terça-feira, 26 de abril de 2011

Marcos (5,1-20) e o Enigmático Tema do Edemoninhado de Gadara

Empreender um estudo sócio-teológico sobre possessão e exorcismo é uma tarefa árdua e desafiadora, principalmente para um leigo (não formado na matéria de Sociologia, mas versado em Filosofia e Teologia). Sair do lugar comum e expor os conflitos de uma interpretação bíblica mais humana e intencional não tem sido considerado pela maioria dos eruditos. Por um lado, haverá aqueles que dirão não ser possível estudar sociologicamente o “mundo espiritual”. Outros dirão que humanizar o sagrado é correr o risco de banalizar a fé. A proposta de uma interpretação sociológica, uma nova leitura, é necessária porque não se pode desvincular a Bíblia do ser humano e este, do mundo em que vive.

O que tem a dizer, então, a História, a Tradição, o mundo bíblico do 1º e 2º Testamento, a Razão e a Ciência, sobre a possessão? Pode-se vincular possessão e alienação, possessão e opressão, possessão e doença? A partir desse ponto de vista, quê demônios atinge e penetra no ser humano e o aliena e o possui, tirando-lhe a liberdade?

Onde, nesse processo, se encaixa o preconceito religioso - contra negros p. ex. – com seus deuses demonizados? E o preconceito de gênero – contra as mulheres – que, acredita-se, é portadora e responsável pelo pecado original e por isso mais suscetíveis aos “encantos da serpente?” E o preconceito social – contra os pobres – onde este é considerado maldito e incapaz de mudar sua própria sorte, livrar-se de suas doenças, crescerem na vida?

Por quem ou pelo quê são possuídos?
Quais demônios sociais e políticos niilistas são introduzidos à força em seu viver frágil?

Sugerir respostas que gerem reflexões é a intenção desta obra. Porém, não foi possível incluir os conceitos de Paul Tillich (o demônico), e também, da mesma forma injusta, foi deixado à margem Rudolf Otto (o sagrado). Não seria possível abarcar todos esses conceitos, mas eles se encontram nas entrelinhas. A música como forma de exorcismo também não encontrou um espaço coerente para análise. Entre outros, foram considerados aspectos mais relevantes dentro da possessão: a política, o preconceito religioso, a medicina (doença), a comunicação (linguagem), a possessão cristã (pelo espírito de Deus), entre outros.

I. PARTE
1. INTRODUÇÃO

A perícope de Marcos (5,1-20) permite que o leitor da Bíblia a utilize além dos objetivos marcanos. Além da mensagem e da prática de Jesus, o leitor/intérprete poderá tirar práticas diversas sobre demonologia, exorcismo, palavras de ordem, diálogo, batalha espiritual, corporal e geográfica. Mas se o texto for analisado dentro de um contexto de opressão social e militar, o texto se revela pleno de sentidos reais e simbólicos. Embora seja um texto milenar em sua composição e originalidade, supõe-se uma narrativa realista que “requer simultaneamente a autonomia da literatura e a plausibilidade da redação histórica; ela é ao mesmo tempo contemporânea e afastada do leitor. Autonomia literária significar a liberdade criativa do autor para usar a ‘licença poética’ ao narrar situações, caracterizações e trama. O Evangelho não pretende ser relato ‘jornalístico’ de eventos; Marcos livremente interpreta e editorializa as tradições em que se inspira.” Marcos escreve a partir de um momento histórico e ninguém pode se apropriar do texto para criar uma teologia própria.

Esses aspectos do mundo narrativo de Marcos só podem ser vistos como reflexo direto de sua realidade social. A deterioração econômica e política, especialmente na década anterior aos levantes da guerra romano-judaica, deixou em extrema pobreza partes significativas da população palestinense, principalmente nas áreas rurais densamente populosas da Galiléia. A doença e a incapacidade física constituíam parte inseparável do ciclo de pobreza (fenômeno ainda verdadeiro nos dias de hoje, apesar do advento da medicina moderna). Para o trabalhador diarista, a enfermidade significava desemprego e empobrecimento imediato, As “multidões” (ochlos) servem de pano de fundo para a narrativa e representam um dos grandes aspectos de sua localização social.

Essa “apropriação” do texto para fins diversos pode ser literal, espiritual, ideológica ou sociológica. Mas sempre há uma intencionalidade no texto marcano, um conflito latente que se expande à medida que o texto vai sendo desvendado.

Um texto sempre é escrito a partir de um lugar social. Nele estão codificados elementos de política, econômica, ideologia e relações sociais que permitem identificar o leque das relações sociais e suas contradições, mesmo que tenha sido escrito a partir do horizonte de compreensão da classe dominante.

“A apropriação é algo mais do que a simples compreensão de um texto, não sendo apenas assimilação. Aqui, trata-se do mecanismo por meio do quais grupos ou classes sociais tentam tornar ‘seus’ o texto bíblico. Desse modo, tenta-se utilizar ideologicamente o texto bíblico como justificativa de uma determinada prática.” Fica claro que esse exemplo (do geraseno/gadareno) sempre será lembrado como o que mais causa impacto como prática exorcística. Para Marcos toda a prática de Jesus deriva desse conflito.

Para Marcos, toda prática de Jesus em seu ministério na Galiléia é caracterizada pela atividade de expulsar demônios. Desde a tentação no deserto (1,12-13) e o exorcismo inaugural (1,21-28), o evangelista caracteriza a prática de Jesus como expulsão de demônios.

2. O EVANGELHO DE MARCOS

O evangelho de Marcos deve ter sido escrito, de acordo com a maioria dos exegetas, por volta do ano 70. Marcos é considerado o mais antigo dos Evangelhos. Foi escrito em língua grega koiné, com hebraismos evidentes. Na história redacional, Marcos é tido como o redator final do texto recolhidos dos dados da tradição. O mais importante para o redator é o assunto e não a seqüência cronológica do relato. Marcos tem uma intenção querigmática ou “segunda intenção” na redação do texto.

Embora não se dê nenhuma importância à exatidão da sucessão histórica dos acontecimentos, a sua disposição dos diversos trechos, um ao lado do outro, não é arbitrária. É a intenção querigmática que dirige o seu trabalho de redator.

Marcos trouxe para o seu escrito tradições mais antigas que, na forma original, ainda não tinham sido propostas e transmitidas como “Evangelho”. Por ser a fonte mais antiga serviu de base para os demais evangelhos sinóticos, que têm como base também, a fonte “Q”.

É um relato em forma literária fantástica e original (não serão analisadas as variantes constantes nos demais evangelhos sobre esse episódio, como por exemplo, Mateus, que cita dois endemoninhados). Percebe-se essa estrutura literária intencional em Marcos.

Neste relato [Mc 5,1-20], muito elaborado a partir do ponto de vista literário, vão se alternando o registro narrativo... Jesus chega pela primeira vez a um território pagão (v. 1); a tomada de iniciativa contra o mal é o que desencadeia toda ação. O endemoninhado está situado no campo da impureza e da morte (vv. 2-5), simboliza o homem dominado e escravizado; nesse contexto, o diálogo com o demônio tem conotações políticas (Legião = Exército romano = demônios = porcos) e apresenta seu final violento no mar-morte. Porém deve-se ter em conta o que o “ corpo” significa na antropologia judaica: é o que dá presença operante ao espírito no mundo. Se são expulsos do homem, os demônios não poderão seguir atuando naquela região, a não ser em “outro corpo”; daí a importância do pedido (v. 10). Porém no consentimento de Jesus aparece a ironia: a porcaria, os porcos são lugar demônios-Legião romana. A concessão de Jesus é só aparente: quando os porcos se jogam no mar, os demônios ficam “sem corpo”, com o que a expulsão chega ao seu final. Não houve pacto.

Dessas conclusões estruturais se deduz a intencionalidade do momento histórico. Torna-se ainda mais fantástico porque, de acordo com alguns exegetas, Paulo já exercia seu apostolado nessa época. Pode-se ter uma idéia do contexto histórico do relato.

A interpretação do evangelho de Marcos pode ajudar-nos a descobrir, se não com exatidão, pelo menos aproximadamente, a sua situação histórica. Quando Marcos escreveu o seu evangelho, a missão entre os pagãos, que supõe a pregação de Paulo, já era incontestável.

(Há divergência entre os eruditos se há cinco, seis ou sete, relatos de exorcismo no 2º Testamento. Para o teólogo PE. Luís Schiavo existe seis). Não se chegou ainda à conclusão se o exorcismo é uma fórmula (ou forma) literária.

Tem-se discutido muito se o exorcismo seria uma forma literária. Existe também a preocupação em se definir uma coleção de milagres onde o exorcismo faça parte. Pelas características da prática exorcística do Jesus de Marcos é possível perceber uma estrutura bem definida, como atesta outras fontes e tradições. Encontramos muitos exemplos de histórias de expulsão e de envio de demônios ao mar na antigüidade. O mar sempre foi um lugar de destruição, do desconhecido, para o homem primitivo.

3. EXORCISMO COMO MILAGRE

Quase todos os cristãos acreditam em milagres, sem o qual a vida do homem religioso não teria sentido. “Todos acreditam em milagres, pelo menos os que acontecem no Antigo Testamento, nos tempo de Cristo e em Atos dos Apóstolos. Ele é o aviso mais visível e o mais acreditado entre os poderes do sobrenatural. Se, à sua maneira, ele serve para medir a crença comunitária no vigor de Deus e na verdade da fé, nada é mais forte do que as religiões dos fracos.” O milagre é o estímulo e o conforto de todo sofredor, oprimido, que acredita que um dia Deus irá salvá-lo e pode, por vezes, parece ser uma troca.

... o milagre popular é a mostra de efeitos simples de trocas de fidelidades mútuas entre o sujeito e a divindade, com a ajuda ou não de uma igreja e de mediadores humanos ou sobrenaturais.

Os milagres são acontecimentos estranhos, que o crente entende como sinais da ação salvadora de Deus. A narração dos milagres ocupa bastante espaço, com 156 versículos contra 119 da história da paixão e não se sucedem por ordem natural ou histórica. E todas essas narrativas de milagres tem como única e exclusiva intenção apresentar Jesus. E apesar de todas as controvérsias, o povo da Bíblia não questionava os milagres, visto não possuírem outra explicação para estranhos fenômenos.

Na opinião de SCHREINER, J. e DAUTZENGER, G., as narrativas de milagres, no Evangelho de Marcos, desenrolam-se de forma diferente que nos sinóticos e em João, e salientam a intenção querigmática de evangelista.

Muito diferente, no evangelho de Marcos foi o desenvolvimento das narrações dos milagres. Certamente elas foram determinadas desde o princípio pela primitiva profissão de fé em Jesus. É o que já se vê no uso freqüente de títulos cristológicos como “kyrios” (5,19; 7,28), “mestre” (3,1; 5,7), “o santo de Deus” (1,24), “Filho do homem” (2,10). As próprias aclamações que fecham as narrações dos milagres servem, direta ou indiretamente, à profissão de fé em Jesus, p. ex., em Marcos não têm, porém, uma característica única, como a sua história da paixão. Os seus modelos se encontram tanto no Antigo Testamento (p.ex., a ressurreição de mortos por Elias e Eliseu), como, principalmente, no ambiente helenístico do cristianismo primitivo. É possível descobrir entre as histórias prodigiosas helenísticas e cristãs primitivas não só motivos paralelos formais como também amplas concordâncias de estilo e de construção narrativa.

Ao apresentar Jesus como libertador e Messias, Marcos pretende mostrar que “em suma, os atos simbólicos de Jesus eram poderosos não porque desafiassem as leis na natureza [como milagre], e sim porque desafiavam as próprias estruturas da existência social. (...) sua cura e seu exorcismo funcionavam para ‘elaborar’ a ordem simbólica dominante, desmascarando a maneira como esta atuava para legitimar relacionamentos sociais concretos. À medida que essa ordem desumanizava a vida, Jesus desafiava, bem como desafiava suas estruturas: eis porque seus “milagres” não eram universalmente aceitos. Dependendo do status da pessoa na ordem dominante, cada um os encarava como desvios sociais (maus, heréticos) ou libertadores. Este ainda é um desafio para o século XXI: colocar em práticas os exemplo e ações de Jesus libertador.

John D. Crossan, citando o estudioso e erudito Haroldo Remus, esclarece ainda que o mesmo milagre que ocorre no interior de um grupo não tem o mesmo nome que em grupos rivais. Realidade sociológica que divide os povos. Mas o exorcismo é um milagre e existe sempre uma ligação entre os milagres apresentados pelos evangelistas e a mensagem e a pessoa de Jesus. Pode ser chamado de “milagre querigmático”.

3.1. A estrutura do milagre de exorcismo

Da cultura greco-romana, o judaísmo e cristianismo herdaram, entre outras coisas, o modo estrutural de pensamento, tanto expositivo como sistemático. Baseados em histórias de exorcismos desse sincretismo cultural, pode-se observar a seguinte estrutura de um milagre – de forma geral - de exorcismo:

Estrutura

1. Indicação da situação e descrição do estado do possesso
2. Encontro do exorcista com o possesso
3. Tentativa de defesa por parte do demônio
4. Ordem dada pelo exorcista para que saia do possesso
5. Saída acompanhada de demonstração
6. Reação dos espectadores

Os seguintes elementos estruturais típicos fazem parte da tópica:

1. Indicação do quadro mórbido
2. Tentativa de defesa por parte dos demônios
3. Pergunta pelo nome e indicação do nome
4. Ordem dada pelo exorcista ao demônio para que saia do possesso; fórmulas e práticas de esconjuros que ele usa
5. Saída acompanha de demonstração
6. Reação dos espectadores

Para não ficar apenas em um exemplo estrutural, citando J. Greimas, Ched Myers define cinco elementos essenciais das narrativas de exorcismo:

(1) mandato ou mandamento;
(2) aceitação ou rejeição do mandato;
(3) confronto;
(4) sucesso ou insucesso;
(5) conseqüência ou atribuição.

Entre outra característica dos milagres de exorcismo está o fato de que “no ritual das histórias extrabíblicas de expulsão de demônios encontram-se também ordens de silêncio.” No caso de Marcos, Jesus impede que os demônios revelem quem ele é, mas ao mesmo tempo, como um xamã, exige o nome do (s) demônios. Somente conhecendo o nome dos demônios, um exorcista poderia expulsá-lo.

4. A “LIBERTAÇÃO”

A opção narrativa de Marcos contém elementos de duplicidade, no qual ele repete os acontecimentos em seqüência a fim de enfatizá-los, ou chamar a atenção do leitor.
...certos elementos ocorrem duas vezes, a intervalo de apenas um versículo. Assim, p. ex., descrevem-se duas vezes: o encontro de Jesus com o possesso (vv. 2.6); a permanência do possesso os túmulos (vv. 3.5); o pedido de garantia dos demônios (vv. 10.12), e o relato das testemunhas oculares a outras pessoas (vv. 14.16). Estas duplicatas, ao que parece, querem reforçar a impressão que o relato deve provar no ouvinte e no leitor. E nisto elas se aproximam de um outro fenômeno que nos chama a atenção, ou seja: a indomabilidade do possesso, o comportamento totalmente oposto deste homem depois de curado, o grande número de demônios, etc.

Paul Tournier já expressava há algumas décadas que “os gritos são a arma dos fracos. O endemoninhado que grita está apenas expressando sua fraqueza diante de uma dominação reinante. A dialética existente entre a vontade do indivíduo e a vontade de dominar está implícita nas narrativas de exorcismo de Marcos. É visível, a partir daí, a relação antropológica e sociológica da possessão.

Se o exorcismo é um milagre, é um milagre de cura, de libertação do indivíduo alienado dentro de uma sociedade. A narrativa do gadareno pode incluir elementos simbólicos, porque o possesso está “cheio” de demônio (s) poderoso (s). Libertá-lo é inseri-lo na sociedade a fim de desenvolver plenamente o seu papel. O pedido para que Jesus vá embora da cidade deriva do medo que o milagre seja interpretado pelos romanos como um evento revolucionário. O medo torna-se maior que o milagre. O indivíduo está livre, mas a sociedade não. Na opinião de J. D. Crossan, toda sociedade oprimida desenvolve a crença em que os opressores são os demônios possuidores e a cura se dá através de um movimento de libertação ou ação religiosa que possibilite uma sublimação. Como exemplo ele cita uma história africana. Pode-se compara esse exemplo ao demônio-Legião, ou seja, o estrangeiro opressor.

A existência de uma dialética política entre o indivíduo possuído e a sociedade (...), ou seja, entre o microcosmo e o macrocosmo demoníaco – é confirmada pelo meu segundo exemplo, desta vez retirada de um caso moderno. Segundo Barrie Reynolds, nas tribos lunda-luvale dos barotse, que habitavam a região conhecida como Rodésia do Norte, havia uma enfermidade tradicional chamada mahamba, que era causada “por uma possessão pelos espíritos dos ancestrais”. Mais tarde, no entanto, acabou se desenvolvendo uma versão moderna dessa doença, chamada bindele; ela era “provocada pela possessão por outros espíritos [o que] pode ser considerado um reflexo da tensão entre a sociedade da vítima e o grupo representado pelo espírito. Acredita-se que aqueles que sofrem de bindele (palavra em luvale que significa ‘europeus’) estão possuídos pelo espírito de um europeu” (133). Reynolds ainda conta que em 1944 um exorcista chamado Rice Kamanga, que mais tarde adotaria o nome Chana I, fundou uma igreja dedicada à cura da bindele, “um processo demorado, que pode levar uma a cinco meses (135). Legião estava para a Palestina romana assim como bindele estava para a Rodésia colonizada pelos europeus.

O colonizador representa o demônio que possui geográfica e fisicamente o oprimido, gerando religiosas de fuga e subversão a fim de exorcizar aquilo que o dominador representa.

5. ONDE ACONTECEU O EXORCISMO DO GADARENO

Não há consenso sobre o local do exorcismo na opinião de vários autores. Henry H. Halley alega que Gerasa é a atual Querza, sendo que Gadara ficava mais ao sul, onde existem colinas caindo para o mar. Alfons Weise informa que não havia nenhum lago na região de Gerasa.

A expulsão do demônio teria acontecido na região das gerasenos, ou seja, nas vizinhanças da cidade de Gerasa, que ficava na Jordânia oriental, cerca de 55 km ao sul do lago de Genesaré. Fora fundada pelos gregos, no século IV a.C. Hoje se chama Dsherash. As difuculdades do texto de Marcos começam com essa indicação topográfica, pois não havia nenhum lago na região de Gerasa, nem esta região ficava perto do lago de Genesaré, de sorte que os animais pudessem se precipitar “pelo despenhadeiro”.

Os evangelistas e não somente os teólogos divergem sobre o local do exorcismo, como é caso de Mateus.

Mateus sentiu esta dificuldade e mudou a indicação do lugar, transferindo o acontecimento para Gadara, situado mais ou menos a 10 km do lago. Mas esta distância é também muito grande ainda. Orígenes, um dos Padres da Igreja, introduziu uma variante, por volta de 200 d.C. segundo a qual o acontecimento se deu perto de Gergesa, lugar situado junto ao lago. Com isto ele aplaina as dificuldades, mas ao preço de grave mudança no texto original, o que não representa nenhuma solução. Todos os três topônimos quadram com a região conhecida como Decápole – distrito das dez cidades – situada na Jordânia helenística oriental. Talvez a prolixa indicação topográfica de Marcos seja indício de que a narrativa a tenha passado por um processo de crescimento e de que em seu estado fundamental, ou seja, no estágio anterior à Marcos, ainda não continha a história da passagem de Jesus pelo lago e dos animais que se precipitaram nas águas. É bem possível que a sua introdução começasse mais ou menos com estas palavras: Ele chegou a região dos gerasenos.

Champlin, citando os pais da Igreja, também vê dificuldades em apresentar o lugar.

Gerasa era uma cidade de Decápolis (moderna Jeras, na Transjordânia), localizada a mais de 50 km a suleste do mar da Galiléia e, conforme Orígenes (Comentário sobre João V, 41 m(24), esse é o menos provável dos três lugares. Outra área dacapolitana era Gadara, acerca de 8 km a suleste do mar da Galiléia (moderna Um Queis). Embora Orígenes também fizesse objeção a Gadara (o que, segundo ele afirmou, aparece em alguns poucos manuscritos) porque ali não havia nem lago e nem precipício, Josefo (vida IX, 42) refere-se a Gadara como cidade que tinha um território “que jazia nas fronteiras de Tiberias” (= o mas da Galiléia). Que esse território chegava até ao mar pode-se inferir da fato que antigas moedas que trazem o nome de Gadara com freqüência retratam um barco. Orígenes preferia Gersesa, não porque ocorre nos manuscritos – ele faz silêncio sobre isso – mas por causa da base dúbia da tradição local (é o lugar “de onde, conforme se frisa, os porcos foram lançados precipício abaixo pelos demônios”, e, por causa da base ainda mais duvidosa da etimologia (“o significado de Gergesa é “habitação dos que foram expulsos”, e. desse modo, o nome “contém uma alusão profética à conduta mostrada pelos habitantes daqueles lugares ao Salvador , ‘os quais rogaram-lhe que se afastasse do território deles’”.

Embora haja uma inclinação a favor de Gerasa, a composição narrativa de Marcos faz supor que havia uma intenção em localizar Gerasa na Decápolis com a finalidade de enfatizar o espaço sócio-simbólico gentílico.

6. LEGIÃO-DEMÔNIOS

A quantidade de soldados de uma Legião coincide com o número de porcos em Marcos. Este chama o conjunto dos porcos da “manada” com 2.000 porcos. Após vários incidentes na Palestina, as legiões destacadas para essa região eram das mais ferozes. Tinham a finalidade de debelar qualquer insurreição violentamente. O teólogo Luigi Schiavo, na tese de mestrado (UMESP) “2000 demônios da Decápole” (vide bibliografia), relata:

O momento histórico era de grande presença militar na Palestina. A Legião VI Ferrata estava estacionada na Galiléia e a X Fretensis, na Síria, com provavelmente, uma guarnição de 2 mil homens em Gerasa. Por outro lado, aumentavam os levantes populares armados com o objetivo de “lançar ao mar” todos os opressores.

Essa designação de “lançar ao mar” tem paralelo na história de Israel, a começar com Faraó do Egito (o êxodo) e também com Jonas (a fuga). O mar é grande símbolo de destruição total, punição, esquecimento. Atualmente, os árabes se apossaram desse slogan, imagens militares de aniquilação.

“Legião” é um termo, alguns chamam de latinismo (C. Myers e G. Thiessen), que possuía sentido no mundo social de Marcos. Quando uma pessoa ouvia falar de “legião”, sua mente remetia ao grupo de soldados do império romano. O texto está, assim, empregnado, implicitamente de imagens militares. Decorre dessa situação de dominação a alienação do gadareno.

G. Theissen observa com acerto que qualquer pessoa naquela época, ao ouvir esse nome, não poderia deixar de fazer a associação com as legiões romanas. A dimensão política está presente nesse exorcismo pelo valor simbólico do nome do demônio (“Legião”). (...)... A presença do imperialismo romano significava que, no nível social, o povo de Deus estava sendo possuído por demônios. Repare, aliás, nas implicações esquizofrênicas do controle demoníaco: ele aponta para a existência de um poder mais forte do que o indivíduo, um poder que está “dentro” dele, mas que é visto como algo maléfico, afastando, portanto, qualquer possibilidade de conluio ou cooperação.

A título de uma irônica curiosidade, Halley aponta que os porcos entraram em pânico quando perceberam os demônios dentro de si e por isso, perderam o domínio de si mesmos e precipitaram-se no mar...

7. EXORCISMO, MAGIA E RELIGIÃO

Crossan analisando a vida de um camponês do mediterrâneo (conforme livro de mesmo título na bibliografia), conclui que esse camponês vinculava religião e magia e Jesus, nesse contexto, era visto como um mago ou xamã, pois curava e expulsava demônios, possuía contato direto com a divindade, e só um mago ou xamã poderia fazer isso. Na Palestina do tempo de Jesus, as pessoas que praticavam o exorcismo, ou a expulsão de demônios, estavam exercendo uma profissão reconhecida e de reputação. Nesse ponto de vista, Jesus é um mago, pois o povo assim o vê e vai atrás dele, para ver se lhe sobra uma pouco desse poder. Está claro, também, que por suas atividades como curandeiro, milagreiro e exorcista (título do livro de Luigi Schiavo – vide bibliografia), convocando discípulos e atraindo multidões, ao entrar em Jerusalém, já prenuncia sua morte. As autoridades não deixarão de agir a fim de debelar qualquer tipo de insurreição. Outros já haviam promovido revoltas semelhanças. Não havia interesse que um “profeta do povo” agitasse Jerusalém da festa da Páscoa, momento crucial para demonstrações de violência, poder e força. Os videntes, ou nabis, cuja tradição João Batista concluíra, deviam ser perseguidos e mortos, como reza a tradição. O mago e o bandido tinham a mesma sorte.

... a magia está para a religião assim como o banditismo está para a política. Enquanto o banditismo contesta a legitimidade do poder político, a magia contesta a do poder espiritual. Tanto no mundo antigo quanto no moderno, pode-se fazer uma distinção entre magia e religião através de definições prescritivas e políticas, mas não através de descrições neutras e objetivas. A religião é magia oficial e aprovada; a magia é uma religião extra-oficial e censurada. Ou, em termos mais simples: “nós” praticamos religião, “eles” praticam magia. Não importa se os magos são a favor ou contra a religião oficial. A sua própria existência, independente de suas intenções, já constitui uma ameaça para a validade e a exclusividade da religião. É por isso que grandes magos judeus, como Honi, o Criador-de-círculos, e Hanina ben Dosa, tiveram que ser purificados em termos de oração e estudo para serem aceitos dentro da crescente hegemonia da tradição rabínica.

Apesar da existência de alguns exorcistas, xamãs ou magos conhecidos (deve-se lembrar que alguns magos do oriente viram a estrela de Belém e foram visitar o menino Jesus). Alguns exemplos de exorcistas famosos da antigüidade: Elias e Eliseu, Honi e Hanina eram magos, assim como Jesus de Nazaré, Salomão, Eleazar, Apolônio de Tiana e Hanina Ben Dosa (este dois últimos praticaram exorcismos parecidos com o de Jesus, mas antes dele). Os exorcistas eram personagens normais da sociedade antiga. Deles se esperava que comunicasse as palavras e os atos divinos aos pobres mortais.

Portanto,
1. há uma forte conexão entre exorcismo e magia e/ou religião ...
2. há pouquíssima narrativas de exorcismos.
3. pouquíssimas figuras exorcistas...
4. a única figura exorcista na literatura disponível a quem um número razoável de exorcismos é atribuído, e relatado em detalhe, é Jesus de Nazaré.

8. A PRÁTICA DE JESUS, EXORCISTA

“Jesus é o profeta da inclusão.” Como profeta da inclusão, as evidências estão claras a seu favor, quando desobstrui o caminhos dos pobres e oprimidos a fim de que, como gente, participem da sociedade como iguais. Em que se caracteriza a prática de Jesus?

Chamamos práticas ao conjunto de ações pelas quais um sujeito busca incidir na transformação da realidade e nas quais realiza seu projeto e sua utopia. Nenhuma prática se dá como algo isolado, porque não existe o “sujeito puro”; dado o caráter dialogal da existência humana, toda ação é ação-resposta, que nasce de uma interpretação e provoca outras ações, seja de colaboradores (projetos semelhantes ou complementares), seja de oposição (quando se trata de projetos contrários). Portanto, para compreender o sentido de uma prática, deve-se situar as ações que a compõem dentro de um duplo contexto:

• o contexto interno, dentro da prática homogênea de um sujeito, em que se vão dando mudanças que respondem a uma lógica interna nascida da coerência com determinados valores e projetos;
• o contexto externo, constituído pelas outras práticas com as quais entra em relação, e com as circunstâncias nas quais elas se realizam.

Prática e valores estão intimamente relacionados, pois deles brota a prática e a partir deles analisa e valoriza outras práticas como similares ou contrárias. Assim, pois, pela análise das práticas podemos conhecer os valores e os projetos subjacentes a elas. Porém, para descobrir no relato de Marcos essa prática de Jesus processual e situada necessitamos de “chaves de leitura”, porque não se expressa de maneira direta, explícita, mas por insinuações, implícitas. Todo texto tem esses dois níveis de mensagem: o direto, que se descobre à primeira vista, e o indireto, que está nas entrelinhas e que, com freqüência, é o mais importante. Quando não se chega a esse nível de significado, corre-se o risco de se ficar numa leitura fundamentalista.

Jesus realizou seu projeto e sua utopia para transformar a realidade sem empregar um padrão rígido de procedimento. Geralmente, Jesus nunca tocava em indivíduos possuídos por demônios, mas, por outro lado, costumava tocar em enfermos e doentes; “o uso de uma palavra de comando talvez fosse a técnica mais comum que empregava para realizar suas curas e exorcismos.” Jesus exorcizava preferencialmente pessoas pobres e indivíduos, intervindo profundamente na realidade social deles.

Porém, somente a presença de Jesus já era suficiente para mostrar o mal que agia na vida das pessoas. A presença do mal era definitivamente erradicada da vida da pessoa. A ação de Jesus era a favor da vida abundante e impedia que “outros” falassem por eles.

A prática de Jesus anula a ação do demônio no gadareno. Este se endireita e fala livremente. Antes, um demônio (a presença física dos violentos legionários) o possuía, falava por ele e o dominava. A ação de Jesus torna esse homem livre para falar o que realmente pensa livre de opressões de qualquer tipo. Por isso, os seus conterrâneos querem que Jesus saia da cidade na mesma hora, mas por causa do medo da liberdade de expressão de um homem são e livre. O endemoninhado representa ansiedade coletiva em face do imperialismo romano. Jesus reata o caminho da comunicação perdida. O gadareno não podia impedir que falassem por ele, “sua voz era a expressão da ideologia daqueles que tem poder.” Não tinha nem vez, nem voz, nem identidade pessoal.

Jesus nunca se interessou por demônios, mas antes pelas pessoas possuídas. Como o método de Jesus não era extático, também não pode sacramentar métodos de exorcismo como os atuais. Para Neuza Itioka, apesar do seu preconceito religioso, “não existe nenhum método seguro prescrito de expulsar demônios.” É preciso avaliar aquilo que realmente possui as pessoas nesta época e procurar dar as respostas baseadas em uma prática evangélica, não extática, que permita ao indivíduo a liberdade de crer por si mesmo, apesar do sistema de poder que querem manipulá-lo sem a menor culpa.

II. PARTE
1. Evolução da crença

É sabido que “desde os tempos mais remotos do pensamento humano, existem formas diferenciadas de possessão (possessão demoníaca). Paralelamente, existiram também, desde os tempos imemoriais, mecanismos de defesa contra a possessão, entre eles o exorcismo.” Dessa forma, o conceito de possessão e exorcismo sempre estiveram atrelados à religião. A crença em espíritos que podem penetrar no ser humano, seja como forma de vingança ou de poder, é originária da história das religiões.

O demônio e seu mundo não só constituem um aspecto da teologia ou da doutrina cristã, mas também povoam o universo cultural que se desenvolveu nos dois últimos milênios de nossa história.

Atualmente o tema ganha relevo em meios pentecostais e neopentecostais, onde o demônio ocupa, no culto e na vida, lugar central. A centralidade nos demônios desloca o verdadeiro sentido do culto a Javé. Já em tempos pós-modernos “o sagrado reaparece em formas primitivas e selvagens...” Nas palavras do historiador João Gonzaga “no final do século XII surgiu notável eclosão de espiritualidade popular... Acima de tudo fortificou-se a convicção de que Deus, os santos e, também, o demônio estão sempre presentes neste mundo, imiscuindo-se materialmente nos negócios humanos”. E tal como um paradoxo acredita-se que o mesmo ato que serve como prova de alguma influência maligna, também serve como sinal de divindade.

Para os estudiosos, principalmente antropólogos, está claro que:
A crença em espíritos é encontrada em todas, ou quase todas, as sociedades humanas. Ela assume formas variadas, mas um espírito parece ser um agente invisível, quase humano, que é imediata, e quase instintivamente, postulado como sendo a causa de um acontecimento repentino, estranho e inesperado.

Após o advento do Iluminismo, a tentativa de transformar a ciência em dogma ou a tentativa de transformar a religião em ciência, derrotou o espírito de interação entre uma e outra. Anteriormente, o Escolasticismo já prenunciava a ruptura. O mundo da razão não consegue perceber que o mito faz parte do sentido de mundo do crente. Contudo, também não se consegue explicar Deus. Vê-se, assim, que se alternam durante a história humana a interpretações das crenças. Há aqueles que querem o retorno aos fundamentos e ao literalismo bíblico, e há aqueles que preferem uma abertura para compreender melhor a vida e qualquer outra dimensão inexplicável, concluindo que o finito não pode compreender o Infinito nem o relativo atingir o Absoluto. Torna-se necessário buscar explicações no passado e no presente para julgar convenientemente o que é possessão.

Assim, por volta do século IX o diabo começava a ocupar uma posição central na crença dos cristãos ocidentais. A teologia ortodoxa do Oriente dava pouca atenção às doutrinas a respeito do Maligno. Os Padres bizantinos enfatizavam de maneira mais específica a transcendente unidade de Deus; todas as coisas, independentemente de parecerem boas ou más, vinham de Suas mãos. Tudo procedia de Deus e tudo estava destinado a retornar a Ele.

Neste caso, o passado demonstra que nem sempre a preocupação se centraliza no demônio. Esta deveria ser a tônica da religião (ou das Religiões). Quando tudo procede de Deus não há lugar para o Mal.

2. DEFINIÇÕES E EXPLICAÇÕES
2.1. O que é possessão demoníaca?

Existe uma série de definições e explicações para o que é possessão demoníaca. Desde o conceito dos Evangelhos, elaboraram-se várias teologias que resumiram-se na chamada Demonologia. Para os cristãos ocidentais a possessão é sempre negativa, ou seja, atribuída a um mau espírito vindo da parte de Satan/Diabo/Lúcifer. Os pentecostais e neopentecostais têm sua própria cosmologia demoníaca de onde derivam os estados de possessão. Dentro dessas duas vertentes cristãs a cura evidencia-se pelo ato de “exorcismo”, comumente chamado de “expulsão”. Expulsar é ordenar em voz audível com bastante ênfase, em nome de Jesus, para que o demônio/espírito do mau, saia “de dentro” do indivíduo. Para isso, utilizam-se das fórmulas literais também presentes nos Evangelhos.

Como exemplo, pode-se citar um item do Manual da Igreja Universal do Reino de Deus: possessão “é a habitação de um ou mais demônios no corpo de uma pessoa, exercendo-lhe controle e influência, com prejuízo para as funções mentais e físicas. Nesse caso, os demônios agem no interior da pessoa, de dentro para fora”. Neuza Itioka, conhecida “batalhadora” espiritual, utiliza o conceito de possessão de acordo com a ciência, Antropologia e a Sociologia, e que deve ser entendida como “invasão de espíritos”, que podem ser “voluntárias ou involuntárias”, “induzidas ou espontâneas”, “violentas ou calmas’. Para ela, porém, a possessão não se limita a pessoas, mas também a matéria sem vida e à natureza em geral.

A necessidade de compreender melhor esse problema sociologicamente permite uma abordagem mais global da possessão ou endemoninhamento.

O que é endemoninhamento ou possessão?
Qual a sua origem?

Para algumas pessoas, pastores, teólogos e estudantes pareceriam óbvio. No entanto, é causa de grande sensacionalismo entre os cristãos em geral. Muitas vezes por desconhecimento do assunto ou por falsas e curiosas “revelações”.Existem divergências entre os teólogos quanto às definições ou origem, mas em geral, são semelhantes. Torna-se necessário resumir a idéia de alguns autores como tentativa de consenso mais amplo. Ainda do ponto de vista de Neuza Itioka, endemoninhamento é... é a invasão de um espírito com personalidade penetrando na vida de uma outra pessoa, tentando expressar-se ou manifestar-se, e muitas vezes controla-la, suprimindo a primeira.

Na opinião de Pe Gustavo Solimeo, o endemoninhamento/possessão consiste...em um domínio que o demônio exerce diretamente sobre o corpo e indiretamente sobre a alma de uma pessoa. Esta se converte em um instrumento cego, dócil, fatalmente obediente ao poder perverso e despótico do demônio.

Outros se exprimem em categorias de possessão diabólica:
Por possessão diabólica se entende a posse de uma pessoa humana por um espírito do mal de maneira tal que o espírito assume a personalidade do ser humano e controla todos os seus movimentos físicos, inclusive a fala.

Maior divergência existe quanto às origens da possessão. Como já foi citado anteriormente, a possessão por espíritos maus considerada negativa prevalece sobre a possessão positiva, sinal do divino. Os cristãos ocidentais em geral consideram a possessão negativa muito mais que a positiva. Crêem que a origem da possessão está nos demônios e espíritos maus vindo do inferno. Uma minoria acredita na possessão por entes queridos que morreram (Neuza Itioka).

Para verificar a origem da possessão é preciso considerar a crença nos demônios, suas formas de agir, modo, natureza, etc. “O vocábulo ‘demônio’, nesse caso, conforme sua origem (...) não se refere especificamente ao diabo, mas a criaturas sobrenaturais, espírito supra-humano e abaixo de deus (théos), compreendendo quer entidade malfazeja, como o diabo, quer benfazeja, como os anjos.”

2.2. Os demônios

Os demônios em suas diversas formas são considerados os responsáveis pela possessão. A fim de buscar um início comum, verifica-se que em todas as culturas existe um princípio comum. Fora do judaísmo e do cristianismo também existem fontes e referências para identificar o que são “demônios”.

O judaísmo incorporou diversas característica da região em que se desenvolveu (Mesopotâmia). Acredita-se que somente após a saída do Egito eles passaram a acreditar no demônio. “Mas o nome demónio não era por eles [judeus] atribuídos (como acontecia com os gregos) aos espíritos bons e maus, mas somente aos maus. E aos bons demônios deram o nome de Espírito de Deus, e acreditavam que aqueles cujos corpos entravam eram profetas. Em suma, todas a singularidades, quando boas, eram atribuídas ao Espírito de Deus, e as más a algum demónio, mas a um, um mau demónio, isto é, um diabo.

E portanto chamavam demoníacos, isto é, possuídos pelo diabo aqueles que denominamos loucos ou lunáticos, ou aqueles que tinham a doença de cair, ou que diziam qualquer coisa que eles, por não a compreenderem, consideravam absurda.” O termo “daimon” era empregado no gr. clássico, às vezes como um sinônimo de theos (deus). Entre os gregos, o demônio podia ser um “poder” ou até mesmo a psiquê. Para os estóicos a alma do morto pode se tornar um demônio (daí a crença da possessão pelos parentes mortos ter origem na mitologia). Para Heráclito, “o caráter é o espírito que habita em um homem, e não uma entidade separada.”

Na cultura brasileira, mais especificamente de origem africana, os demônios são representados pelo Exús, e demais orixás do Candomblé.

2.3. Etimologia.

Palavra de formação erudita, do gr. daímon, -onos, ‘divindade, gênio, espírito supra-humano, mas infradivino, depois, em linguagem eclesiástica, ‘espírito mau, gênio desfavorável’, representado no lat. daemon, onis, e a base grega –logía, ‘ tratado, ciência, discurso’. O ing. demonology e o fr. démonologie são do séc. XVI, o port. it. demonologia, esp. demonología aparecem no séc. XVIII-XIX.

Dentro da cultura mesopotâmica todos os demônios tinham nomes. O bruxo ou xamã deveria conhecer o nome do demônio. Somente assim poderia expulsá-lo. No 1º Testamento não existe ainda essa crença. “Nada de realmente certo se encontra sobre a origem dos demônios, nas páginas da Bíblia, ainda que muitos creiam que sejam os anjos caídos que seguiram a Satanás.”

Champlin continua dizendo:

Muitas coisas são indiscutíveis sobre esse assunto: a primeira, nem os hebreus e nem os cristãos criaram as elaboradas demonologias e angelologias que, finalmente, vieram a ser aceitas. Segunda, apesar das elaborações, exageros e elementos místicos que entraram no pensamento hebreu e cristão, no tocante aos demônios, essas noções são corretas quanto à temível realidade dos demônios e sua capacidade de influenciar e de apossar-se de pessoas.

Referindo-se a Tertuliano, Champlin considera ainda:

As próprias Escrituras nada nos informam acerca dos demônios, pelo menos em termos bem definidos; por isso mesmo, a sua identificação com os anjos caídos pode representar ou não a verdade. Se isso representa a verdade, mesmo assim, pode não representar a verdade inteira sobre a questão. Muitos casos de possessão demoníaca parecem demonstrar que alguns demônios, pelo menos, são de fato entidades que antes eram seres humanos comuns.

O positivista Aldous Huxley, criticando com dureza o processo inquisitivo de Loudun (França), discorreu sobre o demônio com importante papel a desempenhar no mundo religioso como personalidade ativa, não restando ao homem somente o recurso da oração.

Os demônios desempenharam até pouco tempo atrás um papel muito importante na religião cristã – e isso desde seus primórdios. Porque, como observou o Padre A Lefèvre, S. J., “o Diabo ocupa uma posição muito irrelevante no Velho Testamento; seu poder supremo ainda não se revelara. O Novo Testamento o mostra como o chefe das forças coligadas do mal”. Nas atuais traduções do pai-nosso, pedimos para sermos livres do mal. Mas será que o apo tou ponerou é neutro, em vez de masculino? Não está implícito na própria estrutura da oração que a palavra se refere a uma pessoa? “Não nos deixes cair em tentação, mas (pelo contrário) livrai-nos do Diabo, do Tentador.” O crescimento da ênfase nos demônios é muito grande. Há grupos que estabelecem relação de determinados demônios com certos problemas: demônio da bebida, do machismo, da pobreza, etc. Numa espécie de neo-maniqueísmo o mundo é dividido entre Deus e Satanás (e seus anjos maus), e quase todo conflito é visto em função dessa pretensa atuação demoníaca.

Para verificar a progressão do conceito dos demônios é preciso ver os dados bíblicos disponíveis, ou seja, o Primeiro e o Segundo Testamento.

3. 1º TESTAMENTO

Não se encontra possessão demoníaca no Primeiro Testamento, a não ser a possessão de Saul (1 Sm 16,14-23). Essa possível “possessão” vem de Deus, ou seja, de um espírito vindo diretamente de Javé. Um estudo mais detalhado indica que a demonologia judaica tem origens externas (outras religiões). Mesmo Davi é chamado de Satã (adversário), cf. 1 Sm 29,4. Conclui-se que originalmente Satanás é um ser humano. Em Jó, Satanás faz parte da corte celestial, chamado de filho de Deus (ben-elohim). Em Tobias 6,7 (livro considerado apócrifo ou deutero-canônico) há uma fórmula de exorcismo primitiva: oração e ritual (além de se queimar um fígado de peixe- para a cultura celta o salmão é um peixe sábio). Para as tribos de Javé, porém, não havia “necessidade de corporificar uma entidade maligna. Para eles, Jahveh, era um deus tribal e, como tal, superior aos deuses das tribos vizinhas, que se colocavam, assim, como seus adversários e como expressões naturais da maldade, tornando supérfluas qualquer encarnação suplementar do Mal. Mas é óbvio que a crença deveria crescer e solidificar-se, tal como atesta Weise.

Mais tarde a concepção de Israel a respeito de Deus modifica-se já sob vários aspectos: ao lado de Iahweh, ou em seu lugar, aparece o mensageiro de Deus, para comunicar a vontade divina aos homens (Ex 3). A partir dos dois últimos séculos antes de Cristo, Deus é representado como o absolutamente transcendente, inatingível. O grande vazio entre ele e os homens é ocupado, então, cada vez mais, de acordo com as concepções religiosas de Israel, por seres intermediários, aos anjos. São estes seres que agora estabelecem o contato entre Deus e o homem. Esta evolução é importante também no que respeita ao aparecimento da idéia de um poder mau personificado. O ponto de partida desta idéia é o problema relativo à origem da culpa, das doenças, da morte e, por fim, também do mal. A resposta mais antiga a esta questão é a narrativa do pecado original (Gn 3): o mal não vem de Deus, mas é causado pela vontade do homem. Aqui ainda não se fala do diabo, mas somente da serpente que seduz o homem, enquanto símbolo de um poder astuto e misterioso, porém inteiramente submetido a Deus. É da época igualmente antiga que provém a frase: “Iahweh instigou Davi” a fazer o recenseamento do povo, recenseamento que, em verdade, não agradou a Deus (2Sm 24). Mais ou menos 600 anos depois, a mesma cena é expressa nesses termos: “E Satanás instigou a Davi (1Cr 21; cerca de 300 a.C.). O que aconteceu nesse intervalo de tempo? Já não se suportava a idéia de que Deus tentasse o homem e, sob influência do meio ambiente em que vivia Israel, adotaram-se então certa concepções a respeito de seres sobrenaturais que, embora submetidos a Deus, eram adversários do homem. Por isto, já por volta de 400 a.C., afirma-se no livro de Jó que Satanás acusa os homens perante o tribunal de Deus, como um dos “filhos de Deus” e membros da corte divina. Em alguns círculos de Israel desenvolveu-se paralelamente uma autêntica demonologia na qual Satanás, de membro que era da corte celeste, foi progressivamente se transformando em um ser dependente, desligado de Deus, tendo sua morada no inferno [mundo subterrâneo] e uma corte de espíritos malignos.

A Bíblia, procura desvincular Deus da origem do Mal, da origem do Diabo, a fim de isentá-lo e, num curto espaço de tempo, personificou outro ser, independente e antagônico. Esse ser era responsável pelo mal que escolhera para si mesmo e para o mundo. Em futuro distante lutaria pela posse de todos os seres. O Diabo se fez a si mesmo.

4. 2º TESTAMENTO

“Jesus é o personagem da Antigüidade do qual o maior números de exorcismos é narrado.” Na Palestina do tempo de Jesus, as pessoas que praticavam o exorcismo, ou a expulsão de demônios, estavam exercendo uma profissão reconhecida e de reputação. Eram magos ou xãmas.

O discurso de Jesus faz do poder do exorcismo um motivo teológico de certa importância. As desordens que se manifestam nos endemoninhados são conseqüências do reino do pecado no homem; os poderes do mal se apoderam da sua liberdade de tal maneira que o homem se tornou vítima indefesa, até no santuário íntimo de sua pessoa.

Seguindo a mesma linha de raciocínio anterior, “... o nome demónio não era por eles [judeus] atribuídos (como acontecia com os gregos) aos espíritos bons e maus, mas somente aos maus. E aos bons demônios deram o nome de Espírito de Deus, e acreditavam que aqueles cujos corpos entravam eram profetas. Em suma, todas as singularidades, quando boas, eram atribuídas ao Espírito de Deus, e as más a algum demónio, mas a um, um mau demónio, isto é, um diabo. E, portanto chamavam demoníacos, isto é, possuídos pelo diabo aqueles que denominamos loucos ou lunáticos, ou aqueles que tinham a doença de cair, ou que diziam qualquer coisa que eles, por não a compreenderem, consideravam absurda.”

Dentro, portanto da cultura semítica, mesopotâmica ou judaica, a presença do Mal eqüivalia à criação de seres responsáveis por ele. Não difere em muito das demais culturas consideradas primitivas das demais sociedades humanas. Sempre há um princípio do Bem e um princípio do Mal, qualquer que seja o nome que lhe for dado. No Brasil, por exemplo, não é diferente. O exemplo da cultura indígena também se pode verificar na cultura de origem africana os mesmo princípios.

Outro aspecto a ser explorado era a forma como a Tradição patrística compreendia os demônios e a possessão. Dentro da patrística é possível perceber, como era esperado, o papel negativo, destrutivo, dos demônios. A crença ainda incipiente, herdada do 2º Testamento, contribui em progresso crescente com relação à demonologia. Mas ainda é possível perceber a presença do elemento mítico. Agostinho foi o que melhor expressou teologicamente, ou formulou uma demonologia com cores e matizes, ainda que medievais.

5. OS PAIS DA IGREJA

Dizem que Santo Agostinho ficava irritado com os demônios. Ele cria que aS bruxas eram fruto do relacionamentos de um demônio com uma mulher. Os demônios juntavam sêmen de homens e injetavam nas mulheres, já que eles não têm como produzi-los. Daí nasciam bruxas. Sua obra Cidade de Deus resumiria sua crença de um mundo bom e um mundo mal. Esses demônios eram chamados de íncubos, e conhecidos também por silvanos e faunos. Íncubos eram demônios que possuíam mulheres. São Clemente acreditava que os demônios, por não terem órgãos, possuíam os humanos a fim de utilizá-los. E todos eram unânimes em concordar que o demônio, em qualquer caso ou situação, não deveria ser levado em conta. Deveria até ser desacreditado. Havia desentendimento e contra senso.

Ele cita o pensamento pagão prevalecente na sua época: “Os deuses ocupam as regiões mais elevadas, os homens as mais baixas, os demônios a região intermediária... Eles têm a imortalidade do corpo, mas as paixões da mente em comum com os homens”. No livro VIII de A Cidade de Deus (iniciado em 413), Agostinho assimila essa antiga tradição, substitui os deuses por Deus, e converte os demônios em diabos – afirmando que eles são, sem exceção, malignos. (...) Ele os chama de “animais aéreos”...

6. CARACTERÍSTICAS DA POSSESSÃO DEMONÍACA

As perguntas: como distinguir a possessão genuína da fraude? ou como saber se realmente é possessão? São relevantes. Existem muitas formas, sintomas e sinais para saber “diagnosticar” esse estado. Estão, de modo geral, de acordo com a Igreja, de acordo com a tradição, de acordo com os teólogos, desde as mais “óbvias” até as mais curiosas e ridículas.

Os testes mais simples é a evidência de falar em uma língua diferente, mas esse teste pressupõe também uma possessão cristã, visto que como sinal de Pentecostes o povo fala em outras línguas. Em acréscimo a esse sinal estão a força física descomunal, a levitação e a clarividência.

6.1. Formas de possessão

Na época da Inquisição, quando o mundo era povoado por demônios, o interesse e a curiosidade pelo assunto beiravam à loucura e à ingenuidade, ao mesmo tempo. À loucura porque satisfazia os desejos secretos dos inquisidores, segundo alguns críticos.

A curiosidade da época descia a detalhes para responder: Como entra um espírito mau no homem? De várias maneiras, explicava-se: com a comida que a pessoa ingere; ou passando por um lugar onde existe determinado espírito; ou com um rito para se obter um espírito; ou por espírito ter se sentido ofendido etc. Sabia-se que eles eram mais ativos à noite. Para alcançar a posse de uma pessoa, o Demônio se instala nas mais variadas formas, suscetíveis de permitirem o ingresso no corpo da vítima. Assim, sabe-se, através de confirmações feitas por Diabos em pessoa, durante exorcismos, que eles penetram através da boca, do ânus, dos órgãos sexuais, e de outras vias não esclarecidas. Afinal, os demônios não eram obrigados a revelar todos os seus segredos.

Nesse ponto é necessário um esclarecimento. Na antropologia judaica é o corpo que possibilita a atuação dos maus espíritos no mundo. Sem corpo, eles não conseguem atuar. O mesmo vale para locais geográficos. Exemplos dessa visão podem ser encontrados na Bíblia, no livro de Daniel e nos livros considerados apócrifos (ou deutero-canônicos).

6.2. Sintomas

Quais são os sintomas de uma possessão demoníaca? Para Edir Macedo é “tudo aquilo que foge ao normal, sem que tenha uma causa plausível.” Podemos resumir em:
a. Doenças e enfermidades físicas
b. Doenças mentais
c. Constantes dores de cabeça ou dores localizadas em outras partes do corpo, não diagnosticadas pela Medicina
d. Insônia
e. Medos e fobias
f. Desejos de suicídios
g. Vícios
h. Nervosismo
i. Depressão
j. Visões de vultos e audições inexplicáveis

Champlin elabora outra lista semelhante, ao que ele chama de sinais de possessão.

a) Fenômenos psíquicos
b) Enfermidades em geral
c) Personalidade múltipla
d) Crenças errôneas (heresias)
e) Agitação interior (falta de paz)
f) Falta de controle sobre os vícios
g) Perversões sexuais
h) Malignidade de toda sorte (violência)
i) Atitudes e Atos anti-sociais
j) Ódio
k) Espíritos que atacam e se retiram (tática de guerrilha)
l) Espíritos malignos difíceis
m) Variedade de espíritos possuidores
n) Comportamento ameaçador
o) Limites impostos aos espíritos
p) Contorções faciais típicas
q) Vozes (interiores)
r) Melancolia

6.3. As manifestações do endemoninhamento violento

(1) Mudança da personalidade, afetando a inteligência

(2) Mudança física, afetando a voz, etc

(3) Mudança mental (conhecimentos ocultos)

(4) Mudança espiritual (contra Deus)

“Aliando-se aos doutores da Igreja, os médicos medievais acrescentaram outras dezessete evidências, das quais citaremos apenas algumas mais pitorescas que denunciam um universo preso a uma obsessão demoníaca”:

- quando a doença fosse tal que os médicos não conseguissem descobri-la nem conhece-la;

- quando, sob a ação de todos os tratamentos possíveis, em vez de se apaziguar, a doença se agravasse;

- quando o mal se revestisse, logo de início, de grandes sintomas e dores, ao contrário das doenças comuns que aumentam pouco a pouco;

- quando a pessoa soltasse suspiros tristes e lamentosos sem nenhuma causa legítima;

- quando perdesse o apetite e vomitasse a carne ingerida;

- quando se tornasse impotente ao mister de Vênus (relações sexuais);

- quando se mostrasse perturbado, assustado, ou fosse tocado de alguma mudança notável, ao penetrar no recinto onde se encontrasse a pessoa suspeita de lhe haver feito mal;

- finalmente, quando, no intuito de sanar o mal, o padre houvesse aplicado unções sagradas nos olhos, nos ouvidos, na testa e em outras partes do corpo, e essas partes viessem a eliminar suor ou apresentassem alguma outra modificações.

6.4. Causas

As causas do endemoninhamento dentro do levantamento histórico efetuado também contemplam a opinião de diversos autores, alguns já citados. A grande maioria está relacionada à ausência da proteção divina derivada da prática constante de algum pecado (segundo a crença evangélica). Além disso, existem outras práticas (ou predisposições que facilitam a entrada de um demônio em uma pessoa). Segundo Neuza Itioka e R. Champlin, as causas da possessão podem ser, respectivamente:

(1) Quando as leis de Deus são quebradas

(2) Reações a desastres e calamidades

(3) Músicas com determinados ritmos

(4) As drogas

(5) A embriaguês através de bebidas fortes

(6) A manipulação dos poderes assim chamados parapsicológicos

(7) O exercício da passividade

(8) Culto aos ancestrais

(9) Pecados de imoralidade


6.4.1. Predisposições que encorajam a possessão demoníaca

a) Uma vida de dissipações

b) Freqüentar lugares de má fama

c) Participação em ritos onde baixam “espíritos’

d) Vida vazia

(e) Música sensual

f) Vícios

g) Pactos

h) Misticismo

i) Ocultismo

j) Crianças suscetíveis aos espíritos dos mortos


No Tratado Sacerdotal Sammarinus, documento antigo, existe dezessete formas de um sacerdote reconhecer a possessão demoníaca.

COMO RECONHECER A POSSESSÃO (segundo o Tratado Sacerdotal Sammarinus)

1 – Quando o suspeito não consegue comer carne de cabra no espaço de trinta dias. Entretanto, esse sinal se refere mais provavelmente aos epiléticos;

2 – Quando o indivíduo apresenta fisionomia assustada, olhar espantado e aspecto hediondo;

3 – Quando simula estar louco, crescendo continuamente o volume do seu corpo e sua força;

4 – Quando não consegue pronunciar o Santo Nome de Jesus ou de qualquer outro santo, nem cantar os Salmos “Miserere meu Deus”, ou “Qui habitat”, o Evangelho de São João, que começa com “no princípio era o Verbo”, e outras coisas do gênero;

5 – Quando se exprime em grego, latim ou outro idioma que jamais haja aprendido, ou lê, escreve, canta musicalmente e realiza outras coisas que não lhe foram ensinadas;

6 – Quando se torna mudo, surdo, lunático, cego, que são sinais assinalados pela Sagrada Escritura;

7 – Quando, ao ser exorcizado, sente descabidamente um vento frio ou quente na cabeça, nos ombros e nos rins, e se transforma, se aflige a blasfema;

8 – Quando experimenta dores e sintomas extraordinários, como violentas cólicas nas entranhas e partes internas, sensações como vermes, formigas, rãs, a correrem desde a cabeça até o resto do corpo, até os artelhos, quando o ventre se dilata, ou o pescoço, ou a língua, ou quando se reconhece exaltado no seu estado de ânimo;

9 – Quando, por alguma razão secreta, deixa de assisti ao Serviço Divino, de fazer orações de acordo com o seu hábito, de tomar água benta, de ouvir a palavra de Deus;

10 – Quando se mostra vexado ou encolerizado ao aplicar-lhe o padre as relíquias dos Santos, os Agnus Dei, ou quando, nas preces, o sacerdote recorre ao Sinal-da-Cruz, às coisas bentas e, principalmente, ao Santo Sacramento do Altar;

11 – Quando se eleva e logo desaparece uma bolha na sua língua. Quando se elevam diversas bolhas, semelhantes a pequenos grãos, trata-se de sinal mais digno de nota, concluindo-se, à vista das bolhas, qual o número de Demônios alojados no corpo do indivíduo;

12 – Quando o indivíduo se revela presa de constante inquietação, andando para cá e para lá, principalmente em busca de lugares solitários e desertos;

13 – Quando está tolhido em todos os seus membros, mantendo-se sempre adormecido como morto;

14 – Quando não consegue suportar o aroma das rosas ou outros determinados perfumes;

15 – Quando revela fatos absolutamente secretos e os denuncia manifestando desprezo por Deus e dirigindo injúrias aos vizinhos;

16 – Quando se torce ao ser exorcizado, faz meneios, se curva e contorce o corpo e os membros de maneira imprevista e inadmissível numa criatura;

17 – Finalmente, quando o Demônio, seja de que forma for, lhe apareceu antes que tivesse noção de estar possesso.


Para Macedo a manifestação da possessão demoníaca é bem simples. Basta o indivíduo ouvir a pregação do Evangelho.


6.5. Tipos de possessão/endemoninhamento

A terminologia demoníaca, ou seja, a terminologia dos tipos de possessão não é uniforme. Alguns falam de possessão propriamente dita, endemoninhamento, invasão, obsessão, tormento por espectros e até circumissessão. A presença do demônio da vítima se dá por período de crise ou permanentemente. No caso do endemonhiado gadareno, ele estava atormentado por vários demônios ao mesmo tempo. “No Malleus maleficarum [manual do inquisidores], com base na melhor autoridade possível, declara-se que os demônios não possuem vontade e compreensão, mas somente o corpo e as faculdades mentais mais estreitamente ligadas a este. Em muitos casos, os demônios nem possuem o corpo inteiro do endemoninhado, mas uma pequena parte dele – um único órgão, alguns músculos ou ossos.” Da mesma forma que os demônios eram considerados (referentes à sua natureza) ígneos, aéreos, terrestres, aquáticos, subterrâneos e lucífugos , também as formas e os tipo variavam. Alguns chegavam a se disfarçar de alimento para entrar na vítima.

Quando deseja penetrar, de qualquer forma, disfarça-se até de pedra, pássaros, insetos em geral (nunca se sabe quando o mosquito que zumbe à noite é um demônio... cuidado, portanto, ó mortais), animais domésticos, etc.

Portanto, o coração humano não está livre das possessões, na opinião do crítico de Loudun (Aldous Huxley), mesmo o “coração permanentemente vigiado e controlado torna-se receptivo a todas as graças, e finalmente é ‘possuído e governado pelo Espírito Santo’. .. Mas, durante o percurso para esse fim desejado, pode haver possessões de espécies muito diferentes. Pois de forma alguma todas as inspirações são divinas, ou mesmo edificantes ou convenientes. Como poderemos distinguir entre as orientações do não-Eu que é o Espírito Santo, e daquele outro não-Eu que é algumas vezes um tolo, ou um louco, ou mesmo um criminoso malévolo?”

No início dos tempos moderno, apesar de um reavivamento do “sagrado selvagem”, ainda não se pode ver nenhum esclarecimento do aspecto social da possessão. Como foi visto acima, na Idade Média, o Escolasticismo, cria-se em um mundo de três andares: inferno abaixo, terra no meio e céu acima. Com o Iluminismo e a progressão científica muitas situações que poderiam ser creditas ao diabo, agora têm explicações racionais e razoáveis, principalmente no que se refere às doenças.

7. DOENÇAS
7.1. A doença e a possessão

Tem sido cada vez mais apregoado pelos meios de comunicação, rádio e tv, por igrejas neopentecostais, que todo o mal, incluindo a doença, vem do diabo. Revive-se, assim, a crença primitiva de que aquilo que não é bom para o corpo vem do mal. Na Mesopotâmia existiam demônios para cada doença e para órgão do corpo (todos esses demônios tinham nome). Para a febre existia, por exemplo, um demônio específico.

As causas que associavam doenças a demônios vinham de longe, com raízes na Babilônia e no Egito. De fato, na Mesopotâmia as doenças foram atribuídas aos demônios, aos monstros e outros seres maus. A cura era baseada por meio de orações e textos de encantamento. Portanto medicina estava entrelaçada com religião e magia, fé e crença em forças ocultas.

Em geral, a religião não permitia desde essa época que o fiel consultasse qualquer tipo de médico. No 1º Testamento, a figura do sacerdote reunia as qualidades de curandeiro e o homem de ligação com Javé. Procurar um médico e não utilizar o recurso da oração consistia em falha grave. Comparavam-se os médicos aos embalsamadores egípcios. Por volta do século II já se admitia a consulta a um médico (p. ex. Lucas), mas somente depois de se ter ido ao Templo.

Para doenças vistas como conseqüência do pecado deveria haver um remédio religioso, uma mágica, um ritual. O medico se utilizava, então, do método do exorcismo como forma de cura. A doença também era considera impureza, o que impedia o acesso do doente ao Templo, tendo que adquirir alguns passaportes para esse fim (comprar animais para o sacrifício).

No manual de doutrinas da IURD, Macedo diz que todas as enfermidades têm uma origem em comum, i.e., que são causadas por um espírito de enfermidade ou uma bactéria demoníaca. Por isso, em muitos casos, dar-se ordem aos loucos e lunáticos para que todo mal saía do corpo do homem “possuído”.

Retornando à interpretação do mundo grego, a doença era sinal de possessão.

Outras interpretações é a de que a doença era um sinal de que o demônio tomou posse da pessoa. Muitos povos primitivos, particularmente os gregos, responsabilizavam os deuses pelas doenças; assim, por exemplo, a palavra “influenza”, que significa gripe, originalmente significava que alguém está sob a influência maligna dos astros – os deuses podiam curar desde que lhes fossem oferecidos um sacrifício apropriado.

Da mesma forma que na Mesopotâmia as doenças eram e atribuídas aos demônios e, no judaísmo as doenças psíquicas eram consideradas como diabólica, no Brasil, semelhantemente os Exús e outros deuses de origem africana, são responsáveis pelas doenças: credita-se a Exú as doenças das vias bucais. Há referências aos demônios das dores de cabeça nas tabuinhas cuneiformes da Babilônia. O processo de cura para as “doenças de possessão’ se daria através do ritual de “exorcismo”. O exorcismo é a prática mais comum para qualquer caso de possessão.

7.2. Exorcismo e cura

Dentro do processo de formação da crença em espíritos possuidores, da explicação sobrenatural daquilo que não se compreende ou não se aceita, foi necessário descobrir como curar ou “extrair” o espírito de dentro da pessoa. De forma primitiva, dentro da crença das várias épocas, destacam-se alguns métodos: processos eméticos, processos purgantes, processos de sangria e processos a quente (nos primeiros casos fazia-se o possesso vomitar até perder a alma). Utilizava-se também do calor , colocando-se a cabeça do possesso dentro de um forno, como forma de expelir o demônio.

Esperava-se que o demônio saísse desta forma. Se não saía pela “porta da frente”, tentava-se fazê-lo sair pela retaguarda, empregando purgantes com vontade. Persistindo a ação demoníaca, os “médicos” aplicavam sangria, na vã tentativa de expulsar o Diabo de dentro do corpo da vítima.

A possessão e exorcismo poderiam, talvez, ser considerado fenômenos culturais por serem encontrados em quase todas as culturas. Sempre existe alguma forma de possessão e alguma forma de exorcismo. Analisando a cultura geral de povo pode-se perceber qual o seu grau de compreensão e interação com essa questão. A cultura indígena brasileira e a cultura africana permitem, com certa liberdade, uma reflexão mais correta.

Para os cristãos a cura está em Jesus Cristo, Deus.

8. CULTURA
8.1. Indígena brasileira

Outras culturas têm explicações diferentes para a presença do Bem e do Mal no seus meio, diferentes do dualismo ocidental. Dentro da cultura latina, os colonizadores “demonizaram” as crenças das terras conquistadas. Aquilo que acreditavam ser diferente era anticristão. Ao realizarem a primeira missa na Terra de Santa Cruz, crucificaram os índios como hereges. Esse primeiro ritual cristão de posse desfigurou o verdadeiro sentido da cruz. Mas também os mataram, que mesmo depois de mil anos não ressuscitarão. Contarão em suas lendas como foram possuídos pelo homem branco sem cura ou exorcismo.

Entre os índios o exorcismo era conhecido.

Entre os índios do Brasil a possessão pelos espíritos é um fenômeno mais do que conhecido. O ciclo de lendas do Jurupari, relacionado com herói civilizador que trouxe a organização patriarcal, inclui o fenômeno de possessão como algo bastante comum. O espírito do herói pode ser incorporado mediante técnicas especiais, em cerimônias secretas, a que só podem comparecer os homens. Por vezes, espíritos contrários tomam conta de alguns membros da tribu e são esconjurados, por meio de invocações e furmigações. Para os índios avás-canoeiros, de Goiás, não existe o mal como força eterna e absoluta. A força cósmica é sempre boa, positiva. Por isso eles riem dos brancos que vivem num dilema constante entre um deus bom e um deus agressivo. Esses povos admitem o mal na terra, por exemplo, na cobra, mas este depende totalmente da experiência humana. A cobra só faz mal se alguém mexer com ela. A culpa não será da cobra, mas sim de quem vai provocá-la.

A teologia indígena, portanto, já elaborava de forma bem avançada a reflexão sobre o bem e o mal, não necessitando de teólogos oficiais e demonstrando sabedoria.

8.2. Africanos

Os africanos também foram demonizados em seus costumes, cultura e religião. Assim, obrigatoriamente foram aceitando certa superioridade da cultura do exílio, relacionando–a a um fator sócio-econômico. Verifica-se o preconceito religioso.

O próprio negro brasileiro, ao estudar a religiões africanas de seu país, aceita o ponto de vista do branco, o da superioridade da civilização ocidental. Tende-se inconscientemente a admitir que o candomblé não pode fundamentar ou postular uma filosofia do universo e uma concepção do homem, diferentes sem dúvida das nossas, mas tão ricas e complexas quanto estas, a pretexto de que o fiéis dessas religiões pertencem em geral às camadas mais baixas da população – empregadas, lavadeiras, proletários.

Na opinião de Neusa Itioka, “os negros teriam todas as razões para confundir os santos católicos com os orixás do seu animismo ou fetichismo.” [Itálicos deste autor]. Essa afirmação demonstra como ao demais estudiosos evangélicos, o preconceito sobre aquilo que desconhecem, além de tratar-se de uma afirmação racista ao creditar ao negro a impossibilidade de reflexão, o que poderia ser sintetizado nas palavras do sociólogo Roger Bastide. Ele considera que “... é preciso demonstrar que esses cultos não são um tecido de superstições, que, pelo contrário, subtendem uma cosmologia, uma psicologia e uma teodicéia; enfim, que o pensamento africano é um pensamento culto.”

Além disso, torna-se necessário reagir imediatamente contra um preconceito pejorativo que ameaça desnaturar a descrição dos fatos etnográficos; que impedia, na realidade, a compreensão do verdadeiro significado das cerimônias e dos gestos, apresentando-os antes como uma espécie da caricatura ou de degradação.

Ainda, na opinião de Bastide, o candomblé é uma imagem de sociedade divina. Portanto, ao citar a possessão (ou êxtase – como chama Bastide) é falar de uma possessão divina, dentro da concepção africana. Os evangelicais ocidentais vão “discernir” que o que os possui nos seus domínios (nos seus terreiros) são demônios. É a demonização em curso histórico.

(Haveria ainda espaço para falar de outras religiões, por exemplo, o Hinduísmo, onde Brahma é neutro. Nele não há maldade nem bondade).

Caminhando ao lado do preconceito cultural (demonização da cultura), ainda existe o preconceito de gênero (demonização da mulher), “como parte mais fraca”.

8.3. Preconceito de gênero: a mulher

Dentro da maioria das religiões a mulher ainda é a maioria, porém a mais discriminada. Torna-se a “mais possuída” em todos os sentidos. Ainda que seja por mais vezes objeto do divino, também foi por muitas vezes instrumento do Mal. À mulher coube a culpa histórica de introduzir no mundo o pecado.

Crossan, citando Ioan Lewis, comparou opressão com possessão:
Ioan Lewis chamou atenção para a conexão existente entre possessão e a opressão, quer esta tome a forma de sujeição sexual e familial das mulheres aos homens, ou da racial e imperial de um povo a outro. No primeiro caso “os cultos de possessão feminina são (...) movimentos de protesto quase explícitos contra o sexo dominante (...) Dentro da sua função social a possessão por espíritos estrangeiros surge como uma estratégia agressiva oblíqua” (31,32). No segundo caso, as sociedades em que persistem cultos de possessão centrais geralmente são compostas por pequenas unidades sociais fluidas, expostas a condições ambientais particularmente rigorosas, ou comunidades conquistadas que vivem sob o domínio da opressão estrangeira” (35).

Dentro desse aspecto social, a mais penalizada será a mulher, uma vítima por excelência.

Incorporando, pois, todas as crenças da Antiguidade, amplificado pelo discurso da Igreja, o Diabo preside a vida comunitária cristã. Em toda parte se vê o diabólico, o mundo inteiro é por ele invadido. E sua vítima é, por excelência a mulher. Porque a mulher está mais predestinada ao Mal que o homem, segundo os textos bíblicos – “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher; que a sorte dos pecadores caia sobre essa!” (Eclesiástico 25:26) – e os primeiros teólogos cristãos.

“Desde o princípio, foi a mulher que Deus nomeou como antagonista do espírito do mal (Gn 3,15).” Essa interpretação ainda está vigente no meio evangelical. Mas essa nomeação não a exclui de ser portadora do mesmo mal que antagoniza e às vezes personifica.

Também não havia clemência na opinião dos padres da igreja sobre as mulheres e o diabo.

Mas, de acordo com os textos dos Padres da Igreja, nos primeiros séculos, havia ao mesmo tempo uma visão teológica contrária em relação ao papel das mulheres. Elas é que eram consideradas as tentações dos homens, que procuravam levar o homem à queda. Em alguns desses textos, parecia que as mulheres não tinham papel algum a desempenhar na criação, exceto como instrumentos do Diabo e como tentações a serem vencidas. Em muitos casos os textos bíblicos, com suas formulações, serviram como fonte de opressão, sobretudo das mulheres. Em outros casos, eles trazem a luta de muitas mulheres que não se conformaram com a triste realidade à qual eram submetidas. O texto bíblico também é produto de uma determinada cultura histórica, muitas vezes androcêntrica e patriarcal. Resgatar isso nos possibilita uma leitura libertadora, não só em relação à mulher, como também ao homem. Também nos oferece pistas de como velhos paradigmas, que só serviam para legitimar o poder de uns em cima de outros, podem ser superados, em favor da busca e da construção de novas relações de gênero entre mulher e homem.

A dominação da mulher por círculos de poder poderia ser chamada de possessão. Os círculos de poder (pode-se chamar de demônios) podem ser a igreja, os homens, os códigos culturais, etc. Por mais incrível que pareça, a sexualidade é o maior campo de possessão, tanto feminina como masculina. “É a descoberta da sexualidade como reciprocidade, mas também como fator de dominação. A serpente é um símbolo de dominação: seu culto era bastante difuso no norte do Estado de Israel. (...) Cobrir as genitálias, as dores de parto, o desejo que leva à dominação, a hostilidade da mulher com a serpente (Gn 3,15-16): tudo isso é confirmação do projeto de dominação que a serpente representa. Ela é astuta (é símbolo também de sabedoria), e pode enganar. Pela sexualidade pode-se enganar, também! E a mulher, não por ser mais fraca, mas por estar mais ligada à geração da vida, é mais exposta que o homem a este engano. (...) devemos pensar no sistema de dominação patriarcal, cujo símbolo é a serpente, reafirmado e reforçado pelo cristianismo posterior.” O papa Gregório Magno, em seus Diálogos, conta que uma pobre freira, tendo entrado na horta do convento para colher alfaces e comido, sem a oração devida, um pé de alface no qual um diabo se escondia, ficou por isso endemoniada.

Curiosamente, tanto havia demônios-machos (súcubos) como demônio fêmea (íncubus). De duas formas a mulher era possuída. Deitam-se com as mulheres ou as corrompem, pois são fracas e culpadas.

Os súcubos (“os que deitam por baixo”) eram demônios fêmeos que assaltavam os homens adormecidos, sob o aspecto de mulheres formosas, às vezes virgens, impelindo-os a quebrarem os votos de castidade ou, no caso de homens casados, a cometerem adultério. (...) Os íncubos (“os que se deitam por cima”) representavam a contrapartida masculina, buscando corromper a mulher, deflorando-a, se fosse virgem, ou arrastando as esposas ao adultério.

Para a mulher não havia fuga possível. Ou era possuída pelo mal ou era geradora dele. A sexualidade é uma das maiores formas de possessão de gênero.

III. PARTE
1. Em nossos dias...

Dizem que o “Deus e o Diabo dos brancos chegaram ao nordeste [do Brasil] nas caravelas de Pedro Alvares Cabral”. Provérbios e contradições à parte, toda conquista diviniza ou demoniza, a exemplo dos conflitos que envolvem árabes e norte-americanos neste tempo (século XXI). Não poderia deixar de ser diferente no tempo de Jesus, com a conquista romana, onde a população sofria forte pressão de ambos os lados. Nesse contexto a explicação da possessão como fator social fica ainda mais evidente. Seria uma espécie de protesto.

Na antropologia e nas demais ciências sociais “pode-se observar um interesse pelo ambiente social em que o indivíduo está inserido; o problema é visto já dentro do campo de interação entre o indivíduo e o grupo social”. Deve-se, portanto analisar que relação existe entre grupo social e possessão demoníaca. Dessa interação derivam os “demônios” que o invadem sem permissão. Entre tornar-se possesso e ser possesso existe uma grande diferença, pois tornar-se implica no resultado de um processo externo e ser implica em um processo interno. Tanto o oprimido como o opressor podem tornar-se ou ser.

O historiador Joseph Campbell exemplifica melhor essa tese:
“Um professor”,escreveu Leo Froebius em um famoso ensaio sobre a força do mundo demoníaco (daimoniacós) na infância, “está escrevendo em sua mesa de trabalho e sua filha de quatro anos está correndo pela sala. Ela não tem nada para fazer e o está perturbando. Então, ele dá a ela três palitos de fósforos queimados, dizendo: ‘Olhe, brinque com isto’, e ela senta-se no tapete e começa a representar com os fósforos, Joãozinho, Mariazinha e a bruxa. Assim passa um bocado de tempo, durante o qual o professor se concentra em seu trabalho sem ser interrompido. Até que, de repente, a menina grita aterrorizada. O pai corre, perguntando: ‘O que é? O que aconteceu?’ A menina corre para ele, mostrando todos os sinais de pânico. ‘Papai, papai’, ela grita, ‘tire a bruxa daqui! Não suporto mais a bruxa!” “Uma explosão emocional”, observa Froebius, é uma característica de uma mudança espontânea de idéia, do nível dos sentimentos (Gemut) para o da consciência sensorial (sinnliches Bewusstsein). Além do mais, o surgimento de tal explosão obviamente significa que determinado processo espiritual se completou. O palito de fósforo não é uma bruxa; tampouco o era para a menina no início da brincadeira. O processo, portanto, está no fato de o fósforo ter-se transformado numa bruxa no nível dos sentimentos e conclusão do processo coincide com a transferência dessa idéia para o plano da consciência. A observação do processo escapa à avaliação do pensamento consciente, pois ela entra na consciência apenas após ou no momento da conclusão. Entretanto, desde que a idéia é, ela deve ter-se tornado. O processo é criativo, no melhor sentido da palavra; pois, como vimos, para uma criança um palito de fósforo pode tornar-se uma bruxa. Concluindo: a fase do tornar-se ocorre no nível dos sentimentos, enquanto a do ser está no plano consciente.

O escritor russo Dostoievski, na sua obra Os Demônios, onde nenhum personagem é um espírito mal – todos são humanos, transmite a mensagem de que o mal “tem realidade na medida em que o demônio faz de uma criatura um possesso”. Está implícito o processo de tornar-se.

Seria incorreto, então, concluir que no “seio da própria igreja há uma atividade demoníaca” , na medida em que os demônios são invocados para depois serem rechaçados sob o poder de Deus? Filosoficamente o ser torna-se não-ser para depois de “liberto” retornar a ser o que era antes. É um paradoxo de transformação invocar – fazer se manifestar - para depois expulsar. Quais serão as alterações físicas e emocionais por quais passará o indivíduo nesse processo de “possível” cura (exorcismo)?

Na verdade, dentro de um ambiente social de opressão política, religiosa e econômica o indivíduo passa por um processo religioso de cura/exorcismo, quando essa pretensa cura é apenas um paliativo para a doença que reside em outro lugar. A tentativa de esclarecer o verdadeiro lugar da doença continua.

2. O AMBIENTE SOCIAL

O mundo ainda vive o conflito dualista entre o bem e o mal.

As forças destruidoras da vida ainda estão entre nós: doença, alienação, pobreza, miséria, exclusão, preconceito, desemprego, violências, poluição, destruição do meio ambiente, corrupção, drogas, vícios etc. São os demônios e os espíritos maus de hoje.

A sociedade é culpada por causar distúrbios nos indivíduos. Os comportamentos estranhos são uma forma de protesto, de reação, p. ex., a possessão. Ou seja, procurar a causa apenas no indivíduo não é o melhor caminho a percorrer, embora o individualismo concorra com um mal solitário deste século. O evangelicalismos e o fundamentalismo focalizam o problema apenas no indivíduo que não se integra, responsabilizando-o inteiramente pelo mal que o possui. Daí resultam os adjetivos de que é cunhado: pobre e maldito, impossibilitado de se comunicar com Deus.

O possesso geraseno representa ...a exclusão social com todas as suas conseqüências: “desajustamento social”, enfermidades psíquicas, redução da pessoa ao nível vegetativo, sem capacidade de comunicação.

No ambiente social onde estes fenômenos ocorrem, atualmente, não foi possível perceber ainda uma prática inclusiva, a prática de Jesus, que interferisse no processo de exorcismo sem deslocar o foco da questão. Segundo Émile Durkheim, sociólogo, deve-se afastar “sistematicamente todas as prenoções”, pois é a base de um método confiável de investigação e estudo. As prenoções são como dogmas milenares do cristianismo e da cultura.

3. SOCIEDADE E EXORCISMO SOCIAL

A sociedade atual precisa de exorcismo, mas a religiosidade cristã por vezes atrapalha, como bem expressa Bráulia Ribeiro, missionária da Jocum na Região Norte do Brasil. Perdeu-se o foco da libertação.

A nossa religiosidade rasa às vezes nos leva a exorcizar pessoas, e não demônios. Um verdadeiro ato de amor a Deus e aos pobres exorciza os demônios que habitam nossa consciência social e atrai aqueles a quem Deus ama para libertá-los.

O teólogo Irineu J. Rabuske afirma que espírito e demônios tem papéis baseados naquilo que cada sociedade lhe atribui de bom ou mal. Isso é significativo porque é ideologicamente concebido, intencionalmente explorado. Mas, por outro lado, estão claros os componentes que contribuem para a ideologia da possessão. O papel do cristianismo contemporâneo reside na verificação correta do mal e no remédio apropriado.

Muito do que os exorcistas da Igreja antiga conseguiram por meio de esconjuro, hoje deve ser alcançados mediante médicos e cientistas, economistas e políticos. Os exorcistas cristãos primitivos compartilhavam um movimento amplo e excedente ao próprio âmbito das comunidades, do qual (o movimento) o mundo daquele tempo esperava alívio para os seus males. Se o cristianismo atual quiser assumir parte desta preocupação dos antigos exorcistas, então necessita percorrer os caminhos que hoje para isso são necessários, isto é, deve realizar exorcismos mediante a razão e o esclarecimento.

4. CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS

A possessão demoníaca contém o germe da violência porque o indivíduo alienado não consegue distinguir a causa de seus atos, nem o que seus atos significam. Isto acontece porque aquilo que o possui pensa e dirige as cenas da sua vida. Ao se tornar violento, ele representa a sociedade. O mal que ela lhe causa retorna para ela mesma. Visto que as sociedades são violentas por natureza, surge a necessidade de sublimação, compensação, o que indica logo seguir, a criação de um bode expiatório, sintetizado na figura do demônio.

O autor [R. Girardi] recorre ao princípio do bode expiatório, isto é, a violência expulsa a violência, como base da organização das sociedades. Alicerçadas nesse princípio, as sociedades são violentas por natureza e, como tal, necessariamente sucumbem pelo princípio de divisão interna.

Assim, ao nascimento de um indivíduo, de acordo com Durkheim, a sociedade já o aguarda com seus códigos e seus intérpretes autorizados, fórmulas prontas, que existem fora de si mesmos. Portanto, o indivíduo possuído com o germe da violência traz dentro de si a compensação de um bode expiatório, porque a sociedade já definiu isso antes dele nascer. Então, se outro “ser” o comanda, questiona-se se esse homem é culpado.

Não é possível esquecer os demônios - os outros demônios - contemporâneos semelhantes aos da violência. A questão econômica de uma nação pode sofrer o males do “demônio da inflação”, por exemplo. Esse esquema, ou sistema negro de anulação pessoal exige prática igual à de Jesus Exorcista, a fim de esboçar, mesmo que, timidamente, um exorcismo social, ou seja, exorcizar a sociedade, exorcizar as entidades e instituições demoníacas, quer cidades, estados, governos ou igrejas.

Têm-nos temidos, como coisas [os demônios] de um poder desconhecido, isto é, um poder ilimitado para fazer o bem e o mal, e consequentemente, têm dado ocasião aos governantes dos Estados gentios para controlarem assim seu receio, estabelecendo aquela demonologia (na qual os poetas, como sacerdotes principais da religião pagã, eram especialmente empregados, ou respeitados) necessária para a paz pública e para a obediência dos súditos, e para tornarem algum deles bons demónios, e outros maus, uns como esporas para a violência, os outros como rédeas para impedi-los de violar as leis.

Os grupos que se fecham a uma explicação razoável ou racional, mesmo sendo parte da solução e vêem nesses fenômenos de possessão algo de outro mundo são grupos fundamentalistas, que fizeram uma opção ideológica bastante clara e pragmática. Demonizam aquilo que não entendem ou não consegue explicar racionalmente.

4.1. Sociedade possuída

O mundo político do tempo de Jesus expressava essa “demonologia” na violenta dominação romana. Não era uma dominação legítima em termos modernos. Para responder de acordos com as suas forças, o povo elabora suas explicações, visões e cosmologia. É a religião popular produzindo válvulas de escape por meio de mundo sobrenatural. O gadareno está vivendo sob o governo de Roma e poderosas legiões. Quando liberto por Jesus, senta-se como um homem normal, vestido, que articula bem as palavras e expressa, além de tudo, seu desejo de seguir o Mestre. Sua classificação muda de uma hora para outra. Há um nexo entre doença e possessão e classes sociais. O gadareno, por assim dizer, muda de classe social.

A religião popular de uma sociedade – não a de uma igreja na sociedade – prescreve palavras de ordem que apenas recobrem, com os termos do sagrado, o código de trocas das classes de que é parte, ocupando um dos seus setores de produção simbólica de serviços e significados e respondendo por funções de atribuição de legitimidade, não apenas de uma ordem dominante de relações, como se afirma com freqüência, mas principalmente de modos subalternos de vida no interior dessa ordem, ocupando-se muito mais em estabelecer preceitos de trocas entre os seus próprios sujeitos, do que entre eles e qualquer instituição religiosa.

Ter vez é voz na sociedade somente é possível após um ato de libertação divina. A restauração da comunicação do homem alienado e Deus são possíveis. Chama-se religação, religare, um ato cristão por excelência. Não é possível fazer religação através da batalha espiritual ou quebra de maldições. Se o homem é exorcizado do demônio da pobreza para, assim, se tornar rico, possuidor das riquezas deste mundo, outro demônio o possui: o demônio da riqueza. Há apenas uma troca. A casa vazia permite a entradas de demônios piores. Ou então, Jesus é expulso como foi expulso da Decápolis.

A atitude dos que pedem para Jesus ir embora é a mesma de uma sociedade que valoriza mais as posses dos bens do que a libertação dos alienados e escravizados. Em primeiro lugar, Deus quer que o homem viva. A sociedade que põe qualquer coisa acima da vida humana é sociedade que rejeita Jesus.

A visão de um homem adentrando o tempo do capitalismo (Shopping), consumindo (prestando culto ao deus mercado), lhe dá uma sensação de poder (de compra) que não tem. Ele já possuído pelo espírito do capitalismo e a ética protestante (atual) não lhe permite refletir sozinho. O exorcismo (com x) tornar-se “esorcismo” (com s). Ainda sobre a batalha espiritual são verdadeiras são as palavras de Bráulia Ribeiro na Revista Ultimado:

Senti-me desnudada em minhas motivações. Demônios me atraem, crianças sofrendo, não. Antros de trevas e agentes sobrenaturais de repente se tornaram minha motivação e a da igreja, envolvidos nesse video game gigante, brincando de evangelho. Um evangelho-viagem, cósmico, que vai se distanciando sutilmente do evangelho-terra, evangelho-gente, evangelho-amor, evangelho dos pobres e de Jesus.

(...) A batalha espiritual que não gera transformação de consciência social, transformação ética e moral, que não quebra a nossa hipócrita indiferença de classe média brasileira em relação aos pobres, que não cura nossa sociedade aleijada, não passa de animismo, de feitiçaria. (...) A nossa religiosidade rasa às vezes nos leva a exorcizar pessoas, e não demônios. Um verdadeiro ato de amor a Deus e aos pobres exorciza os demônios que habitam nossa consciência social e atrai aqueles a quem Deus ama para libertá-los.

Há um mal cultural inerente às sociedades humanas. Esse mal cultural rompe o equilíbrio social e religioso. As respostas do homem atual são (e serão) as mesmas do homem antigo. Escapará para o mundo cósmico, onde as potestades e principados guerrearão uma guerra acima dos homens mortais. Isto soa muito homérico, mitológico.

No entanto, qualquer que seja o mal, qualquer interpretação que se lhes dê (está claro que o Mal existe sempre personificado), desestabiliza e desequilibra a vida, trazendo o caos para tudo e para todos. A “fuga para o céu” onde tudo se realiza não é mais platônico (a) porque a filosofia na era do evangelicalismo, de modo geral, é incipiente e não comportaria uma reflexão dessa magnitude. Mas poderia se dizer que tudo ocorre no “mundo das idéias”.

A existência do mal dentro de um grupo social característico torna esse grupo impotente, por um tempo breve ou paralisa a revolta dos excluídos?

No interior de um sistema popular de crenças, onde todos o seres agem como os da Terra e têm, portanto, interesses políticos, a existência do Mal demonstra o seu poder sempre provisório, mas sempre renovado, de romper as normas do equilíbrio da vida, da sociedade e da natureza e introduzir sobre todas as coisas um estado transitório de desordem.

Dentro dessa perspectiva, “a ciência moderna funcionou como uma espécie de exorcista enquanto superou em grande parte as concepções ingênuas antigas, apresentando explicações razoáveis para fenômenos antes atribuídos somente a causas metafísicas”. E ainda assim o homem busca explicações (no sentido de cura e salvação), das mais variadas.

“O homem pode buscar a salvação diante de várias concepções do mal – ansiedade, doença, sensação de inferioridade, dor, medo da morte, preocupação com a ordem social. Ele procura, então, soluções de ordens diferentes: uma cura; a eliminação de agentes maléficos; a sensação de que tem acesso ao poder; uma melhoria da sua posição social; maior prosperidade; a promessa de vida após a morte, de reencarnação, de uma ressurreição do túmulo, ou de uma fama que possa perdurar para a posteridade; a transformação da ordem social (incluindo a restauração de uma ordem social do passado, real ou imaginária). (...) Das várias teodicéias que organizam as diversas promessas e atividades apropriadas para lidar com essas percepções específicas do mal, duas reações são bastante comuns entre os povos menos desenvolvidos: a taumatúrgica e a revolucionária” (492).

Esse paralelismo do exorcismo com a revolução tem sentido. Se o dominador é o demônio em pessoa, a salvação virá apenas pela revolução política e social. A tomada do poder é a vitória sobre o poder das trevas.

4.2. Exorcismo social

Desde que a possessão pode ser social, política, econômica e psicológica, torna-se necessário usar a palavra como forma de comunicação, pois o “demônio fala e ouve” e tem um nome pelo qual é reconhecida sua atuação, como faziam os xamãs mesopotâmicos.

Para dominar nossos maus espíritos/demônios interiores/complexos/pensamentos obsessivos, devemos usar palavras mais fortes para quebrá-los, derrotá-los, sujeitá-los. Acima de tudo, devemos dar um nome a eles. Enquanto continuamos como uma legião anônima que não podemos discernir com clareza, eles são muito assustadores. Mas quando recebem um nome, ou são interpretados pelo analista, eles perdem o poder. Ficam desmistificados.

O reconhecimento daquilo que oprime e possui o ser humano contra sua vontade já possibilita experimentar um antídoto, porque ao serem desmistificados perdem a aura de poder que tanto assusta e se tornam “velhos conhecidos”. Ao utilizar a palavra como meio de exorcismo social, está-se utilizando da linguagem comum, ou então não haveria palavras de ordem em nome de Jesus. A bem da verdade, segundo algumas opiniões, um demônio somente pode ser expulso e repreendido se receber uma ordem para sair em voz audível.

Don Cupitt, teólogo anglicano, afirma com todas as letras que as próprias palavras são demônios e fica a pergunta se um reinado pode sobreviver com divisões internas. Nesse ponto ele concorda com Rubem Alves. Cuppit afirma ainda:

Por conseguinte, os espíritos desmitologizados tornam-se palavras gerais e o enorme poder do mundo espiritual sobre os mundos das experiências sensorial passa a ser o enorme poder que a linguagem tem de formar, ordenar e classificar a realidade. As palavras são demônios que podem com tanta facilidade escorregar direto do mundo externo para os seus pensamentos mais íntimos e deixá-lo profundamente perturbado, e elas são os mensageiros alados que você envia para realizar os mais variados propósitos. Palavras são objetos públicos invisíveis, pairando ao meu redor. Enquanto escrevo, em multidão, como um enxame de espíritos. A linguagem é o poder sobrenatural que nos fez sair do estado natural.

“Somos morada de palavras, possessões demoníacas ou o vento indomável do Espírito Santo.”

5. EXCLUSÃO DE GÊNERO: A DIMENSÃO FEMININA DA POSSESSÃO

De acordo com a afirmação do teólogo Irineu J. Rabuske, “a interpretação religiosa da possessão não é mais possível” . A ênfase numa visão social permite diferenciar os tipos, formas e gêneros de possessão e a conseqüente interação com as demais ciências.

Uma forma de preconceito de gênero, desde a Idade Média, foi feita contra as mulheres. O medo do poder do feminino invadia as mentes masculinas religiosas ao ponto de criarem todo um aparato contra as chamadas “bruxas” e que se chamou de Inquisição.

Outros estudiosos já verificaram a conexão entre possessão e gênero feminino.

Ioan Lewis chamou atenção para a conexão existente entre possessão e a opressão, quer esta tome a forma de sujeição sexual e familial das mulheres aos homens, ou da racial e imperial de um povo a outro. No primeiro caso “os cultos de possessão feminina são (...) movimentos de protesto quase explícitos contra o sexo dominante (... Dentro da sua função social a possessão por espíritos estrangeiros surge como uma estratégia agressiva oblíqua” (31,32). N segundo caso, as sociedades em que persistem cultos de possessão centrais geralmente são compostas por pequenas unidades sociais fluidas, expostas a condições ambientais particularmente rigorosas, ou comunidades conquistadas que vivem sob o domínio da opressão estrangeira”.

O que também é a constatação de Rabuske quando cita Katharina Elliger.

Ao longo da história do cristianismo, na maior parte dos casos de possessão trata-se de mulheres. Katharina Elliger observa que, nesses relatos, as vítimas são, na maioria, mulheres humildes, sem instrução e pertencentes às classes mais baixas da sociedade. Tendo presente a histórica opressão da mulher na sociedade ocidental, é plenamente válido supor que estamos diante de uma categoria social oprimida, de acordo com a já citada tese de Gerd Theissen, segundo a qual as narrativas de possessão do NT são, em grande parte, expressão das classes oprimidas. A pesquisa antropológica tem constatado que, nas diversas religiões, possessão pode ser um recurso mediante o qual mulheres e grupos de pessoas oprimidas e carentes de atenção procuram se fazer valer diante de seus maridos ou superiores.

A melhor de chamar a atenção é a possessão. Todas as atenções se voltam para esse fenômeno extraordinário.

6. O PODER DA LINGUAGEM COMO LIBERTAÇÃO

Aldous Huxley sintetizou o resultado da linguagem na formação do mundo e das ideías de forma brilhante. Nada escapa ao poder da palavra bem dita.

A linguagem é o instrumento do progresso humano para além da animalidade, e a linguagem é a causa do desvio do homem, a partir da inocência animal e de sua conformidade à natureza das coisas, para a loucura e as crenças nos demônios. As palavras são ao mesmo tempo indispensáveis e fatais. Tratadas como hipóteses de trabalho, as proposições acerca do mundo são instrumentos para podermos entendê-lo cada vez mais. Tratadas como verdades absolutas, como dogmas que devem ser assimilado, como ídolos que devem ser adorados, as proposições sobre o mundo distorcem nossa visão da realidade e nos conduzem a todo tipo de conduta imprópria.

Traugot Constantin Osterreich, professor, antropólogo, teólogo alemão, descreve o caminho da linguagem desde a filosofia grega, de acordo com Don Cuppit

.... no decorrer da história do pensamento o mundo arcaico dos espíritos foi transformado por Platão em seu Mundo Inteligível de idéias gerais ou Formas. Mais tarde, de novo, o mundo superior de Platão foi transformado por Kant numa ordem de conceitos mentais, e essa, por sua vez, se transformou na filosofia moderna (na década de 1930) no vocabulário de nossa linguagem. Condensando todo esse longo e complexo processo, vemos hoje, do nosso ponto de vista, que o mundo sobrenatural da religião foi, o tempo todo, uma representação mítica do mundo da linguagem.

A obsessão pelo domínio da linguagem, a descoberta de que linguagem pode introjetar quaisquer idéias nas pessoas mediante técnicas apuradas de neurolinguística (para usar somente este exemplo), transformaram alguns seres humanos em demônios, que visam o tempo todo possuir almas e mentes desavisadas para seus mais perversos fins. Nisto a possessão nada tem de sobrenatural, porque parte diretamente do mundo terrestre onde homens se confundem com demônios mediante uma só palavra.

Aldous Haxley, o homem que pesquisou os eventos de Loudun concluiu a mesma coisa. Ele comenta:
A possessão é mais mundana do que sobrenatural. Os homens deixam-se obcecar por pensamentos sobre uma pessoa, uma classe, uma raça ou uma nação, à qual odeiam. Atualmente, os destinos do mundo estão nas mãos de endemoninhados – homens que se deixam possuir pelo mal que escolheram descobrir nos outros. Eles não acreditam no Diabo; mas fizeram todas as tentativas possíveis para serem possuídos – e obtiveram sucesso. E, uma vez que acreditam ainda menos em Deus que no Demônio, parece bastante improvável que consigam se curar da possessão.

Não existe exorcismo para o homem que procura o mal. Este o consome por inteiro.

7. CONCLUSÃO

A presença do Mal na vida humana é inquestionável. A despeito de a Bíblia trazer uma visão de mundo que não coincide com a visão do século XXI, ainda assim, não se pode negar essa presença nefasta. Muito mais importante do que isso é atitude de Jesus frente ao fenômeno. Jesus, como um exorcista do seu tempo, provou que é possível a libertação do ser humano de qualquer opressão que o aliene. Bastam apenas algumas considerações finais a respeito da perícope de Marcos 5,1-20, a começar pelas questões textuais até a análise teológica.

Conhecendo agora textos que nos mostram Jesus como exorcista. Duas são a provas que eles nos fornecem, a saber: (1) a de que Jesus libertava os homens de determinados males que os seus contemporâneos consideravam como possessões diabólicas; (2) a de que os próprios textos não foram redigidos à maneira dos fatos, como os concebe a moderna historiografia. Ele contém um grande número de elementos formais daquela época, além de uma mensagem bastante explícita. Eles estão a serviço da proclamação da palavra da salvação. Temos aí uma questão, por não tratada, mas que se coloca para o homem de nossa época a respeito deste gênero de narrativa: eram forças realmente pessoais, eram demônios que Jesus expulsava das pessoas? Ou os possessos sofriam de doenças que somente em razão dos conhecimentos insuficientes daquela época e de uma concepção superada do mundo, que acreditava na existência de espíritos bons e espíritos maus, eram considerados possessões diabólicas? Esse tipo de pergunta não dirige apenas ao passado. Elas desembocam, sobretudo na questão absolutamente atual de saber como os cristãos, em nossos dias, devem continuar a obra exorcística de Jesus: procurando o diabo em pessoa para torná-lo inofensivo, ou procurando conhecer a forças que ameaçam a existência, represá-las e vencê-las por um engajamento multiforme, mediante a prática do bem?

O mal, como afirma Weise, “é sempre pessoal”. Sempre necessita de alguém para se expressar, sempre um ser humano será o vetor principal da manifestação demoníaca. E um agrupamento de pessoas poderão se tornar em uma instituição possessa, cega para as verdadeiras necessidades de outros irmãos, opressora e detentora de todas as verdades.

Os homens criados à semelhança de Deus precisam vê-lo mais nas pessoas do que oter olhos apenas para o Inimigo.

A possessão existe em quase todas as culturas “primitivas”. A interpretação de como isso se dá é diferente de uma cultura para outra. Para uns a possessão é divina, para outros é diabólica. Para os cristãos ocidentais qualquer possessão que não seja divina (pelo Espírito Santo) é negativa.

Ficar doente é estar possuído, porque a impossibilidade de cura antigamente era computada aos deuses e somente um ritual de exorcismo curaria o doente/possesso. O Primeiro Testamento não crê nos demônios e o Segundo Testamento já aparece com a ação demoníaca. Acredita-se que essa crença é externa ao judaísmo. Para os Pais da Igreja o mundo era tridimensional.

Para os indígenas brasileiros o mal existem para quem provocá-lo. Para os africanos exilados à força, ser possuído é ser visitado por deuses da terra natal.

Às mulheres, após a Queda, é reservada a imagem da culpa pelo Mal que entra no mundo. São dominadas (possuídas) de muitas formas: socialmente, sexualmente. Até chega-se ao ponto do Apóstolo Paulo dizer que serão salvas ao dar à luz. É o direito de salvação reservado à procriação. Sem falar na gestação de um possível anticristo (acredita-se que uma das novidades do fim do mundo seria a imitação que o diabo faria para gerar o anticristo à semelhança de Maria, sem contato humano).

Historicamente, portanto, a possessão demoníaca e seus agentes, os demônios, estão vinculados a uma terrível pressão social, em que os menores indivíduos de uma sociedade são os maiores culpados.

Alguns evangelicais brasileiros ainda mantêm uma atitude de abertura frente ao mundo teológico, o que não quer dizer que acreditem ou desacreditem, concordem ou discordem. Assim ainda é possível ler algumas opiniões muito bem consistentes. Basta citar dois exemplos. Um descreve o diabo como “ninguém” (baseado no poeta Baudelaire) e, portanto, não possui poder que não lhe seja dado.

Enquanto Deus afirma: “Eu sou o que sou” (Êx. 3.14), Satanás declara, segundo o poeta francês Baudelaire: “O meu nome é Ninguém. Não há ninguém: de quem deveis ter medo? Ides tremer diante do Não-existente?”

A outra é a consciente missionária da Jocum, Bráulia Ribeiro.

A batalha espiritual que não gera transformação de consciência social, transformação ética e moral, que não quebra a nossa hipócrita indiferença de classe média brasileira em relação aos pobres, que não cura nossa sociedade aleijada, não passa de animismo, de feitiçaria.

Ambos estão de acordo em não dar atenção a quem, ou o quê, não merece atenção. Antes, deve-se focalizar no ser humano e suas necessidades. Suas necessidades sociais, físicas, emocionais dependem de um correto discernimento do mal que os aflige sem piedade. São demônios, são “flores do mal”, são feiticeiros modernos e não menos sedentos de sangue. Leonardo Boff transforma o diabólico e lhe dá um novo significado.

Dia-bólico provém de dia-bállein. Literalmente significa: lançar coisas para longe, de forma desagregada e sem direção; jogar fora de qualquer jeito. Dia-bólico, como se vê, é o oposto do sim-bólico. È tudo o que desconcentra, desune, separa e opõe.

Ao que se pode deduzir que os homens podem dar significados diferentes à mesma coisa, objeto ou crença. Os demônios, responsáveis pelo mal, foram bodes expiatórios das civilizações. Atualmente, o retorno do “sagrado selvagem” pinta o mundo de outras formas. Porém, menos agressivas na aparência e, no entanto, causadoras do mesmo mal. Não se pode dar mais atenção ao mal do que ao bem, mas pode-se transforma-lo, através de ações que possibilitem a libertação do indivíduo em sociedade. Quem centra sua batalha no mal não consegue mudar o mundo para melhor, se violência gera violência.

Os teólogos, torno a repetir, acautelaram-se ao máximo contra o dualismo maniqueísta, mas em todas as épocas, grande número de cristãos procedeu como se o Diabo fosse o Princípio Fundamental, nivelando-se a Deus. Deram mais atenção ao mal e ao problema de sua erradicação, do que ao bem e às atitudes que contribuíam para o aumento da virtude. Os efeitos provocados pela obsessão do mal são sempre desastrosos. Aqueles que empreendem uma cruzada, não para se encontrarem com Deus, mas para combater o Diabo nos outros, nunca conseguem tornar o mundo melhor, mas o deixam como está ou algumas vezes um tanto pior do que estava ante do início da cruzada. Pensando principalmente na mal, tendemos, por melhores que sejam nossas intenções, a criar ensejo para que o mal se manifeste.

Jesus Cristo Exorcista é o centro da libertação. Quando o possuído é libertado daquilo que o paralisa, aliena e destroi, denuncia a sociedade excludente, que busca mais o mal do que o bem. É o princípio da cura.
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