronista diz que nunca se andava um dia inteiro sem atravessar uma vila, uma aldeia ou uma cidade –, e que usufruía uma convivência não exatamente harmoniosa, mas também não particularmente tensa, com o poder romano. A Galiléia era já muito romanizada, mas eram os judeus, e não os romanos, que a governavam, frisa Paula Fredriksen. Ou seja, a julgar pelo que narra Josefo, é muito mais lógico que Jesus tenha feito mais oposição a preceitos judaicos do que à dominação romana – o contrário do que dizem, por exemplo, alguns teólogos ligados à Teologia da Libertação, que gostam de ver em Jesus um proto-socialista.

O irlandês radicado nos Estados Unidos John Dominic Crossan, professor de estudos bíblicos da Universidade DePaul de Chicago e talvez o mais influente estudioso da área, vai mais fundo nesse panorama da Palestina. Em O Jesus Histórico, Crossan se vale de numerosos trabalhos de colegas seus para reconstruir um retrato minucioso dessa sociedade. E duas características da Palestina – assim como de toda a bacia do Mediterrâneo – são fundamentais para entender Jesus, diz ele. A primeira delas é o código de honra e vergonha, que assegurava à força a lealdade no interior das comunidades. Nesse sistema, famílias e clãs se tornavam pequenos soberanos, com poder de vida e morte sobre seus membros – e ai de quem transgredisse suas regras. Outro traço muito típico do Mediterrâneo, aponta o historiador, é o costume do apadrinhamento: tudo nesse universo dependia de intercessão, de que se pedisse um favor e alguém o concedesse.

Para as pessoas humildes que viviam espremidas entre os sistemas de honra e apadrinhamento, imagina John Dominic Crossan, o desejo de escapar não devia ser pequeno. Mas como alguém pode se subtrair à sociedade? Os cínicos – e a palavra aqui é derivada do grego para "canino", sem o sentido atual – filosofaram uma resposta a essa pergunta: segundo os partidários dessa espécie de contracultura da Antiguidade (que achavam que se devia "latir" contra as injustiças), a pobreza levava à liberdade, que por sua vez levava à realeza – a um homem que é senhor de si mesmo. Não se tratava apenas de teoria. Os cínicos tinham diretrizes práticas em relação à aparência (cabelo comprido, manto e pés descalços), alimentação (tirada de um alforje) e moradia (proporcionada por quem se dispusesse a dar abrigo ao rebelde itinerante). No tempo de Cristo, os cínicos eram figuras comuns, e facilmente reconhecíveis por suas vestimentas, seu cajado e suas atitudes. Não eram benquistos pelas autoridades romanas, claro, porque enchiam de idéias as classes menos favorecidas. De certa forma, Jesus se encaixaria no papel de um cínico, diz Crossan – exceto pelo fato de que ele foi bem além da proposta do movimento. Jesus não pregava a auto-suficiência, como os cínicos, mas sim a mais absoluta comensalidade, sem distinções entre homens e mulheres, pobres e ricos, gentios ou judeus, poderosos ou párias. Isso não desagradaria só aos romanos. Enfureceria acima de tudo os adeptos da lei judaica, que nesse momento atravessava uma fase de sectarismo pronunciado. E, como arrisca Crossan, mais desmoralizante e subversivo do que combater uma regra é simplesmente ignorá-la.

Muito já se discutiu se Jesus estaria em continuidade com o judaísmo ou em oposição aos padrões sociais e religiosos de sua época. Mas o inglês Christopher Tuckett, professor de estudos do Novo Testamento na Universidade de Oxford, levanta um argumento forte a favor do Jesus radical: o ministério de Cristo se mostrou tão ofensivo para parte de seus contemporâneos que eles o levaram à morte pelo método mais cruel de execução já inventado. Sob essa luz, muito do que Jesus pregou ganha um novo sentido. Tome-se, por exemplo, sua condenação do divórcio. "Todo aquele que se divorciar de sua mulher e desposar outra comete adultério contra a primeira", diz o Evangelho de Marcos. Ora, à primeira vista essa parece ser uma posição conservadora. Mas é preciso reparar que Jesus fala que um homem que toma uma segunda esposa é um adúltero. Na lei judaica, só os homens, e não as mulheres, podiam pedir o divórcio. Nivelando o direito feminino ao masculino, Jesus desfere um golpe contra o androcentrismo, um dos pilares da tradição.

Nesse cenário, até o sacramento do batismo adquire um sentido subversivo. Na época em que Cristo viveu, o único local em que um judeu podia oferecer sacrifícios para purificar-se era o Templo de Jerusalém – caro chegar até lá, caro custear a estada e caro comprar, à entrada do templo, os animais que seriam sacrificados. Na prática, isso equivalia a excluir da redenção, por critérios econômicos, uma parcela da população. O batismo seria, assim, um atalho barato e viável para o poder divino: bastava um banho para limpar-se dos pecados – e bastava esse gesto para minar o monopólio dos sacerdotes sobre a salvação.

Foi isso que o ministério de Jesus fez: solapar de forma sistemática a hierarquia. Quase todas as suas alusões ao Reino de Deus deixam transparecer essa preocupação. Um reino que é das crianças não seria, na Antiguidade, propriamente um reino dos inocentes – e sim daqueles sem poder nem direito de opinião ou escolha. Numa tradução mais correta do grego original, o reino dos pobres viraria o reino dos indigentes, dos indesejados. Nada fala mais alto, entretanto, que a decisão de Jesus de confiar ao seu apóstolo Pedro, e não ao seu irmão Tiago, os rumos de sua Igreja. Num ambiente regrado pelo apadrinhamento, seria natural que os familiares de Jesus se beneficiassem mais de seus dons, sua fama e seu poder crescente. Jesus, porém, preferiu quebrar a espinha aos usos e costumes de seu tempo. Seu reino, de certa forma, não estava no futuro: nesses termos, era já muito presente.

Por mais valioso que seja conhecê-la, a dimensão política de Jesus, entretanto, em nada ajuda a compreender a sua natureza essencial – a divina. É nesse ponto, em que fé e ciência colidem, que começam as questões verdadeiramente insolúveis. A Ressurreição é a passagem mais desafiadora dos Evangelhos para um historiador secular: ela é a chave para o reconhecimento da divindade de Jesus, mas a que menos possibilidade oferece de se encaixar numa perspectiva científica. Francis Watson, professor de exegese do Novo Testamento na Universidade de Aberdeen, na Escócia, argumenta que o problema de não ser possível provar os milagres e a ressurreição de Jesus – nem nunca ter sido possível provar fenômenos semelhantes – não é, em si só, prova em contrário de que tais fatos tenham sucedido. A questão levantada por Francis não é apenas técnica, ou um jogo de palavras. Qualquer tentativa de contar a história de Jesus pondo de lado a confissão de que ele é o Cristo – enfim, o filho de Deus e o próprio Deus – seria equivocada, diz o professor: separar Jesus, a figura histórica, de Cristo, a figura divina, significa desprezar exatamente o fator que confere a ele sua importância absoluta e insuperável. Não importa se se pensa que Jesus é o filho que integra a Santíssima Trindade, que era um profeta como qualquer outro de seu tempo ou que era meramente um lunático que se acreditava o Messias – Jesus será sempre definido como sendo o Cristo ou o não-Cristo. Será sempre definido, em suma, por uma indagação. Assim foi durante sua vida, na Galiléia, quando seus próprios familiares duvidaram de sua origem divina, ou quando os aldeões que o viram expulsar os demônios do corpo de um homem o acusaram de ter esse poder por meio de Belzebu. E assim é hoje: quanto mais se tenta chegar ao Jesus "verdadeiro", mais fé e história se entrelaçam. E mais o mistério se aprofunda. Mistério cuja chave Jesus mesmo produziu, ao afirmar: "Meu reino não é deste mundo".