sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Do Modalismo à Trindade

Neste artigo, tento estudar a evolução do dogma da Santíssima Trindade ao longo da História. Pois bem. Poderia estar perguntando o leitor: "os dogmas da Igreja evoluíram?", ao que posso responder que, ainda que não tenham evoluído quanto ao seu conteúdo (a verdade é a mesma ontem, hoje e amanhã), evoluíram quanto à consciência que deles foi adquirindo a Igreja.

Com efeito, o tempo permitiu que a terminologia deste dogma central da fé cristã fosse se enriquecendo, para expressar de uma forma mais precisa aquilo que a Igreja sempre professou. Surge, assim, o termo "Trindade" como uma forma de definir o mistério de que existe um só Deus em três Pessoas distintas, as quais possuem a mesma natureza ou substância.

Porém, este enriquecimento não ocorreu sem custo nem glória; muitas heresias tiveram que ser combatidas e superadas pela Igreja ao longo da História (e muitas dessas heresias ressurgiram novamente nos tempos atuais).

1. HERESIAS CRISTOLÓGICAS E TRINITÁRIAS

Existem numerosas heresias cristológicas e trinitárias, de modo que tratar de todas seria deveras longo. Logo, nos focaremos principalmente nas duas maiores e que ressurgiram hoje sob outros nomes e fachadas.

a) Modalismo
Também conhecida como Monarquianismo, Sabelianismo ou Patripassianismo. Sustentava, nos séculos II e III, que em Deus havia uma só Pessoa e que o Pai, o Filho e o Espírito Santo eram formas de se comunicarem com os homens ou de se manifestarem. Era uma tentativa de afirmar a unidade de Deus sem negar a divindade de Cristo nem a do Espírito Santo.

Hoje em dia há uma grande quantidade de denominações protestantes que aderiram a essa heresia. Um exemplo temos na Igreja Pentecostal Unida, a qual professa:

"A doutrina sobre a natureza de Deus se chama 'Unicidade'. Esta palavra significa 'Qualidade do Único'. Esta se encontra claramente nas Escrituras e afirma que existe apenas um só Deus, sem distinção de Pessoas e que em Jesus Cristo habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Doutrina da Igreja Pentecostal Unida da Espanha).

b) Arianismo
Uma grande heresia que a Igreja enfrentou e que abalou a Igreja durante o século IV. Da mesma forma que o Modalismo, queria defender a unicidade de Deus, porém o fazia reduzindo Jesus Cristo a um ser criado. Para os arianos, Cristo não era Deus, mas uma criatura subordinada criada por Ele, de modo que houve um tempo em que o Pai existiu e Cristo não. Para eles, Cristo também não tinha a mesma natureza ou substância do Pai. Entre os diferentes expoentes do Arianismo ressurgido hoje, podemos citar os Testemunhas de Jeová; para ilustrar um pouco a sua doutrina, mencionaremos um extrato de uma de suas publicações:

"Somente Deus é o Todo-Poderoso, o Criador, separado e distinto de qualquer outra pessoa. Jesus - e isto se aplica ainda à existência que teve antes de vir a ser homem - é também separado e distinto, um ser criado subordinado a Deus" (Folheto "O que Diz a Bíblia sobre Deus e Jesus?").

2. O TESTEMUNHO DOS ESCRITORES ECLESIÁSTICOS E PADRES DA IGREJA ANTES DO CONCÍLIO DE NICÉIA

Existem fontes protestantes que afirmam que foi graças ao Concílio de Nicéia que foram assentadas as bases para a doutrina da Trindade:

"O Concílio de Nicéia assegurou que Cristo era da mesma substância de Deus, abrindo base para uma posterior teologia trinitária. Porém, não estabeleceu a Trindade, pois naquele Concílio não se disse que o espírito santo era a terceira pessoa de uma Divindade trina e una (...) Por muitos anos houve muita oposição, com base bíblica, ao desenvolvimento da idéia de que Jesus era Deus. Em um esforço para resolver a disputa, o imperador romano Constantino convocou todos os bispos para Nicéia (...) Que papel desempenhou no Concílio de Nicéia aquele imperador não-batizado? A Enciclopédia Britânica relata: 'O próprio Constantino presidiu e dirigiu ativamente as discussões e pessoalmente propôs (...) a fórmula decisiva que expressava a relação de Cristo com Deus no credo que o Concílio publicou, o qual diz que é 'consubstancial com o Pai'. (...) Pressionados pelo imperador, os bispos - com apenas duas exceções - assinaram o credo, ainda que muitos deles não estivessem inclinados a fazê-lo'" (Folheto "Como se Desenvolveu a Doutrina da Trindade?").

Nesse folheto, em resumo, aponta-se que - segundo os Testemunhas de Jeová - a doutrina trinitária seria produto de uma manobra política do imperador Constantino, que acabou obrigando os bispos a reconhecer que Cristo era Deus, quase que contra as suas vontades.

Nada melhor, então, que estudar o testemunho dos Padres anteriores ao Concílio de Nicéia, para que possamos indagar o quanto há de verdadeiro nessas afirmações e qual foi o real desenvolvimento da doutrina trinitária ao longo da História.

A DIDAQUÉ (OU: A DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS)

É considerado um dos mais antigos escritos cristãos não-canônicos, datado inclusive de tempo bem anterior a muitos escritos do Novo Testamento. Estudos que assinalam uma data de composição não posterior a 160 d.C. são recentes. É um excelente testemunho do pensamento da Igreja Primitiva e aqui o mencionamos por trazer um testemunho do uso da fórmula batismal trinitária usada pela Igreja Primitiva:

"Quanto ao batismo, procedam assim: depois de ditas todas essas coisas, batizem em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo" (Didaqué 7,1).

O MARTÍRIO DE POLICARPO

É uma carta da Igreja de Esmirna à comunidade de Filomênio em que se narra o martírio de São Policarpo, discípulo direto do Apóstolo São João e bispo de Esmirna. É um escrito apostólico que faz uso de belas doxologias trinitárias, expressando muito bem e claramente o dogma trinitário:

"A Ele [Jesus Cristo] seja dada a glória com o Pai e o Espírito Santo pelos séculos dos séculos. Amém".

O PASTOR DE HERMAS

Classificado como um dos escritos dos Padres Apostólicos ainda que - como assinala Quasten - pertença ao grupo dos Apocalipses apócrifos. Contém as revelações feitas por duas figuras celestiais a Hermas:

"O Espírito Santo, que é preexistente, que criou todas as coisas, Deus o fez habitar no corpo de carne que Ele quis. Pois bem. Esta carne em que o Espírito Santo habitou serviu bem ao Espírito, caminhando em santidade e pureza, sem macular absolutamente nada o mesmo Espírito. Como [essa carne] tinha, pois, levado uma conduta excelente e pura, e tomado parte em todo trabalho do Espírito e cooperado com Ele em todo negócio, portando-se sempre forte e valorosamente, Deus a tornou partícipe juntamente com o Espírito Santo. Com efeito, a conduta desta carne agradou a Deus, por não ter se maculado sobre a terra enquanto teve consigo o Espírito Santo. Assim, pois, tomou por conselheiro a seu Filho e os anjos gloriosos para que esta carne, que tinha servido sem reprovação ao Espírito, alcançasse também algum lugar de repouso e não parecesse ter perdido a recompensa pelo seu serviço, porque toda a carne em que habitou o Espírito Santo, se encontrada pura e sem mancha, receberá sua recompensa" (5ª Parábola, 6,5-7).

Com base neste texto, Quasten explica:

"Segundo esta passagem, parece que para Hermas a Trindade consiste em Deus Pai, em uma segunda Pessoa divina - o Espírito Santo - que ele identifica com o Filho de Deus e, finalmente, no Salvador, elevado para fazer parte de sua sociedade como prêmio por seus merecimentos. Em outras palavras, Hermas considera o Salvador como Filho adotivo de Deus, razão pela qual se refere à sua natureza humana".

SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA (110 D.C.)

Foi consagrado bispo da Antioquia pelas próprias mãos de São Pedro e São Paulo, segundo afirma São João Crisóstomo (embora as Constituições Apostólicas afirmem que Pedro consagrou Evódio e Paulo a Inácio). Eusébio de Cesaréia afirma (Hist. Ecles. 3,22) que [Inácio] sucedeu a Evódio (primeiro bispo de Antioquia) e em sua "Crônica" aponta o tempo de seu episcopado entre o 1º ano de Vespasiano (70 d.C.) e o 10º de Trajano (107 d.C.).

"Inácio, por sobrenome Téoforo [=portador de Deus], à abençoada em grandeza de Deus com plenitude; à predestinada desde antes dos séculos para servir para sempre, para glória duradoura e imutável, glória unida e eleita pela graça da verdadeira Paixão e por vontade de Deus Pai e de Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja digna de toda bem-aventurança, que está em Éfeso, na Ásia, minha cordialíssima saudação em Jesus Cristo e na alegria imaculada" (Epístola aos Efésios 1).

"Existe um médico, no entanto, que é carnal além de espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, filho de Maria e Filho de Deus, primeiro passível e depois impassível: Jesus Cristo, nosso Senhor" (Epístola aos Efésios 7,2).

"A verdade é que nosso Deus Jesus, o Ungido, foi levado por Maria em seu seio conforme a dispensação de Deus, certamente da descendência de Davi, mas por obra do Espírito Santo. Ele nasceu e foi batizado a fim de purificar a água com a sua Paixão" (Epístola aos Efésios 18,2).

"Inácio, por sobrenome Téoforo [=portador de Deus], à Igreja que alcançou misericórdia na magnificência do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu único Filho; à que é amada e é iluminada por vontade Daquele que quis que todas as coisas existissem, segundo a fé e a caridade de Jesus Cristo, nosso Deus" (Epístola aos Romanos 1).

"Permitam que eu seja imitador da Paixão do meu Deus" (Epístola aos Romanos 4,3).

"Eu glorifico a Jesus Cristo, Deus, que é quem os tem feito sábios até tal ponto, pois percebi muito bem de quão mergulhados estais da fé imutável, como se estivésseis pregados, em carne e espírito, na cruz de Jesus Cristo" (Epístola aos Esmirniotas 1,1).

Para Santo Inácio, Cristo está acima do tempo e é intemporal, o que é uma forma de dizer que existe desde toda a eternidade:

"Aguardai Aquele que está acima do tempo, o Intemporal; o Invisível, que por nós se tornou visível; o Impalpável, o Impassível, que por nós se fez passível; aquele que, por todos os modos, sofreu por nós" (Carta a Policarpo 3,2).

ARISTIDES (SÉC. II)

Escritor eclesiástico sobre o qual Eusébio da Cesaréia, em sua História Eclesiástica (4,3,3), afirma que era "um varão fiel na profissão da nossa religião". Deixou uma apologia da fé, a qual tinha sido perdido, até que em 1878 os Mequitaristas de São Lázaro de Veneza publicaram um manuscrito do século X, correspondente ao fragmento armênio de uma apologia intitulada "Ao imperador Adriano César da parte do filósofo ateniense Aristides". Posteriormente, em 1889, o sábio norte-americano Rendel Harris descobriu uma tradução completa em siríaco desta apologia. Nesta obra, Aristides emprega a fórmula trinitária, mencionando as três Pessoas divinas:

"Este teve doze discípulos, os quais, após sua ascensão aos céus, percorreram as províncias do Império e ensinaram a grandeza de Cristo, de modo que um deles percorreu aqui mesmo, pregando a doutrina da verdade, pois conhecem o Deus criador e artífice do universo em seu Filho Unigênito e no Espírito Santo, não adorando nenhum outro Deus além deste" (Apologia 15,2).

ATENÁGORAS DE ATENAS (SÉC. II)

Famoso apologeta cristão do século II. Atenágoras, mesmo sem empregar o termo "Trindade" é bastante explícito ao definí-la. Também rejeita o Subordinacionismo e a tendência que posteriormente seria adotado pelo Arianismo ao considerar Cristo como um ser criado, como se deduz do seguinte texto escrito por volta do ano 177 d.C.:

"E se pela eminência da vossa inteligência vos ocorre perguntar o que quer dizer 'Filho', vos direi brevemente: o Filho é o primeiro broto do Pai, não como ato, já que Deus, que é inteligência eterna, desde o princípio tinha em si mesmo o Verbo, sendo eternamente racional, mas procedendo de Deus quando todas as coisas materiais eram natureza sem forma e terra inerte, estando misturadas as mais grosseiras com as mais leves, para ser sobre elas idéia e operação" (Súplica em Favor dos Cristãos 10).

Eis aqui a sua forma de explicar a Trindade:

"Assim, pois, suficientemente resta demonstrado que não somos ateus, pois admitimos um só Deus incriado e eterno, e invisível, impassível, incompreensível e imenso, apenas pela inteligência compreensível à razão... Quem, portanto, não se surpreenderá de ouvir chamar de 'ateus' aqueles que admitem um Deus Pai, um Deus Filho e um Espírito Santo, que demonstram seu poder na unidade e sua distinção na ordem?" (Súplica em Favor dos Cristãos 10).

TACIANO, O SÍRIO (SÉC. II)

Taciano foi discípulo de São Justino Mártir; dele conservamos um discurso contra os gregos, em que ataca o Politeísmo. Possuía uma caráter forte, que o levou a abandonar a Igreja e fundar sua própria seita (os Encratitas) - testemunho que nos dá Eusébio de Cesaréia (História Eclesiástica 4,18-19); entre outros - tal como Jerônimo, que o chama de "Patriarca dos Encratitas" (Epist. Ad Titum, prol. [PL 6,356]) - praticavam uma total abstinência de carnes e bebidas alcóolicas, classificavam o matrimônio como pecaminoso e substituíam, na celebração eucarística, o vinho pela água. Chegou até nós o discurso contra os gregos, obra em que [Taciano] ataca o Politeísmo:

"Porque não estamos loucos - ó helenos - nem pregamos loucuras quando anunciamos que Deus apareceu na forma humana. Vós que nos insultais, comparai os vossos mitos com as nossas narrações" (Discurso contra os Gregos 21).

SÃO MELITÃO DE SARDES (SÉC. II)

Bispo de Sardes, na Lídia, proeminente e venerado escritor eclesiástico do século II. Em uma carta ao Papa Vítor (189-199), Polícrates de Éfeso o aponta entre os "grandes luzeiros (ou estrelas)" da Ásia que gozam do descanso eterno. De muitas de suas obras só nos restam fragmentos ou apenas o título, graças a Eusébio de Cesaréia e Anastácio Sinaíta. Após uma descoberta recente, em 1930, foi publicada sua Homilia sobre a Paixão, onde Melitão expõe uma Cristologia bastante lúcida em que o conceito da divindade e preexistência de Cristo dominam toda a sua teologia:

"Porque nascido como Filho, conduzido como cordeiro, sacrificado como ovelha, sepultado como homem, ressuscitou dos mortos como Deus, sendo por natureza Deus e homem. Ele é tudo: quando julga, é Lei; quando ensina, é Verbo; quando salva, é Graça; quando gera, é Pai; quando é gerado, é Filho; quando sofre, é ovelha sacrificial; quando é sepultado, é homem; quando ressucita, é Deus. Este é Jesus Cristo, a quem seja dada a glória pelos séculos dos séculos" (Homilia sobre a Paixão 8-10).

Afirma também a preexistência de Cristo:

"Este é o primogênito de Deus, que foi gerado antes da estrela da manhã, que fez levantar a luz, que fez brilhar o dia, que separou as trevas, que assentou a primeira base, que suspendeu a terra em seu lugar, que secou os abismos, que estendeu o firmamento, que pôs ordem no mundo" (Homilia sobre a Paixão 82).

Nos fragmentos citados por Anastácio Sinaíta, aponta as duas naturezas de Cristo e de como é, assim, verdadeiro Deus e verdadeiro homem:

"Não é absolutamente necessário, ao tratar com pessoas inteligentes, aduzir que as ações de Cristo, após seu batismo, são provas de que sua alma e corpo e sua natureza humana era iguais às nossas, verdadeiras e não fantasmagóricas. As atividades de Cristo após seu batismo, especialmente os seus milagres, forneceram provas ao mundo da divindade oculta em sua carne. Sendo Deus e também homem perfeito, ele deu indicações positivas de suas duas naturezas: de sua divindade, pelos milagres durante os três anos que seguiram após seu batismo; e de sua humanidade, nos trinta anos anteriores ao seu batismo, durante o qual, em razão da sua condição segundo a carne, ele ocultara as características de sua divindade, ainda que fosse verdadeiro Deus existente antes das idades" (Fragmentos de Melitão em Anastácio Sinaíta; Guia 13).

SANTO IRENEU (140-202 D.C.)

Bispo de Esmirna e mártir, teve contato com a Era Apostólica por ser discípulo de São Policarpo que, por sua vez, tinha sido discípulo do Apóstolo São João. Célebre por seu tratado "Contra as Heresias", em que combate as heresias de seu tempo, especialmente os gnósticos, expressa com clareza, nessa obra, a fé trinitária da Igreja em um só Deus Pai, um só Senhor Jesus Cristo e no Espírito Santo. Para o bispo, Jesus Cristo é para os cristãos "Senhor, Deus, Salvador e Rei". Particularmente importante é seu testemunho sobre como essa doutrina é pregada e professada por todas as Igrejas do orbe, como se tivessem uma só boca e um só coração. Este testemunho é bem anterior ao Concílio de Nicéia:

"A Igreja, estendida pelo orbe do universo até os confins da terra, recebeu dos Apóstolos e de seus discípulos a fé em um só Deus Pai soberano universal 'que fez os céus e a terra e o mar e tudo quanto neles existe'; e em um só Jesus Cristo Filho de Deus, que se encarnou para a nossa salvação; e no Espírito Santo, que pelos profetas proclamou as economias e o advento, a geração por meio da Virgem, a Paixão, a ressurreição dentre os mortos e a ascensão aos céus do amado Jesus Cristo nosso Senhor; e seu [novo] advento dos céus, na glória do Pai, para recapitular todas as coisas e para ressuscitar toda carne do gênero humano, de forma que diante de Jesus Cristo, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, segundo o beneplácito do Pai invisível, 'todo joelho se dobre no céu, na terra e nos infernos, e toda língua o confesse'. Ele julgará todos justamente: os 'espíritos do mal', os anjos que caíram, os homens apóstatas, ímpios, injustos e blasfemos, para enviá-los para o fogo eterno; e para dar como prêmio, aos justos e santos que observam os seus mandamentos e perseveram no seu amor, alguns desde o princípio, outros a partir de sua conversão, a vida incorruptível, rodeando-os da luz eterna.

Como dissemos antes, a Igreja recebeu esta pregação e esta fé, e estendida por toda terra, com cuidado a guarda, como se habitasse em uma só família. Conserva uma só fé, como se tivesse uma só alma e um só coração, e a prega, ensina e transmite com a mesma voz, como se não tivesse senão apenas uma só boca. Certamente, são diversas as línguas, segundo as diversas regiões; porém, a força da Tradição é uma e a mesma. As igrejas da Germânia não crêem de maneira diversa, nem transmitem outra doutrina diferenta da que pregam as da Ibéria ou a dos celtas, ou as do Oriente, como as do Egito ou Líbia, assim como, tampouco, das igrejas constituídas no centro do mundo. Assim como o sol, que é uma criatura de Deus, é um e o mesmo em todo o mundo, assim também a luz, que é a pregação da verdade, brilha em todas as partes e ilumina todos os seres humanos que querem conhecer a verdade. E nem aquele que se sobressai por sua eloquência entre os chefes da Igreja prega coisas diferentes destas, pois nenhum discípulo está acima de seu Mestre, nem o mais débil na palavra recorta a Tradição; sendo uma e a mesma fé, nem o muito que pode explicar sobre ela aumenta, nem o menos a diminui" (Contra as Heresias 1,10,1-2).

Ireneu interpreta que quando Deus diz: "Façamos o homem à nossa imagem e semelhança", está falando ao Filho e ao Espírito Santo. Afirma que Cristo é gerado, porém ninguém conhece os mistérios desta geração, razão pela qual é em vão que os hereges gnósticos tentam explicá-la.

"Assim pois, se alguém nos pergunta: 'Como o Pai emitiu o Filho?', respondemos que esta produção, ou geração, ou pronúncia, ou parto, ou qualquer outro nome que se queira dar a esta origem, é inefável. Não a conhecem nem Valentim, nem Marcião, nem Saturnino, nem Basílides, nem os anjos, nem os poderes, nem as potestades, mas apenas o Pai que O gerou e o Filho que Dele nasceu. Sendo, pois, inefável esta geração, quem quer que se atreva a narrar as gerações e emanações não está em seu são juízo quando promete descrever o indescritível" (Contra as Heresias 2,28,6).

Mais claro ainda encontra-se no livro 3, quando volta a declarar que Cristo é Deus, Senhor, sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado:

"Que ninguém entre todos os filhos de Adão seja chamado Deus por si mesmo ou proclamado Senhor o demonstramos pelas Escrituras. E que apenas Ele [Jesus], entre todos os homens de seu tempo, seja proclamado Deus, Senhor, sempre Rei, Unigênito e Verbo encarnado, por todos os Profetas e Apóstolos e ainda pelo próprio Espírito, é algo que podem constatar todos aqueles que aceitam um mínimo de verdade" (Contra as Heresias 3,19,2).

Ensina que Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem:

"As Escrituras não dariam todos estes testemunhos a respeito Dele se fosse apenas um homem semelhante a todos [nós]. Porém, como teve uma geração sobretudo iluminada do Pai Altíssimo e também por ter sido concebido da Virgem, as divinas Escrituras testemunham ambas as coisas sobre Ele: que é homem sem beleza e passível, que se sentou sobre o dorso de uma asna, que ingeriu fel e vinagre, que foi desprezado pelo povo e que desceu até a morte; porém, que é também Senhor Santo e Conselheiro admirável, formoso à vista, Deus forte, que vem sobre as nuvens como Juiz de todos. Isto é o que as Escrituras profetizam acerca Dele.

Enquanto homem, o era para ser tentado; enquanto Verbo, para ser glorificado. O Verbo repousou para que pudesse ser tentado, desonrado, crucificado e morto, habitando naquele Homem que vence e suporta [o sofrimento], que se comporta como homem de bem, ressuscita e é elevado ao céu. Este é o Filho de Deus, Senhor nosso, Verbo existente do Pai e filho do homem porque nasceu da Virgem Maria, que teve sua origem nos homens, pois ela mesma era um ser humano; teve gestação enquanto homem e assim chegou a ser filho do homem" (Contra as Heresias 3,19,2-3).

Opõe-se, com mais de dois séculos de antecedência, à heresia do Arianismo (que afirmava que houve um tempo em que o Filho não esteve com o Pai). Também com antecedência, rejeita o Modalismo, diferenciando as três Pessoas divinas:

"Que o Verbo, ou seja, o Filho, sempre esteve com o Pai, de múltiplas maneiras já o demonstramos; e também que sua Sabedoria, ou seja, o Espírito, estava com Ele antes da Criação" (Contra as Heresias 4,20,3).

No entanto, há autores que opinam que Ireneu não estava totalmente livre do Subordinacionismo, e que poderia ser considerado heterodoxo à luz da teologia posterior:

"Se, por exemplo, alguém procura o motivo pelo qual apenas o Pai conhece o dia e a hora, ainda que comunique tudo ao Filho, o próprio Senhor o disse (e ninguém pode inventar outro [motivo] sem risco [de se equivocar] porque apenas o Senhor é o Mestre da verdade). Ele nos disse que o Pai está sobre todas as coisas, pois declarou: 'O Pai é maior do que Eu' (João 14,28). O Senhor, portanto, apresentou o Pai como superior a todos em relação ao seu conhecimento, a fim de que nós, enquanto caminhamos por este mundo (1Coríntios 7,31), deixemos a Deus o saber mais profundo sobre tais questões; porque se pretendemos investigar a profundidade do Pai (Romanos 11,33), corremos o perigo de perguntar, inclusive, se existe outro Deus acima de Deus" (Contra as Heresias 2,28,8).

"O Pai sustenta ao mesmo tempo toda a sua criação e o seu Verbo; e o Verbo, que o Pai sustenta, concede a todos o Espírito segundo a vontade do Pai: a uns, na própria Criação, lhes dá [o espírito] da criação, que é criado; a outros, o da adoção, isto é, o que provém do Pai, que é obra de sua geração. Assim se revela como único o Deus e Pai que está acima de tudo, através de todas [as coisas] e em todas as coisas. O Pai está sobre todos os seres e é a cabeça de Cristo (1Coríntios 11,3); através de todas as coisas, age o Verbo, que é Cabeça da Igreja; e em todas as coisas porque o Espírito está em nós, o qual é água viva (João 7,38-39) que Deus outorga àqueles que crêem retamente Nele e O amam, sabendo que 'um só é o Pai que está sobre todas, por todas e em todas as coisas'" (Contra as Heresias 5,18,2)

CLEMENTE DE ALEXANDRIA (MEADOS DO SÉC. II - ANTERIOR A 215)

Nasceu por volta do ano 150, provavelmente em Atenas, de pais pagãos. Após se tornar cristão, viajou pelo sul da Itália, Síria e Palestina à procura de mestres cristãos, até que chegou em Alexandria. Os ensinamentos de Panteno (chefe da escola catequética de Alexandria, no Egito) fizeram com que fixasse residência ali. No ano 202, a perseguição de Sétimo Severo o obrigou a abandonar o Egito e a se refugiar na Capadócia, onde faleceu pouco antes de 215. Seu conhecimento dos escritos pagãos e da literatura cristã é notável. Segundo Quasten, em suas obras se encontram cerca de 360 citações dos clássicos, 1500 do Antigo Testamento e 2000 do Novo Testamento. Por isso, é considerado cronologicamente como o primeiro sábio cristão conhecedor profundo não apenas da Sagrada Escritura como também das obras cristãs anteriores a ele e, inclusive, obras da literatura profana. Em sua obra "O Protréptico" ou "Exortação aos Gregos", escreve:

"A Palavra, então, o Cristo, é a causa de nosso antigo princípio - porque Ele estava com Deus - de nosso bem-estar. E agora esta mesma Palavra apareceu como homem. Apenas Ele é Deus e Homem, e fonte de todas as coisas boas. É por Ele que nos ensina a viver bem e, então, somos mandados para a vida eterna (...) Ele é o cântico novo, a manifestação que agora nos foi feita, da Palavra que existiu no princípio e antes do princípio. O Salvador, que existiu antes, apareceu apenas posteriormente. Ele, que apareceu, está Nele que é, pela Palavra que estava com Deus, a Palavra pela qual todas as coisas foram feitas; apareceu como nosso Mestre e Ele, que nos concedeu a vida no princípio quando, como nosso Criador, Ele nos formou; agora que Ele apareceu como nosso Mestre, nos ensinou a viver bem de modo que, logo, como Deus, poderá nos dar abundância na vida eterna" (Exortação aos Gregos 1,7,1).

Mais adiante, na mesma obra, continua aprofundando sua teologia do Logos, afirmando que a Palavra divina é "evidentemente verdadeiro Deus", acrescentando ainda que estava "no mesmo nível" do Pai, o que provaria que não tinha inclinações subordinacionistas:

"Desdenhado na sua aparência, porém, na verdade adorado, o Expiador, o Salvador (...), a Palavra divina, Ele que é absolutamente e evidentemente Deus verdadeiro, Ele que está no mesmo nível do Senhor do universo porque era seu Filho e a Palavra estava com Deus" (Exortação aos Gregos 10,110,1).

Em "O Pedagogo" (uma obra em 3 livros, que é a continuação do "Protréptico"), explica:

"Meus filhos: nosso Instrutor é como seu Deus, o Pai, pois é Filho Dele: livre de pecado, livre de culpa e com a alma livre de Paixão. Deus em forma de homem, inoxidável; o ministro de seu Pai, a Palavra que é Deus; que está no Pai, que é a mão direita do Pai; e, com a forma de Deus, é Deus. Ele é para nós uma imagem irrepreensível..." (O Pedagogo 1,2).
Em seu comentário sobre 1João, escreve:

"O Filho de Deus, sendo, por igualdade de substância, um com o Pai, é eterno e não-criado".

SÃO TEÓFILO DE ANTIOQUIA (SÉC. II)

Sexto bispo de Antioquia, como atesta Eusébio em sua História Eclesiástica 4,20. Se conservam 3 livros de sua autoria, escritos por volta do ano 180 d.C., intitulados "A Autólico". Assim como Tertuliano foi o primeiro a empregar o vocábulo latino "Trinitas", Teófilo foi o primeiro a usar o termo "Τριας" (=Trindade) para expressar a união das três Pessoas divinas em Deus:

"Os três dias que precedem a criação dos luzeiros são símbolo da Trindade, de Deus, de seu Verbo e de sua Sabedoria" (A Autólico 2,15).
"Tendo, pois, Deus o seu Verbo imanente em suas próprias entranhas, o gerou com sua própria sabedoria, emitindo-o antes de todas as coisas. Ele teve este Verbo por ministro de sua criação e através Dele fez todas as coisas (...) Isto se chama 'princípio', pois é Príncipe e Senhor de todas as coisas por Ele criadas" (A Autólico 2,10).

"Sim, Deus, o Pai do universo, é imenso e não se encontra limitado a um lugar, pois não há lugar para seu descanso. Mas seu Verbo, pelo qual fez todas as coisas, como potência e sabedoria sua que é, tomando a figura do Pai e Senhor do universo, este é que se apresentou no jardim sob a figura de Deus e que conversava com Adão. Com efeito, a própria divina Escritura nos ensina que Adão disse ter ouvido a sua voz; e essa voz que outra coisa seria senão o Verbo de Deus, que é também seu Filho? Filho não do modo como falam os poetas e mitógrafos - que os filhos dos deuses nascem pela união carnal - mas como a verdade explica que o Verbo de Deus está sempre imanente no coração de Deus. Porque antes de criar do nada, a Este tinha por conselheiro, como mente e pensamento Seu que era. E quando Deus quis fazer o que tinha deliberado, gerou a este Verbo proferido (προφορικ?ν) como primogênito de toda criação, não esvaziando-se de seu Verbo, mas gerando o Verbo e conversando sempre com Ele. Por isso, nos ensinam as Sagradas Escrituras e todos os inspirados pelo Espírito, dentre os quais João: 'No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus', dando a entender que no princípio estava apenas Deus e Nele seu Verbo; e logo diz: 'E o Verbo era Deus'" (A Autólico 2,22).

TERTULIANO (160-220 D.C.)

Ainda que Tertuliano não seja considerado um "Padre da Igreja", mas um apologeta, tendo no final de sua vida aderido à heresia Montanista, foi muito lido antes de abandonar a Igreja Católica. Foi o primeiro a aplicar o termo latino "Trinitas" (Trindade) às três Pessoas divinas. Em "De Pudicitia" ("Da Modéstia"), escreve:

"Para a mesma Igreja é, propriamente e principalmente, o próprio Espírito, no qual está a Trindade de uma Divindade: Pai, Filho e Espírito Santo" (Da Modéstia 21).

Em "Adversas Praxean" ("Contra Praxéas"), oferece uma explicação ainda mais completa sobre a doutrina trinitária:

"No entanto, como sempre fizemos (e mais especialmente a partir do momento que fomos melhor instruídos pelo Paráclito, que conduz os homens à verdade), cremos que existe um só Deus, porém, sob a seguinte dispensação, ou ο?κονομ?α, como é denominada: que este único Deus tem também um Filho, sua Palavra, que procede Dele mesmo, por quem todas as coisas foram feitas e sem O qual nada foi feito. Cremos que Ele foi enviado pelo Pai à Virgem e dela nasceu, sendo Deus e homem, filho do homem e Filho de Deus, sendo chamado Jesus Cristo; cremos que Ele sofreu, morreu ferido, conforme as Escrituras, e, posteriormente, foi ressucitado pelo Pai e levado ao céu para sentar-se à direita do Pai; Ele virá para julgar os vivos e os mortos e enviou, também, a partir do céu do Pai, conforme a sua promessa, o Espírito Santo, o Paráclito, o santificador da fé daqueles que crêem no Pai e no Filho e no Espírito Santo. Esta é a regra de fé que chegou até nós desde o início do Evangelho, inclusive antes todas as antigas heresias" (Contra Praxéas 2).

No mesmo capítulo, um pouco mais adiante, escreve:

"A heresia, a qual supõe por si mesma possuir a pura verdade, pensando que não se pode crer que um só Deus de nenhum outro modo a não ser dizendo que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são a mesma Pessoa, como se neste modo um também não fosse todos, em que todos são um, por unidade de substância, enquanto o mistério da dispensação é, todavia, guardado, o qual distribui a Unidade na Trindade, colocando em sua ordem as três Pessoas - o Pai, o Filho e o Espírito Santo; três, mas não em condição e sim em grau, não em substância e sim em forma, não em poder e sim em aspecto" (Contra Praxéas 2).

Este texto é particularmente importante porque explica a concepção que Tertuliano possui da Trindade: 3 Pessoas, porém não 3 Naturezas; não diferentes quanto ao poder, mas quanto ao aspecto. Isto é confirmado também no capítulo 4 da mesma obra, onde volta a afirmar que o Filho é "da substância do Pai": "Filium non aliunde deduco, sed de substantia Patris"; e o Espírito é "do Pai pelo Filho": "Spiritum non aliunde deduco quam a Patre per Filium":

"Se a pluralidade na Trindade te escandaliza, como se não estivesse ligada na simplicidade da união, te pergunto: como é possível que um ser, que é pura e absolutamente um e singular, fale no plural: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança'? Não deveria, antes, ter dito: 'Eu faço o homem à minha imagem e semelhança', já que é um Ser único e singular? No entanto, na passagem que segue, lemos: 'Eis que o homem foi feito como um de nós'. Ou Deus nos engana ou goza de nós ao falar no plural, já que Ele é único e singular. Ou será que se dirigia aos anjos, como interpretam os judeus, já que não reconhecem o Filho? Ou será que Ele, sendo Pai, Filho e Espírito, falava no plural, considerando-se múltiplo? Certamente, a razão é porque tinha ao seu lado uma segunda Pessoa, seu Filho e Verbo, e uma terceira Pessoa, o Espírito no Verbo. Por isso, empregou deliberadamente o plural: 'Façamos - nossa imagem - um de nós'. Com efeito, com quem criava o homem? À semelhança de quem o criava? Falava, por um lado, com o Filho, que deveria um dia se revestir da carne humana; por outro lado, [falava] com o Espírito, que devia um dia santificar o homem, como se falasse com outros tantos ministros e testemunhas" (Contra Praxéas 12).

Continua, posteriormente, no mesmo capítulo:

"Agora se Ele também é Deus, conforme João, [que diz] 'E a Palavra era Deus', então você tem dois seres: um que ordena que as coisas sejam feitas e outro que executa a ordem e cria. Nesse sentido, no entanto, você deve entender que Ele é outro, como já expliquei, quanto à personalidade, não quanto a substância; nesse modo de distinção, não de divisão. Assim devo manter que há uma só substância em três [Pessoas] coerentes e inseparáveis" (Contra Praxéas 12).

No texto anterior, Tertuliano se serve do termo "Pessoa" para explicar que a Palavra (Logos) é distinta do Pai no "sentido de Pessoa, não de substância; para distinção, não para divisão", o que aplica também para o Espírito Santo, a quem chama "a terceira Pessoa". Porém, ainda que Tertuliano tenha contribuído para a criação de uma terminologia precisa para a doutrina trinitária, não se viu livre totalmente do Subordinacionismo, a ponto que chegou a interpretar que o Filho não era eterno (um dos erros do Arianismo):

"Foi então que o Verbo recebeu sua manifestação e complemento, isto é, o som e a voz, quando Deus disse: 'Faça-se a luz'. Eis aí o nascimento perfeito do Verbo, quando procedeu de Deus. Primeiro foi produzido por Ele no pensamento, sob o nome de Sabedoria: 'Deus me criou no início de seus caminhos' (Provérbios 8,22). Logo, foi gerado com vistas à ação: 'Quando fiz os céus, estava próximo a Ele' (Provérbios 8,27). Por conseqüência, fazendo Pai aquele de quem o Filho procedeu, veio a se tornar primogênito (porque foi gerado antes de todas as coisas) e Filho único (porque só Ele foi gerado por Deus)" (Contra Praxéas 7).

ORÍGENES (185-254 D.C.)

Orígenes foi um proeminente escritor eclesiástico, teólogo e comentarista bíblico. Viveu em Alexandria até o ano 231, passando seus últimos 20 anos de vida em Cesaréia Marítima (Palestina) ou viajando pelo Império Romano. Foi o maior mestre da doutrina cristã de sua época e exerceu uma extraordinária influência como intérprete bíblico. Cabe ressaltar que alguns de seus ensinamentos não foram ortodoxos. Muito interessante para o tema que abordamos foi o debate de Orígenes com Heráclides, descoberto em alguns papiros encontrados em Toura, localidade próxima do Cairo, em 1941. Ali se apresenta um debate completo que teve origem nas opiniões de Heráclides sobre a doutrina trinitária, que preocupavam seus irmãos no episcopado. Estes chamam Orígenes para discutir a questão. Este debate foi realizado na presença do povo e dos bispos por volta do ano 245. A este respeito, comenta Quasten:

"Heráclides não gostava da fórmula de Orígenes 'dois Deuses' (δ?ο θεο?) como a única maneira para se expressar claramente a distinção entre o Pai e o Filho. Implicava em perigo demasiadamente grave de politeísmo. No debate, Orígenes faz esta observação: 'Já que nossos irmãos se escandalizam ao ouvir que existem dois deuses, este assunto merece ser tratado com delicadeza'. Recorre a seguir à Bíblia para demonstrar em qual sentido os dois podem ser um. Adão e Eva eram dois, no entanto, formavam uma só carne (Gênese 2,24). Cita depois São Paulo, o qual, falando da união do homem justo com Deus, diz: 'Aquele que se achega ao Senhor se torna um espírito com Ele' (1Coríntios 6,17). Finalmente, invoca como testemunho o próprio Cristo, porque disse: 'Eu e meu Pai somos um'. No primeiro exemplo, havia unidade de 'carne'; no segundo, 'de espírito'; no terceiro, de 'divindade'. Observa Orígenes: 'Nosso Senhor e Salvador, em sua relação com o Pai e Deus do universo, não é uma só carne, nem apenas um só espírito, mas algo muito mais elevado que a carne e o espírito: um só Deus".

Assim, Orígenes defende que o Pai e o Filho são divinos, contra [as heresias do] Monarquianismo e Modalismo. Termina o interrogatório de Orígenes a Heráclides com o seguinte acordo:

"Orígenes disse: O Pai é Deus?
Respondeu Heráclides: Sim.
Orígenes disse: O Filho é distinto do Pai?
Respondeu Heráclides: Como poderia ser simultaneamente Filho e Pai?
Orígenes disse: O Filho, que é distinto do Pai, é também Deus?
Respondeu Heráclides: Também Ele é Deus.
Orígenes disse: Deste modo, os dois Deuses formam um só?
Respondeu Heráclides: Sim.
Orígenes disse: Por conseguinte, afirmamos que existem dois Deuses?
Respondeu Heráclides: Sim, porém o poder é único (δ?ναμη μ?α εστ?ν)".

Definição esta bem anterior a Nicéia e que, ainda sem precisar a terminologia, serve para expressar o próprio sentir. Assim, com este acordo diante do povo e dos bispos, Cristo foi proclamado como Deus, embora sendo uma Pessoa distinta do Pai. Defendia-se desta forma a individualidade das Pessoas divinas contra o Modalismo e se esclareciam os temores de que, ao se reconhecer Cristo e o Pai como Deus, caía-se no Politeísmo.

Orígenes emprega freqüentemente o termo "Trindade" (In Ioh. 10,39,270; 6,33,166; In Ies. Hom. 1,4,1) e afirma que o Filho procede do Pai. E visto que Deus é eterno, logo este ato de geração também é eterno, de modo que o Filho não teve princípio e não existiu um tempo em que Ele não tenha existido (opõe-se assim, com antecedência, à heresia do Arianismo, que afirmaria algum tempo depois justamente o oposto, isto é, que houve um tempo em que o Filho não existia (De princ. l,2,9s; 2; 4,4,1; In Rom. 1,5)):

"Não se pode conceber luz sem resplendor. E se isto é verdade, nunca houve um tempo em que o Filho não fosse Filho. No entanto, não será - como dissemos sobre a luz eterna - sem nascimento (pareceria que introduzimos dois princípios de luz), mas que é, por assim dizer, resplendor da luz ingênita, tendo esta mesma luz como princípio e fonte, verdadeiramente nascida dela. Não obstante, não houve um tempo em que não foi. A Sabedoria, por proceder de Deus, é gerada também da mesma substância divina. Sob a figura de uma emanação corporal, é chamada assim: 'Emanação pura da glória de Deus onipotente' (Sabedoria 7,25). Estas duas comparações manifestam claramente a comunidade de substâncias entre o Pai e o Filho. Com efeito, toda emanação parece ser 'ομοο?σιος', οu seja, de uma mesma substância com o corpo do qual emana ou procede" (In Hebr. frag. 24,359).

Observe-se que ele emprega a palavra "ομοο?σιος" ("homoousios"), que significa "mesma substância", a qual posteriormente seria amplamente empregada pelo Concílio de Nicéia para definir solenemente como o Pai e o Filho possuem uma mesma natureza. Refere-se a Cristo também a expressão "θε?νθρωπος" (Deus-Homem).

Porém, Orígenes possui alguns textos confusos, a ponto de parecer tender para o Subordinacionismo. Entre os que o acusam de ter professado este erro encontra-se São Jerônimo; mas outros Padres da Igreja, como Santo Atanásio e São Gregório Taumaturgo o negam. Um dos textos em que parece ser subordinacionista é este:

"Nós, que cremos no Salvador quando diz: 'O Pai que me enviou é maior do que eu', e por essa mesma razão não permite que lhe seja aplicado o apelativo de 'bom' em seu sentido pleno, verdadeiro e perfeito, atribuindo-o ao Pai, dando graças e condenando quem glorificasse o Filho em demasia, nós dizemos que o Salvador e o Espírito Santo estão muito acima de todas as coisas criadas, por uma superioridade absoluta, sem comparação possível; porém, dizemos também que o Pai está acima Deles tanto ou até mais do que Eles estão acima das criaturas mais perfeitas (In Ioh. 13,25).

SÃO JUSTINO (165 D.C.)

Mártir da fé cristã por volta do ano 165 (foi decapitado), é considerado o maior apologista do século II. No Diálogo com Trifão, refere-se a Cristo como 'Deus gerado do Pai do universo' e parte de textos da Gênese, onde Deus fala na primeira pessoa do plural, para demonstrar a pluralidade das Pessoas divinas. Descarta aqui que estivesse falando com os anjos, já que seria inconcebível que o homem fosse feito por eles; descarta também que estivesse falando com os elementos terrestres. Conclui que falava com Cristo, o qual estava com o Pai antes de todas as criaturas.
"Disse: 'Irei vos apresentar - caros amigos - outro testemunho das Escrituras sobre o que Deus gerou no princípio, antes de todas as criaturas: [gerou] certa potência racional de Si mesmo, a qual é chamada também pelo Espírito Santo, a glória do Senhor, algumas vezes 'Filho', outras vezes 'Sabedoria'; ora 'Anjo', ora 'Deus'; seja 'Senhor', seja 'Palavra'; e ela própria chama a si mesma de 'capitão geral', quando aparece na forma de homem a Josué, filho de Nave. E é assim que todas essas denominações lhe provêm por estar a serviço da vontade do Pai e por ter sido gerada pelo querer do Pai (...) Mas será a Palavra da Sabedoria que me prestará seu testemunho, por ser ela esse próprio Deus gerado do Pai do universo, que subsiste como Palavra e Sabedoria, como poder e glória Daquele que a gerou (...)

Isso mesmo - amigos - expressou a Palavra de Deus pela boca de Moisés, ao nos indicar que o Deus que nos manifestou falou nesse mesmo sentido na criação do homem, ao dizer estas palavras: 'Façamos o homem à nossa imagem e semelhança' (...) E para não distorcerdes as palavras citadas, dizendo o que dizem os vossos mestres - que Deus se dirigiu a Si mesmo ao dizer 'Façamos', da mesma forma que nós quando vamos fazer algo e dizemos 'Façamos' - vos citarei agora outras palavras do mesmo Moisés, pelas quais, sem discussão alguma, teremos que reconhecer que conversava Deus com alguém que era numericamente distinto e juntamente racional. Ei-las aqui: 'E Deus disse: Eis que Adão se tornou como um de nós para conhecer o bem e o mal'. Portanto, ao dizer: 'como um de nós', indica o número dos que entre si conversavam, sendo assim pelo menos dois. Ora, não posso ter por verdadeiro a heresia que se dogmatiza entre vós, nem os mestres delas são capazes de demonstrar que Deus está falando com os anjos ou que o corpo humano foi criado pelos anjos. A menos que tenha brotado, sido emitido realmente a partir do Pai, Ele estava com o Pai antes de todas as criaturas e conversava com o Pai, como nos manifestou a Palavra pela boca de Salomão, ao dizer que antes de todas as criaturas Ele foi gerado por Deus ,como princípio e progênie, sendo chamado 'Sabedoria' por Salomão" (Diálogo com Trifão 61-62).

Mais adiante, refere-se a Cristo como Senhor e Deus:

"Longamente demonstrei que Cristo, que é Senhor e Deus, Filho de Deus, apareceu antes, prodigiosamente, como homem e como anjo, e também na glória do fogo, como na visão da sarça e no juízo contra Sodoma" (Diálogo com Trifão 128).

Em sua 1ª Apologia, distingue clara e ordenadamente as Três Pessoas divinas. Isto descarta que Justino tivesse alguma tendência modalista:

"E logo demonstraremos que com razão honramos também a Jesus Cristo, que foi nosso mestre nestas coisas e que para isso nasceu e foi crucificado sob Pôncio Pilatos, o procurador da Judéia no tempo de Tibério César. Aprendemos que Ele é Filho do mesmo Deus verdadeiro e o temos em segundo lugar, assim como o Espírito profético está em terceiro" (1ª Apologia 13,3).

Distingue ainda, mais claramente, a pessoa do Pai da do Filho, no capítulo 63, reconhecendo que os profetas falaram de Cristo, proclamando-o como "o Deus de Abraão, Isaac e Jacó":

"Aqueles que dizem que o Filho é o Pai dão prova de que não sabem quem é o Pai, nem perceberam que o Pai do universo tem um Filho e que, sendo Verbo e Primogênito de Deus, é Deus também. Este foi quem primeiramente apareceu a Moisés e aos outros profetas na forma de fogo ou por imagem incorpórea, e que agora, nos tempos do vosso império (...) nasceu homem de uma virgem (...) Agora, aquilo que falou a Moisés a partir da sarça: 'Eu sou aquele que é, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó', significa que, mesmo depois de mortos, esses homens continuavam pertencendo ao próprio Cristo" (1ª Apologia 63,15).

SÃO GREGÓRIO TAUMATURGO (SÉC. III)

Nascido por volta do ano 213, foi bispo de sua cidade natal, Neocesaréia. Compôs um breve símbolo de fé, sobre o qual Quasten comenta: "embora se limite ao dogma da Trindade, é notável por sua exatidão de conceitos e afirma que nenhuma das Pessoas divinas nunca ficaram uma sem as outras e que existiram sempre sem mudanças".

"Há um só Deus, Pai do Verbo vivente, da Sabedoria subsistente, do Poder e da Imagem eterna; gerador perfeito do gerado perfeito, Pai do Filho Unigênito. Há um só Senhor, Único do Único, Deus de Deus, Figura e Imagem da Divindade, Verbo Eficiente, Sabedoria que abraça todo o universo e Poder que cria o mundo inteiro, Filho verdadeiro do Pai verdadeiro, Invisível do Invisível, Incorruptível do Incorruptível, Imortal do Imortal, Eterno do Eterno. E há um só Espírito Santo, que tem sua subsistência de Deus e foi manifestado aos homens pelo Filho: Imagem do Filho, Imagem Perfeita do Perfeito, Vida, Causa dos viventes, Manancial Sagrado, Santidade que comunica a santificação, em quem se manifestam Deus Pai - que está acima de todos e em todos - e Deus Filho - que é através de todos. Há uma Trindade perfeita, em glória, em eternidade e em majestade, que não está dividida nem separada. Não há, conseqüentemente, nada criado nem escravo da Trindade, nem tampouco nada sobre-acrescentado, como se não tivesse existido em algum tempo anterior e fosse introduzido depois. E, assim, nem nunca o Filho falou ao Pai, nem o Espírito Santo ao Filho; ao contrário, sem variação ou mudança, a mesma Trindade sempre existiu" (Exposição da Fé).

NOVACIANO (SÉC. III)

Sacerdote romano. Conforme Eusébio de Cesaréia, se serviu de uma artimanha para ser ordenado bispo de Roma, obrigando que alguns bispos o consagrassem. Causou, assim, um cisma que durou vários séculos. O seu escrito, "Sobre a Trindade" (De Trinitate), porém, foi redigido muitos anos antes de 250 d.C.:

"O Filho, por ser gerado pelo Pai, está sempre no Pai. Quando digo 'sempre', não quero dizer que é ingênito. Afirmo, ao contrário, que nasceu. Porém, nasceu antes de todo o tempo; deve-se dizer que existiu sempre no Pai, visto não ser possível fixar data ao que é anterior a todo o tempo. Ele está eternamente no Pai, pois de outra maneira o Pai não seria sempre Pai. Por outro lado, o Pai é anterior a Ele, pois o Pai deve ser necessariamente anterior ao Filho, já que é Pai; visto que Ele não conhece origem, deve existir anteriormente ao que teve uma origem. O Filho, portanto, é necessariamente posterior ao Pai, pois Ele mesmo reconhece que existe no Pai; teve uma origem, visto que nasceu, e a partir do Pai, de uma maneira misteriosa; contudo, apesar de ter nascido e ter, assim, origem, é em tudo semelhante ao Pai, precisamente em razão de seu nascimento, já que nasceu do Pai, o qual é o único que carece de origem. Ele, portanto, quando o Pai quis, procedeu do Pai; Ele estava no Pai, porque procedia do Pai, não sendo outra coisa senão a Substância divina. Seu nome é Verbo, pelo qual todas as coisas foram feitas e sem o qual nada foi feito. Porque todas as coisas são posteriores a Ele, pois procedem Dele e, conseqüentemente, Ele é anterior a todas as coisas (embora após o Pai), pois todas as coisas foram feitas por Ele. Procedeu do Pai, por cuja vontade todas as coisas foram feitas. Deus, certamente, procedente de Deus, constituindo a segunda Pessoa depois do Pai, por ser Filho, sem que por isso retire do Pai a unidade da divindade" (Sobre a Trindade 31).

Porém, Novaciano professou um Subordinacionismo pois, apesar de possuir a mesma substância, o Espírito Santo era inferior a Cristo e Cristo, por sua vez, inferior ao Pai; por isso, diz que aparece "como o único Deus verdadeiro e eterno; Ele é a única fonte deste poder da divindade, Ainda que seja transmitida ao Filho e concentrada Nele, retorna novamente ao Pai através de sua comunidade de substância":

"O Paráclito recebeu sua mensagem de Cristo. Mas se recebeu de Cristo, Cristo é superior ao Paráclito, pois o Paráclito não teria recebido de Cristo se não fosse inferior a Cristo. Esta inferioridade do Paráclito prova que Cristo, de quem recebeu sua mensagem, é Deus. Aqui tempos, portanto, um poderoso testemunho da divindade de Cristo. Vemos, com efeito, que o Paráclito é inferior a Ele e recebe Dele a mensagem que entrega ao mundo".

SÃO CIPRIANO DE CARTAGO (SÉC. III)

São Cipriano nasceu por volta do ano 200, provavelmente em Cartago, de família rica e culta. Dedicou sua juventude à retórica. O desgosto que sentia diante da imoralidade dos ambientes pagãos, contrastado com a pureza de costumes dos cristãos, lhe induziu a abraçar o Cristianismo por volta do ano 246. Pouco depois, em 248, foi eleito bispo de Cartago. Ao estourar a perseguição de Décio, em 250, julgou melhor se retirar para um lugar afastado, para continuar se ocupando de seu rebanho. Declara a divindade de Cristo numerosas vezes e afirma que quem nega que Cristo seja Deus não pode ser templo de Deus:

"Cristo Jesus, nosso Senhor e Deus, é propriamente o sumo-sacerdote de Deus Pai" (Epístola 63,14).

"Se alguém pudesse ser batizado pelos hereges, poderia certamente receber também o perdão de seus pecados. Se recebesse o perdão dos pecados, poderia ser santificado. Se fosse santificado, poderia se tornar um templo de Deus. Se fosse um templo de Deus, então eu te pergunto: De qual Deus? Do Criador? Porém, isso não é possível, porque ele não crê Nele. De Cristo? Quem nega que Cristo seja Deus não pode se transformar em Seu templo. Do Espírito Santo? A partir do momento em que os Três são Um, como seria possível ao Espírito Santo ser reconciliado com aquele que é um inimigo do Filho ou do Pai?" (Epístola 73,12).

"Após a ressurreição, quando o Senhor enviou os Apóstolos às nações, Ele lhes ordenou a batizar aos gentios em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (...) O próprio Cristo ordenou que as nações sejam batizadas na Trindade plena e unida" (Carta 73,18).

SÃO DIONÍSIO DE ROMA (SÉC. III)

Papa entre os anos de 259 e 268. Combateu o Modalismo e o Subordinacionismo. Quando foi apresentada a Dionísio de Roma uma acusação de que o bispo Dionísio de Alexandria se expressava incorretamente sobre a Trindade, originou-se uma controvérsia que ficou conhecida como "a controvérsia dos dois Dionísios". O Papa convocou um sínodo para o ano de 260 visando solucionar a questão. Em seu nome e em nome do sínodo escreveu uma carta na qual condenava a doutrina modalista de Sabélio e também as opiniões marcionitas que dividiam a monarquia divina em três hipóstases distintas e ainda aqueles que representavam o Filho de Deus como criatura. Na carta a Dionísio de Alexandria, o Papa classifica de blasfema a opinião de que o Filho era o Pai (modalismo) e censura, ainda, a doutrina apoiada pelos catequistas de Dionísio de Alexandria, que afirmavam que cada Pessoa divina tinha uma natureza diferente da outra:

"Ouví dizer que alguns dos teus catequistas e mestres da palavra divina encabeçam este princípio [herético que divide as naturezas das Pessoas divinas]. Eles ensinam de maneira diametralmente oposta à opinião [herética] de Sabélio. Para ele, em sua blasfêmia, diz que o Filho é o Pai e vice-versa; para os teus, que existe de alguma forma três Deuses, pois dividem a Sagrada Unidade em três substâncias diferentes entre si e completamente separadas" (Carta de Dionísio de Roma a Dionísio de Alexandria 1).

Também declara que o Arianismo é uma blasfêmia pois afirma que Cristo é um ser criado e que, por ser Cristo a Palavra, Sabedoria e poder de Deus, pode ter havido um tempo em que o Pai existisse sem Ele:

"É blasfêmia, portanto, e até pior, dizer que o Senhor foi de alguma forma criado. Porém, se veio a ser Filho, então Ele não foi [criado], como Ele diz de si mesmo; Ele está no Pai e se você conhece a Divina Escritura, ela diz que Cristo é a Palavra, a Sabedoria e o Poder; e esses atributos são poderes de Deus. Então Ele sempre existiu. Ora, se Ele veio a ser [criado], houve uma época em que esses atributos não existiam e, conseqüentemente, nesse tempo Deus estava sem eles; isso é um completo absurdo" (Carta de Dionísio de Roma a Dionísio de Alexandria 1).

"É necessário, no entanto, que a Palavra divina [Jesus Cristo] esteja unida ao Deus do universo; e o Espírito Santo deve respeitar e habitar em Deus. Portanto, a Trindade Divina deve ser reunida em Uma, como se fosse um ápice, quero dizer, o Deus onipotente do universo" (Carta de Dionísio de Roma a Dionísio de Alexandria 2).

"Não podemos então dividir em três cabeças divinas a maravilhosa e divina monarquia, nem chamar 'obra', desacreditando a dignidade e excelente majestade de nosso Senhor. Devemos, porém, crer em Deus, o Pai todopoderoso; e em Jesus, seu Filho; e no Espírito Santo. Sustentemos, enfim, que a Palavra está unida ao Deus do universo" (Carta de Dionísio de Roma a Dionísio de Alexandria 3).

CONCLUSÃO:
Depois de termos estudado o testemunho dos Padres pré-nicenos, não é difícil concluir que a doutrina trinitária não é nenhuma novidade e, muito menos, um produto das manobras políticas do imperador Constantino. A Igreja foi fiel em reconhecer que existe um só Deus, sendo Ele Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo, e esta verdade era compreendida e ensinada com maior ou menor clareza na era pós-apóstolica e pré-nicena. É claro, ainda, que a maioria dos Padres rejeitavam abertamente tanto o Arianismo (que afirmava que Jesus era um deus menor, criado e subordinado ao Pai, em algum momento não existente) e o Modalismo (que afirmava que existia uma só Pessoa Divina em Deus, sendo o Filho o próprio Pai e vice-versa, embora manifestados de modos diferentes). É certo que alguns Padres não compreenderam cabalmente o mistério trinitário e chegaram a tender para um Subordinacionismo em maior ou menor grau, coisa totalmente compreensível em assunto de tão grande complexidade. Foram, precisamente, conflitos tão graves como o Arianismo e outras heresias, que deram oportunidade à Igreja a se aprofundar nestas verdades de fé.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Richard Horsley e o dossiê: Jesus de Nazaré

Numa incrível viagem à Palestina do século 1, historiadores e arqueólogos reconstituem com era a vida do homem comum que se tornou o filho de Deus para os mais de 2 bilhões de cristãos.

Cristo está em toda parte: nas obras mais importantes da história da arte, nos roteiros de Hollywood, nos letreiros luminosos de novas igrejas, nas canções evangélicas em rádios gospel, nos best-sellers de auto-ajuda, nos canais de televisão a cabo, nos adesivos de carro, nos presépios de Natal. Onde você estiver, do interior da floresta amazônica às montanhas geladas do Tibete, sempre será possível deparar com o símbolo de uma cruz, pena de morte comum no Império Romano à qual um homem foi condenado há quase 2 mil anos. Para mais de 2 bilhões de pessoas esse homem era o próprio messias (“Cristo”, do grego, o ungido) que ressuscitara para redimir a humanidade.

Embora o mundo inteiro (inclusive os não-cristãos) esteja familiarizado com a imagem de Cristo, até há bem pouco tempo os pesquisadores eram céticos quanto à possibilidade de descobrir detalhes sobre a vida do judeu Yesua (Jesus, em hebraico), o homem de carne e osso que inspirou o cristianismo. “Isso está começando a mudar”, diz o historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos especialistas no Brasil sobre o “Jesus histórico” – o estudo da figura de Jesus na história sem os constrangimentos da teologia ou da fé no relato dos evangelhos. Embora tragam detalhes do que teria sido a vida de Jesus, os evangelhos são considerados uma obra de reverência e não um documento histórico. Chevitarese e outros pesquisadores acreditam que, apesar de não existirem indícios materiais diretos sobre o homem Jesus, arqueólogos e historiadores podem ao menos reconstituir um quadro surpreendente sobre o que teria sido a vida de um líder religioso judeu naquele tempo, respondendo questões intrigantes sobre o ambiente e o cotidiano na Palestina onde ele vivera por volta do século I.

Nazaré, entre 6 e 4 a.C.

Uma aldeia agrícola com menos de 500 habitantes, cuja paisagem é pontuada por casas pobres de chão de terra batida, teto de estrados de madeira cobertos com palha, muros de pedras coladas com uma argamassa de barro, lama ou até de uma mistura de esterco para proteger os moradores da variação da temperatura no local. Segundo os arqueólogos, essa é a cidade de Nazaré na época em que Jesus nasceu, provavelmente entre os anos 6 e 4 a.C., no fim do reinado de Herodes. Isso mesmo: segundo os historiadores, Jesus deve ter nascido alguns anos antes do ano 1 do calendário cristão. “As pessoas naquele tempo não contavam a passagem do tempo como hoje, por meio da indicação do ano”, explica o historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari. “O cabeçalho dos documentos oficiais da época trazia apenas como indicação do tempo o nome do regente do período, o que leva os pesquisadores a crer que Jesus teria nascido anos antes do que foi convencionado.”

Se você também está se perguntando por que os historiadores buscam evidências do nascimento de Jesus na cidade de Nazaré – e não em Belém, cidade natal de Jesus, de acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas –, é bom saber que, para a maioria dos pesquisadores, a referência a Belém não passa de uma alegoria da Bíblia. Na época, essa alegoria teria sido escrita para ligar Jesus ao rei Davi, que teria nascido em Belém e era considerado um dos messias do povo judeu. Ou seja: a alcunha “Jesus de Nazaré” ou “nazareno” não teria derivado apenas do fato de sua família ser oriunda de lá, como costuma ser justificado.

Mesmo que os historiadores estejam certos ao afirmarem que o nascimento em Belém seja apenas uma alegoria bíblica, o entorno de uma casa pobre na cidade de Nazaré daquele tempo não deve ter sido muito diferente do de um estábulo improvisado como manjedoura. Como a residência de qualquer camponês pobre da região, as moradias eram ladeadas por animais usados na agricultura ou para a alimentação de subsistência. A dieta de um morador local era frugal: além do pão de cada dia (no formato conhecido no Brasil hoje como pão árabe), era possível contar com azeitonas (e seu óleo, o azeite, usado também para iluminar as casas), lentilhas, feijão e alguns incrementos como nozes, frutas, queijo e iogurte. De acordo com os arqueólogos, o consumo de carne vermelha era raro, reservado apenas para datas especiais. O peixe era o animal consumido com mais freqüência pela população, seco sob o sol, para durar. A maioria dos esqueletos encontrados na região mostra deficiência de ferro e proteínas. Essa parca alimentação é coerente com relatos como o da multiplicação dos pães, no Evangelho de Mateus, no qual os discípulos, preocupados com a fome de uma multidão que seguia Jesus, mostram ao mestre cinco pães e dois peixes, todo o alimento de que dispunham.

Se alguém presenciasse o nascimento de Jesus, provavelmente iria deparar com um bebê de feições bem diferentes da criança de pele clara que costuma aparecer nas representações dos presépios. Baseados no estudo de crânios de judeus da época, pesquisadores dizem que a aparência de Jesus seria mais próxima da de um árabe (de cabelos negros e pele morena) que da dos modelos louros dos quadros renascentistas. Seu nome, Jesus, uma abreviação do nome do herói bíblico Josué, era bastante comum em sua época. Ainda na infância, deve ter brincado com pequenos animais de madeira entalhada ou se divertido com rudimentares jogos de tabuleiro incrustados em pedras. Quanto à família de Jesus, os pesquisadores não acreditam que ele tenha sido filho único. Afinal, era comum que famílias de camponeses tivessem mais de um filho para ajudarem na subsistência da família. Isso poderia explicar o fato de os próprios evangelhos falarem em irmãos de Jesus, como Tiago, José, Simão e Judas. “As igrejas Ortodoxa e Católica preferiram entender que o termo grego adelphos, que significa irmão, queria dizer algo próximo de discípulo, primo”, diz Chevitarese.

Assim como outros jovens da Galiléia, é provável que ele não tenha tido uma educação formal ou mesmo a chance de aprender a ler e escrever, privilégio de poucos nobres. Ainda assim, nada o impediria de conhecer profundamente os textos religiosos de sua época transmitidos oralmente por gerações.

Política, religião e sexo

Desde aquele tempo, a região em que Jesus vivia já era, digamos, um tanto explosiva. O confronto não se dava, é claro, entre judeus e muçulmanos (o profeta Maomé só iria receber sua revelação mais de cinco séculos depois). A disputa envolvia grupos judaicos e os interesses de Roma, cujo império era o equivalente, na época, ao que os Estados Unidos são hoje. E, assim como grupos religiosos do Oriente Médio resistem atualmente à ocidentalização dos seus costumes, diversos grupos judaicos da época se opunham à influência romana sobre suas tradições. Na verdade, fazia séculos que os judeus lutavam contra o domínio de povos estrangeiros. Antes de os romanos chegarem, no ano 63 a.C., eles haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca forte como fora o rei Davi, que por volta do século 10 a.C. inaugurara um tempo de relativa estabilidade. Não à toa, Davi ficaria lembrado como o messias (ungido por Javé) e, assim como ele, outros messias eram aguardados para libertar o povo judeu.

A resistência aos romanos se dava de maneiras variadas. A primeira delas, e mais feroz, era identificada como simples banditismo. Nessa categoria estavam bandos de criminosos formados por camponeses miseráveis que atacavam comerciantes, membros da elite romana ou qualquer desavisado que viajasse levando uma carga valiosa.

Além do banditismo, havia a resistência inspirada pela religião, principalmente a dos chamados movimentos apocalípticos. De acordo com os seguidores desses movimentos, Israel estava prestes a ser libertado por uma intervenção direta de Deus que traria prosperidade, justiça e paz à região. A questão era saber como se preparar para esse dia.
Alguns grupos, como os zelotes, acreditavam que o melhor a fazer era se armar e partir para a guerra contra os romanos na crença de que Deus apareceria para lutar ao lado dos hebreus. Para outros grupos, como os essênios, a violência era desnecessária e o melhor mesmo a fazer era se retirar para viver em comunidades monásticas distantes das impurezas dos grandes centros. E Jesus, de que lado estava?
É quase certo que Jesus tenha tido contato com ao menos um líder apocalíptico de sua época, que preparava seus seguidores por meio de um ritual de imersão nas águas do rio Jordão. Se você apostou em João Batista, acertou.
O curioso é que, para a maioria dos pesquisadores, incluindo aí o padre católico John P. Meier, autor da série sobre o Jesus histórico chamada Um Judeu Marginal, o movimento apocalíptico de João Batista deve ter sido mais popular, em seu tempo, do que a própria pregação de Jesus. Os historiadores acreditam que é bem provável que Jesus, de fato, tenha sido batizado por João Batista nas margens do rio Jordão, e que o encontro deve ter moldado sua missão religiosa dali em diante.
Apesar de não haver nenhuma restrição para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com Maria Madalena, como no enredo de livros como O Código Da Vinci, também não passaria de uma grande especulação.

Uma morte marginal

O pesquisador Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts, em Boston, é categórico: a morte de Jesus na cruz em seu tempo foi muito menos perturbadora para o Império Romano do que se costuma imaginar. Horsley e outros pesquisadores desapontam os cristãos que imaginam a crucificação como um evento que causara, em seu tempo, uma comoção generalizada, como naquela cena do filme O Manto Sagrado em que nuvens negras escurecem Jerusalém e o mundo parece prestes a acabar. Apesar de ter sido uma tragédia para seus seguidores e familiares, a morte do judeu Yesua deve ter passado praticamente despercebida para quem vivia, por exemplo, no Império Romano. Ou seja: se existisse uma rede de televisão como a CNN, naquele tempo, é bem possível que a morte de Jesus sequer fosse noticiada. E, caso fosse, dificilmente algum estrangeiro entenderia bem qual a diferença da mensagem dele em meio a tantas correntes do judaísmo do período – assim como poucas pessoas no Ocidente compreendem as diferenças entre as diversas correntes dentro do Islã ou do budismo.

Os pesquisadores sabem, no entanto, que Jesus não deve ter escolhido por acaso uma festa como a Páscoa para fazer sua pregação em Jerusalém. A data costumava reunir milhares de pessoas para a comemoração da libertação do povo hebreu do Egito. No período que antecedia a festa, o ar tornava-se carregado de uma forte energia política. Era quando os judeus pobres sonhavam com o dia em que conseguiriam ser libertados dos romanos.

Para a elite judaica que vivia em Jerusalém, contudo, as manifestações anti-Roma não eram nada bem-vindas. Afinal, como ela se beneficiava da arrecadação de impostos da população de baixa renda, boa parte dela tinha mais a perder que a ganhar com revoltas populares que desafiassem os dirigentes romanos, cujos estilos de vida eram copiados por meio da construção de suntuosas vilas (espécie de chácaras luxuosas) nas cercanias de Jerusalém.

A própria opulência do Templo do Monte de Jerusalém, reconstruído por Herodes, o Grande, parecia uma evidência de que a aliança entre os romanos e os judeus seria eterna. A construção era impressionante até mesmo para os padrões romanos, o que fazia de Jerusalém um importante centro regional em sua época.
Em meio às festas religiosas, o comércio da cidade florescia cada vez mais. Vendia-se de tudo por lá, incluindo animais para serem sacrificados no templo. Os mais ricos podiam comprar um cordeiro para ser sacrificado e quem tivesse menos dinheiro conseguia comprar uma pomba no mercado logo em frente. A cura de todos os problemas do corpo e da alma (na época, as doenças eram relacionadas à impureza do espírito) passava pela mediação dos rituais dos sacerdotes do templo.

Não é difícil imaginar a afronta que devia ser para esses líderes religiosos ouvir que um judeu rude da Galiléia curava e livrava as pessoas de seus pecados com um simples toque, sem a necessidade dos sacerdotes. A maioria dos pesquisadores concorda que atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.

Quase tudo o que os pesquisadores conhecem sobre a crucificação deve-se à descoberta, em 1968, do único esqueleto encontrado de um homem crucificado em Giv’at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém. Após uma análise dos ossos, eles concluíram que os calcanhares do condenado foram pregados na base vertical da cruz, enquanto os braços haviam sido apenas amarrados na travessa. A raridade da descoberta deve-se a um motivo perturbador: a pena da crucificação previa a extinção do cadáver do condenado, já que o corpo do crucificado deveria ser exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. A idéia era evitar que o túmulo do condenado pudesse servir de ponto de peregrinação de manifestantes. De qualquer forma, a descoberta desse único esqueleto preservado prova que, em alguns casos, o corpo poderia ser reivindicado pelos parentes do morto, o que talvez tenha acontecido com Jesus.

O que aconteceu após sua morte?

Para os pesquisadores, a vida do Jesus histórico encerra-se com a crucificação. “A ressurreição é uma questão de fé, não de história”, diz Richard Horsley.

Tudo o que os historiadores sabem é que, apesar de pequeno, o grupo de seguidores de Jesus logo conseguiria atrair adeptos de diversas partes do mundo. E foi um dos novos convertidos, um ex-soldado que havia perseguido cristãos e ganhara o nome de Paulo, que se tornaria uma das pedras fundamentais para a transformação de Jesus em um símbolo de fé para todo o mundo. Com sua formação cosmopolita, Paulo lutou para que os seguidores de Jesus trilhassem um caminho independente do judaísmo, sem necessidade de obrigar os convertidos a seguirem regras alimentares rígidas ou, no caso dos homens, ser obrigados a fazer a circuncisão. A influência de Paulo na nova fé é tão grande que há quem diga que a mensagem de Jesus jamais chegaria aonde chegou caso ele não houvesse trabalhado com tanto afinco para sua difusão.

Mesmo para quem não acredita em milagres, não há como negar que Paulo e os outros seguidores de Jesus conseguiram uma proeza e tanto: apenas três séculos após sua morte, transformaram a crença de uns poucos judeus da Palestina do século I na religião oficial do Império Romano. Por essa época, a vida do judeu Yesua já havia sido encoberta pela poderosa simbologia do Cristo: assim como os judeus sacrificavam cordeiros para Javé, o Cristo se tornaria símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar os pecados do mundo. Desde então, a história de boa parte do mundo está dividida entre antes e depois de sua existência.

Escavando Jesus (Dois mil anos embaixo da terra)
Objetos de cozinha, brinquedos, ferramentas de trabalho e documentos: escavações na Palestina, Iraque, Roma e Turquia revelam como era a vida no tempo de Jesus.

Diversão infantil
Conhecidos desde o século 7 a.C., bonecos de barro com formas de animais eram brinquedos comuns na Galiléia, no tempo de Jesus

Iluminação
A luz interna das casas era feita por lamparinas a óleo – como esta, encontrada ao norte do atual Israel

Passatempo
Encontrado em Hazor, cidade bíblica no norte da Palestina, o jogo tinha tabuleiro de pedra e peões e dados feitos de ossos

Antes do plástico
Potes de cerâmica serviam para quase tudo. Estes, menores e com alças, achados em Megido, tinham vestígios de vinho

À mesa
A decantadeira de cerâmica – achada em 1905, no atual Israel – era usada para servir vinho, cerveja ou azeite
Oliveira
Moinhos como esse, em Cafarnaum, na Galiléia, movidos por tração humana ou animal, eram usados para obter azeite
Despensa
Jarros maiores de cerâmica serviam para guardar comida, principalmente grãos como a cevada e o trigo

Âncoras de pedra
Feitas no século 1 e achadas no mar da Galiléia, estas foram usadas por pescadores e comerciantes

Barco
Achado no mar da Galiléia e datado do século 1, esse era o modelo mais comum entre os pescadores

Manuscritos
A escrita era para poucos. E a maioria dos textos eram religiosos. Como o “Fragmento Trever”, parte dos Manuscritos do Mar Morto

Sandálias
Como estas, achadas em Massada (Israel), tinham solado e palmilhas de couro e cadarços de tecido

Tinteiro
De cerâmica, feito no século 1, encontrado numa das cavernas de Qumram

Fé e poder
Jerusalém era o centro religioso e político dos judeus. Lá foi encontrado o mais antigo desenho da menorá, do século o 1 a.C.

Graal
Feitos (adivinhem!) de cerâmica, estes eram os copos usados no século 1

Dinheiro
Moeda de bronze do reino de Herodes, o Grande, do século 1 a.C.

Crucificação
Parte de osso do calcanhar perfurado por prego de ferro, datado do século 1

Ver o peso
Caneca de pedra usada como medida no mercado de Jerusalém

O luxo que vem de Roma

Para a elite judaica que vivia na Palestina do século I, levar uma vida com requinte e elegância era sinônimo de viver como os romanos. Escavações arqueológicas em Jerusalém e outras cidades indicam uma clara influência da arquitetura e da decoração de Roma no interior das mansões. Para criar uma atmosfera palaciana, era comum, no interior das casas, a reprodução de afrescos e desenhos decorativos com motivos florais e geométricos. Em ambientes maiores, as colunas no estilo romano eram indispensáveis, assim como o uso de mármore para o acabamento dos detalhes – quem não podia pagar pelo mármore usava uma tinta de cor parecida para manter a aura palaciana. Fontes, vasos vitrificados e pisos de mosaico colorido também faziam parte do sonho de consumo dos novos ricos de Jerusalém, que costumavam receber os amigos influentes recostados confortavelmente no triclinium, espécie de divã usado na hora das refeições. Resquícios da importação de vinhos e outros ingredientes nobres da cozinha mediterrânea, como o garum, um molho especial de peixe típico da cidade de Pompéia, também foram encontrados no interior das mansões. Algumas delas deviam ter uma vista privilegiada para o Templo de Jerusalém, de onde os nobres podiam assistir confortavelmente à movimentação dos peregrinos ou mesmo à condenação à morte de rebeldes judeus.

Os outros messias (Os líderes religiosos judeus que não emplacaram na história)

Na época de Jesus, a figura do messias esperado para libertar o povo judeu era muito diferente da nossa atual concepção do messias cristão. Para início de conversa, o messias do povo hebreu não precisava ser nenhum santo. Podia ter várias mulheres (como tivera o rei Davi) e devia empregar a violência, caso fosse necessário, para garantir a autonomia do povo hebreu frente a seus inimigos. Não é à toa que, décadas antes e depois da morte de Jesus, diversos outros homens identificados como messias lideraram movimentos religiosos na região. Por volta do ano 4 a.C., por exemplo, um homem conhecido como Judas, filho de Ezequias, liderou uma revolta contra Herodes na cidade de Séforis, na Galiléia. Judas e seus seguidores chegaram a invadir um palacete na cidade para roubar armas para seu exército de oposição aos romanos. No mesmo ano, outras revoltas foram desencadeadas pelos líderes messiânicos Simão e Astronges. O principal objetivo desses movimentos era derrubar a dominação romana e restaurar os ideais tradicionais do povo hebreu. Na década de 60 do século I, o líder Simão Bar Giora organizou um exército de camponeses que chegou a assumir o controle de diversas regiões da Palestina daquele século. De acordo com os historiadores, o último e mais famoso líder messiânico a comandar uma revolta contra os romanos na região foi o judeu Bar Kokeba. Entre os anos 132 e 135, Kokeba teria liderado uma batalha sem precedentes contra os romanos, conquistando territórios por meio de uma tática de guerrilha que incluía esconderijos em cavernas e construção de fortalezas em montanhas. A rebelião somente foi aniquilada depois que o poderoso Exército romano mobilizou uma força maciça para pôr fim à guerra que se arrastava pelo terceiro ano. Não deixa de ser emblemático o fato de que o pacífico Jesus de Nazaré tenha ficado para a história como o “verdadeiro messias” – logo ele, que nunca liderara um exército.
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Saiba mais;

Excavating Jesus – Beneath the Stones, Behind the Texts, John Dominic Crossan e Jonathan L. Reed, HarperSanFrancisco, 2002
O diferencial do livro está no fato de ele trazer as descobertas arqueológicas mais importantes para que se possa entender como era a vida no tempo de Jesus
Bandidos, Profetas e Messias, Richard A. Horsley e John S. Hansom, Paulus, 1995
O melhor guia para quem quer compreender os diversos movimentos religiosos e políticos no tempo de Jesus
Jesus, uma Biografia Revolucionária, John Dominic Crossan, Imago, 1995
Um retrato fascinante sobre o que podemos saber sobre a figura histórica de Jesus escrito por um dos maiores especialistas sobre o tema
Um Judeu Marginal – Repensando o Jesus Histórico, John P. Meier, Imago, 1992
Uma obra corajosa sobre a vida marginal de Jesus em seu tempo escrita com rigor, erudição e clareza
Jesus de Nazaré, uma Outra História, André Chevitarese, Gabriele Cornelli, Mônica Selvatici (orgs.), Annablume Editora, 2006
Coletânea de artigos dos maiores especialistas brasileiros sobre o Jesus históricoJesus, Coleção Para Saber Mais, Rodrigo Cavalcante e André Chevitarese, Editora Abril, 2003
Introdução rápida sobre a figura do Jesus na história escrita pelo autor desta reportagem em parceria com o historiador André Chevitarese.
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Hispácia de Alexandria e a intolerância cristã.

Alexandria é uma cidade ao norte do Egito, situada a Oeste do delta do rio Nilo, às margens do Mar Mediterrâneo. É o principal porto do país, a principal cidade comercial e a segunda maior cidade do Egito. A cidade ficou conhecida por causa do empreendimento de tornar-se, na antigüidade, o centro de todo conhecimento do homem, com a criação da Biblioteca de Alexandria.

Possui vastas instalações portuárias(embarque de algodão). A parte ocidental do porto ocupa cerca de 900ha e a parte oriente constitui o porto de pesca. Entre estas duas docas está localizada a cidade maometana, com ruas estreitas e bazares.

Possui uma universidade e uma escola superior árabe. É a metrópole do comércio egípcio do algodão e centro de inúmeras indústrias. Tem refinaria de petróleo, central térmica, praia e aeroporto.

A cidade foi fundada em 332 a.C., por Alexandre Magno, para ser a melhor cidade portuária da Antigüidade. O porto foi construído com um imponente quebra-mar que chegava até a ilha de Faros, onde foi erguido o famoso farol conhecido como uma das sete maravilhas do mundo. A cidade se tornou a capital do Egito com os Tolomeos, que construíram muitos palácios, além da biblioteca de Alexandria. Atingiu o nível de centro científico e literário da época, fato que se prolongou durante os primeiros anos da dominação romana. A fundação da cidade de Constantinopla contribuiu para a queda da metrópole egípcia. Com os muçulmanos, a decadência de Alexandria avançou ainda mais, sobretudo pelo auge que adquiriu o Cairo.

Alexandria foi uma cidade importante ao ponto de merecer a intervenção de grandes homens de diferentes civilizações, como Pompeu, outros romanos e gentes de outros quadrantes, mas a sua fama está na sua Biblioteca e na propagação do Helenismo.

DINASTIA DOS PTOLOMEUS

Família Macedônica que reinou no Egito durante o período Helênico, da morte de Alexandre - o Grande, em 323 a.C., até o Egito transformar-se em Província Romana, em 30 a.C. O nome correto seria Dinastia Lágida.

A dinastia foi fundada pelo general de Alexandre, Ptolomeu I, que se estabeleceu como governante independente em 305 a.C., adotando o nome de Ptolomeu I Soter.

O reino prosperou sob sua gestão e as de seus sucessores, Ptolomeu II Philadelphos e Ptolomeu III Euergetes, que competiu com outra dinastia macedônica, os Selêucidas da Síria, pela supremacia no Mediterrâneo oriental.

A capital do reino, Alexandria, cidade cosmopolita com numerosa população Grega e Judaica, tornou-se um grande centro comercial e intelectual da Antigüidade.

Os lágidas criaram uma impressionante infra-estrutura administrativa, financeira e comercial. Entraram em decadência durante os séculos II e I a.C., quando Roma começou a intervir nos assuntos egípcios. A última governante ptolomaica foi Cleópatra VII.

Ptolomeu XII foi pai de Cleópatra VII, a qual foi amante de Julius Caesar e Marcus Antonius. A moeda abaixo, juntamente de outras, foi encontrada próxima da Costa de Haifa, em Israel.

REINADOS DOS PTOLOMEUS

Ptolomeu I, Soter (305-283 a.C.) Ptolomeu II, Philadelphos (285-246) Ptolomeu III, Euergetes (246-221) Ptolomeu IV, Philopator (221-205) Ptolomeu V, Epiphanes (205-180) Ptolomeu VI, Philometor (180-145) Ptolomeu VII, Eupator (145) Ptolomeu VIII, Euergetes II (145-116) Ptolomeu IX, Soter (116-106) Ptolomeu X, Alexander I (106-88) Cleópatra II (106-101) Ptolomeu IX, Soter (88-80) Ptolomeu XI, Alexander II (80) Ptolomeu XII, N. Dionysos (80-51) Cleópatra VII, Philopator (51-30) Ptolomeu XIII (51-47) Ptolomeu XIV (47-44) Ptolomeu XV (40) Ptolomeu XVI

Septuaginta

Versão dos Setenta - Primeira tradução dos escritos do Antigo Testamento hebraico para o grego, produzida em Alexandria, no século III a.C., a pedido de um dos reis macedônicos do Antigo Egito, Ptolomeu II Filadelfo. Durante o seu reinado, os judeus receberam privilégios políticos e religiosos totais. Também foi durante esse tempo que o Egito passou por um grande programa cultural e educacional, sob o patrocínio de Arsínoe, esposa e irmã de Ptolomeu II. Nesse programa inclui-se a fundação do museu de Alexandria e a tradução das grandes obras para o grego.

A Septuaginta tomou esse nome pelo fato de ter sido realizada por 70 anciões, trazidos de Jerusalém exclusivamente para a tarefa. Foi rechaçada pelos judeus ortodoxos, numa atitude semelhante ao católicos da Idade Média, diante do reformador protestante Martim Lutero, que traduziu a Bíblia para o alemão, tornando-a acessível ao povo. A idéia era a mesma: Ampliar o conhecimento do Antigo Testamento para a língua grega, para atingir outros judeus alexandrinos, mas os radicais viram este trabalho como uma profanação. A Septuaginta incluía não apenas o cânon hebraico, mas também outras obras judaicas, em sua maior parte escritas nos séculos II e I a.C., em hebraico, aramaico e grego. Esses escritos, mais tarde, vieram a ser conhecidos como os Apócrifos, palavra grega que significa oculto ou ilegítimo. Os judeus consideravam esses livros como não inspirados. Os denominados Apócrifos são 15 livros judaicos, surgidos no período intertestamentário. São eles: 1 e 2 Esdras, Tobias, Judite, Ester, Sabedoria de Salomão, Eclesiastes, Baruc, Epístola de Jeremias, Prece de Azarias e Cântico dos Três Jovens, Suzana, Bel e o Dragão, A Prece de Manassés, 1 e 2 Macabeus.

A Septuaginta serviu de fundo às traduções para o latim a para as outras línguas. Tornou-se também uma espécie de ponte religiosa colocada sobre o abismo existente entre os judeus (de língua hebraica) e os demais povos (de língua grega). O Antigo Testamento da LXX foi o texto utilizado em geral na primitiva igreja cristã. O Pilar de Pompéia, um grande pilar de granito cor de rosa, encontra-se nas ruínas do templo de Serapiun. Tal pilar foi dedicado em 297 d.C. ao imperador Diocletian, por sua vitória sobre o cristão Aquiles que havia requerido o título de imperador.

O Museu Greco-Romano, fundado em 1891 pelo arqueologista italiano Botti, possui mais de 40 mil relíquias valiosas.

O Anfiteatro Romano é uma ruína com 20 terraços em forma de semicírculos, que foi descoberto por arqueólogos, em 1964, localiza-se no distrito de Kom El Dekka.

Mosque Abu El Abbas El-Norsi: É uma das relíquias islâmicas da cidade. Fica no distrito de Al Anfushy.

Mais recente, em 18 de dezembro passado, jornais noticiaram que fortes terremotos podem ter sido responsáveis pelo desaparecimento de duas cidades do Egito antigo: Menouthis e Herakleion, cujas ruínas, muito bem preservadas, foram encontradas no leito do Mar Mediterrâneo alguns meses atrás. Acredita-se que tais cidades foram submersas há mais de 1.000 anos, sugerindo que a Alexandria de hoje, pode estar sob risco, por encontrar-se sobre uma falha geológica sísmica.

Outra história mais recente ainda, 28 de março deste ano, surpreende-nos com o que os representantes da Nauticos Corporation (companhia de exploração oceânica dos EUA) disseram ter encontrado enquanto procuravam um submarino israelense, desaparecido 30 anos atrás. Em lugar disso, encontraram uma embarcação grega que, segundo arqueólogos, tem mais de 2.000 anos e está numa região conhecida como Planície Abissal de Heródoto. Provavelmente, tal embarcação percorria o Mediterrâneo na época entre os reinados de Alexandre – o Grande, e Cleópatra, pois os arqueólogos estimaram que o navio afundou entre 200 e 300 a.C.
Hipácia de Alexandria(c. 370 d.C - 415 d.C)

"Todas as religiões dogmáticas formais são falaciosas e nunca devem ser aceitas como palavra final por pessoas que respeitem a si mesmas."
"Ensinar superstições como uma verdade absoluta é uma das coisas mais terríveis."

A Biblioteca de Alexandria foi construída por Ptolomeu I Soter no século IV a.C, e elevou a cidade ao nível de importância cultural de Roma e Atenas. De fato, após a queda do prestígio de Atenas como centro cultural, Alexandria tornou-se o grande polo da cultura helenística. Todo manuscrito que entrava no país (trazido por mercadores e filósofos de toda parte do mundo) era classificado em catálogo, copiado e incorporado ao acervo da biblioteca. No século seguinte à sua criação, ela já reunia entre 500 mil e 700 mil documentos. Além de ser a primeira biblioteca no sentido que conhecemos, foi também a primeira universidade, tendo formado grandes cientistas, como os gregos Euclides e Arquimedes.

Os eruditos encarregados da biblioteca eram considerados os homens mais capazes de Alexandria na época. Zenódoto de Éfeso foi o bibliotecário inicial e o poeta Calímaco fez o primeiro catálogo geral dos livros. Seus bibliotecários mais notáveis foram Aristófanes de Bizâncio (c. 257-180 a.C) e Aristarco da Samotrácia (c. 217-145 a.C).

Hipácia foi a última grande cientista de Alexandria. Nasceu em 370 d.C (?) -- os historiadores são incertos em diferentes aspectos da vida de Hipácia e a data de seu nascimento é debatida atualmente. Foi filha de Theon, um renomado filósofo, astrônomo, matemático e autor de diversas obras, professor da Universidade de Alexandria.Durante toda a sua infância, Hipácia foi mantida por seu pai em um ambiente de idéias e filosofia. Alguns historiadores acreditam que Theon tentou educá-la para ser um ser humano perfeito. Hipácia e Theon tiveram uma ligação muito forte e este ensinou a ela seu próprio conhecimento e compartilhou de sua paixão na busca de respostas sobre o desconhecido. Quando estava ainda sob a tutela e orientação do seu pai, ingressou numa disciplinada rotina física para assegurar um corpo saudável para uma mente altamente funcional.

Hipácia estudou matemática e astronomia na Academia de Alexandria. Devorava conhecimento: filosofia, matemática, astronomia, religião, poesia e artes. A oratória e a retórica, com grande importância na aceitação e integração das pessoas na sociedade da época, também não foram descuidadas. No campo religioso, Hipácia recebeu informação sobre todos os sistemas de religião conhecidos, tendo seu pai assegurado que nenhuma religião ou crença lhe limitasse a busca e a construção do seu próprio conhecimento.

Quando adolescente, viajou para Atenas para completar sua educação na Academia Neoplatônica, com Plutarco. A notícia se espalhou sobre essa jovem e brilhante professora, e quando regressou já havia um emprego esperando por ela, para dar aulas no museu de Alexandria, juntamente com aqueles que haviam sido seus professores.

Hipácia é um marco na História da Matemática que poucos conhecem, tendo sido equiparada a Ptolomeu (85 - 165), Euclides (c. 330 a. C. - 260 a. C.), Apolônio (262 a. C. - 190 a. C), Diofanto (século III a. C.) e Hiparco (190 a. C. - 125 a. C.).Seu talento para ensinar geometria, astronomia, filosofia e matemática atraía estudantes admiradores de todo o império romano, tanto pagãos como cristãos.

Aos 30 anos tornou-se diretora da Academia de Alexandria. Do seu trabalho, infelizmente, pouco chegou até nós. Alguns tratados foram destruídos com a Biblioteca, outros quando o templo de Serápis foi saqueado. Grande parte do que sabemos sobre Hipácia vem de correspondências suas e de historiadores contemporâneos que dela falaram. Um notável filósofo, Sinesius de Cirene (370 - 413), foi seu aluno e escrevia-lhe freqüentemente pedindo-lhe conselhos sobre o seu trabalho. Através destas cartas ficou-se a saber que Hipácia inventou alguns instrumentos para a astronomia (astrolábio e planisfério) e aparelhos usados na física, entre os quais um hidrômetro.

Sabemos que desenvolveu estudos sobre a Álgebra de Diofanto ("Sobre o Canon Astronômico de Diofanto"), que escreveu um tratado sobre as seções cônicas de Apolônio ("Sobre as Cônicas de Apolônio") e alguns comentários sobre os matemáticos clássicos, incluindo Ptolomeu. E em colaboração com o seu pai, escreveu um tratado sobre Euclides.

Ficou famosa por ser uma grande solucionadora de problemas. Matemáticos que haviam passado meses sendo frustrados por algum problema em especial escreviam para ela pedindo uma solução. E Hipácia raramente desapontava seus admiradores. Ela era obcecada pela matemática e pelo processo de demonstração lógica. Quando lhe perguntavam porque nunca se casara ela respondia que já era casada com a verdade.

A tragédia de Hipácia foi ter vivido numa época de luta entre o paganismo e o cristianismo, com este a tentar apoderar-se dos centros importantes então existentes. Hipácia era pagã, fato normal para alguém com os seus interesses, pois o saber era relacionado com o chamado paganismo que dominou os séculos anteriores e era alicerçado nas tradições de liberdade de pensamento.

O cristianismo foi oficializado em 390 d.C, e o recém nomeado chefe religioso de Alexandria, o bispo Cirilo, dispôs-se a destruir todos os pagãos assim como seus monumentos e escritos.

Por causa de suas idéias científicas pagãs, como por exemplo a de que o Universo seria regido por leis matemáticas, Hipácia foi considerada uma herética pelos chefes cristãos da cidade. A admiração e proteção que o político romano Orestes dedicou a Hipácia pouco adiantou, e acirrou ainda mais o ódio do bispo Cirilo por ela e, quando este tornou-se patriarca de Alexandria, iniciou uma perseguição sistemática aos seguidores de Platão e colocou-a encabeçando a lista.

Assim, numa tarde de 415 d.C, a ira dos cristãos abateu-se sobre Hipácia. Quando regressava do Museu, foi atacada em plena rua por uma turba de cristãos enfurecidos, incitados e comandados por "São" Cirilo. Arrastada para dentro de uma igreja, foi cruelmente torturada até a morte e ainda teve seu corpo esquartejado (dilacerado com conchas de ostra, ou cacos de cerâmica, consoante as versões existentes) e queimado.

O historiador Edward Gibbon faz um relato vívido do que aconteceu depois que Cirilo tramou contra Hipácia e instigou as massas contra ela:

"Num dia fatal, na estação sagrada de Lent, Hipácia foi arrancada de sua carruagem, teve suas roupas rasgadas e foi arrastada nua para a igreja. Lá foi desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor, e sua horda de fanáticos selvagens. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas".

O estúpido episódio da morte de Hipácia é considerado um marco do fim da tradição de Alexandria como centro de ciências e cultura. Pouco depois, a grande Biblioteca de Alexandria seria destruída e muito pouco do que foi aquele grande centro de saber sobreviveria até os dias de hoje.

Enrico Riboni descreve os motivos e as conseqüências dessa ação fanática dos religiosos:

"a brilhante professora de matemática representava uma ameaça para a difusão do cristianismo, pela sua defesa da Ciência e do Neoplatonismo. O fato de ela ser mulher, muito bela e carismática, fazia a sua existência ainda mais intolerável aos olhos dos cristãos. A sua morte marcou uma reviravolta: após o seu assassinato, numerosos pesquisadores e filósofos trocaram Alexandria pela Índia e pela Pérsia, e Alexandria deixou de ser o grande centro de ensino das ciências do mundo antigo. Além do mais, a Ciência retrocederá no Ocidente e não atingirá de novo um nível comparável ao da Alexandria antiga senão no início da Revolução Industrial. Os trabalhos da Escola de Alexandria sobre matemática, física e astronomia serão preservados, em parte, pelos árabes, persas, indianos e também chineses. O Ocidente, pelo seu lado, mergulhará no obscurantismo da Idade Média, do qual começará a sair somente mais de um milênio depois. Em reconhecimento pelos seus méritos de perseguidor da comunidade científica e dos judeus de Alexandria, Cirilo será canonizado e promovido a Doutor da Igreja, em 1882."

E Carl Sagan nos acrescenta:

"Há cerca de 2000 anos, emergiu uma civilização científica esplêndida na nossa história, e sua base era em Alexandria. Apesar das grandes chances de florescer, ela decaiu. Sua última cientista foi uma mulher, considerada pagã. Seu nome era Hipácia. Com uma sociedade conservadora à respeito do trabalho da mulher e do seu papel, com o aumento progressivo do poder da Igreja, formadora de opiniões e conservadora quanto à ciência, e devido à Alexandria estar sob domínio romano, após o assassinato de Hipácia, em 415, essa biblioteca foi destruída. Milhares dos preciosos documentos dessa biblioteca foram em grande parte queimados e perdidos para sempre, e com ela todo o progresso científico e filosófico da época."

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Entendendo o Midrash: Moisés ou o Messias? Moisés um Servo Sofredor?

Jesus, o Servo sofredor.

O hino quarto do Servo do Senhor é um dos textos fundamentais, talvez a profecia do central do sofrimento expiatório e morte de Cristo. O próprio Jesus aplicou as palavras de Isaías 53:5-6 e 11-12 ao seu sofrimento (por exemplo, Marcos 10:45 em 14:41).

Estas palavras são textos fundamentais para a compreensão da pregação no Novo Testamento. Da mesma forma essas palavras entraram para a história da Igreja, como testemunho de Cristo e como um apelo à imitação. Assim, a Igreja prega Cristo, que sofreu.

O Antigo Testamento é judaico.

O Velho Testamento é em primeiro lugar o livro de Israel. Se isso for verdade, então devemos também escutar o que os judeus têm a dizer. Neste estudo, gostaria de rever alguns textos clássicos judaicos sobre o servo de Isaías 53. Isso vai nos dar algum insight importante no texto, em primeiro lugar na forma como o povo judeu entende a sua própria vocação.

O que diz o judaísmo sobre Isaías 53?

Quem é este hino do Servo do Senhor de acordo com o entendimento judaico e que é dito sobre ele?

É notável que no Midrash clássica (tradição exegética judaica) é relativamente pouco encontrado Isaías 53 como um todo. Somente o Targum Jonathan dá uma tradução interpretativa de todo o texto de Isaías 53.

Por outro lado versos de Isaías 53 são citados aqui e ali na literatura rabínica clássica. Esses lugares também lançam luz sobre a compreensão do texto. Não é até a Idade Média que encontramos textos que são compostos como comentários sobre Isaías 53. Livros são compilados que explicam o versículo bíblico após versículo ou perícope após perícope.

Depois de um breve olhar sobre o Targum Isaías 53 vamos rever um comentário Medieval retirado do Shimoni Yalkut. Na segunda parte deste estudo, vamos nos concentrar na famosa Medieval do estudioso judeu Rashi.

1. Targum Jonathan

O Targum aramaico é a tradução dos Profetas e os Escritos. Talvez paráfrase é um nome melhor. Embora não seja um Midrash, no sentido próprio, ainda que os gêneros sejam semelhantes: o meturgeman (tradutor ou intérprete) não apenas traduz, mas ao mesmo tempo, dá uma interpretação, uma aplicação do texto, seja ele nunca arbitrariamente. Isto é especialmente notável em Isaías 53. Aqui, o Servo do Senhor não é o sofrimento, mas o Messias triunfante.

Talvez o Targum reflita polêmica com o cristianismo. Por outro lado, outras circunstâncias históricas desempenham um papel, também, por exemplo, as tensões messiânica na época da Revolta de Bar Kochba (132-135 dC). O Targum Isaías 53, provavelmente deve ser datado neste período.

Isaías prega um Messias Triunfante!

De acordo com o targumist Isaías 53 é sobre a glorificação e a elevação do Messias. O Messias é descrito como o professor da Torá e como construtor do Templo, que foi profanado pelos pecados do povo. Através da retomada aos ensinamentos da Torá, o pecador, a intercessão do Messias, recebe o perdão de seus pecados. Comparado com o Messias, a glória dos reinos gentios são desprezíveis e transitórios. Eles se parecem com um homem de dores. O Messias entrega a Terra de Israel, tira os poderes das nações e restaura os exilados. O "resto do povo” é, purificados de seus pecados, vêem o reino do Messias e os seus descendentes irão multiplicar, e prolongados serão os seus dias. Finalmente, o Messias, que estava disposto a arriscar sua vida pelo seu povo, receberá como recompensa a riqueza das nações.

O targumist unifica vários conceitos iniciais do Messias judeu em uma pessoa: como intercessor, professor de Direito libertador, e construtor do Templo, Messias Davídico que se tornou o mediador exclusivo da redenção. A morte cairá sobre as nações dos gentios.

2. 2. Yalkut Shimoni

O Yalkut Shimoni é talvez uma obra menos conhecida. O Yalkut é uma compilação do Midrash sobre o Tanach inteiro (Antigo Testamento). O compilador, Shimon ha-Darshan, provavelmente viveu no século 13. O Yalkut é na verdade uma coleção de citações de trabalhos antigos, alguns dos quais são perdidos. O comentário leva Isaías 52:12-54:1 juntos em um parágrafo (476).

Nem todos os versos são comentados. O comentarista se restringe a apenas alguns versos: Isaías 52:13 e 53:5, 10 e 12. Talvez ele respeite estes versos como a principal linha da profecia, ou ele simplesmente não encontrou material adequado para os outros versos.

O que ele tem para nos dizer?

O Messias exaltado sobre os patriarcas.

Isaías 52:13: "Veja, meu servo agirá com sabedoria" (NVI). A NVI fornece uma tradução alternativa numa nota de rodapé: meu servo prosperará. Ou seja, diz o comentário Melech HaMashiach, o Rei Messias. “Texto e explicação continuam:”. “Ele será levantado e exaltado.” Raised acima de Abraão, pois é dito sobre ele (Gn. 14:22): '. Levantei a minha mão ao SENHOR Levantadas acima de Moisés, pois é dito sobre ele (Números 11:12): "Por que você me diz: Levá-los em meus braços" ("levantou" e "transportou" são derivados da mesma raiz hebraica). E mais do que os anjos servo, pois é dito sobre eles (Ez. 1:18): "Suas rodas eram altas e impressionantes" (a ligação é a palavra de altura). E assim diz a Escritura (Zacarias 4:7): "Quem és tu, ó monte poderoso." Para ele é maior do que os pais”.

Este comentário é notável, e não em primeiro lugar, porque o servo é interpretado como o Rei Messias. Vimos que, no Targum, também. Mas, embora devamos ter cuidado para não ler muito sobre o texto, mas a sugestão é que o Messias é na proximidade imediata de Deus. Qual é a origem dessa interpretação? O Yalkut cita-o com algumas modificações a partir do midrash Tanchuma. Nós encontramos o texto de um sermão sobre "Toledot" a porção da Torá (Gn 25:19-28:9).

De onde é que virá o socorro?

Vamos rever brevemente o sermão. O pregador começa com o Salmo 121: Elevo meus olhos para os montes. Este versículo ele liga com Zac. 4:7, que diz respeito ao Mashiach Ben David, o Messias Filho de Davi (o Messias triunfante, ao passo que o Messias Filho de Joseph é visto como o Messias sofredor). Por que ele chamou de "grande montanha"? Porque ele é maior do que os patriarcas. Segue então com a explicação de Isaías 52:13. Lá, o Tanchuma conecta as três instruções sobre a altura do Servo primeiro com os patriarcas: o Messias é levantado acima Abraão, levantando acima de Isaac e de Jacob exaltou acima.

O Messias vem com as nuvens como um filho do homem (Daniel 7:13). Ele julgará os pobres com justiça "(Isaías 11:4).

De onde ele veio? Ele vem sobre as montanhas (Isaías 52:7). E assim voltamos ao Salmo 121. "Eu levanto os meus olhos para os montes - de onde vem meu socorro vem? O meu socorro vem do Senhor, o Criador do céu e da terra.

Essa é a conclusão do sermão. O Messias ultrapassa os patriarcas e os grandes homens da história de Israel, ele vem de cima. Esta argumentação elaborada não é encontrada na Yalkut. Ele só cita brevemente a essência.

Três períodos de Sofrimento

O comentário agora continua com Isaías 53:5: "Mas ele foi ferido pelas nossas transgressões, foi esmagado por nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados." Segundo a explicação do sofrimento é dividido em três partes: sobre os patriarcas, a geração da apostasia, e o Rei Messias.

O sofrimento tem significado expiatório? A palavra usada aqui também contém a noção de punição, castigo. Mas o Midrash não parece ir para o significado deste sofrimento. O aspecto expiatório está ausente.

Que o Messias também sofre, é baseado no Salmo 2. Isso faz com que o sofrimento é visto como atingidas por rebelião contra Deus e Seus servos.

Ao mesmo tempo, este Salmo mostra o que a residência do Messias é: Em Sião, meu santo monte.

O Senhor esmaga a pessoa amada

Agora segue o versículo 10. "Mas foi a vontade do Senhor esmagá-lo." Rabba usa este versículo para mostrar que Deus esmaga a pessoa amada com o sofrimento. Aquele que toma sobre si o sofrimento, isso voluntariamente e por amor, como uma oferta de culpa é uma ação consciente. “Mas ele receberá a sua recompensa:”. Ele verá sua prole e prolongará os seus dias. E mais que isso: os seus ensinamentos serão preservados com ele, como se diz: '. A vontade do Senhor prosperará em suas mãos. Que se quer dizer aqui? A tradição já não dá uma resposta direta, mas é alguém que é grande em ensinar a Torá: mestres de Israel, que sofrem por causa da Torá? Ou o Messias, em seu papel como professor Torá?

Moisés um Servo Sofredor?

Outra tradição talmúdica citado aqui no Yalkut, aplica-se o versículo 12 a Moisés. De acordo com R. Simlai, Moisés queria entrar na terra (Israel) para cumprir os mandamentos em nome de Israel. Deus o impediu de entrar, mas ele recebeu sua recompensa, como se tivesse cumprido. “Por isso está dito:” Portanto, eu lhe darei uma porção entre os grandes."

Moisés queria desistir de si mesmo até a morte por amor de Israel (Êxodo 32:32). “Então ele derramou a sua vida até a morte, e foi contado com os transgressores”. Ele fez a expiação pelo pecado do bezerro de ouro, e orou por misericórdia para os pecadores de Israel.

Em outro lugar, Moisés é visto como estando à frente de três categorias de sábios talmúdicos. Com cada um deles recebe sua recompensa.

Entendimento Midrash: Moisés ou o Messias?

É um procedimento bem conhecido no Midrash interpretar os versos dos profetas ou os Salmos como referentes a uma pessoa bíblica. Poderíamos também olhar na direção oposta: personagens bíblicos são compreendidos no âmbito dos textos proféticos e salmos. O significado da profecia é em primeira instância, muitas vezes buscado dentro da própria Bíblia. Em diferentes níveis cada palavra na Bíblia é ligada a todas as outras palavras de uma forma ou de outra. Devemos tentar ouvir esta conversa dentro do texto.

Podemos afirmar que Isaías 53 não é interpretado como uma unidade. Para cada verso observações e opiniões diferentes são unidos, que ainda têm em comum que eles giram em torno de uma pessoa concreta.

O servo não é tido como um coletivo, por exemplo, como Israel. Nas tradições a primeira coisa que vimos, ele é interpretado como o Messias, nos últimos dois anos, como Moisés.

Permanece a tradição de Rabba: quem é aquele que foi esmagado com o sofrimento e sacrifícios a si mesmo como uma oferta pela culpa? Seu sofrimento, as ligações dele com o que é dito sobre o Messias, e a sua grandeza nos ensinamentos com o relato de Moisés. No entanto, como vimos o Messias também instruirá na Torá. O exemplo de Moisés deixa claro que a tarefa expiatória cabe em primeiro lugar na oração de intercessor.