segunda-feira, 30 de maio de 2011

A Falsa Pena dos Escribas

"Como, pois, dizeis: Nós somos sábios, e a lei do SENHOR está conosco? Eis que em vão tem trabalhado a falsa pena dos escribas" Jeremias 8,8.

Ainda que muitos religiosos não concordem, a bibia possui sim acréscimos e textos que não existem nos manuscritos originais. Mesmo certos textos que aparecem em alguns manuscritos, basta uma analise mais critica e histórica, que percebemos que são acréscimos posteriores feito por copistas. Comentaristas não sabem se alguns destes acréscimos foi devido ao sincretismo que Constantino queria fazer com os messias solares do mundo antigo ou talvez simplismente licença poetica. Não se tem certeza absoluta também de que tais acréscimos não sejam autênticos, sendo que nos primeiros séculos muita coisa era transmitida por tradição oral. Recomenda-se que o leitor analise a critica textual, o estilo literario e os demais livros da biblia, pois um dos primeiros principios de Hermeneutica e interpretação biblica, exegese, é que a biblia se explica por sí só e um livro da biblia, sendo a palavra de Deus, não pode entrar em contradição com outro livro; "pois Deus não é homem para que minta e nem filho do homem para que se arrependa" (Nm 23,19).

A maioria dos céticos e ateus utilizam-se justamente destas contradições geradas por acréscimos para tentar invalidar a palavra de Deus. Irônicamente a maioria dos religiosos e pregadores em geral negam tais acréscimos e mesmo erros de traduções, ignorando o fato de que Deus não é Deus de confusão. Muitas discussões de teologos e pregadores em geral sobre dogmas importantes da cristandade, muitas vezes utilizam-se de passagens ou versiculos da biblia, para reforçarem seus argumentos, sendo que alguns muitas vezes, não estão coerente com relação a tradução original ou não existem, simplismente foram acrescidos ou adulterados por padres para validarem suas interpretações teologicas.

O objetivo de exibir certas passagens não é desacreditar das mesmas e nem da palavra de Deus, mas expôr a verdade. Que o leitor tenha um bom discernimento e saiba analisar textualmente tais passagens, pois não podemos afirmar com certeza se são originais ou não. A palavra de Deus é a verdade e nossa fé tem que ter uma base lógica fundamentada na verdade. Não podemos descartar que tais passagens possam ser realmente originais, mas recomenda-se não utiliza-las em estudos mais profundos que possam comprometer a salvação de alguém, pois também não podemos afirmar que sejam autênticas ou criadas por padres, sendo que a maioria não consta nos originais dos manuscritos gregos.

Recomenda-se a todo exegeta ou hermeneuta, antes de se fazer qualquer estudo biblico, se fazer um estudo da Bíblia. Algumas biblias voltadas para estudo possuem um bom rodapé mencionando o que consta nos originais ou não. Nesta postagem utilizo alguns comentarios de três versões biblicas, a biblia de Jerusalém, a biblia de estudos de Genebra e versão peshitta do aramaico, ainda que as três discordem em alguns pontos, mas é bom para o leitor conhecer explicações diferentes de comentaristas e historiadores. Recomenda-se também livros sobre o tema como "O que Jesus disse e o que Jesus não disse" de Hermam Bart, uma excelente analise critica textual e histórica além de outros livros que mencionam certos acréscimos e erros de traduções.Vamos expôr e analisar algumas passagens contextadas e ausentes nos manuscritos:

A MULHER ADULTERA

No capitulo 7 a partir do versiculo 53, até o capitulo 8 versiculo 11 do evangelho segundo João, vemos uma passagem bonita e inspiradora que não aparece em nenhum original deste evangelho. Nem nos melhores manuscritos gregos ou mesmo na versão semita deste evangelho consta tal passagem.

Na nota de rodapé da biblia de Jerusalém diz:

"Esta perícope omitida nos mais antigos documentos (manuscritos, versões e padres da igreja) colocada alhures por outros, deixa transparecer o estilo sinótco e não pode ser de João. Poderia ser atribuida a lucas (cf Lc21+38).Sua canonicidade e seu valor histórico, no entanto, não sofrem contestação."

Na Bíblia de estudos de Genebra diz:
"Estes versiculos não ocorrem na maioria dos melhores manuscritos gregos desse evangelho. Os manuscritos antigos em que esses versiculos ocorrem o colocam em lugares diferentes (aqui; após 7,36; após 21,25; após lucas 21,38; e após lucas 24,53). A partir de 7,53 e 8,1, fica claro que a localização dessa narrativa não é original, pois Jesus não estava presente na reunião descrita em 7,45-52. Essa evidência sugere que esses versiculos não faziam parte do original deste evangelho, mas que provavelmente tem origem apostolica e reproduzem um incidente que, de fato, aconteceu durante o ministério de Jesus."

A versão peshitta diz:
"A famosa história da mulher adultera não aparece nos manuscritos da peshitta nem do siríaco antigo. Existem três possiveis teoria para este motivo:

1-Sim, é inspirada
2-Sim, é inspirada mas não pertencia ao evangelho de Yohanan mas sim as boas novas dos Hebreus (como era chamado o evangelho de Mateus)
3-Não, é um acréscimo posterior

1- A primeira teoria foi defendida por Agontinho, bispo de hipona por volta do século III. Segundo Agostinho, homens que eram a favor de punição severa em caso de adultério feminino não viam a história com bons olhos, e se encarregaram de remove-la de diversos manuscritos. Um grande ponto a favor desta teoria é o fato de que a narrativa parece mais fluida quando o texto da mulher adúltera esta presente.


2- A segunda teoria, da qual partilha o autor desta compilação (Shaul bent sion, um dos principais tradutores da peshitta), é a de que a mulher adúltera pertencia na realidade ao livro de Matitiyahu dos nazarenos. Eusébio parece indicar que o Matitiyahu hebraico continha tal narrativa: "Ele (papias) também explicou outra história, sobre uma mulher acusada de muitos pecados perante o senhor, que as boas novas dos hebreus contém" (Hist. Ecl.iii.39.19). Como tal escrito de Papias é do século 2, isto da um forte indicio da orginalidade da história.As duas primeiras teorias são reforçadas pelo fato de que há alguns relatos histórcos datando dos séculos 2 e 4 que fazem menção da história da mulher adultera, invocando-o inclusive para construir argumentos, o que dá um forte indicio de sua aceitação como texto inspirado.

3- A terceira teoria, defendida por alguns teologos modernos, é a de que se trata apenas de uma adição posterior, uma vez que não figura em nenhum dos manuscritos mais antigos. Complementado:Alguns comentaristas acreditam que esta passagem fora criada na igreja do quarto século para evitar que mulheres fossem apedrejadas. O estilo literario e a critica textual revelam que esta passagem não podem ser de João.

Na passagem em questão, fariseus tentando testar Jesus, lhe trazem uma mulher presa em flagrante em pleno ato de adultério, dizendo que na lei Moisés mandou apredejar tais mulheres. Mas um detalhe interessante, é que na lei de Moisés, se uma mulher fosse pega em flagrante, não era só a mulher que deveria ser apedrejada, mas o homem que com ela adulterou também:
"Também o homem que adulterar com a mulher de outro, havendo adulterado com a mulher do seu próximo, certamente morrerá o adúltero e a adúltera" Lv 20,10.

Mas na narrativa vemos apenas a mulher que adulterou sendo apresentada para ser apedrejada. O que contradiz a Torá e mesmo o contexto da passagem, pois se os fariseus, tão observadores da lei como eram, e queriam aproveitar um fato ocorrido para testar o julgamento de Jesus, não cometeriam o erro de violar a própria lei, pois sabiam que poderiam ser acusados por isto.

Na passagem Jesus escreve algo com a mão na areia, que segundo alguns, o mais provavel era que fossem os pecados dos fariseus. Seja como for esta passagem não pode ser considerada nem autêntica e nem uma fraude, mas fica livre a decisão do leitor acredita-la ou não. Mas como base de um estudo apologético, como sobre a anulação das leis de Moisés por Jesus, recomenda-se não utiliza-la, pois não se tem certeza de sua originalidade.

Um vídeo de um judeu ortodoxo chamado: "Judeus não acreditam em Jesus, por que? parte 4/7" onde esta passagem é uma das mencionadas: Video do youtube Note algumas caracteristicas tipicas do judaismo e da Torá que tornam esta passagem improvavel: Falta o homem que adulterou com a mulher; O julgamento só podia ser feito dentro do templo; Os fariseus não podiam apedrejar ninguém; Não haviam pedras soltas dentro do templo e nem no atrio para apedrejamento; Não havia areia dentro do templo; Dentre outras...

O FINAL DO EVANGELHO DE MARCOS

O evangelho de Marcos, termina abruptamente no capitulo 16,8. A partir do versiculo 9 ao 20 não consta nos originais deste evangelho. O mais provavel é que devido á seu fim abrupto seu final tenha sido preenchido utilizando-se os outros evangelhos canônicos.

No rodapé da Bíiblia de Jerusalém diz:
"O trecho final de marcos (vs 9 ao 20) faz parte das escrituras inspiradas; é tido como canonico. Isto não signifca nescessariamente que foi escrito por marcos. De fato, põe-se em duvida que este trecho pertença a redação do segundo evangelho._As dificuldades começam na tradição manuscrita. Muitos manuscritos entre eles o do Vaticano e o Sanaidico omitem o final atual. Em lugar da conclusão comum, uns manuscritos tem um final mais breve, que da continuidade ao vs 8: "Elas narraram brevemente aos companheiros de Pedro o que lhes tinha sido anunciado. Depois o mesmo Jesus, os encarregou de levar, do oriente ao ocidente, a sagrada e incorruptivel mensagem da salvação eterna".

Quatro manuscritos dão em seguida os dois finais, o breve e o longo. Por ultimo, um dos manuscritos que trazem o final longo intercala entre o vs 14 e 15 o seguinte trecho: "E estes alegaram em sua defesa: Este tempo de iniquidade e de incredulidade esta sob o dominio de satanas, que não permite quem esta debaixo do julgo dos espiritos imundos aprenda a verdade e o poder de Deus; revela, pois; desde agora, a tua justiça. Foi o que disseram a Cristo e ele lhes respondeu: O fim do tempo do poder de satanás esta no auge; e entretanto, outros acontecimentos terriveis se aproximam. E eu fui entregue á morte por aqueles que pecaram, a fim de que se convertessem à verdade, e para que não pequem mais, a fim de que recebam a herança da glória de justiça espiritual e icorruptivel que esta no céu...."

A tradição patrística dá também testemunho de certa hesitação._ Acrescentamos que, entre o vs 8 e 9, existe, nesta narrativa, solução de continuidade. Além disso é dificl admitir que o segundo evangelho na sua primeira narrativa, terminasse bruscamente no versiculo 8. Donde a suposição que o final primitivo desapareceu por alguma causa por nós desconhecida e de que o atual fecho foi escrito para preencher a lacuna. Contudo, o final que hoje conhecemos era conhecido ja no século II por Taciano e santo Irineu, e teve guarida na imensa maioria dos manuscritos gregos e outros. Se não se pode provar que foi Marcos o seu autor, permanece o fato de que ele constitui, nas palavras de Swete, "Uma autêntica relíquia da primeira geração cristã".

Na Bíblia de estudos de Genebra diz:
"Estas palavras não ocorrem em alguns manuscritos antigos importantes. A ausência desta passagem, bem como seu estilo e vocabulario diferentes, levantam sérias duvidas quanto a sua autênticidade. Se os versiculos 9-20 não são originais então o evangelho de Marcos termina com esta frase. Observe, contudo, que a palavra significa "Temor reverencial", e que esta mesma emoção foi produzida nos discipulos quando viram Jesus transfigurado (9,6)_ uma espécie de ressureição antecipada".

Na versão Peshitta diz:
"A passagem final do evangelho de marcos não aparece no Siríaco Antigo, porém figura na Peshitta. É provável que o final do livro de Marcos tenha sido danificado em alguns dos manuscritos semitas, e tal ausência tenha sido replicada em cópias posteriores, dando origem a duas familias de manuscritos: um com e outra sem o texto em questão. Contudo, há quem alegue que tal final é um acréscimo posterior, visto que também nos manuscritos gregos mais antigos o trecho referido não aparece. O autor desta compilação é da opinião de que o texto é original e inspirado, porém nenhuma das duas teorias pode ser plenamente provada ou desprovada. deixamos a decisão a critério do leitor."

Não podemos afirmar sua canonicidade ou adulteração, mas é notavel certos detalhes peculiares que parecem não coincidir com o pensamento original dos evangelistas ou mesmo com as demais escrituras.O versiculo 16 por exemplo parece uma tipica acentuação da igreja para respaldo litugico: "Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado".

O batismo nunca fora mencionado por nenhum outro escrito como preceito fundamental para a salvação, como aparece nesta formula de Marcos, "quem crê e for batizado". O versiculo 11 também não coincide com a narrativa dos outros evangelistas: "E, ouvindo eles que vivia, e que tinha sido visto por ela, não o creram".

Segundo a narrativa de João, o único apostolo que não creu que Jesus ressussitara foi Tomé. Mesmo na narrativa de Mateus, lemos que "Alguns porém duvidaram" Mt28,17, esses que supostamente duvidaram foi após verem o próprio Jesus e não do testemunho dado por Madalena. Portanto, apesar de seu caráter canonico, este final do evangelho de Marcos não tem nos manuscritos originais e antes de utiliza-lo devemos compara-lo aos outros três para discernirmos o que é autentico ou não.

O FINAL DO EVANGELHO DE JOÃO

O evangelho segundo João termina no capitulo 20, onde no versiculo 31 vemos claramente uma finalização:
"Estes, porém, foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome" Jo20,31.

O capitulo 21, não se tem certeza de sua origem, mas pela dialética, escrita e contextualização, nota-se claramente que não foi escrito pelo mesmo autor do restante do evangelho. O capitulo começa com uma nova aparição de Jesus, que parece ser uma glosa composta por trechos de narrativas dos outros evangelhos. No versiculo vinte e quatro vemos uma suposta identificação do autor do evangelho: "Este é o discípulo que testifica destas coisas e as escreveu;" identificação que não aparece em nenhum outro trecho do evangelho onde o autor se identifica na terceira pessoa.

A Bíblia de Jerusalém diz:
"Este relato funde dois episódios primitivamente distintos; uma pesca miraculosa (cf. Lc 5,4-10), que o versiculo 10 se esforça em ligar. Nos vs 1 e 14, o verbo "manifestar", dito de Cristo, é termo técnico herdado das tradições judaicas, para significar a manifestação de Cristo enquanto tal (1,31+; opor o verbo "ser visto" para as aparições de Cristo ressussitado; 20,18+), isso poderia ser indicio de que nas tradições joaninas, a pesca miraculosa estava na origem de acontecimento relativo ao inicio do ministério de Jesus, como em Lucas".

A Biblia de estudos de Genebra diz:

"É possivel que este capitulo tenha sido acrescentado como um pós escrito pelo mesmo autor do evangelho (isto é, por João), embora haja indicios de que outra pessoa escreveu o vs 24 talvez o 25".

Pode sim ter sido uma adição posterior do próprio evangelista, mas contradiz com o final apresentado no capitulo 20,31. Seu caráter sinódito pode ter sido transmitido por tradição apostolica. Recomenda-se ao leitor que analise todos os versiculos e veja a concordância com os demais evangelhos e com as demais escrituras.

O capitulo dois do evangelho segundo Mateus, narras fatos impressionantes só narrado estranhamente por Mateus, a matança dos inocentes, a fuga para o Egito e a Visita dos magos do oriente guiados por uma estrela. Nenhum dos outros evangelistas ou mesmo os apostolos em suas epistolas, mencionam tais fatos. Nem históriadores da época, como Flavio Josefo menciona tal ocorrido em Belém da judéia.

Segundo a narrativa do evangelho, Herodes, sabendo que magos vieram do oriente para adorar o menino Jesus, tenta enganar os magos e depois percebendo que fora ludibriado por estes, irrita-se e manda matar todos os meninos que haviam em Belém, de dois anos para baixo.

Apesar de não ter sido narrado por nenhum outros evangelista ou apostolo, exceto em um relato apócrifo de Felipe, podemos comparando com os outros evangelhos, principalmente o de Lucas, que narra também sobre o nascimento do messias, perceber algumas contradições.

A ESTRELA DE BELÉM

A estrela de Belém, apesar de comentaristas entenderem como um sinal divino, não é mencionada por nenhum outro relato a não ser no evangelho de Mateus. A estrela além de ser um simbolo de povos pagãos e ser contra os preceitos da biblia que condena astrologia ou qualquer pratica advinhatória, é um relato que parece ter sido inspirado em mitologias pagãs. Não existe nenhuma profecia messiânica acerca disto. Algumas biblias geralmente relacionam isto a alguns salmos como o 148,3 , mas não são messianicos. Uma estrela é mencionada na Torá sendo condenavel pelo Eterno:"Antes levastes a tenda de vosso Moloque, e a estátua das vossas imagens, a estrela do vosso deus, que fizestes para vós mesmos." (Amós 5 : 26). Nos deuses solares do mundo antigo vemos o seu anuncio sendo predito por uma estrela, o que parece mais algo tipico de culturas pagãs que do judaismo.

Vejamos alguns exemplos:

श्रीमद्भागवतमहापुराणम् अष्टमः स्कन्धः अथाष्टादशोऽध्यायः श्रोणायां श्रवणद्वादश्यां मुहूर्तेऽभिजिति प्रभुः । सर्वे नक्षत्रताराद्याश्च क्रुस्तज्जन्म दक्षिणम् ॥ ५ ॥ दशमः स्कन्धः अथ तृतीयोऽध्यायः श्रीशुक उवाच अथ सर्वगुणोपेतः कालः परमशोभनः । यर्ह्येवाजनजन्मर्क्षं शान्तर्क्षग्रहतारकम् ॥ १ ॥

Śrīmadbhāgavatamahāpurāṇam 8.18.5. Quando a Lua encontrava-se na casa de Śravana, em Śravana Dvādaśī, no momento auspicioso de Abhijit, todos os planetas e estrelas, o Sol e a Lua, prodigamente caridosos celebraram o nascimento de Vāmana. 10.3.1Śrī Śukadeva Gosvāmī disse: quando chegou o momento propício, o nascimento de Kṛṣṇa, a estrela Rohiṇī apareceu predominante junto aos demais planetas e constelações em uma posição auspiciosa.

ಶ್ರೀಬುದ್ಧಚರೀತಮ್ ಭಗವತ್ಪ್ರಸೂತಿರ್ನಾಮ ಪ್ರಥಮಃ ಸರ್ಗಃ ತತಃ ಪ್ರಸನ್ನಶ್ಚಬಭೂವ ಪುಷ್ಯಸ್ತ ಸ್ಯಾಶ್ಚ ದೆವಯಾ ವ್ರತಸ್ಮಂಸ್ಕೃತಾಯಾಃ ।ಪಾರ್ಶ್ವಾತ್ಸುತೊ ಲೊಕಹೀತಾಯ ಜಜ್ಞೆ ನಿರ್ವೆದನಂ ಚೌವ ನಿರಾಮಯಂ ಚ ॥ ೯ ॥

Śrībuddhacaritayam 1.9. No momento em que a constelação Puṣya tornou-se radiante, do lado da princesa que fora purificada por seu voto, seu filho Buddha nasceu sem dor nem sofrimento, para o bem estar do mundo.

ಶ್ರೀಜಿನಚರಿತಯಮ್ ಅಥ ಪ್ಥಮೊ ಅಧಯಾಯಃ ಅತಿರೇಕ ತರಾ ತಾರಾವಳಿ ಚನ್ದದಿವಾಕರಾ । ವಿರೋಚಿಂಸು ನಭೇ ಭೂಮಿಗತಾನಿ ರತನಾನಿ ಚ ॥ ೧೧೩ ॥

Śrījinacaritayam 113 No céu uma multidão de estrelas, a Lua e o Sol irradiavam magnífico brilho semelhante aos tesouros escondidos na terra.

Como vemos a narrativa pode ter sofrido influência de culturas pagãs anteriores ao cristianismo.

OS MAGOS DO ORIENTE

Nenhum evangelista mencionou a existência de tais magos guiados por uma estrela e não há nenhuma profecia messianica acerca disto. Nenhum profeta disse que a vinda do Messias seria anunciada por uma estrela. A própria palavra magos, no original semita esta sábios, que podem ser identificados como doutores da lei, Cohem(sacerdotes), mas não magos. A pratica de magia é condenada pela Torá e é no minimo estranho que magos tenha vindo visitar o messias. Em nenhum evangelho é mencionado o número três, atribuido posteriormente pela igreja, que ainda por cima identificou os tais magos como sendo partos, sacerdotes da Babilônia.

No relato segundo Lucas, vemos que um anjo apareceu aos pastores e lhes disse que seu messias acabara de nascer, e estes foram louvar o menino Jesus. Lucas em seu relato cuidadoso menciona até a aparição de um anjo mas nenhum mago.

Curiosamente, messias pagãos foram visitados por três magos, como Horus, krisna ou Mitra, que remontam a um simbolismo antigo da constelação dos três reis (três marias) que apontam para uma estrela na constelação de virgem. Portanto, o mais provavel aqui é que tenha havido um sincretismo da parte de Roma com a história dos messias pagãos.


Algmas Bíblias relacionam este fato ao salmo 72.10 " reis de Társis e das ilhas trarão presentes; os reis de Sabá e de Seba oferecerão dons..." Mas o rei referido no salmo 72 tem filho (v. 1), e o contexto é de um rei com um reinado bem estabelecido recebendo tributos de reis vassalos. Os presentes não viriam apenas do oriente (Sabá e Seba), como também do ocidente (Társis e as ilhas).

A MATANÇA DOS INOCENTES

Segundo Mateus houve um grande massacre de meninos abaixo de dois anos em Israel, não narrado por nenhum outro evangelista ou historiador da epoca e ausente até mesmo na tradição oral judaica. Ainda que Herodes tenha sido realmente um monstro que mandou assassinar a própria esposa e outros, um fato assim não passaria batido. Vale notar também que João batista, segundo lucas, nasceu com uma diferença de seis meses de Jesus e na mesma região, em uma cidade de Judá. Se tal massacre realmente ocorreu naquela região, é de se estranhar que João batista tenha escapado, pois tinha uma idade próxima de Jesus com uma variação de seis meses e nascera na mesma região. A profecia geralmente citada para isto esta em Jr 31.15 "Assim diz o SENHOR: Uma voz se ouviu em Ramá, lamentação, choro amargo; Raquel chora seus filhos; não quer ser consolada quanto a seus filhos, porque já não existem...".Não se refere ao messias. A passagem não se refere a uma matança de crianças. O choro de Raquel se refere à dispersão do povo de Israel e de Judá, que foram levados de sua terra para serem servos em terras estrangeiras. O versículo seguinte (v. 16) diz: "Assim diz o Senhor: Reprime a tua voz de choro, e as lágrimas de teus olhos; porque há galardão para o teu trabalho, diz o Senhor, pois eles VOLTARÃO da terra do inimigo."

A Bíblia de Jerusalém em nota de rodapé menciona que o evangelista pode ter usado de licença poetica fazendo uma analogia da história de Jesus com a história de Moisés.

A FUGA PARA O EGITO

Na narrativa de Mateus também vemos que a familia de Jesus foge para o egito, onde permanecem até a morte de Herodes, quando voltam para Israel e se estabelecem em Nazaré.Mas segundo os relatos de Lucas, a familia de Jesus ia todos os anos a Jerusalém para adorar no templo:
"E o menino crescia, e se fortalecia em espírito, cheio de sabedoria; e a graça de Deus estava sobre ele. Ora,todos os anos iam seus pais a Jerusalém à festa da páscoa; E, tendo ele já doze anos, subiram a Jerusalém, segundo o costume do dia da festa" Lc 2,40-42.

Note que o evangelista é claro ao dizer "todos os anos" e não cita uma excessão de quando eles supostamente estariam no egito. Até porque, na epoca de Jesus, uma viagem de Israel ao egito deveria levar meses, e não é provavel que eles tivessem habitado no egito por algum tempo e iam todos os anos para Jerusalém para adorar. A profecia citada no evangelho: "Do Egito chamei meu filho" não é uma profecia messianica, mas uma frase até comum no AT, onde o Eterno lembra seu povo que lhe tirou da servidão do Egito, da servidão do faraó. Outros mitos solares que podem ter influênciado o cristianismo também narram uma matança de inocentes por um rei tirano, sendo que na história de Jesus nenhum judeu relatou tal fato:

श्रीमद्भागवतमहापुराणम् दशमः स्कन्धः अथ प्रथमोऽध्यायः पथि प्रग्रहिणं कंसमाभाष्याहाशरीवाक् । अस्यास्त्वामष्ठमो गर्भो हन्ता यां वहसेऽबुध ॥ ३४ ॥ अथ द्वितीयोऽध्यायः गच्छ देवि व्रजं भद्रे गोपगोभिरलङ्कृतम् । रोहिणी वसुदेवस्य भार्यास्ते नन्दगोकुले अन्याश्च कंससंविग्ना विवरेषु वसन्ति हि ॥ ७ ॥ अथ चतुर्थोऽध्यायः गवं चेत्तर्हि भोजेन्द्र पुरग्रामव्रजादिषु अनिर्दशान्निर्दशांश्च हनिष्यामोऽद्य वै शिशून् ॥ ३१ ॥

Śrīmadbhāgavatamahāpurāṇam 10.1.34Quando Kaṃsa, controlando as rédeas dos cavalos, estava dirigindo a carruagem no caminho, uma voz do céu se dirigiu a ele: “Tolo! O oitavo filho desta que você está transportando matará você!” 10.2.7Abençoada Devi vá para Vraja, adornada por vaqueiros e seus rebanhos, onde Rohiṇī e outras esposas de Vasudeva vivem no vilarejo de Nanda Gokula em isolamento por medo de Kaṃsa. 10.4.31Se é assim, ó rei da dinastia Bhoja, a partir de hoje vamos matar todas as crianças nascidas nos últimos dez dias em todas as aldeias, vilas e terras de pastoreio.

Alguns comentaristas acreditam que o autor do evangelho segundo Mateus, tenha aprendido do apostolo histórias de jesus e do povo judeu, e tenha confundido o nascimento de Jesus com o nascimento de Moisés, citando fatos ocorridos com a história de Moisés como se tivessem ocorrido com Jesus. ou talvez, tenha tentado tipificar Moisés através de uma narrativa parecida, mas não é provavel que tais fatos tenham realmente ocorrido.

A RESSUREIÇÂO DOS MORTOS

No evangelho segundo mateus, vemos outra passagem no minimo intrigante, no capitulo 27 versiculos 52,53:
"E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos que dormiam foram ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição dele, entraram na cidade santa, e apareceram a muitos".

É fato que os apostolos, não estiveram presentes na crucificação de Jesus, segundo os próprios evangelhos e tudo que escreveram foi o que ouviram de testemunhas e presentes. Mas este fato em especial, não foi descrito por ninguém exceto no evangelho de Mateus. Ainda que só Mateus tivesse descrito tal fato, notamos aqui algumas contradições com o restante das escrituras. A ressusseição dos mortos, segundo a própria Bíblia só ocorrerá no dia do juizo:

"E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno" Dn12,2.

"Porque o mesmo Senhor descerá do céu com alarido, e com voz de arcanjo, e com a trombeta de Deus; e os que morreram em Cristo ressuscitarão primeiro" 1Ts 4,16.

Ainda que alguns tenha ressussitados no momento da morte de Jesus, então estariamos em contradição com seu próprio ministério, pois Jesus permaneceu três dias no sepulcro, sheol, (literalmente sepultura em hebraico) e foi ressussitado pelo Eterno Deus altissimo. Mas segundo esta narrativa de Mateus, os mortos foram ressussitados antes mesmo do Messias, pois sairam de seus sepulcros e andaram por jerusalém á vista de todos, e estranhamente não narrado por ninguém. O evangelista também não menciona o que houve com estes ressussitados. Se eles foram apresentados aos faireus, como era de costume, se se convertaram ao Messias, se foram apedrejados etc....Sendo que um fato assim não é uma coisa a toa e Deus não faz nada sem nehum propósito.

Irônicamente, na tradução de Hebreus vemos uma ordenança assim:

"E, como aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo" Hb9,27.

Tomemos o exemplo de Lazaro e suponhamos que ele tenha sido um destes ressussitados na morte de Jesus:
Lazaro morre (Jo11,14), Lazaro é ressussitado (Jo11,43), Lazaro é morto novamente (Jo12,10), suponhamos que Lazaro tenha sido um dos ressussitados com a morte de Jesus(Mt27,52) Lazaro morre mais uma vez, sendo que não viveu para sempre. E no dia do juizo será ressussitado mais uma vez. Então quantas vezes alguém é morto e ressussitado? Mesmo que Lazaro não fosse um destes citados por Mateus, isso não vai em contradição com esta citação de Hebreus?

Seja como for, o mais provavel é que o evangelista tenha utilizado de uma certa licença poetica nestes versiculos e a tradução de hebreus não esta fiel ao original.

"E, como aos homens convém morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo" Hb9,27.

JESUS E A MULHER DO POÇO

Apesar de constar nos manuscritos originais deste evangelho, esta passagem é no minimo duvidosa. O evangelho segundo João não é considerado canonico e sim espiritual. Na epoca da escolha dos evangelhos, haviam muitos que eram gnosticos e muitos que sofreram influências de seitas que haviam na epoca. Apesar de pertencer ao canone sagrado, o evangelho segundo João apresenta alguns destes traços e esta passagem é um exemplo disto.

Inicialmente, qualquer historiador vai perceber a semelhança incrivel desta passagem com a passagem de Krisna e a mulher do poço. Até as frases no idioma sanscrito são parecidas com as que vemos nesta passagem, como por exemplo: "Dar-te ei de beber da água viva". E é notavel também muitas semelhanças com o pensamento judaico da epoca. O mais provavel é que esta narrativa tenha ocorrido em outro lugar e foram acrescidos ao texto, trechos de tradição oral dos povos pagãos, misturando assim em um fato simples, fatos de outra história.

A teologia cristã, encherga nesta passagem Jesus pondo um fim ao cisma que havia entre judeus e samaritanos. Mas se compararmos com os outros evangelhos, notamos algumas contradições dificil de encaixar logicamente. É sabido por todos que havia este cisma na epoca de Jesus e que Jesus até contara uma parabola onde ele menciona um "bom samaritano". Mas segundo a narrativa de Lucas, Jesus e seus discipulos não foram sequer recebidos pelos samaritanos, o que vai em contradição com esta passagem que diz: "Muitos samaritanos creram nele" (Jo4,39). vejamos segundo Lucas:

"E mandou mensageiros adiante de si; e, indo eles, entraram numa aldeia de samaritanos, para lhe prepararem pousada, Mas não o receberam, porque o seu aspecto era como de quem ia a Jerusalém. E os seus discípulos, Tiago e João, vendo isto, disseram: Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma, como Elias também fez?" Lc 9,52-54.

Note que os discipulos ficaram tão indignados com a indiferença dos samaritanos que almejam até mesmo pedir fogo do céu, para puni-los por sua rejeição. Ja em Mateus, vemos nas ordenanças do messias, algo que também contradiz esta passagem:

"Jesus enviou estes doze, e lhes ordenou, dizendo: Não ireis pelo caminho dos gentios, nem entrareis em cidades de samaritanos; Mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel;" Mt 10,5-6.

Jesus diz para os apostolos pregarem primeiro aos judeus, e não antes aos gentios ou samaritanos, recomendando inclusive que não entrem em sua cidade. Mesmo que posteriormente pudessem pregar aos samaritanos, é dificil entender como jesus diz para não entrar em suas aldeias, é rejeitado em uma delas e no evangelho de João vemos ele bem aceito e recebido por muitos samaritanos. É no minimo contraditório esta passagem com relação aos demais evangelhos que citam os samaritanos e com relação ao sisma religioso que havia na época com os judeus. Não podemos, no entanto, desconsiderar totalmente a autênticidade desta passagem, mas o mais provavel é que tenha ocorrido em outro lugar e o copista tenha entendido que foi em samaria ou talvez o evangelista tenha utilizado este lugar para colocar um fim no cisma entre os samaritanos e judeus.

OS ENDEMONIADOS GADARENOS
No livro ateu chamado "Jesus nunca existiu", o autor ateu aborda uma contradição geografica na passagem de Marcos 5. Vejamos a citação a seguir:
O erro geográfico mais que Marcos comete é quando conta a história exagerada sobre Jesus atravessando sobre o Mar da Galiléia e exorcizando demônios de um homem (dois homens na versão revisada de Mateus) e fazendo-os entrar em cerca de 2.000 porcos os quais, conforme a versão do Rei Jaime, "correram violentamente penhasco abaixo para dentro do mar, e se afogaram no mar".
Além da crueldade para com os animais e sua indiferença pela propriedade dos outros, o que está errado nessa história? Se sua única fonte de informação for a Bíblia do Rei Jaime, você poderá nunca saber. A versão do Rei Jaime diz que esse milagre ocorreu na terra dos gadarenos, enquanto que os manuscritos Gregos mais antigos dizem que aconteceu na terra dos gerasenos. Lucas, que não conhecia nada da geografia Palestina, também passa adiante esse pequeno equivoco. Mateus, que tinha algum conhecimento sobre a Palestina, mudou o nome para gadarenos, em sua versão nova e melhorada, mas isso foi novamente melhorado para gergesenos na versão do Rei Jaime.
A esta altura o leitor deve estar atordoado com todas estas distinções entre gerasenos, gadarenos e gergesenos. Que diferença isso faz? Muita diferença com veremos.
Gerasa, o lugar mencionado nos manuscritos mais antigos de Marcos, está localizada a cerca de 50 km de distância das costas do Mar da Galiléia. Aqueles pobres porcos tiveram que correr [rolar] uma distância 8 km mais longa que uma maratona para encontrar um lugar para se afogar! Nem mesmo lemingues precisam ir tão longe. Ainda mais se considerarmos que o perfil de um "penhasco" tem que ter no mínimo 45 graus, o que tornaria a elevação de Gerasa pelo menos seis vezes maior que Monte Evereste!
Apesar do ateismo, o autor observa um fato interessante, o erro da localização geografica em Marcos. A Biblia de Jerusalém comenta em seu rodapé:
"A aldeia de Gesara, atual Djerash, esta situada a mais de 50 km do lago de Tiberíades, é o que torna impossivel o episódio dos porcos. É possivel que marcos misture dois episódios distintos. Conforme o primeiro Jesus teria realizado um simples exorcismo na região de Gesara (vs 1-8. 18-20) Conforme o segundo (cf. Mt 8,28-34), Jesus manda os demônios para os porcos, que se precipitam no lago".
Já a Bíblia de estudos de Genebra menciona:
"Alguns manuscritos antigos substituem Gerasenos por "Gadarenos", mas a região de Gesara, que fica a cerca de 60 km ao sul do lago, parece a mais provavel, pois possui o tipo de terreno escarpado e os tumulos descritos no relato. Todavia, a cidade de Gadara ficava bem perto do lago, distante apenas 16 km ao sul. O evangelho de Marcos descreveu Jesus se locomovendo deliberadamente ao territorio pagão de Decápolis (dez cidades-estados gregas independentes organizadas numa sociedade politica comum). Além do mais, a presença da manada dos porcos demonstra que estes acontecimentos ocorreram num ambiente totalmente pagão".
A passagem não parece é uma fraude ou acréscimo, mas apenas contém um erro geografico, talvez feito até por copistas. O fato deve ter acontecido, mas provavelmente pode não ter sido na região de Gerasa. A narrativa de Mateus no capitulo oito de seu evangelho parece estar mais coerente com o fato ocorrido e com a geografia do lugar. Mateus também menciona dois endemoniados divergindo da narrativa de Marcos.
TODAS ESSAS PASSAGENS
Todas as passagens citadas são somente exemplos importância de um estudo mais profundo da biblia, sua formação e seus acréscimos, porque se não analisarmos isto, podemos utilizar passagens acrescidas para apoiar um texto biblico ou mesmo respaldar um tema fundamental para a salvação. Recomendo ao leitor que pesquise em diversas fontes, tenha sempre mais de uma versão biblica e sempre compare os trechos que for utilizar com outros trechos da própria escritura, pois se houver contradição, é mais provavel que uma das passagens seja um acréscimo ou contenha algum erro de tradução.
Existem mais trechos que são duvidosos e mal traduzidos, mas a intenção deste estudo é somente exemplificar e mostrar certas passagens que são contextadas por diversos teologos e infelizmente muito utilizadas para respaldarem estudos, de temas que inclusive comprometem a salvação. Peçam ao Eterno sempre sabedoria e discernimento do espirito santo para lerem as escrituras, pois o fundamental é buscarmos a verdade e saber com mais coerência o que realmente nosso messias fez, e não o que padres e bispos acressentaram e disseram que ele fez.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

IGNORÂNCIA: Mãe de Todas as Devoções

1- Como os textos bíblicos chegaram até nós?

Os textos bíblicos do Antigo Testamento começaram a serem escritos por volta do ano mil antes de Cristo. Os judeus sempre mantiveram e ainda mantém até hoje, uma tradição de copiar textos rigorosamente. Quando o Cristianismo surgiu, no século I, os textos bíblicos foram sendo escritos e copiados. Por volta do ano 90 depois de Cristo, os textos do Novo Testamento foram terminados e ao longo dos séculos, foram sendo escritos e copiados.

Vale destacar que, em tempos medievais, os livros eram extremamente caros, tanto pelo altíssimo custo do material para escrever, como pela ausência de imprensa. Depois do colapso do Império Romano, o papiro que era o único material barato de escrita, embora fosse perecível, desapareceu dos mercados da Europa. Ficou o pergaminho, que era produzido com o couro de ovelhas e cabras. Um rebanho de mais de uma centena de ovelhas tinha que ter seu couro extraído, para se produzir uma só Bíblia. Tanto o conhecimento científico, como a literatura antiga, história, leis, peças teatrais e demais coisas da antiguidade só chegaram até nós pelo imenso esforço de monges medievais, que dedicaram as suas vidas a ficarem copiando livros.

No século IX, o papel que havia sido inventado mais de 500 anos antes na China, passou a ser produzido na Espanha muçulmana. Logo a seguir o papel foi mecanizado e melhorado na Europa católica de então. O papel era muito mais barato que o pergaminho e os livros passaram a serem mais baratos. No entanto, somente com a imprensa de tipos móveis de Gutenberg, no século XV é que a Bíblia passou a ser acessível, à maioria das pessoas.

Com a Bíblia impressa chegamos, aos novos tempos, pois uma impressora pode fazer centenas ou milhares de Bíblias sem erros. Ademais, uma Bíblia impressa não somente é mais barata, como também é melhor que uma Bíblia manuscrita. E ainda por cima ela é uniforme.

2-Como foi feito o cânon bíblico?

Ainda no século I, já havia inúmeras formas de Cristianismo. Antes da chegada do ano 100 D.C. já existia Cristianismo na Índia, Egito, Itália, Grécia, Etiópia, Sudão, etc. Por óbvias dificuldades de comunicação, era impossível que tivessem uma única relação de livros inspirados. Os textos que fazem parte do que hoje chamamos de Bíblia, já estavam prontos no ano 100 de nossa era, mas não existia uma Bíblia única cristã. Se alguém procurasse uma Bíblia para comprar na Europa ou qualquer outro lugar do mundo, nos séculos I e II não acharia nenhuma à venda.

Uma proposta de cânon do Novo Testamento apareceu no século IV e supostamente datava do século II. Ela não listava como canônicos os livros Apocalipse, II Pedro, II e III João e Judas. O Cânon Muratori não cita a Epístola aos Hebreus como livro canônico. Por outro lado este mesmo Cânon Muratori cita como canônico, o livro O Pastor de Hermas como canônico. O mesmo Cânon Muratori cita o livro da"Sabedoria" como canônico.

Quando o Cristianismo foi legalizado pelo Imperador Constantino no século III, este mandou que as diferentes correntes do Cristianismo fizessem uma escritura de livros comum. Por meio de um Concílio, os bispos decidiram que o Cânon seria de 76 livros. Este Concílio não teve unanimidade. No caso do livro do Apocalipse, por exemplo, os delegados do Bispo de Roma foram contra a sua inclusão no Cânon bíblico. Somente no Concílio de Cartago de 397 é que o livro do Apocalipse foi colocado no Cânon bíblico.

Esta primeira Bíblia cristã foi chamada de Bíblia de São Dâmaso, nome do Papa sob a qual foi escrita. Evidentemente que os cristãos da Índia, Etiópia, etc. em nada, sequer, puderam saber desta primeira Bíblia cristã. Mesmo na Europa, a esmagadora maioria do povo era analfabeto e ignorante. Uma Bíblia no século IV custava muito mais caro que o patrimônio de mais de 98% da população européia de então.

O Cânon ou a relação dos livros bíblicos foi estabelecido por Concílios. Tudo por decisão humana. Nenhum livro bíblico diz quais livros devem ser parte do Cânon. Por outro lado, a história mostra que homens é que decidiram que livros fariam parte do Cânon. Basta lembrar que o livro Macabeus 4 está escrito no Códice Sinaiticus e não faz parte nem da Bíblia Católica e nem da Bíblia Protestante.

Na Europa católica, o Concílio de Florença em 1442 manteve esta mesma bíblia, com 76 livros. O Concílio de Trento, no século seguinte, reduziu a bíblia católica a 73 livros, decisão ainda mantida até hoje, pela Igreja Católica. No Concílio de Jerusalém em 1672, a Igreja Ortodoxa Grega reduziu a sua Bíblia para 70 livros.

No século XVIII, as várias denominações Protestantes concordaram que a Bíblia deveria ter 66 livros. Todas estas decisões quanto ao Cânon bíblico foram tomadas por pessoas, em Concílios. Tudo por decisão humana. Nem preciso dizer que os cristãos etíopes têm, desde o século I, seus próprios escritos sagrados.

3-Por que alguns livros não foram aceitos entre os oficiais?

Tanto a aceitação, como a rejeição de um dado texto para o Cânon foi influenciada por decisão humana. Isto vem desde que os Concílios existem e acontece até os dias de hoje. No século XIX apareceu o famoso "Livro de Mórmon”, que só foi aceito por um ramo do Protestantismo e foi e ainda é ignorado ou criticado, por todos os demais. Isto vem de longe.

O Cânon aceitou por exemplo, a Epístola aos Hebreus, que todos os entendidos sabem há mais de mil anos, não foi escrito por Paulo. Uma forjadura óbvia e de autor desconhecido, mas esta obra de autor desconhecido está em todas as Bíblias. Todos os entendidos sabem que Mateus não escreveu o Evangelho a ele atribuído, pois ele morrera há muito, mas ainda assim, existe o Evangelho segundo Mateus. Todos os entendidos sabem que os quatro Evangelhos são relatos de segunda ou terceira mão. João não escreveu o seu Evangelho.

O livro do Apocalipse teve a feroz oposição dos Papas em Roma, que sempre pressionaram para a sua retirada do Cnon. Ele chegou a ser retirado, mas o Concílio de Cartago, em 397, o recolocou de volta ao Cânon. Sim, o livro do Apocalipse foi colocado, depois retirado e depois recolocado na Bíblia.

O livro "Pastor de Hermas" foi considerado por Clemente de Alexandria, Tertuliano, Santo Irineu e Orígenes como inspirado. Os entendidos acham que Hermas é o homem citado por S. Paulo na Epístola aos Romanos, no seu final. Este livro era largamente lido nas igrejas cristãs da Grécia. No século V, o Papa Gelásio coloca tal livro entre os apócrifos. Uma decisão que ainda perdura.

No século XVI, Martinho Lutero exigiu a retirada da "Epístola de São Tiago", do Cânon bíblico. Lutero chamou tal livro de "Carta de palha". Também no século XVI, João Calvino exigiu a retirada do livro do Apocalipse do Cânon bíblico. Ao contrário da decisão do Papa Gelásio, estas exigências tanto de Lutero, como de Calvino deram em nada. A colocação de um texto na Bíblia, de um dado ramo do Cristianismo depende, da tradição e das necessidades terrenas.

4-Por que as Bíblias Protestantes têm menos livros que as Bíblias Católicas?

O citado Concílio de Florença em 1442 manteve a decisão já do século IV, no Concílio de Cartago, em 397 D.C. de ter uma Bíblia católica com 76 livros. Com a chamada Reforma Protestante, no século XVI, a Igreja Católica através do Concílio de Trento reduziu a Bíblia católica para 73 livros, decisão ainda em vigor nos dias de hoje.

Nesta redução da Bíblia, a Igreja Católica pelas mãos de seu clero, mostrou que o mundo é quem decide o Cânon. Assim, saiu da Bíblia Católica o livro 2 Esdras, que condena fortemente a reza pelos mortos ou o pedido de coisas vindas dos mortos. Uma clara condenação do culto aos santos e reza pelos mortos no purgatório. Por outro lado, o mesmo Concílio de Trento manteve no Cânon da Bíblia Católica, o livro 2 Macabeus, que claramente fala em rezas e sacrifícios pelos mortos. Não tem o menor sentido a idéia, que o Concílio de Trento tenha colocado livros na Bíblia Católica. Livros como 1 e 2 Macabeus já estavam na Bíblia Católica, muito antes do Concílio de Trento. Há mais de mil Bíblias do século XV hoje em museus e que foram impressas e elas todas tem Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus, por exemplo.

Quanto aos Protestantes, apenas no século XVIII é que eles passaram a ter um relativo entendimento, sobre qual Bíblia afinal defendiam. Eles cortaram a sua Bíblia para 66 livros. No caso do Novo Testamento, eles mantiveram a mesma lista de livros estabelecida no Concílio de Cartago em 397. Os Protestantes ignoraram as sugestões de Lutero e Calvino e simplesmente seguiram o mesmo Cânon, que a Igreja Católica usava desde 397.

Quanto ao Antigo Testamento, as denominações Protestantes decidiram adotar o mesmo Cânon estabelecido pelo Sínodo judaico de Jamnia em 100 D.C. Este Sínodo judaico não teve a presença de nenhum cristão das várias correntes de Cristianismo, que já existiam no ano 100 D.C. Tal sínodo rejeitou como apócrifos todos os livros escritos após o ano 300 A.C. ou que não tivessem sido escritos originalmente em hebraico ou que não tivessem sido fora da Palestina. Na verdade, os judeus até o citado Sínodo de Jamnia usavam uma variedade de textos canônicos.

Nas cavernas de Cunrãm há escritos do livro de Tobias, que é canônico segundo a Bíblia Católica. Nas mesmas cavernas de Cunrãm encontraram-se fragmentos dos livros Enoque e Testamento de Levi, que jamais fizeram parte do Cânon, quer Católico quer Protestante. Não tem sentido se dizer, que os judeus nos tempos de Jesus rejeitavam Macabeus, Judite, Enoque. Isto só aconteceu no citado Sínodo Judaico de Jamnia, que só foi realizado no ano 100 D.C.; quando o Cristianismo não só estava já consolidado, como também já dividido.

A rejeição de 1 Macabeus e Judite também foi influenciada pela política mundana. Ambos os livros citados colocam a rebelião armada, contra um opressor, como sagrada e abençoada por Deus. No século XVIII, as nações Protestantes queriam seus povos dominados quietos. É notório que na luta pela independência americana, os Católicos tiveram uma participação na luta, muito maior que a sua participação na população americana. As sucessivas rebeliões na Irlanda tinham sempre católicos, que diziam seguir o dito nos livros 1 e 2 Macabeus. Tanto uma necessidade de ter uma sanção dos judeus, como necessidades políticas mundanas levaram ao fato das bíblias protestantes, desde a segunda metade do século XVIII terem 66 livros.

Em suma, a primeira Bíblia cristã tinha 76 livros. Isto foi estabelecido por um Concílio. O Concílio de Trento reduziu a bíblia católica para 73 livros, retirando do Cânon livros que condenassem explicitamente orações para os mortos. Ao mesmo tempo o mesmo Concílio manteve 2 Macabeus que apóia rezas pelos mortos.

Os Protestantes não tinham uma Bíblia única que seguir. Levou mais de 300 anos, para os Protestantes terem uma Bíblia única. A redução tanto se deveu a fatores políticos, como uma busca de sanção judaica, como a rejeição de orações pelos mortos que são apoiadas por 2 Macabeus.

Pouco ou nada houve de busca por verdade em tal redução. Os entendidos sabem que a Epístola aos Hebreus é uma farsa, pois não foi escrita pelo apóstolo Paulo. Ela segue no Cânon Católico e Protestante. No mesmo Novo Testamento foi excluído "Pastor de Hermas", que não foi uma forjadura e foi de fato escrito por Hermas.

No Antigo Testamento, a mesma coisa se repete. Os Protestantes alegam rejeitar 1 Macabeus por ele ser supostamente falso. No entanto 1 Macabeus tem indiscutível base histórica. O evento descrito no livro, a invasão de Israel de fato aconteceu. Judas Macabeus de fato existiu. Nem por ser pelo menos em parte verdade, 1 Macabeus faz parte das Bíblias Protestantes. Por outro lado, nessa mesma Bíblia protestante, há o livro de Gênesis que tem figuras como Adão, Eva, Caim, Abel, Noé; todas tão “verdadeiras” quanto os heróis de ficção científica.

A invasão de Israel descrita em 1 Macabeus de fato aconteceu, mas ela não faz parte das Bíblias Protestantes. O Dilúvio universal e sua arca de Noé com mais de 1.000.000 de espécies de plantas cuidadas apenas pela pequena família de Noé nunca aconteceu, mas mesmo assim, Gênesis está tanto nas Bíblias Protestantes, como nas Bíblias Católicas. Na Bíblia, Jonas, fica por 3 dias vivo dentro de um peixe, mas Judas Macabeus que de fato existiu não aparece nas Bíblias Protestantes.

Aonde há busca pela verdade?

Como escrevi antes, o cânon depende da tradição e das necessidades terrenas. A Igreja Católica manteve 2 Macabeus na Bíblia pois ele mantém a base bíblica para o purgatório e as missas pelos mortos. A mesma Igreja Católica excluiu do cânon o livros 2 Esdras, pois ele condenava rezas pelos mortos. Os Protestantes excluíram 1 Macabeus pois ele supostamente apoiava rebeliões, mas mantiveram as cartas de Paulo com seu apoio à escravidão e submissão de mulheres e fizeram o mesmo com uma farsa, como a Epístola aos Hebreus.

O Cânon tanto Católico, como Protestante é de origem e necessidade humana. Ambos os cânones foram feitos pensando neste mundo. Os Protestantes simplesmente não precisavam de uma Bíblia que tivesse livros apoiando rebeliões, como 1 Macabeus ou apoiando rezas pelos mortos, como 2 Macabeus. Por outro lado, os Católicos não precisavam de livros que condenassem orações pelos mortos, como 2 Esdras. Por isto, a Bíblia Católica saiu de 76 para 73 livros e a Bíblia protestante caiu ainda mais, para 66 livros.

Conclusão:

No momento em que pastores protestantes aparecem na TV garantindo que doenças mentais e físicas se devem à ação de demônios ou eufemisticamente "encostos", não se pode deixar de notar o quanto a Bíblia pode ser mal usada. A Bíblia é trabalho humano e como tal, não está isenta de críticas. Como livro de ciência, a Bíblia é absurda e falha, mesmo considerando o tempo em que foi escrita. Como livro de história, a Bíblia mistura fatos com fantasias, não sendo nem de longe infalível. Como livro religioso, a Bíblia tem sido a fonte suposta ou real de dezenas de milhares de seitas, que não raro são apenas negócios fantasiados de religião. Devemos sim ler a Bíblia, mas nunca com fé cega e falta de espírito crítico.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

As Hipóteses Sobre "O Filho do Homem"


“Este é o rei dos judeus”
– o título “filho do homem”

na camada histórico-traditiva pré-pascoal

como referência à

tradição vetero-testamentária do rei.

A hipótese de que a fórmula “filho do homem” constituía: (a) um título (b) que Jesus aplicava a si mesmo, (c) baseado na tradição do Antigo Testamento do “rei” como “filho do homem” e (d) que, por isso, assumia-se publicamente como de algum modo relacionado a algum tipo de “rei carismático”, próprio dos movimentos messiânicos populares, (e) tendo por isso sido preso, disso, acusado e por isso, morto, uma vez que atribuir a si o papel de “rei dos judeus” constituía atividade política revolucionária não tolerada pelo poder romano e passível de morte.

Inicialmente, registre-se que não há, na pesquisa, consenso a respeito do significado histórico-traditivo do título “filho do homem”, plausivelmente auto-aplicado a si mesmo pelo próprio Jesus de Nazaré.

Trata-se, pois, aqui, de, digamos assim, muito mais contribuir para o “dissenso” instalado do que propor uma harmonia em torno das propostas vigentes. Até onde se pôde verificar, mas não se foi suficientemente longe, o presente artigo aponta para uma alternativa ainda não sugerida.

Tomada em sua forma canônica, e considerando-se que efetivamente tenha sido aplicada a Jesus já por ele mesmo, a tradição neo-testamentária, a rigor, evangélica, do “filho do homem” revela-se “contaminada” pelas interpretações próprias da história dos efeitos e dos desdobramentos teológicos da crucificação, o que significa que, considerando-se uma sempre plausível multiplicidade de tradições, esse estado traditivo-literário canônico não reflete mais a tradição do período pré-pascoal em seus múltiplos e potenciais estados histórico-traditivos originais.

Todavia, é legítimo pressupor que essa agora canônica configuração traditivo-literária contenha, na forma de “pacotes” de informação, contextual e até semanticamente deslocados, misturados ainda que estejam à massa compacta em que se transformaram os elementos originais agora reunidos em torno de um novo “querigma”, elementos histórico-traditivos da tradição pré-pascoal.

A derivação dinâmica que tem essa nova configuração canônico-traditivo-literária daqueles blocos originais da tradição pré-pascoal faculta indiciariamente, uma tentativa crítica – difícil e arriscada – de recuperação daqueles momentos traditivos, bem como – é o caso – de, por hipótese, sua dependência referencial histórico-traditiva original.

E isso, mesmo considerada a declaração de Richard A. Horsley e John S. Hanson de que os “consensos” em torno de temas histórico-traditivos “duros” relacionados a Jesus de Nazaré reflitam mais os desdobramentos levados a efeito pelas comunidades herdeiras da “fé” do que propriamente o substrato histórico relacionado a Jesus de Nazaré. Não se trata de uma questão fácil, porque, ou se pode simplesmente tomar ingenuamente toda a tradição evangélica como historiografia, ou, no caminho inverso, recusar-se toda ela como desdobramento pós-pascoal.

O que aqui se defende é que, quaisquer que tenham sido os conteúdos da tradição pré-pascoal, mesmo que deslocados de seus respectivos contextos originais e reinstalados em novos contextos significativos, vestígios dela – termos, referências a ações e práticas, temas, personagens, referências – devem ter sobrevivido e sido incorporados em narrativas, essas sim, fruto dos desdobramentos “hermenêuticos” pressupostos.

Dependendo do “tipo” por meio do qual Jesus de Nazaré seja reconstruído, algum grau de consciência de morte iminente pode ser considerado como plausível – por exemplo, no caso de ser admitida a hipótese de que Jesus pertencia a alguma expressão sócio-política próxima das comunidades messiânicas populares, descritas.

Naturalmente que, nesse caso, a morte – e mesmo a crucificação –, com a qual então se contaria, não podia assumir, ainda, a dimensão teológica que, mais tarde, sabemos, receberá. Em todo caso, a lista de exemplos revela-se, nesse sentido, “rigorosa”.

Assumam-se, na versão canônica, como exemplos demonstrativos parciais de que a tradição – em tese original – relacionada à fórmula jesuânica pré-pascoal “filho do homem” deve ser considerada como contaminada pelos efeitos da interpretação teológica da “cruz”, implicando, em termos literários, em flagrantes de vaticinium ex eventu, as seguintes referências mais ou menos explícitas à própria cruz e a seus entornos sintagmático-teológicos:

 Mt 20,28 Mc 10,45 (“tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”3 [ARA]).

 Mt 26,2 (“sabeis que, daqui a dois dias, celebrar-se-á a Páscoa; e o Filho do Homem será entregue para ser crucificado” [ARA]).

 Mt 20,19.20 (“e o entregarão aos gentios para ser escarnecido, açoitado e crucificado; mas, ao terceiro dia, ressurgirá” [ARA]).

 Mt 12,40 (“porque assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra” [ARA]),

 Mt 17,9 (“A ninguém conteis a visão, até que o Filho do Homem ressuscite dentre os mortos” [ARA]; cf. v. 22: “e estes o matarão; mas, ao terceiro dia, ressuscitará” [ARA]).

 Mc 9,9 (“ao descerem do monte, ordenou-lhes Jesus que não divulgassem as coisas que tinham visto, até o dia em que o Filho do Homem ressuscitasse dentre os mortos” [ARA]).

 Mc 9,31 (“porque ensinava os seus discípulos e lhes dizia: O Filho do Homem será entregue nas mãos dos homens, e o matarão; mas, três dias depois da sua morte, ressuscitará.” [ARA]).

 Mc 10,33-34 (“eis que subimos para Jerusalém, e o Filho do Homem será entregue aos principais sacerdotes e aos escribas; condená-lo-ão à morte e o entregarão aos gentios; hão de escarnecê-lo, cuspir nele, açoitá-lo e matá-lo; mas, depois de três dias, ressuscitará” [ARA]).

 Jo 3,3 (“ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do Homem que está no céu” [ARA]).

 Jo 12,34 (“nós temos ouvido da lei que o Cristo permanece para sempre, e como dizes tu ser necessário que o Filho do Homem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?” [ARA])

De um ponto de vista puramente historiográfico, resulta necessário pressupor que o estado dessa tradição literária reflita já a informação dos fatos mencionados – a “morte”, por crucificação, e a “ressurreição” do “filho do homem”. Se, todavia, a fórmula for considerada pré-pascoal, deve-se admitir que, em termos históricos, não se pode relacioná-la, quando e então ainda pré-pascoal, a tais sintagmas teológicos – cruz e ressurreição. Dito em chave teórico-metodológica: a fórmula “filho do homem” não pode ter caráter “cristológico”, quando ainda não havia “cristologia”.

Se, por um lado, a “cristologia” apropriou-se da fórmula, impondo-lhe uma nova configuração histórico-traditiva, de outro lado é necessário conceder validade à pressuposição de que, se a fórmula “filho do homem” fora aplicada a Jesus de Nazaré antes da cruz, há, então, necessariamente, uma dependência referencial não-cristológica que lhe oriente a atualização pré-pascoal.

Uma vez que, por força de eventos posteriores a sua consubstanciação presumivelmente original – a cruz, a ressurreição, a soteriologia, a escatologia, a cristologia –, a tradição do “filho do homem” encontra-se, agora, alterada pela resignificação teológica, resulta ser incontornável a conclusão de que, quando e se alimentada também por essas “atualizações”, a interpretação hodierna dessa mesma fórmula revele-se contaminada pelos mesmos elementos secundários em relação ao estatuto referencial original do título jesuânico pré-pascoal.

Aqui se percebem elementos teórico-metodológicos próximos aos argumentos de Horsley e Hanson com relação ao processo de construção do consenso em torno do qual os eventos pós-pascoais terminaram por sobre determinar a interpretação da tradição pré-pascoal (HORSLEY e HANSON, p. 89ss). No entanto, forçoso é considerar que, talvez, Horsley e Hanson cheguem longe demais, sugerindo que qualquer traço de messianismo e de reivindicação real em Jesus de Nazaré faça parte desse consenso posterior.

Se for o caso de a fórmula “filho do homem” ser, pois, interpretada cristologicamente, por exemplo, fazendo-se com que se refira ao fato de que Jesus de Nazaré fosse, ao mesmo tempo, de um lado, “divino”, e, de outro, “humano”, e que, nesse caso, então, tal fórmula acentuasse justamente esta última dimensão cristológica de Jesus, não se pode, nesse caso, deixar-se de admitir que tal “explicação” pode até revelar faces históricas da tradição próprias do período em que a amálgama entre “Jesus” e “cristologia” se estabelecia, isto é, a partir daquele momento em que o “Jesus histórico” começa a ser substituído pelo “Cristo da fé”, mas, não, absolutamente, faces históricas da tradição anterior ao desenvolvimento dessa mesma cristologia – salvo, naturalmente, na hipótese de Jesus de Nazaré ter-se tomado ele mesmo na condição de um ser celeste encarnado e de tê-lo formal e publicamente exposto.

Em termos históricos, deve-se estar desejoso de e preparado para encontrar fundamentos referenciais disponíveis para as tradições circulantes, de modo que, se original, isto é, se própria das camadas pré-pascoais da tradição, a fórmula “filho do homem” deve fazer referência a elementos traditivos igualmente pré-pascoais e, eventualmente, ainda disponíveis.

E essa é a questão: que elementos pré-pascoais podem ser apontados como possíveis fundamentos para a aplicação da fórmula “filho do homem” a Jesus de Nazaré no sentido de lhe reconfigurar as feições pré-pascoais?

1. Das referências escriturístico-traditivas para a explicação cristológica da fórmula “Filho do Homem”

Uma vez que o estado e o contexto canônico da fórmula “filho do homem” reflitam as “contaminações” cristológicas pós-pascoais, levadas a termo por judeus, cristãos e judeus-cristãos das primeiras décadas da tradição cristã, é compreensível que a busca canonicamente orientada pelas fontes escriturístico-traditivas do agora título cristológico “Filho do Homem” seja dirigida pelo viés teológico-cristológico com que os Evangelhos estruturaram as narrativas que a empregam, a isso somada a carga teológica dos dogmas cristológicos assentados em Nicéia, que, com efeito, norteiam, ainda hoje, o olhar teológico.

Por força dessa orientação evangélica e nicênica, compreende-se como a expressão “filho do homem” faça remeter ao dogma da humanidade/divindade do Cristo. “Filho do Homem”, nesse caso, denuncia o aspecto humano do “Deus” encarnado (cf. Filipenses 2,5-8). Assim, buscou-se a fonte dessa tradição veterotestamentária, de um lado, em Ezequiel, onde se concentram as ocorrências de Ben-´ädäm (“filho de/o homem”) e, de outro, em Daniel (por exemplo, DUQUOC, p. 174).

Em Daniel, a ocorrência é única, e emprega-se aí a fórmula Ben-´ädäm do mesmo modo como em Ezequiel, isto é, trata-se do modo como a divindade se dirige ao seu interlocutor escriturístico: “mas ele me disse: Entende, filho do homem, pois esta visão se refere ao tempo do fim”. Todavia, em Dn 7,13 encontra-se a expressão Kübar ´énäš, traduzida tradicionalmente por “um como o filho do homem”. Eis parte da narrativa:

Eu estava olhando nas minhas visões da noite, e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e dirigiu-se ao Ancião de Dias, e o fizeram chegar até ele. 14Foi-lhe dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído.

Sempre à luz da atualização que a fórmula “filho do homem” sofreu a partir das interpretações teológicas pós-pascoais, compreende-se a força que, na qualidade de “grande atrator”, essa passagem exerce sobre o título canônico-evangélico, considerando-se que se deixam gravitar, aí, os elementos teológicos presentes na doutrina cristológica – a origem celeste do “Filho do Homem”, sua relação com a divindade, sua condição próximo-humana e seu “reinado eterno”.

Nesse caso, talvez se possa, de fato, considerar então, que “com sua referência a Dn 7 (...) „Filho do Homem‟ era adequado para expressar a concepção messiânica própria de Jesus” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352; cf. DUQUOC, p. 176), desde que, teórico-metodologicamente, trate-se de se considerar o Jesus da tradição já evangélica, a rigor, mais o “Cristo” do que Jesus de Nazaré propriamente. Todavia, se não me tomo vítima de preconceito, resulta muito difícil, em termos historiográficos, conceber que o próprio Jesus pudesse atribuir a si mesmo aspectos que a fórmula “filho do homem” comportará apenas após as interpretações teológicas dos eventos pascoais e pós-pascoais – e isso justamente naquela exata configuração cristológica.

A aproximação teológica à fórmula agora cristológica deixa-se contaminar pela história dos efeitos do título “filho do homem” – e, mais do que isso, empreende esforços para neutralizar aspectos histórico-traditivos concorrentes e não-conformes à formatação dogmática clássica. Por exemplo: “O título Filho do Homem remonta a Jesus. É bem compreensível Jesus ter substituído o título „messias‟ por „Filho do Homem‟. Este evitava as ambíguas interpretações político-nacionalistas ligadas ao título de Messias” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352). Não se pode, de fato, descartar a hipótese de que o próprio Jesus atribuíra a si o título “filho do homem”.

Todavia, quando se pretende desarticular o título “filho do homem” das estruturas políticas em torno da qual ele, por hipótese, gravitava, o resultado a que se chega é uma espécie de erasio memoriae das camadas revolucionárias da tradição jesuânica pré-pascoal, um interdito e uma desmaterialização do caráter sócio-político das ações de Jesus de Nazaré, efeito a que se chega por meio da concentração nos aspectos teológico-metafísicos da tradição pós-pascoal. Insisto – é possível, sim, que a tradição evangélica tenha deslocado o sentido e o contexto político original da fórmula “filho do homem”, e isso por força das interpretações teológicas aplicadas sobre eventos pascoais – a cruz e a ressurreição.

No entanto, em termos historiográficos, resulta muito difícil retroprojetar o mesmo fenômeno ao próprio Jesus de Nazaré. Não se pode desconsiderar o fato de que, por exemplo, a tradição lucasiana tenha insistido na incompreensão pré-pascoal absoluta dos discípulos em relação ao “sentido” dos acontecimentos relacionados a Jesus, bem como à sua mensagem como um todo (Lc 24,1-12; 24,13-35; At 1,1-7; 8-12), questão a que, adiante, retornaremos.

Não se deve negligenciar a força teológica com que a pesquisa pelo entendimento do título “filho do homem” se deixa desenvolver. São os aspectos teológicos do termo “filho do homem”, evangélica e nicenicamente atualizado, que terminam por nortear as discussões (que deveriam ser) “críticas” – se Jesus teria ou não aplicado a si mesmo o título “messiânico”, disso depende de ele ter tido de si já a consciência cristológica que a ele se aplicará somente mais tarde (DUQUOC, p. 168ss).

Observando-se a discussão, percebe-se que a interpretação teológico-cristológica de “filho do homem” assentou-se de tal modo sobre a fórmula que assume a pretensão de definir que, se se vai perguntar pela possibilidade de Jesus de Nazaré ter aplicado a si mesmo o título, só se pode conceber uma hipótese em que, nesse, caso, então, Jesus tivesse aplicado a si mesmo aquelas concepções cristológicas que agora gravitam em torno da expressão evangélica, quando o procedimento mais adequado seria presumir-se um estado tal do titulo no período pré-pascoal em que as concepções pós-pascoais ainda dele não se tivessem teologicamente assenhoreado.

Estamos diante de um caso de fixação “hermenêutica” de uma expressão histórica – “filho do homem” significa o que significa, seja depois da “Paixão”, seja antes da “Paixão”, ainda que, em termos historiográficos, os termos pós-passionais não pudessem constituir a órbita percorrida pelo título.

Quando do aprofundamento da pergunta em direção às camadas mais antigas da dependência traditiva do título aplicado a Jesus, “autores sérios (...) perceberam na figura do Filho do Homem, fragmentos de um mito” (DUQUOC, p. 180), nos termos do qual a chave de compreensão reside no fato de que ele carrega em si o mistério da unidade entre o homem e Deus.

Dir-se-á tratar-se de especulações próprias dos ambientes filonianos, bem como de mistérios que apenas Mt 25,31ss revelará (DUQUOC, p. 180). Eventualmente... Alternativamente, podem-se simplificar as coisas, considerando-se que “Filho do Homem” designe, de imediato, “o humilde sofredor como detentor do poder” (BERGER, p. 160).

No entanto, caminhar alguns passos com Gerd Theissen e Annette Merz pode levar a reflexão ao ponto do questionamento fundamental da tradição – o que aqui se pretende. Theissen não chegará a fazê-lo, mas, a partir de seu último parágrafo “historiográfico”, pode-se sugerir uma nova estrada para a pesquisa a respeito da referência histórico-traditiva de “filho do homem”, quando aplicada a si mesma por Jesus de Nazaré – ou, alternativamente, em determinada porção – ou em determinado “momento” – da tradição, quando ainda não influenciada pelas interpretações teológicas da cruz.

Theissen e Merz reservam uma seção de seu Manual para inquirir sobre os possíveis referenciais históricos que podiam sustentar uma auto-referência de Jesus a si mesmo como “filho do homem”. Seu arrazoado parte da pressuposição, assumida, de que o termo tenha, lá e então, duas configurações básicas: a) ou se trata, no uso cotidiano, de uma referência ao “homem comum”, estabelecendo-se assim um uso genérico do termo para o dia-a-dia (THEISSEN e MERZ, p. 569-570), b) ou se trata de uma referência ao uso “visionário” da fórmula, uso estabelecido, desde Daniel 7, na literatura judaica pós-exílica do período tardio (Enoque Etíope 37-71 e 4 Esdras 13 – cf. THEISSEN e MERZ, p. 570-5725).

Nos termos do programa dos autores, trata-se, então, agora, de determinar a qual das duas variantes de uso se deve a sua auto-aplicação por Jesus, de modo que, após um longo arrazoado, assim concluem:

Para a questão da dependência das tradições de Enoque Etíope, cf. BURKETT, p. 121-122; COLLINS e COLLINS, p. 86-94.

“A expressão „Filho do Homem‟ também não era um título sólido antes de Jesus” – concordando com a declaração, cf. a Conclusão em BURKETT, p. 121.

Jesus sempre foi reservado acerca de todos os títulos. A expressão „Filho do Homem‟ também não era um título sólido antes de Jesus, mas foi „carregado‟ com um status de soberania. Em Jesus, ele pôde ocupar aquela posição que em algumas visões apocalípticas estava reservada a uma figura celestial que não era um homem, mas se igualava a um filho do homem. Uma expressão cotidiana que apenas se referia ao homem ou a algum homem foi „messianicamente‟ revalorizada por Jesus. Só por isso ela pôde se tornar a auto-designação característica de Jesus (THEISSEN e MERZ, p. 5796).

Chamo a atenção do leitor para essa curiosa – e reveladora – declaração: “um título (... [que]) foi „carregado‟ com um status de soberania”. Isto é, a uma expressão cotidiana e genérica, por força de seu uso em contexto de literatura de visão, teria sofrido a sobre determinação de uma carga de soberania.

Soberania. Voltaremos a isso. Por ora, convém registrar que Geza Vermes defendeu peremptoriamente o fato de que a expressão “filho do homem” não constitui, sob nenhuma hipótese, um “título”, correspondendo lingüístico-culturalmente ao equivalente – ou, já, à tradução – de circunlocução idiomática aramaica para referência que se faça ou a si mesmo, ou a um terceiro, de modo que, ao empregar a expressão, Jesus tão somente se referia a si mesmo enquanto “eu”, mas por meio de um recurso cultural de sua tradição e cultura aramaicas (VERMÈS, p. 165-196).

Vermes, argumenta que não haveria, na tradição aramaica, testemunho inequívoco do uso de “filho do homem” nesse sentido, e arremata: “aos teólogos incumbe absolutamente o ônus de provar que „o filho do homem‟ é um título” (VERMES, p. 193). Conquanto teólogo seja, não me encontro em posição de decidir a questão na perspectiva aramaica. Todavia, chegaremos a ver, adiante, que a tradição hebraica do Antigo Testamento conhece o uso de “filho do homem” como “título” – ainda que não se trate da tradicional referência a Daniel 7,13, onde, de fato, não se trata disso. O âmbito em que, na tradição do Antigo Testamento, “filho do homem” aparece como “título” gravita em torno de outro tema – do qual Jesus teria disso direta e fatalmente acusado.

2. Da acusação irônica de Jesus de Nazaré como rei dos judeus

Viu-se tratar-se da opinião de Fabris e Maggioni que Jesus teria optado pelo uso do título “filho do homem” para evitar “as ambíguas interpretações político-nacionalistas ligadas ao título de Messias” (FABRIS e MAGGIONI, p. 352). Bem, se lhe perpassa algum grau de historicidade, a tradição evangélica é unânime em considerar que a acusação romana aplicada a Jesus está relacionada à sua identificação como proponente ao “trono”. Durante o interrogatório, a pergunta é incisiva: “és tu o rei dos judeus?” (Mt 27,11; Mc 15,2; Lc 23,3; Jo 18,33 – HORSLEY e HANSON, p. 89).

Tal unanimidade evangélica encontra boa-vontade em Geza Vermes, que aceita a tese da acusação de Jesus e a estabelece em bases “seculares” (VERMES, p. 38), bem como em Paul Winter, que introduz o relatório de sua pesquisa On de Trial of Jesus, asseverando que “Jesus de Nazaré foi julgado e sentenciado à morte por crucificação. Esses são fatos históricos, atestados por autores romanos, judeus e cristãos em documentos existentes” (WINTER, p. 1). No contexto, então, de um julgamento formal, faz todo sentido a unanimidade evangélica quanto à pergunta – “és tu o rei dos judeus?”.

Não parece que se tratasse, então, de uma curiosidade que tivessem as autoridades a respeito de Jesus. Parece correto considerar que a pergunta – “és tu o rei dos judeus?” – funcione melhor como uma inquirição de direito processual, de modo a, por meio dela, se saber se aquele que ali estava, acusado por determinado crime, assumia o ônus e o peso da acusação. Essa interpretação pode ser, por exemplo, corroborada, por outra unanimidade da tradição evangélica – e não apenas sinótica: somos informados de que uma inscrição fora posta acima da cabeça de Jesus, quando e enquanto crucificado: “este é o rei dos judeus” (Mt 27,37 e Lc 23,38), “rei dos judeus” (Mc 15,26) e “Jesus nazareno, rei dos judeus” (Jo 19,19). Conjunto interseção – “rei dos judeus”
Se a pergunta – “és tu o rei dos judeus?” – funciona como cláusula de direito processual no inquérito acerca da acusação feita a Jesus enquanto réu, nesse caso, então, ao menos segundo o testemunho do Evangelho de Marcos, a epígrafe constitui, inequivocamente, a sua declaração de culpa: “E, por cima, estava, em epígrafe, a sua acusação: O REI DOS JUDEUS” (Mc 15,26 [ARA]).

Com a acusação feita a Jesus de apresentar-se como “rei dos judeus” – e a tradição joanina faz questão de fazer constar que as autoridades judaicas advertiram a Roma quanto ao fato de que elas mesmas não aceitavam a designação ali aplicada a Jesus, a qual se devia apenas ao fato de ele próprio, Jesus, tê-la aplicado a si mesmo (Jo 19,21) –, resulta, de um lado, improvável que Jesus tenha escolhido para si o título “filho do homem” pela razão de que isso evitasse que fosse a sua identidade contaminada por questões político-nacionalistas: ter sido capturado e morto pelo fato de ser acusado de se apresentar como “rei dos judeus” parece algo significativamente distante de uma indiferença político-nacionalista.

De outro lado, aquela carga de “soberania” que Theissen e Merz imputam ao termo “filho do homem” parece fazer algum sentido. Aliás, uma vez que estamos analisando justamente a materialização fatal dessa “carga de soberania”, isto é, a acusação de Jesus como “rei dos judeus”, revela-se particularmente significativo o fato de que o Evangelho de Mateus faça os magos anunciarem o nascimento justamente dele – do “rei dos judeus”: “E perguntavam: Onde está o recém-nascido Rei dos judeus?

Porque vimos a sua estrela no Oriente e viemos para adorá-lo” (Mt 2,2). Do mesmo modo como se “compreende” a ação romana diante de um “agitador” pretendente ao trono judeu, nos termos da tradição mateusiana, resulta “compreensível” um por isso mesmo perturbadíssimo Herodes a ordenar a morte de todos os potenciais meninos-Jesus recém-nascidos. Não que se tome como necessariamente “histórica” a passagem – assuma-se é o peso da vinculação do recém-nascido com seu “destino” de rei...

A questão, todavia, resume-se ao fato de se é possível, em termos históricos, reunir num mesmo conjunto histórico-traditivo a reivindicação ao “trono” e o título “filho do homem”. Numa palavra: quando Jesus de Nazaré aplicou a si mesmo o título de “Filho do Homem”, ele estava – conscientemente – assumindo a reivindicação do trono dos judeus, e de forma histórico-traditiva tão clara que qualquer um o reconhecesse, fossem os próprios judeus, fossem os romanos, de quem, naturalmente, Jesus deveria arrancar seu direito?

3. “Filho do Homem” como título relacionado ao “trono”

Em termos historiográficos, a passagem marcosiana conhecida como “o pedido dos filhos de Zebedeu” (Mc 10,32-45) encontra-se (inegavelmente?) contaminada pela tradição pós-pascoal. No seu formato canônico, a narrativa dá conta de que, dirigindo-se a Jerusalém com seus discípulos, Jesus os faz saber que, em lá chegando, seria preso e morto, mas que ressuscitaria. Tendo-o acabado de ouvir, João e Tiago pedem-lhe o direito de se assentarem cada um de um lado dele, em sua glória – o que pressupõe que, então, Jesus estará sentado no “trono do poder”. Jesus não nega que a questão de assentarem-se quem na sua direita e quem na sua esquerda seja uma questão legítima – todavia, ele é posto a dizer que “não me compete concedê-lo; porque é para aqueles a quem está preparado” (Mc 10,32-41). Na seqüência, Jesus faz um, então, interessante comentário admoestativo:

Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seu domínio, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade, Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será servo de todos. Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10,42-45).

Abstraindo-a das (inegáveis?) contaminações pós-pascoais, chama atenção o fato de que o modo como a narrativa foi construída torna necessária a consideração de que o “natural” seria esperar que o “Filho do Homem” viesse para ser servido. Todavia, o “próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir”. “O próprio Filho do Homem”, isto é, “esse Filho do Homem”, ou seja – “eu” – tem por padrão de comportamento o contrário do padrão de comportamento dos “que são considerados governadores dos povos”, porque estes “dominam” sobre aqueles sobre quem exercem a sua autoridade, ao passo que Jesus de Nazaré, o “Filho do Homem”, ao contrário, servir-lhes-á.

O modo como o texto está redigido parece não dar margem à interpretação de que ser “Filho do Homem” seja essencialmente alguma coisa de uma ordem “ética” distinta da dos “que são considerados governadores dos povos”, como se “Filho do Homem” fosse algo essencialmente distinto da classe dos “governadores”. Parece ser mais correta a interpretação de que se trata de uma distinção desse “Filho do Homem” em questão, isto é, de Jesus de Nazaré enquanto “Filho do Homem”, e não da idéia em si de “Filho do Homem”.

A favor dessa interpretação está aquela porção da narrativa em que os filhos de Zebedeu pedem para assentarem-se do lado direito e do lado esquerdo de Jesus, em sua glória. Uma vez que, como um todo, a narrativa deve fazer sentido, necessário considerar que é sobre essa atitude dos discípulos que Jesus articula a sua admoestação ético-política.

Considere-se, portanto, a seguinte série condicional:
a) se os discípulos sabem que Jesus se auto-identifica com o “Filho do Homem”; b) se, sabendo-o, consideram que, em sua glória – em seu reino – ele se assentará em lugar de domínio; c) se, considerando o papel de domínio do “Filho do Homem”, Tiago e João pedem que estejam cada um ao seu lado, nos dois lugares mais próximos da ordem de comando; d) se a narrativa nos quer fazer compreender que o pedido de Tiago e João tem por modelo o modus operandi dos governadores dos povos; e) se a isso Tiago e João são levados pelo fato de não terem se dado conta de que, ainda que Jesus se apresente como o “Filho do Homem”, e de que, por isso mesmo, reserve para si, por direito, o “trono”, apesar disso, esse mesmo Jesus, enquanto esse mesmo “Filho do Homem”, sim, com direito ao trono, “vem”, contudo, como um “Filho do Homem” diferente, isto é, que, enquanto “Filho do Homem”, em lugar de ser servido, tenha vindo para servir – se toda essa cadeia condicional fizer sentido, resulta inegável que as idéias de “trono”, “governo”, “domínio”, sejam, todas, inerentes ao próprio título “filho do homem”.

A novidade não está no fato de o “Filho do Homem” ter o governo por direito – a novidade é que, apesar disso, “o próprio Filho do Homem [que teria direito de ser servido] não veio [contudo] para ser servido, mas para servir”.

A essa altura, cabe a referência à interpretação que Milan Machovec dá ao título “filho do homem”. Desprezadas as questões comuns aos comentaristas já citados, vale registrar que, segundo Machovec, enquanto aplicado ao próprio Jesus de Nazaré, o termo “filho do homem” esteve relacionado às expectativas de “transformação” do cenário político-social em que os judeus estavam inseridos, o que se poderia traduzir como “Reino de Deus” (MACHOVEC, p. 118).

O fato de que o título não tenha encontrado grande sucesso para além da tradição propriamente evangélica dever-se-ia, ainda segundo Machovec, à razão de que aquelas transformações imediatas que se aguardavam e para cuja materialização se depositava esperança em Jesus não se terem consubstanciado, de modo que, como efeito de uma profunda frustração psicológico-sociológica, o termo acabou caindo em desuso, sendo superado por outros, de carga teológica renovada (MACHOVEC, p. 115-118).

Apostaria numa razão: “filho do homem” constituía um título por demais restrito ao judaísmo, e não apenas no que diz respeito a seu sentido, mas, inclusive, à sua intencionalidade traditiva e sócio-política – de modo que, uma vez que o desenvolvimento das comunidades cristãs culminará na sua abertura aos gentios, o termo pode ter-se tornado não apenas desatualizado, mas, inclusive, incômodo. Nesse ponto, parecem ilustrativas, de um lado, a narrativa dos “discípulos de Emaús” (Lc 24,31) e, de outro, o registro, no Evangelho de João (19,19), de que as autoridades judaicas não endossaram a reivindicação real de Jesus – ele é que se atribuíra o direito ao cargo...

Uma vez que a realeza de Jesus não se estabelece, o título “Filho do Homem” deve ceder lugar para outros melhor adaptados às “atualizações” teológico-cristológicas da “fé”. Títulos mais “plurais”, digamos assim – em termos paulinos, fazer-se judeu para o judeu, e grego para o grego...

4. “Filho do Homem” como referência ao rei no Antigo Testamento

Talvez não seja necessário pressupor uma “carga de soberania” aplicada ao uso cotidiano do termo “filho do homem”. Talvez estejamos nos aproximando do dia em que as tradicionais abordagens de acesso ao sentido histórico-traditivo de “filho do homem” dêem lugar a uma pesquisa um tanto mais histórico-arqueológica desse sentido. Refiro-me aqui, por exemplo, ao trabalho de Andrew R. Angel, Chaos and the son of man: the Hebrew Chaoskampf tradition in the period 515 BCE to 200 CE. Segundo Angel, o sentido do título “filho do homem” estaria ligado a desdobramentos dinâmicos da tradição da “luta [do deus] contra o [dragão do] caos”, que ele define como presente, sem embargo de outros períodos, entre 515 a.C e 200 d.C.

Não se trata, aqui, de comentar o resultado do trabalho de Angel. Todavia, a relação por ele apontada entre a tradição do Chaoskampf e a fórmula “filho do homem” tem excelente potencial heurístico. Por duas razões, que, a rigor, constituem a mesma razão, desdobrada: a) impossível tratar-se a tradição do Chaoskampf sem se considerar a presença – inexorável – do rei. No Antigo Oriente Próximo, “criação” – logo, Chaoskampf –, constitui uma grade funcional aplicada transignificativamente a contextos de construção e reconstrução de cidades e templos, constituindo-se, no plano sócio-político, da sempre necessária presença de três grandezas concretas: rei, povo e construção.

Além disso, b) há bastantes plausíveis indicativos de que, no Antigo Testamento, logo, na mesma base traditiva em que se situa a tradição do Chaoskampf indicada por Andrew R. Angel, o termo “filhos de Adão” se refira ao conjunto organizado pelo rei, ele incluído, e seu aparelho político – sacerdócio, exército e funcionários, ou seja, a “classe dominante” –, o que, por extensão, provoca no termo “filho de Adão” (= “filho do homem”) um sentido relacionado diretamente ao rei.

Para o termo “filhos de Adão”, remeto para minha pesquisa ainda não publicada, Bünê ´ädäm – os “filhos de Adão” na Bíblia Hebraica, que aponta para Dt 32,8; 2 Sm 7,14; Sl 21,11; 36,8; 45,3; Sl 53,3 = 14,2; 58,2 e 89,48 como ocorrências de “os Bünê-´ädäm como bastante plausivelmente o rei e seus oficiais”. Não vou aprofundar a questão aqui.

Quanto ao termo “filho do homem” (Ben-´ädäm), indica-se para Sl 80,18, que traduzo: “esteja a tua mão sobre o homem da tua direita, sobre o filho do homem que fortaleceste para ti” (Tühî-yädkä `al-´îš yümînekä `al-Ben-´ädäm ´immacTä lläk). É absolutamente plausível que, aí, “filho do homem” – ou “filho de Adão” – refira-se explicitamente ao rei. De fato, referindo-se ao gênero desse salmo, Erhard Gerstenberger considera que se trata de a comunidade em risco de destruição pôr as suas esperanças sobre seu líder – rei ou messias (GERSTENBERGER, p. 106; cf. STEUSSY, p. 52).

John Day admite a possibilidade – e isso numa pesquisa em busca de salmos pré-exílios, para o que se serve da temática real como guia: “é possível também que Sl 80,18 (...) esteja aludindo ao rei” (DAY, 2004, p. 229). Day argumenta que, segundo o Sl 110,1, quem se assenta à direita do deus – cf. “o homem da tua direita” – é ninguém menos do que o rei. Nesse caso, “o filho do homem” é o próprio “homem da direita do deus”, isto é, o rei, o soberano.

A mesma fórmula, e agora diretamente em contexto cosmogônico (o que remete à tese de Andrew R. Angel da relação entre, de um lado, a tradição do Chaoskampf, e, de outro, o título “filho do homem”), pode ser flagrada no Sl 89,21-22: “21aEncontrei David, o meu servo. 21bCom o óleo de minha santidade eu o ungi. 22aCom quem a minha mão estará estabelecida, 22be a quem o meu braço firmará” (RIBEIRO, 2009). Assim como a mão de Yahweh deve estar sobre o “filho do homem” que ele, Yahweh fortaleceu para si (Sl 80), é também a mão de Yahweh que está sobre Davi, seu ungido, estabelecendo-o e firmando-o. Estamos diante da imagética real.

Não fora o fato de ter-se já adiantado a hipótese de leitura (RIBEIRO, 2008), talvez fosse cedo demais o pressupor com base apenas no trabalho de Andrew R. Angel, mas o fato de haver uma relação entre a tradição do Chaoskampf e o título “filho do homem” – isto é, “filho de Adão” – talvez se deva à identidade de “Adão” em Gn 1,1-2,4a como ninguém menos do que o próprio rei, que recebe do deus cosmogônico a incumbência de “sujeitar a terra” e “dominar” sobre seus constituintes vivos (Gn 1,18).

Revela-se, a meu juízo, constrangedoramente anacrônica a interpretação de que aí se faça referência a um conceito de “humanidade” a quem “Deus” houvesse dado a “administração” (ecológica!) do planeta (talvez se trate mais de projeto e desejo do que de base objetiva). Ora, em termos de Antigo Oriente Próximo, falar de “sujeitar a si” e de “dominar sobre” somente parece justificável para a classe dominante.

Ainda há muito trabalho de pesquisa a ser empreendido, mas a relação plausível entre a) “Adão”, como “rei”, em Gn 1,1-2,4a, b) a expressão “filho de Adão” como se referindo ao rei no Sl 80,18, c) a expressão “filhos de Adão” como referência ao rei e seu establishment em passagens do Antigo Testamento, e d) o título “filho do homem” auto-aplicado a Jesus na tradição evangélica – poderia ser ainda esclarecida por meio da pesquisa de Frederick Houk Borsch, The Son of Man in myth and history, segundo a qual o “filho do homem do judaísmo tardio é uma adaptação do Homem Primevo [Primal Man / Urmensch] que também tem muitos atributos reais” (BORSCH, p. 133).

Gravitando em torno do mito do Homem Primevo que detém funções reais, estaria, por sua vez, a idéia, própria da liturgia do “Festival de Outono” de Jerusalém, da relação simbólica entre, de um lado, o rei e, do outro, o deus enquanto rei, de modo que as ações do rei, no festival, tanto representam as ações do deus, quanto as pressupõem (BORSCH, p. 93).

Todavia, não se enfrentará o desafio de encontrar no emaranhado das tradições míticas de um suposto Urmensch cooptado pela tradição real de Jerusalém sem a rejeição da hipótese por John Day, que, todavia, está mais particularmente interessado na imagética de Daniel 7 do que propriamente no significado real do termo “filho do homem” (DAY, 1985, 157ss).

Seja como for, John Day acaba por vincular a imagem do “um como filho do homem” de Daniel 7,13 à imagética de Yahweh-Baal e, ainda por meio das tradições míticas de Ugarit, o “ancião de dias” da mesma passagem à figura de El, arrematando o circuito por meio da referência – agora não mais inusitada – ao ciclo mítico-traditivo da batalha cosmogônica entre o deus e o dragão (DAY, 1985, p. 177), com o que retornamos ao início da presente seção e ao trabalho de Andrew R. Angel sobre a relação entre “filho do homem” e Chaoskampf.

Mesmo a passagem “visionária” e próximo-apocalíptica de Daniel 7,13 dependeria, em última análise, da imagem do “filho do homem” como representante cosmogônico da divindade – o rei.

5. Jesus como “Filho do Homem” e movimento messiânico popular

A fórmula “movimento messiânico popular” constitui uma referência explícita ao capítulo “Pretendentes reais e movimentos messiânicos populares” de Horsley e Hanson (p. 89-124). E, no entanto, excetuando-se uma referência irrelevante à sua ocorrência em Daniel 7,13, o termo “filho do homem” não aparece uma única outra vez em Bandidos, Profetas e Messias. Assim, de um lado, poder-se-ia apoiar-se na pesquisa de Horsley e Hanson para a defesa da hipótese de que, de algum modo e sob alguma caracterização, Jesus pudesse ter participado de algum movimento messiânico popular comum da época, inclusive na forma atuante de um “„rei‟ carismático” (HORSLEY e HANSON, p. 50).

De outro lado, todavia, ao menos quanto a Horsley e Hanson, fica-se a dever quanto à relação entre esse papel de “„rei‟ carismático” e o título “filho do homem”. Mesmo em seu comentário a Marcos (HORSLEY, 2001) e em sua muito recente aproximação ao “Jesus histórico” (HORSLEY, 2010), a relação entre “filho do homem” e “rei” não é apontada. Pelo contrário, Horsley afirma categoricamente que “as primeiras fontes para a morte de Jesus não o apresentam como (reivindicando ser ou sendo aclamado como) um ungido ou um rei durante a sua missão ou em seu clímax em Jerusalém” (HORSLEY, 2010, p. 188).

Com o que nos deparamos com um problema para além da possibilidade de solução em um artigo. De um lado, há plausível tradição ligando uma série de elementos histórico-traditivos – “Adão”, “filho de Adão” (“do homem”), “filhos de Adão” (“do homem”), “rei”, Chaoskampf, cosmogonia. De outro lado, há recorrência evangélica entre o título “filho do homem” e a tradição da acusação de Jesus como “rei dos judeus”.

Por outro lado, apesar de conhecer tanto “movimentos messiânicos populares” quanto tradições de “reis carismáticos” no judaísmo do primeiro século, Horsley nega-se a admitir a materialização em Jesus dessas duas tradições – “filho do homem” e “„rei‟ carismático”. A ênfase “ideológica” – contra-imperialista e pró-popular – estaria de algum modo, operando a disjunção teórica dos dois sintagmas traditivos na figura de Jesus? Por outro lado, a advertência de Jesus, em Marcos 10,43 de que, com sua figura, se tem a emergência de um “Filho do Homem” diferente, um “rei” que, ao contrário de todos os outros, não vem para ser servido, mas para servir? Não seria justamente essa idiossincrasia ideológica, ético-política, uma singularidade histórica que, por isso mesmo, proporcionaria, sustentando-a, a plausibilidade da tradição que a sustenta?

Sustente-se a hipótese em Vermes, que alega basear-se “em um estudo magistral” de Paul Winter – “não foi por uma acusação de ordem religiosa, mas com base em uma acusação de ordem secular que Jesus foi condenado pelo representante do imperador a morrer vergonhosamente na cruz romana” (VERMES, p. 38). E isso não se teria dado sem razão, uma vez que “o simples fato de Jesus ser virtualmente capaz de liderar um movimento revolucionário já teria fornecido motivos suficientes para adotar „medidas preventivas radicais‟.

Corroborando a tese de Vermes, a tradição evangélica guarda memória de alguns eventos e circunstâncias comprometedores, os quais circunscrevem Jesus de Nazaré em um círculo indicativo de ação revolucionária – isto é, revolucionária em relação a Roma. Sem a pretensão de exauri-los:

 Jesus tem no conjunto de seu círculo mais íntimo de seguidores um zelote (VERMÈS, p. 55; HORSLEY e HANSON, p. 186ss), e a ele se poderia, eventualmente acrescentar um sicário (HORSLEY e HANSON, p. 173ss), se admitida a hipótese de essa ser a identidade de “Judas Iscariotes” – “Judas, o sicário”.

 Mais uma vez unanimemente, a tradição evangélica narra, agora, o episódio da “entrada triunfal” de Jesus em Jerusalém – Mc 11,1-10 (“Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino de Davi, nosso pai! Hosana, nas maiores alturas!”; Mt 21,1-17; Lc 19,28-46; Jo 12,12-19 (VERMES, p. 55). Aqui se impõe a referência ao trabalho de Andrew C. Brunson sobre a relação entre o Sl 118 e o Evangelho de João, particularmente a longa discussão que trata sobre a passagem, no Quarto Evangelho, da “entrada” de Jesus em Jerusalém, onde conclui pela intencionalidade de Jesus apresentar-se como “rei de Israel” (BRUNSON, p. 180-223 – o capítulo VI chama-se “King of Israel”).


Não se deixe passar a informação de que, em Marcos (10,32-11,11) e Mateus (20,17-21-17), e mesmo em Lucas, conquanto um tanto desconfigurada (Lucas 18,31-43 e 19,28-44), a narrativa da “entrada triunfal” de Jesus em Jerusalém se dá justamente na seqüência da narrativa do “pedido dos filhos de Zebedeu”, onde se situa aquela relação indicada entre, de um lado, a condição de Jesus como “filho do homem”, e, de outro, a novidade “ético-política” de apresentar-se, esse “filho do homem”, como um “governante” que não vem para ser servido, mas para servir. Aí, estamos diante de um núcleo tradicional relativamente estável.

 Podendo-se pensar em termos de “comunidades paulinas”, entendo que, em primeiro plano, “Lucas” está mais interessado na defesa do “apostolado paulino” em face do conflito aberto com a(s) comunidade(s) jerosolimitana(s), conflito esse que me parece armado em torno da plausivelmente arrostada primazia de Jerusalém, dado o fato de constituir-se de “testemunhas oculares” dos fatos relacionados à vida de Jesus (RIBEIRO, 2008b). Todavia, esse fato certamente põe em relevo justamente aquilo que “Lucas” quer ressaltar – a irrelevância de se tratarem de “testemunhas oculares”, uma vez que embora o fossem, os discípulos não teriam entendido absolutamente nada da mensagem de Jesus. E tal argumento é delineado de modo bastante claro:

a) primeiro, afirmando que os discípulos consideraram loucura de mulheres a notícia da ressurreição de Jesus (Lc 24,11); b) na seqüencia, fazendo aos “néscios e tardos em entendimento” entender o que de fato Jesus quisera dizer, uma vez que estavam os “discípulos de Emaús” carregados de frustração pelo fato de Jesus, de quem eles esperavam a “remissão de Israel”, jazer, agora, morto (Lc 24,21.25); c) depois, pondo na boca dos discípulos reunidos com Jesus ressuscitado a famosa pergunta: “Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” (Atos 1,6).

Ora, Lc 24,21 e At 1,6 deixam entrever que “Lucas” quer-nos fazer acreditar que as “testemunhas oculares” tinham de Jesus uma idéia muito política – chegando a considerar que ele viesse a ser o responsável pela restauração do “reino” de Israel. O fato de que “Lucas” quer-nos fazer considerar que esse estado de coisa reflete a ignorância dessas testemunhas oculares, preparando o cenário para Pentecostes e a hegemonia do “Espírito Santo” não muda o fato de que, para fazê-lo, “Lucas” deve ser “fiel” ao discurso dessa camada de testemunhas oculares que pretende descaracterizar – e o que elas têm a dizer está posto nessas duas perguntas críticas, que, ao fim e ao cabo, indicam para uma percepção de Jesus, o “Filho do Homem”, como aquele que fosse remir Israel, isto é, restaurar-lhe o reino.

Não se pode compreender com facilidade como, de um lado, segundo Horsley e Hanson, juntos, e Hanson, sozinho, nem a idéia de “messias” nem a idéia de “rei” faziam parte da camada mais antiga da tradição jesuânica, e, de outro, como, segundo Vermès, “a primeira versão judeu-galilaica da vida e do ensinamento de Jesus estar concebida em um espírito político-religioso, o que explicava, pelo menos em parte, a força da característica messiânica neste relato” (VERMÈS, p. 56). “Lucas” trata a esperança frustrada dos discípulos – “Jesus remiria Israel”, “Jesus restaurará o reino de Israel” – como ignorância, mas, ao mesmo tempo, com esse gesto revela a força dessa tradição. Dificilmente se poderá ser mais incisivo do que G. W. Buchanan:

Há aproximadamente dois mil anos atrás, houve um homem, chamado Jesus, um judeu, que viveu na Palestina. Ele foi chamado de “messias”, que significa “rei ungido”; “Filho de Deus”, que é título para um rei; “Filho do Homem”, que é um título mítico para um rei; e que deu a si mesmo o título de “rei”. Isto significa que a pessoa a quem esses títulos foram aplicados estava de algum modo relacionado com a política, embora muitos eruditos têm sido inflexíveis em dizer que não. Entretanto, o foco central da mensagem de Jesus sugere que ele estava muito interessado em um reino em que judeus pudessem entrar (BUCHANAN, p. 12).

Certo – não é pelo fato de Buchanan o dizer que as coisas são como ele diz. Todavia, o acúmulo de indícios não aponta justamente para esse ponto: há uma relação traditiva muito forte, e, eventualmente, muito antiga, talvez, original, vinculando Jesus de Nazaré a alguma forma sua de auto-apresentação política, tornada pública na forma do designativo “real” e tradicional “filho do homem”, que aponta para a sua identidade como reivindicante – de que tipo? – do trono judeu, tendo por isso mesmo sido acusado, condenado e morto? Parece que a resposta que se impõe é sim.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Flávio Josefo (Flavius Josephus) Iossef / Josefo

Flávio Josefo (Flavius Josephus), em hebraico: Iossef ben Matitiahu ha-Cohen, nasceu em 37 ou 38 E.C., falecendo por volta do ano 100 E.C. Foi político, soldado e historiador.

Nascido em Jerusalém, de família sacerdotal, foi criado na melhor tradição da Judéia e recebeu boa educação geral. Segundo sua autobiografia, de onde procedem todas as informações a seu respeito, o pai ministrou-lhe minuciosa iniciação nos textos tradicionais e legais da Torá; mais tarde, procurou por iniciativa própria abeberar-se nos ensinamentos dos saduceus, fariseus e essênios, decidindo-se, a seu dizer, pelo farisaísmo. Aos 26 anos foi enviado em missão menor a Roma onde logrou o favor da imperatriz Pompéia, fato que posteriormente lhe seria de grande utilidade.

Chegou a ser um dos chefes do heróico e reduzido exército que tentou defender a região contra os invasores romanos. Terminou seus dias em Roma, onde, de 70 até o fim do século, dedicou-se à história e à apologética: história da catástrofe nacional que havia destruído o Segundo Templo e despovoado a Judéia, e a história monumental de uma nação vencida mas altiva, que tem para si a antigüidade, portanto, a nobreza; apologia dessa nação caluniada até em Roma pela ralé alexandrina, e apologia de si mesmo, suspeito tanto aos olhos de seus correligionários, como aos olhos dos cortesãos romanos.

Flávio Josefo. Esse nome híbrido de que a tradição o dotou reflete todas as contradições do personagem, a sina do homem e o destino póstumo do historiador. Josefo (Iossef) é o prenome bíblico que o pai lhe deu ao nascer. Quando, mais tarde, o imperador Vespasiano fez dele um cidadão romano, o prenome tornou-se um cognome associado ao nome de família do benfeitor que o libertou após tê-lo aprisionado.

Soldado, político e traidor

Em 64, Josefo foi a Roma, em missão semi-oficial, para libertar sacerdotes judeus presos por Nero. Esta viagem que Josefo fez a Roma desempenhou um papel importante na sua vida. Ele ficou fascinado pela potência romana e convencido de que os romanos eram invencíveis. Ao regressar, tentou em vão dissuadir seus compatriotas de empreender a guerra contra os romanos. Não obstante, quando irrompeu a revolta, ele aceitou organizar a resistência judaica na Galiléia. Em conseqüência, quando os judeus da Palestina se revoltaram e reconquistaram temporariamente a independência em 66, foi considerado especialista em questões políticas e mandado à Galiléia, como representante do governo revolucionário.

Ao irromper a grande revolta da Judéia, em 66, colocou-se ao lado dos insurretos e foi designado pelo San’hedrin governador militar da Galiléia, assumindo o supremo comando militar. Desaveio-se violentamente com os extremistas patrióticos, acusado de tendência à contemporização. Depois de participar de vários combates, foi aprisionado com uns quarenta homens da sua tropa; e, talvez num acesso de terror, sacrificou-os traiçoeiramente, com exceção de um só, para salvar a própria pele.

De Iossef a Josefo – a traição

Julho de 67 da nossa era. Há 14 meses desencadeia-se a guerra entre judeus e romanos. Depois de 47 dias de cerco, as tropas de Vespasiano conseguem tomar e destruir Jotápata, uma praça forte na Galiléia. Josefo, com 30 anos de idade, defensor da cidade e chefe dos revoltosos da Galiléia, refugia-se numa cisterna profunda junto com 40 companheiros. O esconderijo é descoberto. Vespasiano convida Josefo a se render, prometendo-lhe que sua vida será salva. Diante de seus companheiros, aceitar tal proposta seria uma traição: todos prefeririam morrer a se entregar”. Josefo dissuadiu-os do suicídio e propôs estrangularem-se reciprocamente segundo uma ordem determinada pela sorte. Restaram vivos somente ele e um companheiro, como ele mesmo tenta explicar, constrangido, em Guerra III, 387-391: “Não sei se deveríamos dizer que por efeito do acaso ou da Providência Divina”. Teria havido um truque ao tirar a sorte? Josefo se entrega a Vespasiano e prediz que ele ostentaria em breve a púrpura imperial; quando isto se confirmou, foi liberto, como recompensa por sua previsão. O ex-prisioneiro passou para o lado dos vencedores. Terminada a guerra, tornou-se cidadão romano. De acordo com o costume local, adotou o nome de família de seu protetor, Flávio, de onde resultou o cognome pelo qual ficou conhecido na história e na literatura: Flávio Josefo. A partir daí, tornou-se caudilho romano; depois do esmagamento da revolta, foi contemplado com algumas propriedades confiscadas na Judéia, mas viveu em Roma o resto da vida. Rico e considerado, de agora em diante passaria dias felizes na capital imperial.

Ao que tudo indica, depois de ir com o imperador a Alexandria, retornou à guerra da Palestina, na esteira de Tito, testemunhou o cerco e a queda de Jerusalém, acompanhando o vencedor até Roma. Fixou-se na capital do Império, onde sob o patrocínio de Vespasiano, Tito e Domiciano, escreveu a maior parte de seus trabalhos, dos quais restam quatro.

É difícil determinar com precisão o papel que teve nesses acontecimentos, pois a única fonte disponível são seus próprios escritos, nos quais tentou, simultaneamente, demonstrar sua integridade como líder patriótico e sua devoção à causa de Roma. Contudo, são essas as fontes mais autorizadas da história dos judeus, nos primeiros séculos antes e depois do início da E. C., e da guerra de 66-70.

Remorso em sua obra

A maneira como salvou sua vida deixou, sem a menor dúvida, remorsos na alma de Josefo. Desta dor na consciência nasceu uma obra literária. Aos olhos dos que o acusavam de traição, Josefo quis justificar sua passagem para o campo romano e apresentar sua explicação sobre a guerra judaica. Os judeus destruíram-se a si mesmos por causa de suas divisões sectárias. Deus os castigou e deu aos romanos uma força irresistível. Este é o tema de “A guerra dos Judeus” cuja edição aramaica desapareceu. A versão grega, ampliada, surgiu entre 76 e 79. Josefo relatou os acontecimentos de que foi testemunha; esclareceu-os, porém, remontando ao passado até a revolta dos Macabeus, no século II antes da nossa era.

Não é por acaso que o seu primeiro livro é “A Guerra Judaica”. Além de relatar os acontecimentos em que se viu envolvido e cuja decisão lhe parecia, acertadamente, fazer história na vida de seu povo, tratou-se, para ele, de justificar sua própria atuação, que era alvo de violentas acusações de parte dos zelotas e outras correntes judaicas. Assim, não são de admirar o tom polêmico, os exageros laudatórios e as deformações subjetivas dessa obra que, de outro modo, constitui um documento vivo e compreensivo da luta, uma das poucas fontes sobre as particularidades de seu desenvolvimento e da derradeira resistência de Jerusalém ao gládio romano. Josefo a compôs originalmente em aramaico, sobretudo para os judeus da Babilônia; encorajado a traduzi-lo para o grego, ele próprio o fez com o auxílio de estilistas helênicos, e foi esta versão que chegou até nós. A seguir viu-se instado a expandir o relato numa história do seu povo, desde o começo até o seu tempo. Daí surgiram as Antigüidades Judaicas, em vinte livros. Obra muito desigual na matéria que apresenta, suas narrativas fabulosas, contradições e erros mesclam-se com dados preciosos, que denotam conhecimentos aprofundados da história e das tradições judaicas e que a arqueologia moderna vem comprovando de maneira às vezes surpreendente. Ainda hoje ela é não só um repositório literário, um clássico da historiografia antiga, como um dos principais anais do passado de Israel.

A opção política de Josefo não significou abandono de suas convicções religiosas judaicas. De fato, ele sofria muito por causa da ignorância e do desprezo que o mundo greco-romano alimentava em relação aos judeus e à Bíblia. Por isso, esforçou-se para tornar conhecidas entre os gregos tradições igualmente veneráveis e mais antigas do que as deles nas suas Antigüidades Judaicas (ou História Antiga dos Judeus), que apareceram em 93 ou 94.

Justo de Tiberíades, antigo companheiro de luta e seu rival na Galiléia, contestou o papel de Josefo na guerra; imediatamente, este se justificou, publicando sua Vida (Autobiografia), que ele acrescentou como um apêndice a uma nova edição das Antigüidades, no fim do século I, a qual é, acima de tudo, uma autodefesa política com algumas notícias sobre a vida do autor, no começo e no fim do livro.

Parte do tormento que lhe ia na alma transparece em textos como o discurso que Josefo põe nos lábios de um dos chefes, seu companheiro, que se manteve leal até o fim. Vigorava no mundo greco-romano um considerável anti-semitismo, particularmente entre os intelectuais pagãos que não entendiam a religiosidade obstinada dos judeus.

Gregos de Alexandria, entre eles um certo Apion, questionavam as afirmações de Josefo nas Antigüidades sobre o povo judeu, não atestadas nas fontes gregas. O testemunho da Bíblia não tem valor. O anti-semitismo mascara a realidade dos costumes judaicos. Então Josefo retoma o trabalho, para demonstrar a antigüidade e a tradição bíblica e para defender os valores do judaísmo, num livro que chegou até nós sob o título de Contra Apion. Trata-se de uma de suas melhores realizações literárias. Escrita com grande veemência, é uma peça de defesa apaixonada, mas autêntica. Não obstante o seu tom, contém na segunda parte um esforço compreensivo das concepções de vida e dos costumes religiosos e legais dos judeus que, colocados sob a égide da legislação revelada de Moisés e da polis teocrática, inspirada diretamente nos Mandamentos de Deus, encontraram na sua Torá as noções que são também as dos mais sábios dentre os gregos, com a vantagem de terem sido convertidas em prática preceitual e religiosa, argumenta Flávio Josefo.

O espírito apologético impregna todos esses trabalhos que se propunham também a sustentar a causa judaica ante a freqüente hostilidade do mundo greco-romano. Neste sentido, porém, a sua obra mais representativa é o tratado Contra Ápio ou da Antigüidade do Povo Judeu, onde procede à apologia do mosaísmo diante das investidas do gramático alexandrino, que foi o expoente do anti-semitismo clássico.

O Historiador: sua obra e permanência

Se ele houvesse levado em conta exclusivamente os judeus, com grande possibilidade a obra de Josefo jamais teria chegado até nós. Ele só é citado na literatura judaica a partir do século X. Em contrapartida, seus escritos interessaram vivamente os cristãos, que, desde cedo, começam a citá-lo e a utilizá-lo: Orígenes, Eusébio de Cesaréia, Jerônimo e muitos outros em seguida, que viram em Josefo o complemento das Escrituras, particularmente do Novo Testamento. Como os Evangelhos ou os Atos, Josefo fala de Herodes e de seus descendentes, dos procuradores da Judéia, Pôncio Pilatos, Félix. Ainda fala de João Batista, de Jesus e de Tiago. Aliás, a preocupação de Josefo de mostrar a antigüidade da religião judaica vai ao encontro das próprias preocupações da apologética cristã: Moisés, que os cristãos, tanto quanto os judeus, afirmavam ser anterior aos filósofos gregos. Era a prova da veracidade da revelação bíblica e do cristianismo.


Muitos enfatizaram os limites da obra de Josefo, seu pouco rigor cronológico, seu exagero nos números quando se referem a pessoas, sua vontade constante de se defender ou de se valorizar, seus preconceitos de classe etc. Seu comportamento durante a guerra judaica, o proveito que ele tirou de sua ligação com os vencedores não o tornam muito simpático. É preciso reconhecer, entretanto, que o apego de Josefo ao judaísmo valeu para conservar acontecimentos e ensinamentos que só ele transmite. “Sem Josefo, não saberíamos quase nada a respeito do destino do povo judaico durante os dois últimos séculos de sua existência nacional, nada do meio histórico em que nasceu o cristianismo” (Th. Reinach, em 1930). Sem dúvida alguma, as descobertas de Qumram matizam hoje esta afirmação.

Essa imensa obra transmitida em língua grega, foi lida e relida incessantemente no Ocidente cristão, desde a Renascença até o século XIX. Somente o século XX, esquecido das humanidades, afastou-se dela. Houve um tempo em que, na França, na Holanda, na Inglaterra, cada família cristã possuía seu Flávio Josefo, assim como possuía sua Bíblia, e a guarda de um in-fólio que continha a Guerra ou as Antigüidades tinha tanto direito quanto um Evangelho a receber os nomes dos filhos recém-nascidos. A cristandade via nele menos o “Tito Lívio grego”, como o chamava Jerônimo, do que o único historiador judeu que mencionou a existência de Cristo, num trecho aliás muito curto e controverso. Ele era também um maravilhoso contador da história santa, testemunha do que foi, segundo os cristãos, o seu episódio final: a punição do povo condenado às lagrimas e à errância eternas. É a esse mal-entendido que a obra de Flávio Josefo deve sua sobrevivência.

Traído?

Talvez o fundamento principal da fama duradoura de Josefo como historiador seja o respeito excepcional em que suas obras eram tidas pela Igreja, desde os tempos mais remotos. Este fato devia-se a que ele tinha sido quase contemporâneo de Jesus e dos Apóstolos, na Judéia. Seus relatos (assim consideram muitos modernos eruditos, tanto cristãos quanto judeus) foram textualmente alterados, nos primórdios da era cristã, por ultrazelosos propagandistas da igreja, a fim de obter corroboração histórica para a missão de Jesus, como o Cristo ou Messias, uma vez que não havia outro testemunho histórico contemporâneo e externo que o comprovasse.

No século XVIII, Padre Hardouin, jesuíta francês, irritado com esse autor, popular demais para o seu gosto em país protestante e ainda por cima traduzido para o francês por um jansenista, Robert Arnauld d’Andilly, impôs a ortografia Josefo para distinguir o historiador antigo dos santos de mesmo nome. Esse foi, com certeza, o único legado à posterioridade desse curioso jesuíta, para quem a Eneida não passava de uma alegoria cristã imaginada por um beneditino do século XIII e que professava que Jesus e os apóstolos haviam pregado em latim. Assim criou-se o hábito de reservar o nome Josefo ao historiador judeu, que os ingleses chamam, à maneira latina, de Josephus.

Para o judaísmo, Josefo, embora nunca tenha renegado sua origem e sua fé, passou por filho perdido: por ter sido suspeito de traição; por ter ido viver em Roma, no palácio do vencedor; por ter escrito e difundido sua obra em grego; por ter sido recuperado pelo cristianismo desde os primórdios da Igreja, como um outro judeu, o filósofo Fílon de Alexandria.

Confiscado pelos teólogos, Josefo foi também considerado perdido, em grande medida, para a história romana, à qual, porém, ele dá uma preciosa contribuição. Para abordar a época de que é contemporâneo, os historiadores de Roma sempre se serviram abundantemente dos autores latinos, sobretudo Tácito e Suetônio, restringindo Josefo a um papel de cronista dos assuntos da Judéia. Estes estão tão estreitamente relacionados com os assuntos de Roma, que dois generais vitoriosos da Judéia, Vespasiano e Tito, se sucederam à frente do império. Sobre as circunstâncias da ascensão ao trono, do caráter, do círculo de pessoas, do comportamento em campanha desses dois personagens, o testemunho de Josefo, que, ao contrário dos outros autores, os acompanhou de perto dia a dia, é insubstituível. Mas, enquanto os autores latinos, estudados de maneira incansável no Ocidente, forneciam aos escritores a matéria de inúmeras tragédias, a obra de Josefo, que em praticamente cada página sua podia inspirar uma tragédia, foi deixada de lado pelos dramaturgos.

Narrador de uma terrível tragédia, Josefo também evoca a sociedade judaica que existia antes desta, e, embora o nascimento do cristianismo não o tenha atingido particularmente, ele nos faz penetrar em seu meio de origem. Não há um autor moderno de uma história da Palestina no tempo de Jesus ou de uma história dos judeus no império romano que não o tenha plagiado despudoradamente. Alguns não hesitaram em atacar sua preciosa fonte para melhor realçar uma hipotética contribuição original.

Caluniado ou pelo menos suspeito de parcialidade – que historiador não o é quando narra fatos vividos? – Josefo tem direito ao lugar que reivindicava para si mesmo com justo orgulho: “O historiador digno de louvores”, escreve em seu prefácio ao relato da guerra, “é aquele que registra fatos cuja história nunca foi escrita e que faz a crônica de seu tempo para as gerações futuras”.

Conclusão: o Tribunal da História

Em sua vida póstuma milenar, Flávio Josefo assumiu os rostos mais diversos. Cristão sem saber, mago, matemático, defensor da fé ou semeador de dúvida, foi assim que ele foi apresentado desde a Antigüidade até os Tempos Modernos. Há um século, aproximadamente, os historiadores que o utilizam com gratidão como fonte principal para o período que ele cobre em seus textos, sentem-se como que obrigados a fazer por Josefo o que não lhes ocorreria fazer por nenhum outro historiador antigo: julgar o homem. A parcialidade evidente do autor da Guerra os leva a isso. Não só o ardente F. de Saulcy, mas também o austero Emil Schürer, emitem sua opinião indignada ou severa: “Ninguém se sente inclinado a justificá-lo”, escreve este último. “A vaidade e a presunção são os principais componentes de seu caráter. Mesmo que ele não fosse o traidor vil e desprezível que confessa mais tarde ser em sua Autobiografia, pelo menos transferiu para os romanos sua obediência e para a família dos Flavianos sua fidelidade, com mais rapidez e tranqüilidade de alma do que convinha a um israelita fingindo lamentar-se sobre a destruição de seu povo”. Théodore Reinach escreve que Josefo não é “nem um grande espírito, nem um grande caráter, mas um composto singular de patriotismo judaico, da cultura helênica e de vaidade”. Recentemente, Pierre Vidal-Naquet acentuou “a vaidade, o feroz espírito de classe, o cinismo” de sua personalidade, e, confrontando as traições de Tibério Júlio Alexander, do apóstolo Paulo e de Josefo, dava a palma do traidor a este último.

Paralelamente, nos círculos sionistas redescobria-se Josefo com um certo constrangimento. Ter-se-ia preferido um herói para contar a história de Massada. Em vez disso, tratava-se de um adversário ferrenho dos heróis cuja coragem se admirava. Em 1937, um grupo de estudantes de Direito reabriu o Dossiê de Flávio Josefo e pronunciou a condenação do traidor. Em 1941, em plena guerra, um grupo de jovens resistentes, de inspiração sionista, reagindo como patriotas franceses e judeus, decretou a condenação de Flávio Josefo por colaboração. No Estado de Israel, não foi sem hesitação que deram seu nome a uma rua, o que é uma forma de apreciar a dívida histórica contraída em relação a ele, o que quer que se pense de sua personalidade.

A história narrada por Josefo está presente no espírito de jornalistas e de escritores, que se referem a ela sempre que as divisões políticas internas se tornam violentas demais, graças ao contra-senso que pode facilmente ser feito sob o título habitual de sua obra, a Guerra dos Judeus, que preferimos chamar de a Guerra da Judéia. Sem realmente reabilitar Josefo, a esquerda militante assimila de bom grado os zelotes, partidários do Grande Israel.

A longa história póstuma de Flávio Josefo deve tornar-nos desconfiados em relação a todas as utilizações que podem ser feitas de seu destino e de sua obra, mais particularmente da Guerra. Basta lembrar que Saulcy não via nada mais semelhante a ela do que o terror sob a Revolução, que Reinach a via como uma imagem antecipada do cerco de Paris e da Comuna, e que até a comparação com a Revolução Russa foi feita. Poder-se-ia igualmente, nos dias de hoje, mencionar a situação libanesa. A verdade é que toda guerra civil, todo confronto fratricida pode lembrar a obra de Josefo para aqueles que a leram.

Não é de causar espanto que foi um judeu alemão, Lion Feuchtwanger, convencido pela Primeira Guerra Mundial do horror dos conflitos armados, da ascensão do nazismo e do horror do nacionalismo, que tenha empreendido a reabilitação de Josefo. Em sua trilogia, Josefo torna-se um personagem atormentado por todos os problemas de identidade e pelas aflições dos judeus da Diáspora, aspirando a ser um verdadeiro cidadão do mundo. Segundo um crítico, seria Stefan Zweig que foi descrito através dele. Observemos apenas que costuma-se referir a Zweig (autor em 1916 de um drama intitulado Jeremias) e a Flávio Josefo, como o profeta Jeremias.

Esbocemos um retrato de Josefo: um rapaz brilhante, confiante em sua estrela; um intelectual eloqüente, que não gosta de derramamento de sangue; um ambicioso que não quer morrer aos trinta anos; um espírito mais político do que guerreiro; um racionalista que odeia a exaltação mística; um cortesão por senso de compromisso; e, com tudo isso, um judeu profundamente fiel.

Para ser um herói, era preciso que ele tivesse morrido em Jotapata, sem ter escrito nada, mas deste fato a posteridade jamais teria tido consciência. Devemos lamentar que ele não tenha sido um herói?

Em síntese, suas obras são as seguintes:

A Guerra dos Judeus, 7 tomos, escrita nos últimos anos do reinado de Vespasiano;

A Antigüidade dos Judeus, 20 tomos, a história dos judeus desde o começo até a deflagração da guerra contra Roma, escrita em 93;

Autobiografia, defendendo-se das acusações de um historiador rival, Justo de Tiberíades, de que teria sido responsável pela guerra judaica; o relato que aí faz da própria participação nos acontecimentos de 66-70 difere, em muitos aspectos, do relato consignado no primeiro desses trabalhos;Contra Apion, 2 tomos, defendendo o povo judeu das acusações do sofista alexandrino Apion.