quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

André Torres Queiruga e [A ressurreição sem milagre]

A ressurreição sem o ressuscitado
Para o idealismo moderno, a ressurreição nasce da idealização, póstuma, de Jesus morto. A glória nasce de uma derrota. Dessa forma, o relato evangélico é virado de ponta-cabeça já que, segundo ele, a fé nasce da percepção real do Ressuscitado, d'Àquele que venceu a morte.

A ressurreição sem milagre
"A ressurreição não apenas não é um milagre, mas não é nem mesmo um acontecimento empírico. E a fé na ressurreição não depende de se aceitar ou recusar a realidade histórica do sepulcro vazio.” É o que diz o trecho destacado na capa do livro de André Torres Queiruga, La ressurrezione senza miracolo [A ressurreição sem milagre]1. A obra é interessante, na medida em que é a expressão completa de uma tendência que, depois de Bultmann, se tornou hegemônica nos estudos exegéticos e teológicos: a tendência segundo a qual a ressurreição é uma pedra errante, um pedregulho perdido que a crítica tem de remover para tornar compreensível, ao homem moderno, o conteúdo da fé cristã.

O Cristo ressuscitado de Piero della Francesca ou A incredulidade de Tomé de Caravaggio pertencem à arte do passado. No futuro, já não se poderá fazer uma leitura realista da ressurreição, só se admitirá a leitura “simbólica”. Numa singular reviravolta dos processos cognitivos, a fé não pressupõe o sepulcro vazio e a experiência tangível do Ressuscitado; ao contrário, é o Cristo ressuscitado que só “aparece” como tal na precompreensão da fé.

Dessa forma, uma parte notável da literatura teológica – aquela que considera óbvia a oposição entre o “Cristo histórico” e o “Cristo da fé” – abandona a posição realista e se encontra, necessariamente, com o ponto de vista idealista. Assim, não é a realidade, aquilo que concretamente acontece, que gera e explica o “convencimento”; ao contrário, é a “visão do mundo”, a fé preliminar, que torna evidentes, “visíveis”, fatos que, sem ela, não subsistem. A fé, privada de qualquer razoabilidade, não é mais “juízo”, mas pré-juízo que “vê” independentemente da realidade, como lugar de uma experiência “mística”, afetiva, idealizante.

A fé, graças à mediação imaginativa, idealiza o seu objeto. No caso do cristianismo, isso significa que Cristo “aparece” como ressuscitado na fé, graças à fé. Fora da fé, só existe o mistério de um túmulo vazio, de um cadáver que desapareceu. Problema este que não interessa à fé, para a qual o que importa é tão-somente o Cristo ideal, divino. A ressurreição não precisa da carne de Jesus de Nazaré, da sua pessoa individual; é suficiente a idéia, o símbolo do Homem-Deus. A fé vive da idéia, não da realidade.

Esse pressuposto, verdadeiro a priori conceitual, fica evidente no texto de Torres Queiruga. Para o filósofo de Santiago de Compostela, as aquisições “irreversíveis” da exegese e da cultura atual fazem com que não se possa mais conceber “a presença ativa de Deus como uma irrupção pontual, ou seja, física e acessível aos sentidos, na trama do mundo”2. Uma definição perfeita da Encarnação, que o autor elimina com um simples traço de caneta.

Como para Bultmann, segundo o qual “é mitológica a concepção na qual o não-mundano, o divino, aparece como mundano, humano, na qual o além aparece como aquém”3, também para Torres Queiruga Deus não pode agir sensivelmente neste mundo. Por isso, “a análise da ressurreição de Jesus como ‘milagre’ – o mais espetacular – desapareceu definitivamente dos tratados sérios. A tal ponto, que até nos tratados mais ‘ortodoxos’ se pode ler a afirmação de que a ressurreição não só não é um milagre, mas não é nem mesmo um acontecimento ‘histórico’”4.

A “experiência” do Ressuscitado deve remover qualquer presença de tipo empírico. “Se o Ressuscitado fosse tangível ou comesse, seria necessariamente limitado pelas leis do espaço, ou seja, não seria ressuscitado. E a mesma coisa aconteceria se fosse fisicamente visível”5. Acreditar em algo diferente disso significaria submeter-se ao “imperialismo do princípio empirista”6, tornar impossível “a razoabilidade da fé na ressurreição”7.

Para o autor, “os discípulos não viram com seus olhos o Ressuscitado nem o tocaram com suas mãos, pois isso era impossível, uma vez que ele estava fora do alcance de seus sentidos”8. O que eles “viram” “não pode conservar nenhuma relação material com um corpo espaço-temporal”9.

De resto, “nem na vida terrena o corpo pode ser considerado o suporte absolutamente indispensável da identidade”, nem “se vê o que poderia provocar a transformação (?) de seu corpo morto, ou seja, do cadáver”10. Para o “idealista” Torres Queiruga, a “realidade” do Cristo ressuscitado não pressupõe a sua realidade sensível, corpórea. Ela se baseia na subjetividade do crente, nas “experiências psíquicas, de visualização ou imaginação de convicções íntimas. Convicções que podem ter um referente real – o místico, na sua visão, liga-se realmente a Cristo –, sem que esse referente seja a forma em que se apresenta”11.

A “visão” pressupõe a experiência interior, a peculiar condição pessoal e ambiental, a partir da qual a “mediação imaginativa”12 – que o autor evoca, remetendo-se a Kant – entra em ação, dando forma ao objeto de sua aspiração. No caso dos discípulos, “dentro da cultura daquele tempo, aberta às manifestações extraordinárias e empíricas do sobrenatural, podia funcionar com toda naturalidade o esquema imaginativo da ressurreição como uma espécie de retorno à vida”13. Ou seja, os discípulos acreditaram vê-lo na medida em que eram predispostos a isso por um contexto, um ambiente espiritual. Dentro desse horizonte, o elemento decisivo, o estopim, é provocado pela experiência fundamental da morte de Jesus: “O contexto vivissimamente emotivo causado pelo drama do Calvário”14.

É aqui, no drama do falecimento da pessoa querida, que amadurece “o que poderíamos chamar kantianamente o ‘esquema imaginativo’ para compreender a ressurreição como já acontecida”15. No contexto messiânico-escatológico de Israel, a morte de Jesus provoca um vazio lancinante, uma experiência de dor que urge por uma solução.

A cruz de Cristo se “transforma” na ressurreição: “A ressurreição acontece na própria cruz”16. Cristo, o morto, volta a ser vivo na fé.

Torres Queiruga segue à letra, sem citá-lo, Rudolf Bultmann: “Cruz e ressurreição, enquanto evento ‘cósmico’, formam uma unidade”17. A ressurreição não é um evento real que se segue à morte de Jesus na cruz. É, simbolicamente, a transfiguração ideal de Cristo induzida pela experiência trágica de seu fim. Numa forma paradoxal, que ocupa o centro do modelo idealista, a ausência produz a presença, o vazio dá lugar a uma plenitude, a privação se transforma em vitória. Isso requer que seja removido da cruz o aspecto de escândalo, em sentido paulino: o Filho de Deus suspenso àquilo que, para os modernos, é a forca. Esse aspecto seria, nos Evangelhos, uma construção literária, não um elemento histórico.

Torres Queiruga reconhece que “um hábito inveterado, que se apóia fortemente na letra dos Evangelhos, levou a ver a cruz como um lugar de ‘escândalo’, que decretava o fim da fé dos discípulos, os quais nesse momento teriam fugido, negando ou traindo seu Mestre. Para explicar sua conversão posterior, teria de acontecer algo extraordinário e milagroso, que, com a sua evidência irrefutável, lhes restituísse a fé. Esse algo seria a ressurreição, que obtém, assim, uma autêntica ‘demonstração’ histórica.

Não se pode negar que o argumento tenha a sua força; de fato, ele continua a ser o mais recorrente nos tratados atuais. Todavia, uma reflexão mais atenta permitiu ver, cada vez com maior clareza e mais ampla aceitação entre os estudiosos, a sua natureza de ‘dramatização’ literária com valor apologético”18. Essa conclusão seria comprovada pelo fato de que “a hipótese de uma traição ou de um renegamento é profundamente incompreensível e injusta com os discípulos”19. Estes teriam traído Jesus no momento da prova suprema, teriam sido ingratos e sem coração. O que, para o autor, é inadmissível.

Por outro lado, o escândalo vale para os romanos, não para os judeus: “Os criminosos de Roma eram os heróis do povo por eles subjugado”20. A cruz de Cristo, na ótica completamente positiva pintada por Torres Queiruga, não é o que afasta, o lugar da solidão. Ao contrário, é o ponto coagulante da fé: “A crucifixão, com o horrível escândalo da sua injustiça, aparece como o catalisador mais determinante para compreender que o que aconteceu na cruz não podia ser a conclusão definitiva”21. A cruz não é um ponto de fuga, mas de “virada”. Uma conclusão obrigatória, para Torres Queiruga, na medida em que, entre a morte de Jesus e a fé da Igreja nascente, não acontece nada.

O idealismo, como filosofia do não acontecimento, implica um curto circuito segundo o qual a fé deve preceder o evento, não seguir-se a ele. O argumento segundo o qual os discípulos fogem, apavorados e desmoralizados, tem lá a “sua força”, como reconhece o autor, mas, mesmo assim, não pode ser admitido. O vazio deve produzir o cheio, a morte deve-se transformar em idéia do Ressuscitado, em vez de gerar escândalo, fuga, desorientação. Se assim não fosse, teríamos “apologética”, não história. Na sua efetividade, o morto é uma bandeira, o símbolo de uma vida que não podia acabar.

Na órbita de Hegel

É curioso que Torres Queiruga cite Kant várias vezes – por sua meditação imaginativa da fé – e, por outro lado, não faça referências a Hegel. Curioso porque sua reflexão se insere, perfeitamente, no horizonte especulativo idealista, e sua cristologia acompanha a hegeliana, com discordâncias que, no tema tratado, são completamente marginais22. Como em Hegel, para o filósofo espanhol a revelação também “não consiste na irrupção de algo externo, mas, sim, na descoberta de uma presença que, ignorada ou pressentida talvez, já lá estava e procurava deixar-se reconhecer”23.

O cristianismo diz respeito à ontologia, não à história. Revela o que está presente já desde sempre, ainda que de forma velada, na interioridade do eu; é uma relação imanente, não movida de fora. “Não é que em dado momento Deus ‘entre’ no mundo para revelar alguma coisa por meio de um gesto extraordinária. Ele está sempre presente e ativo no mundo, na história e na vida dos indivíduos, e está sempre procurando dar a conhecer a sua presença, a fim de que consigamos interpretá-la de modo correto”24. Por isso, “o importante não é que o sol comece a brilhar, mas que as janelas estejam abertas e limpas”25.

A Revelação não é o ato de Deus se “revelar”, uma vez que Ele o faz sempre, mas a descoberta humana é “que constitui a revelação em sentido estrito”26. Torres Queiruga despoja radicalmente o cristianismo de seu caráter histórico. Resume-o a uma estrutura ideal, uma concepção gnóstico-panteísta segundo a qual o Deus-no-mundo anseia tornar-se cognoscível, perfurando o véu de sombra da ignorância humana. O Cristo histórico, como em Hegel, é apenas a “oportunidade” para que desperte a consciência do Cristo ideal. Como Sócrates, Cristo é a “parteira” cuja arte maiêutica traz à luz o Deus-em-nós, segundo a “rica e profunda tradição do magister interior”27.

Essa perspectiva, a idéia de uma revelação imanente, com relação à qual o Cristo histórico é apenas uma provocação contingente, esclarece o segundo ponto de proximidade entre Hegel e Torres Queiruga: a negação da dimensão empírica da fé. Em suas Lições sobre a filosofia da religião, Hegel faz distinção entre dois tipos de fé: a fé exterior e a fé interior. A fé “exterior” se fundamenta no Cristo histórico, em sua pessoa e autoridade. Esta, porém, para Hegel, é uma fé limitada, contingente. É “um modo exterior, acidental, da fé. A fé verdadeira repousa no espírito de verdade. A outra concerne ainda a uma relação com a presença sensível imediata. A fé verdadeira é espiritual, existe no espírito: tem por seu fundamento a verdade da idéia”28. Se comparada a essa fé interior, “a fé exterior deve, portanto, ser considerada apenas como um meio para chegar à verdadeira fé; na medida em que é exterior, é submetida à contingência, e o espírito alcança a sua verdade não segundo a contingência, mas segundo o livre testemunho”29.

A fé interior repousa na idéia eterna, no ideal imanente do espírito, não nos milagres ou numa revelação empírica. É essa fé que, segundo o idealista Hegel, “produz” a idéia do Homem-Deus, transforma o morto num ressuscitado. A fé interior opera a metamorfose do Cristo histórico, um utopista judeu da mensagem revolucionária, no Cristo “teológico”, divino. Graças a ela a figura de Jesus de Nazaré é entregue à memória, ao passado, à primeira aparição não espiritual do divino.

O ponto de passagem entre as duas imagens de Cristo, a empírica e a ideal – o terceiro elemento que une a cristologia de Torres Queiruga à de Hegel –, é a morte de Cristo. A morte é a ressurreição: esse topos da cristologia idealista, de Hegel a Bultmann, é o verdadeiro nó em torno do qual gira grande parte da exegese histórico-crítica. É um nó que, no plano especulativo, só se sustenta se considerarmos válido o que é assumido pela dialética, quando afirma que do negativo procede necessariamente o positivo.

Como escreve Torres Queiruga: “O próprio pensamento moderno, tanto filosófico quanto teológico, sabe da capacidade reveladora desse tipo de experiência, pois a própria contradição, em seu íntimo, obriga a buscar uma síntese capaz de reconciliá-la”30. No caso da morte de Jesus, “só a ressurreição e a exaltação permitiriam superar esse terrível conflito, que ameaçava mergulhar tudo no absurdo”31. Da morte, do negativo, brota a necessidade do positivo. Uma necessidade ideal: Cristo ressuscita na idéia, na concepção da comunidade, na fé interior. Não na realidade factual.

Dessa forma, como escreve Hegel, “essa morte é o ponto central em torno do qual tudo gira; na sua concepção está a diferença entre a concepção exterior e a fé, ou seja, a mediação com o espírito”32. Vem daí, como conseqüência, que a fé autêntica se baseia na morte de Jesus, não na ressurreição; nasce do Cristo morto, não do Cristo ressuscitado.

O Cristo ressuscitado não fundamenta a fé, é muito mais “fundamentado”, idealizado pela fé. Dessa forma, o idealismo, que está por trás da oposição entre o Cristo da fé e o Cristo da história, revira os termos com os quais, na concepção da Igreja, se apresenta a relação entre fé e realidade. Na medida em que o Ressuscitado pressupõe já a fé no Homem-Deus, essa fé deve nascer, necessariamente, da sublimação de uma derrota. O cristianismo, como dogma, surge da idealização de um fracasso, não do empirismo joanino baseado no que foi “visto, ouvido, tocado com as mãos”.

Uma morte incompreensível e uma fé sem ressurreição

O idealismo histórico-crítico, baseado na dialética do negativo, torna árdua não apenas a compreensão da ressurreição – sempre e de qualquer forma obra de “visionários” – mas também da morte de Cristo. Se Jesus não foi condenado à morte por ter-se proclamado Deus, por que foi crucificado? A autoproclamação divina é negada em nome da oposição entre o Cristo histórico e o Cristo da fé.

Só a comunidade dos crentes diviniza Jesus, que de per si nunca se teria concebido Deus. Para explicar o motivo da condenação, resta apenas a hipótese política: Jesus como potencial zelote que, perigoso para a ordem romana, é crucificado. É o leitmotiv do Jesus “judeu” que guia a Inchiesta su Gesù [Investigação sobre Jesus] de Corrado Augias e Mauro Pesce33. A última prova de uma investigação, curiosa e por vezes não banal, que, todavia, não consegue, dados os pressupostos mais uma vez idealistas, produzir nada de novo. O Jesus judeu não cristão34 de Augias-Pesce é um utopista, próximo do grupo de João Batista, caracterizado por uma total confiança em Deus e por uma atenção particular aos últimos. Um radical, privado de uma utopia social organizada, que, além do tom de sua pregação e do próprio testemunho, não mostra nada original, nada moral, com relação à lei judaica. Por que, então, esse sonhador, não-político e inofensivo, foi condenado à morte? Pesce declara que não é por motivos religiosos, mas políticos, que Jesus é condenado pelo poder romano. A responsabilidade dos membros do Sinédrio seriam obra da reconstrução, posterior, dos redatores dos Evangelhos, filo-romanos.

Mas quais são os motivos políticos pelos quais Jesus é condenado? Trata-se das suspeitas sobre a natureza de um movimento que nasceram naqueles que “não captaram as reais intenções da ação de Jesus. Foi, portanto, um grosseiro e grave erro de avaliação política dos romanos”35.

Realmente, é uma consideração que surpreende, ao deixar inteiramente em suspenso os motivos da condenação de Jesus à morte. Ainda mais que, o que também é estranho, esses motivos não se estendem a seus discípulos. Igualmente misteriosa continua a ser a ressurreição, que não seria afirmada por testemunhas oculares, mas por videntes que “enxergavam” dentro dos esquemas cultural-religiosos de Israel. Na Investigação, ainda, é totalmente enigmático o nascimento do cristianismo. Pesce não concorda com “a idéia de que o cristianismo nasça com a fé na ressurreição de Jesus, nem que nasça graças a Paulo [...].

Paulo também, como Jesus, não é um cristão, mas um judeu que permanece no judaísmo”36. O cristianismo surgiria, mais tarde, na segunda metade do século II, num processo de helenização da posição judaica originária. Com relação a Hegel e a Torres Queiruga, Augias e Pesce acrescentam mais uma ruptura, o que torna ainda mais enigmático o nascimento da fé cristã. No quadro hegeliano, o cristianismo é mediado pela morte de Jesus, cujo produto é a idéia do Ressuscitado. Na Investigação sobre Jesus, ele nasce muito depois da visão da ressurreição, fruto não da fé, mas de uma tardia elaboração teológico-filosófica de cunho helenista.

O que continua igual é o topos dominante: a fé não se baseia na ressurreição, mas a precede ou se segue a ela sem ter com ela relação. Um posicionamento que, em vez de simplificar o problema, o complica enormemente. Se o Cristo histórico é esse que é descrito por Augias-Pesce, um judeu observante sem nada de realmente original, não se compreende como possa ser “o homem que mudou o mundo”. Não se compreende por que foi condenado. Se esse homem terminou sua vida derrotado, não se compreende, sem aceitar a necessidade lógica da dialética, como de um morto possa nascer, na comunidade primitiva, a fé num vivo. Não se compreende, por último, como o “Cristo da fé” possa prescindir da ressurreição, seja ela real ou imaginária, e formar-se apenas no século II, como quer Pesce.

Um destino curioso para o racionalismo histórico-crítico: tendo nascido com a intenção de esclarecer o contexto, o que ele consegue é delinear um quadro geral cheio de pontos nebulosos e saltos no vazio. O modelo idealista demonstra todos os seus limites. Partindo do preconceito de que o fato não possa ter acontecido – de que Deus não possa se tornar homem e ressuscitar da morte –, ele é obrigado a justificar a fé como idealização. Com isso, porém, a narração evangélica se torna incompreensível. Se as descrições do Cristo ressuscitado constituem o grande enigma, para o leitor antigo e moderno, a sua remoção gera uma série de perguntas sem resposta. É o Cristo “histórico” que se torna incompreensível. Reencontrado, arqueologicamente, sob as camadas da fé, ele parece um sonhador, radical e ingênuo ao mesmo tempo, que não motiva o incêndio que se apossou da história. As conclusões do racionalismo crítico – extrair um vivo de um morto, uma revolução espiritual de um utopista semelhante a muitos outros – são profundamente não razoáveis.

O fracasso dessa posição é a premissa “crítica” para a retomada de uma posição realista que não tem a pretensão de demonstrar o dogma, mas, sim, de reconhecer que é contra qualquer evidência racional, humana, afirmar que a visão desolada de um crucificado possa gerar a idéia, gloriosa, de um ressuscitado.
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Notas
1 Torres Queiruga, A., La risurrezione senza miracolo, tradução italiana, Molfetta, Edizioni La Meridiana, 2006. A edição italiana é uma síntese da obra maior espanhola Repensar la resurrección. La diferencia cristiana en la continuidad de las religiones y de la cultura, Madri, Trotta, 2003. 2 Id., ibid., p. 8. 3 Bultmann, R., Neues Testament und Mythologie. Das Problem der Entmythologisierung der neutestamentlichen Verkündingung, Hamburg-Bergsted, Herbert Reich Verlag, 1948. Tradução italiana: “Nuovo Testamento e mitologia. Il problema della demitizzazione del messaggio neotestamentario”, in: Bultmann, R., Nuovo Testamento e mitologia, Brescia, Queriniana, 1973, p. 119. 4 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 8. 5 Id., ibid., p. 42. 6 Id., ibid., p. 48. 7 Id., ibid., p. 47. 8 Id., ibid., pp. 46-47. 9 Id., ibid., p. 49. 10 Id., ibid., p. 54. De maneira idêntica, Kant afirma: “A razão não tem interesse em arrastar até a eternidade um corpo que (admitido que a personalidade se apóie na identidade do corpo) deve sempre, por mais purificado que seja, ser composto da mesma matéria que está na base do nosso organismo e à qual o próprio homem nunca se apegou durante a vida; nem é compreensível o que possa ter em comum com o céu esta terra calcária da qual o homem é formado” (Kant, I., “La religione nei limiti della semplice ragione”, tradução italiana, in: Kant, I., Scritti morali, Turim, Utet, 1970, p. 457, nota a). 11 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 42. 12 Id., ibid., p. 65. 13 Id., ibid., p. 41. 14 Id., ibid., p. 23. 15 Id., ibid. 16 Id., ibid., p. 53. 17 Bultmann, R., op. cit., p. 165. 18 Torres Queiruga, A., op. cit., pp. 26-27. Grifo nosso. 19 Id., ibid., p. 26. 20 Id., ibid., p. 29. 21 Id., ibid., p. 30. 22 Sobre a cristologia hegeliana, cf. Borghesi, M. La figura di Cristo in Hegel, Roma, Studium, 1983; Idem, L’età dello Spirito in Hegel. Dal Vangelo “storico” al Vangelo “eterno”, Roma, Studium, 1995. 23 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 59. 24 Id., ibid., p. 36. 25 Id., ibid. 26 Id., ibid., p. 37. 27 Id., ibid., p. 38. 28 Hegel, G. F. W., Lezioni sulla filosofia della religione, tradução italiana, 2 volumes, Bolonha, Zanichelli, 1974, vol. II, pp. 388-389. 29 Id., ibid., vol. I, p. 283. 30 Torres Queiruga, A. op. cit., p. 30. Grifo nosso. 31 Id., ibid., p. 31. 32 Hegel, G. F. W., op. cit., vol. II, p. 372. 33 Augias, C.; Pesce, M., Inchiesta su Gesù. Chi era l’uomo che ha cambiato il mondo, Milão, Mondadori, 2006. 34 Cf. Id., ibid., pp. 221 e 237. 35 Id., ibid., pp. 168-169. 36 Id., ibid., p. 201.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Polêmico Ateu Robert Green Ingersoll (1833-1899)

I
Na maior parte das vezes nós herdamos nossas opiniões. Nós somos herdeiros de hábitos e atividades mentais. Nossas crenças, como os costumes nas nossas roupas, dependem de onde nós nascemos. Fomos moldados e formados pelo nosso ambiente.

O ambiente é um escultor -- um pintor.

Se tivéssemos nascido em Constantinopla, a maioria de nós iria dizer: "Não há nenhum Deus além de Alá, e Maomé é seu profeta." Se nossos pais tivessem nascido nas margens do Ganges, nós poderíamos ser adoradores de Shiva, esperando pela chegada ao céu de Nirvana.

Em geral, crianças amam seus pais. Acreditam no que eles ensinam. E têm grande orgulho em dizer que a religião da mãe é adequada para elas.

A maioria das pessoas amam a paz. Eles não gostam de ser diferentes dos vizinhos. Pessoas gostam de companhia. Elas são sociais. Elas gostam de viajar na estrada com a multidão. Elas odeiam caminhar sozinhas.

Os escoceses são calvinistas porque seus pais eram. Os irlandeses, católicos porque seus pais eram. Os ingleses, episcopais, porque seus pais eram. E os americanos são divididos em centenas de seitas porque seus pais eram. Esta é a regra geral, para a qual, existem numerosas exceções. Filhos às vezes são superiores aos seus pais, modificam suas regras, alteram seus costumes, chegam a diferentes conclusões. Mas isto é tão gradual que as mudanças são fracamente percebidas, e aqueles que mudam usualmente continuam a insistir que permanecem seguindo os passos dos pais.

É dito pelos historiadores cristãos que a religião de uma nação foi, repentinamente vítima de um processo de mudança, e que milhões de pagãos teriam se transformado em cristão sob o comando de um rei. Filósofos não concordam com esses historiadores. Nomes foram mudados, altares foram substituídos, mas as crenças continuaram as mesmas. Um pagão, diante da espada ameaçadora de um cristão iria provavelmente mudar sua visão religiosa.. Um cristão, com uma cimitarra em sua cabeça, tornar-se-ia um maometano. Mas em essência, ambos continuariam exatamente o que eram antes, mudando apenas o discurso.

Crença não é sujeita à vontade. Homens pensam como podem. Crianças não, elas acreditam exatamente no que lhes é ensinado. Elas não são exatamente como seus pais. Elas diferem em temperamento, em experiência, em capacidade, nas circunstâncias. Então há uma contínua e quase imperceptível mudança. Há desenvolvimento, consciente e inconsciente crescem, e comparando grandes intervalos de tempo, nós percebemos que o velho foi abandonado, quase substituído pelo novo. O homem não pode permanecer estacionado. A mente não pode ser ancorada num local seguro. Se não avançarmos, andaremos para trás. Se não crescermos, decairemos. Se não nos desenvolvermos, atrofiaremos e morreremos.

Como a maioria de vocês, eu cresci no meio de pessoas que sabiam -- os que tinham certeza. Eles não usavam a razão ou a investigação. Eles não duvidavam. Eles sabiam que tinham a verdade. Em sua crenças não havia nenhum "eu acho", nenhum "talvez". Eles tinham tido a revelação de Deus. Eles conheciam o início das coisas. Eles sabiam que Deus havia começado a criação numa segunda-feira pela manhã, quatro mil e quatro anos antes de Cristo. Eles sabiam que na eternidade -- antes daquela manhã Ele não tinha feito nada. Eles sabiam que Ele tinha passado seis dias para fazer o mundo -- todas as plantas, todos os animais, toda a vida, e todos os globos que giram no espaço. Eles sabiam exatamente o que Deus havia feito em que dia, e quando Ele descansou. Eles sabiam a origem, as causas do mal, de todos os crimes, de todas as doenças, da morte.

Eles sabiam não só o início, mas também o fim. Eles sabiam que a vida tinha ou um caminho ou uma estrada. Eles sabiam que o caminho, estreito, coberto por pedras e espinhos, infestado de víboras, molhado de lágrimas, manchado de pés sangrantes, levava ao céu. A estrada, larga, lisa, ladeada por frutas e flores, cheia de risadas, música, e de toda a felicidade do amor humano, levava direto ao inferno. Eles sabiam que Deus estava fazendo todo o esforço para que nós seguíssemos pelo caminho, e que o diabo fazia todo tipo de truques e artimanhas para que percorrêssemos a estrada.

Eles sabiam que se travava uma terrível batalha entre as forças do mal e as do bem pela posse das almas humanas. Eles sabiam que há muitos séculos atrás Deus desceu do seu trono e nasceu criança neste pobre mundo -- que Ele sofreu e morreu pelo bem dos humanos -- sofreu para salvar alguns. Eles sabiam também que os corações humanos eram depravados, que os homens estavam apaixonados pelo mal e odiavam Deus com todas as suas forças.

Ao mesmo tempo eles sabiam que Deus criara o homem à sua imagem e semelhança e estava plenamente satisfeito com seu trabalho. Eles sabiam também que o homem havia sido tentado pelo demônio, que com suas mentiras e sutilezas enganara o primeiro ser humano. Sabiam que em conseqüência disto, Deus castigou todos nós: o homem, com o trabalho e a mulher com a escravidão e a dor, e ambos com a morte. E que Ele castigou a própria terra com espinhos, venenos e urtigas. Todas essas coisas abençoadas eles sabiam. Eles sabiam também de tudo o que Deus fazia para purificar e elevar a espécie humana. Eles sabiam tudo sobre o dilúvio; que Deus, com exceção de oito, afogou todos os seus filhos, os jovens e os velhos, desde o velho patriarca até os bebês. O jovem, a donzela, a mãe amorosa, a criança sorridente -- porque Sua misericórdia dura para sempre. Eles sabiam também que Deus afogou as bestas e os pássaros, tudo o que anda, rasteja e voa, porque seu infinito amor atinge toda a criatura. Sabiam que Deus, para civilizar seus filhos, matou vários com terremotos, destruiu muitos com tempestades de fogo, matou inúmeros com raios, milhões de fome, com epidemias, sacrificou muitos milhões nos campos da guerra. Eles sabiam que era necessário acreditar nestas coisas para amar Deus. Eles sabiam que não haveria salvação outra além da fé e do sangue reparador de Jesus Cristo.

Todos os que negassem e duvidassem estariam perdidos. Viver uma vida honesta e moral, tomar conta da mulher e das crianças -- formar um lar feliz -- ser um bom cidadão, um patriota, ou simplesmente um homem sábio, tudo isso era uma maneira respeitável de ir para o inferno.

Deus não recompensava homens pela honestidade, generosidade, bravura, mas pelos atos de fé. Sem fé, todas as chamadas virtudes eram pecados. E todos os homens que praticassem essas virtudes sem fé, mereceriam o sofrimento eterno.

Todas estas coisas reconfortantes e racionais eram ensinadas pelos ministros em seus púlpitos -por professores em salas de aula, e pelos pais, em casa. As crianças eram as vítimas. Elas ficavam assaltadas de pavor -- nos braços da mãe. Na época, os professores levavam adiante uma guerra contra o sentido natural das crianças, e todos os livros que elas liam eram cheios dessas verdades impossíveis. As pobres crianças eram desesperançadas. A atmosfera que respiravam era envenenada com mentiras -- mentiras que penetravam no seu sangue.

Naqueles dias os ministros usavam os cultos para salvar almas e reformar o mundo.

No inverno, estando a navegação interrompida, negócios eram quase totalmente suspensos. As estradas de ferro não funcionavam e os principais meios de transporte eram barcos e carruagens. As vezes as condições das estradas eram tão precárias que carruagens eram abandonadas. Não havia óperas, teatro ou diversões, além de festas e bailes. As festas eram tidas como mundanas, e os bailes, perniciosos. Para a alegria virtuosa e real, as boas pessoas dependiam dos cultos.

Os sermões eram quase sempre sobre dores e agonias do inferno, sobre alegrias e êxtase do céu, salvação pela fé e a eficácia do arrependimento. As pequenas igrejas, nas quais os cultos aconteciam, eram mal ventiladas, excessivamente quentes. Os sermões emocionais, as canções tristes, os améns histéricos, a esperança do céu, provocavam em muitos a perda da pouca razão que possuíam. Eles se tornavam substancialmente insanos. Nessas condições eles sentavam no "banco das lamentações" rezavam orações de fé, tinham estranhas sensações, choravam e pensavam que tinham "nascido de novo". Então eles contavam sua história. Como tinham sido maus. Como tinham tido maus seus pensamentos, seus desejos, e como tinham mudado repentinamente.

Eles relatavam a história de uma velha mulher que, contando sua experiência, disse: "Antes de me converter, de dar meu coração a Deus, eu costumava mentir e roubar. Mas agora, graças ao sangue de Jesus Cristo eu me livrei disso tudo".

Obviamente, nem todos pensavam desta maneira. Havia alguns que ridicularizavam. E uma vez ou outra, alguém tinha coragem suficiente de dar gargalhadas das ameaças do padre e de escarnecer do inferno. Alguns falavam de não crentes que haviam vivido e morrido em paz.

Quando era criança ouvi um deles falar de um velho fazendeiro em Vermont. Ele estava morrendo. O ministro estava na beira de sua cama e perguntou se era cristão. Se estava preparado para morrer. O velho respondeu que não havia feito nenhuma preparação. Não era cristão -- que em sua vida não fizera mais que trabalhar. O padre respondeu que não poderia lhe dar qualquer esperança a não ser que acreditasse em Cristo, e que se não tivesse nenhuma fé, sua alma estaria perdida.

O velho não estava amedrontado. Estava perfeitamente calmo. Com sua voz fraca e entrecortada ele disse: "Sr. Reverendo, eu acho que o senhor conhece minha fazenda. Minha mulher e eu viemos para cá há mais de cinqüenta anos. Éramos recém-casados. Lá só tinha mato e a terra era coberta de pedras. Eu cortei o mato, queimei os galhos, tirei as pedras e aplainei o terreno. Minha mulher costurava e tecia, e trabalhava o tempo todo. Criamos e educamos nossas crianças. Esquecemos de nós mesmos. Durante todos esses anos minha mulher nunca possuiu um vestido ou um chapéu decente. Eu nunca tive uma roupa boa. Vivíamos para comer. Nossas mãos e corpos ficaram deformados pelo trabalho. Nunca tivemos férias. Nós nos amamos e amamos nossos filhos. É o único luxo que temos. Agora estou perto da morte e o senhor vem perguntar se estou preparado. Senhor Reverendo, eu não tenho nenhum medo do futuro, nem terror de outros mundos. Pode até existir lugar como o inferno -- mas se existe, o senhor nunca vai me fazer acreditar que seja pior do que nosso velho Vermont".

Então me contaram de um homem que comparava a si próprio com um cachorro: "Meu cão," ele dizia, "só sabe latir e brincar. Tem tudo o que quer para comer. Ele nunca trabalha. Não tem qualquer preocupação com negócios. Dentro de pouco tempo morrerá e isso é tudo. Eu trabalho com todo meu esforço. Não tenho tempo para diversões. Tenho problemas todos os dias. Em pouco tempo, morrerei, e então irei para o inferno. Preferia ter nascido um cão".

Então, quando a estação do frio terminava, enquanto a neve desaparecia, os cultos continuavam, quando o silvar dos barcos a vapor era ouvido, quando o frio ia embora, os negócios reiniciavam, as almas recém-convertidas retornavam à sua vida habitual. Mas no inverno seguinte estavam eles novamente prontos para "nascer de novo". Eles pareciam um elenco de teatro, representando os mesmos papéis a cada temporada.

Os ministros que pregavam nos cultos eram sérios. Eram sinceros e cuidadosos. Não eram filósofos. Para eles Ciência representava uma distante ameaça. Um inimigo perigoso. Não sabiam muita coisa mas tinham muitas convicções: para eles, o inferno era uma realidade. Podiam até ver as chamas e a fumaça. O diabo era uma figura real. Era uma pessoa de fato, um rival de Deus, um inimigo da Humanidade. Acreditavam que o grande objetivo da vida era salvar nossas almas. E todos deveriam resistir, e desprezar os prazeres dos sentidos e manter o olhar fixo nas portas de ouro da Nova Jerusalém. Eram impassíveis, emotivos, histéricos, odiosos, fanáticos, amorosos e insanos. Eles realmente acreditavam que a Bíblia era a palavra de Deus. Um livro sem erros nem contradições. Eles chamavam suas crueldades de justiça. Seus absurdos, mistérios. Seus milagres, fatos. E suas passagens idiotas, profundamente espirituais. Eles descreviam os sofrimentos, a infinita agonia dos perdidos, e mostravam como era fácil evitar tudo isso, como o céu seria facilmente obtido. Eles pediam aos ouvintes que acreditassem, que tivessem fé, que dessem seus corações a Deus, seus pecados a Cristo, que iriam expiar seus pecados e deixar sua almas mais brancas que a neve.

Em tudo isso os clérigos realmente acreditavam. Eles estavam absolutamente certos. Em suas mentes o diabo havia tentado em vão semear as sementes da dúvida.

Eu ouvi centenas desses sermões evangélicos. Ouvi centenas das mais assustadoras e terríveis descrições das torturas e aflições no inferno, do horrível estado dos perdidos. Eu supunha que aquilo que ouvia era verdade mas não acreditava naquilo. Eu dizia: "É verdade!". E logo depois, pensava: "não pode ser!".

Esses sermões deixaram lembranças permanentes na minha memória. Mas não me convenciam.

Eu não tinha qualquer desejo de ser "convertido". Não queria um "novo coração" e não queria "nascer de novo".

Mas um dia ouvi um sermão que tocou meu coração: deixou uma marca, como uma cicatriz no meu cérebro.

Um dia fui com meu irmão assistir a uma pregação de um pastor batista. Era um homem alto, vestido como um fazendeiro, mas era um grande orador: poderia pintar um quadro com palavras.

Ele tomou para seu texto a parábolas do "rico e Lázaro". Descreveu Dives, o homem rico, sua maneira de viver, seus excessos, que ele ridicularizou, suas extravagâncias, suas noitadas, suas roupas de tecido fino, suas festas, seus vinhos e suas belas mulheres.

Então ele descreveu Lázaro e sua pobreza, seus trapos, sua feiúra, seu pobre corpo comido pelas doenças, as crostas e escaras a devorarem-no, até os cães tinham piedade dele. Ele descreveu sua vida solitária, sua morte sem amigos.

Então, mudando seu tom de voz de piedade para triunfo, de lágrimas para gritos de exaltação, de derrota para vitória, ele descreveu a gloriosa companhia dos anjos, que com suas brancas asinhas carregaram a alma do miserável para o Paraíso, para o seio de Abraão.

Então, mudando sua voz para escárnio e raiva, ele descreveu a morte do rico. Ele estava num palácio deitado no seu sofá, o ar perfumado, o quarto preenchido por serviçais e médicos. Seu ouro então, não tinha qualquer valor. Ele não podia comprar uma outra vida. Ele morreu e no inferno abriu os olhos, em tormento.

Então, assumindo uma atitude dramática, o Pastor colocou sua mão direita no ouvido e cochichou: "Ouçam! Eu ouço a voz do homem rico. O que ele diz? Ouçam! - Pai Abraão, pai Abraão! Eu peço a ti que mande Lázaro molhar seu dedo em água e umedecer meus lábios secos! Porque eu estou sofrendo nestas chamas!"

"Oh, meus ouvintes, o rico está fazendo este pedido há mais de mil e oitocentos anos. E em milhões de anos esses lamentos ainda atravessarão o abismo que separa os salvos e os perdidos e ainda serão ouvidos: "Pai Abraão! Pai Abraão! Eu peço a ti que mande Lázaro molhar seu dedo em água e umedecer meus lábios secos! Porque eu estou sofrendo nestas chamas!"

Pela primeira vez entendi o dogma do sofrimento eterno. Pela primeira vez tive noção da profundidade e extensão do horror cristão. E eu disse: Isto é uma mentira e eu odeio tua religião! Se isto é verdade, odeio também teu Deus!"

Desde aquele dia deixei de ter medos ou dúvidas. Para mim, naquele dia as chamas do inferno se extinguiram. A partir daquele dia passei a detestar todo o tipo de crença ortodoxa.

II
Desde minha infância liam para mim ou eu mesmo lia a Bíblia. De manhã e à noite o livro sagrado era aberto e rezávamos. A Bíblia foi minha primeira história e os Judeus, meu primeiro povo, e os fatos narrados por Moisés e outros escritores inspirados, e aquelas descrições dos profetas eram tudo coisas importantes. Em outros livros eram descritos os pensamentos e sonhos de homens, mas a Bíblia continha a verdade de Deus.

Entretanto, apesar do meu ambiente, da minha educação, eu não amava Deus. Ele era tão sem misericórdia, tão generoso em assassinatos, tão sedento de matanças, tão disposto a destruir, que eu O odiava com todo o meu coração. Sob seu comando, bebês eram despedaçados, mulheres violadas, e os cabelos brancos de velhos trêmulos, manchados de sangue. Esse Deus visitava famílias com epidemias, cobria as ruas de mortos e moribundos, deixou bebês passar fome agarrados aos seios vazios de suas mães, ouvia seus choros, via suas lágrimas, as bochechas murchas, os olhos sem visão, via as covas recentemente abertas, e continuou tão impiedoso como as pestes.

Esse Deus suspendeu as chuvas, semeou a fome, viu os olhos tristes dos famintos, suas formas esquálidas, seus lábios pálidos, viu mães devorando bebês, e permaneceu tão feroz como a fome.

Parece-me impossível para o homem civilizado amar ou adorar ou respeitar o Deus do Velho Testamento. Um homem realmente civilizado, uma mulher realmente civilizada deve encarar esse Deus com horror e desprezo.

Mas nos velhos tempos as boas pessoas justificavam Jeová no seu tratamento aos infiéis. Os hereges assassinados eram idólatras, não merecedores da vida.

De acordo com a Bíblia, Deus nunca se revelou a esses povos e sabia que sem sua revelação eles não poderiam saber qual o verdadeiro Deus. Como classificá-los então como hereges?

Os cristãos afirmam que Deus tinha o direito de matá-los porque os tinha criado. Então, para que os criou? Ele sabia, quando os criou que eles seriam alimento para a espada. Ele sabia que teria o prazer de vê-los ser assassinados.

Como uma última resposta, como uma desculpa, os adoradores de Jeová afirmam que todas aquelas coisas horríveis aconteceram sob "velha ordem", sob lei inevitável, e justiça absoluta, mas agora, sob "nova ordem", tudo já estaria mudado, a espada da justiça já estaria embainhada, o amor tinha assumido. No Velho Testamento, eles diziam, Deus era o Juiz. Mas no Novo, Cristo é piedoso. Mas na verdade, o Novo Testamento é infinitamente pior que o Velho. No Velho não há qualquer ameaça de sofrimento eterno. Jeová não possuía uma prisão eterna. Nenhum fogo eterno. Suas maldades terminavam na sepultura. Sua vingança estava satisfeita logo que o inimigo estivesse morto.

No Novo Testamento a morte não é o fim, mas o início de uma punição sem fim.
No Novo Testamento a malícia de Deus é infinita e a fome de vingança, eterna.

O Deus ortodoxo, quando vestido em carne humana, disse a seus discípulos para resistir à maldade, amar seus inimigos, e quando esbofeteado numa face, que oferecessem a outra. E nós sabemos que esse mesmo Deus, com esses mesmos lábios ternos, exclamou estas cruéis e impiedosas palavras: "Apartai-vos de mim, malditos. Danai-vos no fogo eterno. Preparai-vos para o diabo e seus anjos". (Mat. 25:41).

Estas são as palavras do "amor eterno".
Nenhum ser humano tem imaginação suficiente para conceber esse infinito horror.

Tudo o que a espécie humana tem sofrido na guerra, na fome, nas epidemias, no fogo e nas enchentes, Todas as desgraças de todas as dores e de todas as doenças, isto tudo é nada se comparado às agruras do sofrimento eterno da alma.

Este é o consolo da religião Cristã. Esta é a justiça de Deus. A misericórdia de Cristo.

Este dogma assustador, esta mentira infinita, fez de mim um inimigo implacável do Cristianismo. A verdade é que a crença na dor eterna tem sido o verdadeiro perseguidor. Ela criou a Inquisição, forjou as correntes, construiu as estacas das fogueiras. Ela escureceu as vidas de milhões. E fez os berços tão terríveis como os esquifes. Escravizou nações e derramou o sangue de muitos milhares. Sacrificou os mais sábios, os mais corajosos, os melhores. Subverteu a idéia de justiça, tirou o perdão do coração, transformou homens em maus e baniu a razão de seus cérebros.

Como uma serpente venenosa ela rasteja, enrosca-se e silva em todo credo ortodoxo.
Transformou o homem numa eterna vítima e Deus num eterno carrasco. Este é um infinito terror. Em toda igreja o que se ensina é uma maldição bíblica. Todo o Pastor que a prega é um inimigo da Humanidade. Abaixo dos dogmas cristãos, selvageria não existe. É uma infinidade de malícia, ódio e vingança.

Nada poderia ser pior que o horror do inferno do que o seu criador, Deus.

Enquanto eu viver, enquanto eu respirar, eu negarei com todas as minhas forças.
E odiarei até a última gota de meu sangue esta mentira infinita.

Nada me dá tanta alegria do que esta crença no sofrimento eterno está-se tornando mais fraca a cada dia. Que milhares de Pastores se envergonham disso. Isto me dá alegria em saber que a Cristandade está se tornando piedosa. Tão piedosa que o fogo do inferno está queimando mais brando. Tremula mais fraco e isto indica que logo se extinguirá para sempre.

Por séculos o Cristianismo era uma casa de loucos. Papas, Cardeais, Bispos, Padres, Monges e hereges. Eram todos insanos.

Apenas alguns -- quatro ou cinco num século, tinham cérebro e corações em ordem. Apenas alguns, apesar dos rugidos e do barulho, apesar dos choros, ouviam a voz da consciência. Apenas alguns, na fúria selvagem da ignorância, medo e fervor, permaneciam perfeitamente calmos, como a sabedoria manda.

Nós avançamos. Em poucos anos o Cristianismo estará -- assim esperamos -- humano e sensível o suficiente para negar os dogmas que enchem anos sem fim com a dor. Eles têm que saber que esses dogmas são inconsistentes com a sabedoria, a justiça, com a bondade do seu Deus. Eles devem saber que sua crença no inferno leva ao Espírito Santo -- a pomba -- o bico de um abutre, e enche a boca do cordeiro de Deus com as presas de uma víbora.

III
Em minha juventude lia livros religiosos -- livros sobre Deus, sobre o arrependimento -- sobre a salvação pela fé e sobre outros mundos. Fiquei familiar com os comentadores -- com Adam Clark, que achava que a serpente havia seduzido nossa mãe Eva, e era de fato o pai de Caim. Ela também acreditava que os animais, quando na arca, mudaram suas naturezas de tal modo que consumiam palha e conviveram alegremente todos juntos -- então, prenunciando o milênio abençoado. Li Scott, que era um Teólogo tão natural que acreditava na história de Phaeton -- dos cavalos selvagens voando pelos céus -- e corroborando a história de Josué parando o sol e a lua. Então li Henry e MacNight e descobri que Deus amava tanto o mundo que despertou Sua mente para destruir a maioria dos seres humanos. Li Cruden que fez a grande Concordância e fez os milagres tão pequenos e prováveis como pôde.

Lembro-me que ele explicava o milagre de alimentar os judeus andarilhos com codornizes, afirmando que nesse mesmo dia o céu no Mar Vermelho foi cruzado por milhares de codornizes. E que as que se encontravam cansadas, pousavam sobre barcos em tão grande número que alguns barcos afundavam. O fato de que a explicação é tão difícil de acreditar quanto o milagre não fez qualquer diferença para o devoto Cruden.

Depois li as regras de Calvino, um livro calculado para produzir em qualquer mente natural, considerável respeito pelo diabo.

Li as evidências de Paley e entendi a evidência da ingenuidade em produzir o mal, em planejar a dor, era tão menos real que a evidência de tender a mostrar o uso da inteligência na criação do que chamamos o bem.

Você sabe que o argumento do relógio foi o maior esforço de Paley. Um homem acha um relógio e o acha tão maravilhoso que conclui que ele tem que ter um relojoeiro. Ele encontra o relojoeiro e conclui que este é tão maravilhoso que tem que ter também um Criador. Então ele encontra Deus, o Criador do homem. E Ele é tão mais maravilhoso que o homem que não pode ter um Criador. Isto é o que os advogados chamam de 'desistência na apelação'.

De acordo com Paley, não pode haver criação sem criador -- mas pode haver um Criador sem ter sido criado. A maravilha do relógio, sugere o relojoeiro. A maravilha do relojoeiro, sugere o criador. E a maravilha do criador demonstra que Ele não foi criado. Mas era sem causa e eterno.

Tivemos Edward em "A vontade", em que o reverendo autor lembra que a necessidade não tem efeito na explicabilidade -- e quando Deus cria um ser humano, no mesmo momento determina o que aquele ser deverá fazer e ser, o ser humano é responsável, e Deus, na sua infinita justiça e misericórdia tem o direito de torturar a alma deste ser humano para sempre. E então Edward afirma que ama Deus.

O fato é que se você acredita num Deus infinito e também na punição eterna, você deve admitir que Edward e Calvino estavam absolutamente certos. Não há como escapar de suas conclusões se você aceitar suas premissas. Eles eram infinitamente cruéis, suas premissas infinitamente absurdas, seu Deus infinitamente cruel, e sua lógica, perfeita. E eu tenho a ternura e a candura suficiente para dizer que Calvino e Edward eram ambos insanos.

Nós temos abundância de literatura teológica, Houve Jenkin e o arrependimento, que demonstrou a sabedoria de Deus em permitir uma maneira na qual o sofrimento de inocência poderia justificar a culpa. Ele tentou mostrar que crianças poderiam ser punidas pelos pecados dos seus ancestrais, e que os homens, se tiverem fé poderão ser com justiça ter crédito com a virtudes dos outros. Nada poderia ser mais ortodoxo, devotado e idiota. Mas nem toda a Teologia foi escrita em prosa. Nós tivemos Milton com sua celestial milícia com seu Deus desajeitado e seu diabo ardiloso. Suas guerras entre imortais, e todo o sublime absurdo que a religião forjou no cérebro de um homem cego.

A Teologia ensinada por Multon era querida para um coração puritano. Foi aceita na Nova Inglaterra e envenenou as almas e arruinou as vidas de milhares. O gênio de Shakespeare não poderia fazer a Teologia de Milton poética. Na literatura do mundo não há nada, fora os "livros sagrados", tão perfeitamente absurdo.

Nós temos os "Pensamentos noturnos" de Young e suponho que o autor era um devoto e amava os seguidores do Senhor. Entretanto, Young tinha grande desejo de se tornar Bispo, e para conseguir este intento, ele se aproximou da senhora do rei. Em outras palavras, era um grande hipócrita. Em "Pensamentos noturnos" não há uma linha genuinamente honesta. É fingimento, do início ao fim. Ele não escreveu o que pensava, mas o que ele achava que devia pensar.

Nós temos o "Curso do tempo" de Pollock, com seus vermes que nunca morrem. Com suas chamas infindáveis, agonias intermináveis, demônios espreitando, seu Deus sádico. Este poema assustador poderia ter sido escrito num hospício. Nele você ouve todos os choros e gemidos dos maníacos, quando eles rasgam as carnes uns dos outros. É tão diabólico, tão sem coração, tão horrível como o capítulo trinta e dois do Deuteronômio.

Nós todos conhecemos o belo hino começando com: "ouçam das tumbas, um som lúgubre". Nada mais apropriado para crianças. É para se ter um esquife onde deveria estar um berço. Quando uma mãe acalenta seu filho, é como se um túmulo se abrisse a seus pés. Isto tornaria seu bebê sério, reflexivo, religioso e infeliz.

Deus odeia a risada e despreza a alegria. Para se sentir livre, despreocupado, alegre, para esquecer a morte, para se sentir preenchido pelo sol, e sem medo da noite, para esquecer o passado e ter o pensamento no futuro, sem sonhos com Deus, ou céu, ou inferno, ser intoxicado com o presente, ser consciente apenas do abraço e do beijo daqueles que você ama, estes são os pecados contra o Espírito Santo.

Mas temos os poemas de Cowper. Este era sincero. Era o oposto de Young. Tinha um olho observador, um coração gentil, e um senso artístico. Simpatizava com todos os que sofriam. Com os prisioneiros, escravos, os excluídos. Amava o belo. Mesmo assim, a crença na punição eterna fez desta alma adorável também um insano. Mesmo com ele, as "Boas novas da alegria" extinguiu a grande estrela da esperança e deixou seu coração partido na escuridão do desespero.

Temos muitos volumes de sermões ortodoxos cheios de ódio e terror do julgamento que virá -- sermões que foram proferidos pelos santos selvagens.

Temos o livro dos mártires, mostrando que os cristãos imitaram por muitos séculos o Deus que eles adoravam.

Temos a história dos Waldenses. Da reforma da Igreja. Temos o progresso do Peregrino, o chamado de Baxter, a analogia de Butler.

Para usar a frase ocidental da salvação, descobri que Bispo Butler criou mais serpentes do que matou. Sugeriu mais dificuldades do que resolveu. Mais dúvidas do que explicações.

Entre esses livros, minha juventude se passou. Todas essas sementes da Cristandade -- da superstição, eram semeadas em minha mente, e cultivadas com muita diligência e cuidado.

IV
Em todo esse tempo, não sabia nada de ciência. Nada sobre o outro lado. Nada das objeções que eram necessárias contra as Sagradas Escrituras, ou contra o perfeito Credo Congregacional. Claro que tinha ouvido o pastor falar de blasfemadores, de maus infiéis, de gente debochada que ria das coisas sagradas. Eles não respondiam seus argumentos, mas eles retalhavam seu caráter com fúria que eles faziam o trabalho do diabo. E então, apesar de tudo o que eu tinha ouvido, tudo que havia lido, eu não podia acreditar. Meu cérebro e coração diziam não.

Em pouco tempo eu deixei os sonhos, as insanidades, as ilusões, os pesadelos da Teologia. Estudei um pouco de Astronomia -- só um pouco. Examinei os mapas do céu, aprendi os nomes de algumas constelações e de algumas estrelas. Entendi seus tamanhos e as velocidades com as quais giram, obtendo algumas noções dos espaços astronômicos. Descobri que muitas estrelas estão a uma distância tão gigantesca que sua luz, viajando a uma velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo, demoraria muitos anos para atingir nosso pequeno mundo. Descobri que, comparado às grandes estrelas, nosso mundo não é mais que um pequeno grão de areia, ou um átomo, descobri que as velhas crenças que os donos do céu haviam criado para nós na terra eram o mais infinito absurdo.

Comparei o que realmente se conhecia a respeito das estrelas com o que se sabia da criação contada no Gênesis. Descobri que os inspirados escritores sagrados não sabiam nada de Astronomia. Que eram tão ignorantes como um chefe dos Choctaw. Ou como um esquimó que conduz cães. Alguém imagina que o autor do Gênesis tivesse algum conhecimento sobre o sol? Sobre seu tamanho? Tinha conhecimentos sobre Sirius, a Estrela Polar, Capela? Ou sobre as galáxias, tão distantes de nós que sua luz passa milhões de anos para visitar nossos olhos?

Se eles soubesse destes fatos, iriam afirmar que Jeová criou este mundo em seis dias, e que em apenas numa parte da tarde do quarto dia Ele fez o sol, a lua e todas as estrelas?

E mesmo assim, milhões de pessoas insistem que esse escritor do Gênesis era inspirado pelo Criador de todos os mundos.

Agora, homens inteligentes que não têm pavor, cujos cérebros não foram paralisados pelo medo, sabem que a história sagrada foi escrita por um selvagem ignorante.

Eu admito que esse desconhecido fosse sincero, que ele escreveu o que achava que fosse a verdade. Que fez o melhor que pôde. Ele não afirmou ser inspirado -- não fingiu que a historia tivera sido contada a ele por Jeová. Ele apenas contou os "fatos" como ele os entendia. Depois que aprendi um pouco sobre as estrelas, concluí que este escritor, que este escriba "inspirado" enganou-se através de mitos e lendas, que ele não sabia mais sobre a criação do que os Teólogos dos nossos dias. Em outras palavras, ele não sabia absolutamente nada.

E agora, vou dizer que aqueles Clérigos me que respondem estão mirando suas armas na direção errada. Esses Reverendos deveriam atacar os Astrônomos. Deveriam amaldiçoar e vilificar Kepler, Newton, Herschel e Laplace. Esses homens foram os verdadeiros destruidores das histórias sagradas. Então, depois de livrar-se deles, deveriam iniciar uma guerra contra as estrelas, e contra o próprio Deus, por deixar pistas que depõem contra a verdade desse livro.

Então estudei Geologia. Não muito, só noções. Só o suficiente para encontrar uma maneira geral de como os fatos foram descobertos, e algumas das conclusões a que chegaram. Aprendi alguma coisa sobre a ação do fogo. Da água, sobre a formação das ilhas e continentes. Sobre os sedimentos e rochas, sobre as medições com carbono, sobre as encostas calcárias os recifes de corais, sobre os depósitos feitos pelos rios, sobre os efeitos dos vulcões, o gelo glacial, e todo o mar circundante; só o suficiente para saber que as rochas são muitos milhões de anos mais antigas que a grama abaixo dos meus pés. O suficiente para saber que nosso globo vem girando continuamente ao redor do sol, entre sombra e luz por centenas de milhões de anos, o suficiente para saber que aquele escritor "inspirado" não sabia nada sobre a história da terra, nada sobre as forças da natureza, do vento, das ondas, do fogo, forças que eram construídas de destruídas continuamente durante um tempo incalculável.

E deixem-me dizer aos sacerdotes que eles não deveria perder seu tempo respondendo a mim. Deveriam atacar os Geólogos. Deveriam negar os fatos que foram descobertos. Deveriam lançar suas maldições sobre os mares blasfemantes. E bater suas cabeças contra rochas infiéis.

Então, estudei Biologia -- não muito -- só o suficiente para saber das formas animais, saber que na época das rochas laurencianas a vida já existia. Que ferramentas de pedra, ferramentas produzidas por mãos humanas, haviam sido encontradas junto de ossadas de animais extintos. Ossos que haviam sido esmigalhados por aquelas ferramentas. E que esses animais haviam sido extintos centenas de milhares de anos da criação de Adão e Eva.

Então eu fiquei certo de que as escrituras "inspiradas" eram falsas. Que milhões de pessoas vinham sendo enganadas e que tudo o que era ensinado sobre a origem do mundo era pura mentira. Senti que sabia que o Velho Testamento era o trabalho de homens ignorantes -- que era uma mistura de verdades e erros, de sabedoria e idiotice, de crueldade e bondade, de Filosofia e absurdos -- que ela continha alguns pensamentos elevados, alguma poesia, um bom número de ditos solenes e lugares-comuns, -- alguns histéricos, outros suaves, algumas orações maldosas, algumas previsões insanas, algumas alucinações, e alguns sonhos caóticos.

É claro que os Teólogos lutaram contra os fatos descobertos pelos Geólogos, pelos Cientistas, e tentaram sustentar as Sagradas Escrituras. Tentaram confundir ossos de mastodontes com os de seres humanos, alegando orgulhosamente que eram gigantes que existiam naqueles tempos. Alguns afirmaram que os ossos haviam sido ali colocados por Deus para testar nossa fé, ou que o diabo havia imitado o trabalho do Criador.

Responderam aos Geólogos afirmando que no Gênesis os dias eram longos períodos de tempo, e que na verdade o dilúvio poderia der sido um fenômeno local. Disseram aos Astrônomos que o sol e a lua havia sido não realmente, mas só aparentemente parados. E que a aparência se devia a fenômenos de reflexo e refração da luz.

Desculparam a escravidão e a poligamia, as pilhagens e assassinatos acontecidos no Velho Testamento dizendo que aquelas pessoas eram tão degradadas que Jeová tinha sido obrigado a por fim à sua ignorância e maldade.

A todo momento os Clérigos tentaram evadir-se dos fatos, escamotear a verdade e preservar a fé.

No princípio eles simplesmente negavam os fatos -- depois os diminuíam -- depois se harmonizavam com eles. Depois negavam que os haviam negado. Então eles modificaram o significado dos livros "inspirados" para se adaptar aos fatos. No início afirmaram que se os fatos relatados fossem verdadeiros, a Bíblia seria falsa e o Cristianismo seria uma superstição. Depois admitiram que os fatos, eram verdadeiros e que eles comprovavam, acima de qualquer dúvida a inspiração da Bíblia e a origem divina da religião ortodoxa.

Qualquer coisa da qual não podiam se esquivar, engoliam. E qualquer coisa que não engoliam, esquivavam-se.

Desisti de acreditar no Velho Testamento por causa de seus erros, de seus absurdos, sua ignorância, suas crueldades. Desisti de acreditar no Novo porque ele testemunhava a verdade do Velho. Desisti do Novo devido aos seus milagres, suas contradições, porque Cristo e seus discípulos acreditavam em demônios -- conversavam e barganhavam com eles, expulsavam-nos de pessoas e animais.

Isto, por si só já diz tudo. Sabemos que demônios não existem. Cristo nunca os expulsou. E se fingiu fazê-lo, ele era ou ignorante, desonesto ou insano.

Essas histórias sobre demônios atestam a origem humana e supersticiosa do Novo Testamento. Rejeito o Novo Testamento porque ele recompensa a credulidade, castiga homens bravos e honestos, e porque ele ensina o infinito horror do castigo eterno.

V

Tendo passado minha juventude lendo livrois religosos -- sobre a "ressureição" -- a desobediência dos nossos pais primitivos, o arrependimento, a salvação pela fé, a maldade do prazer, as conseqüência degradante do amor, a impossibilidade de atingir o céu de pessoas honestas e generosas, tornando-me cansado dos pensamentos confusos e esfarrapados, você pode imaginar a satisfação que senti ao ler os poemas de Robert Burns.

Eu estava familiar com as escrituras dos devotos e mentirosos, os piedosos e petrificados, os puros e impiedosos. Aqui estava um homem naturalmente honesto. Já conhecia os escritos dos homens que consideravam a natureza depravada, que encaravam o amor como testemunha perpétua do pecado original. Aqui estava um homem que tirava alegria da lama, fazia mulheres caipiras deusas, e entronizava o homem honesto. Aquele que, com simpatia, braços aconchegantes, abraçava toda forma sofredora de vida, que odiava escravidão de qualquer tipo, que era tão natural como o azul do céu, com humor tão suave como o outono, com uma inteligência tão aguçada como a lança de Ithuriel, com uma irreverência tão devastadora como o fôlego de Simão. Um homem que amava seu mundo, sua vida, as coisas do dia-a-dia, e colocava acima de tudo a êxtase excitante do amor humano.

Eu li e li novamente com alegria, lágrimas e sorrisos , sentimentos que um grande coração era revelado entre as linhas.

Os poetas religiosos, lúgubres, artificiais, espirituais foram esquecidos ou permaneceram como fragmentos da parte lembradas dos horrores dos sonhos monstruosos ou distorcidos.

Tinha encontrado afinal o homem que desprezava a crença cruel do seu povo, e que era corajoso e sensível o suficiente para dizer: "todas as religiões são histórias da carochinha, mas o homem honesto não tem o que temer nem neste mundo nem em mundos do futuro".

Um homem que teve a generosidade de escrever a Oração de São Willie, um poema que crucificava os calvinistas, e trespassou seus corações impiedosos com a lança do bom senso. Um poema que fez de qualquer crença alimento para a galhofa, um motivo para gargalhadas.

Burns teve suas, fraquezas, seus defeitos. Era intensamente humano. Entretanto, preferia aparecer no "Banco dos réus" bêbado e ser capaz de dizer que sou o autor de "para que serve o homem" a ser perfeitamente sóbrio e admitir que passei a vida como um escocês presbiteriano.

Li Byron -- li seu Caim no qual, como no Paraíso perdido, o diabo parece ser o melhor deus -- li suas lindas, sublimes e amargas linhas -- li seu prisioneiro de Chillon -- seu melhor -- um poema que encheu meu coração de ternura, de piedade, e com um ódio eterno à tirania.

Li a Rainha Mab de Shelley -- poema cheio de beleza, coragem, pensamento, simpatia, lágrimas e ironia, na qual uma alma corajosa derruba os muros de uma prisão e preenche suas celas com luz. Li sua Andorinha -- uma chama alada -- apaixonada como sangue -- suave como lágrimas -- pura como a luz.

Li Keats, "cujo nome estava escrito na água" -- Li St. Agendes Eve, uma história escrita com tão pouca arte que este pobre mundo parece ser uma terra maravilhosa -- um vaso grego que enche a alma com todo o vívido amor, com todo o êxtase da música imaginada -- a cotovia -- a melodia na qual há memória da manhã -- a melodia que morre na escuridão e lágrimas, impingindo os sentidos com sua perfeição.

E então li Shakespeare, as peças, os sonetos, os poemas -- li tudo. Senti um novo céu e uma nova terra. Shakespeare, que conhecia o cérebro e o coração do homem -- as esperanças e medos, os amores e ódios, os vícios e virtudes da espécie humana: cuja imaginação leu as imagens borradas de lágrimas, as páginas manchadas de sangue de todo o passado, viu caindo sobre os pergaminhos espalhados, a luz da esperança e do amor; Shakespeare, que sondou toda a profundidade, enquanto os picos mais altos sentiram a sombra das suas asas.

Comparo as peças com os livros "inspirados" -- Romeu e Julieta com a Canção de Salomão, rei Lear com Jó, e os sonetos com os Salmos e descobri que Jeová não conhecia a arte do discurso. Comparei as mulheres de Shakespeare -- sua mulheres perfeitas -- com as mulheres da Bíblia. Percebi que Jeová não era um escultor, nem um pintor nem um artista, que ele não tinha o poder de transformar barro em carne, a arte, o sentido plástico que molda a forma perfeita -- o alento que dá a vida livre e alegre -- o gênio que cria a culpa.

Os livros sagrados de todo o mundo são escórias inúteis e pedras sem valor comparadas com o ouro brilhante e as pedras preciosas de Shakespeare.

VI
Até então não tinha lido nada contra nossa abençoada religião exceto o que tinha encontrado em Burns, Byron e Shelley. Quase por acaso li Volney que mostrou que todas as religiões são e foram estabelecidas da mesma maneira -- que todas tinham seus Cristos, seus apóstolos, milagres e livros sagrados, e que perguntou como seria possível decidir qual seria o verdadeiro. Uma questão que ainda espera uma resposta.

Li Gibbon, o maior de todos os historiadores, que moldou seus fatos tão inteligentemente como César moldou suas legiões, e aprendi que Cristianismo é apenas mais um sinônimo de Paganismo -- para as velhas religiões, tosadas da sua beleza -- que alguns absurdos têm sido substituídos por outros -- que alguns deuses foram mortos -- uma grande multidão de diabos criados, e que o inferno foi ampliado.

E então li "A idade da razão" de Thomas Paine. Deixe-me falar um pouco deste sublime e elegante homem. Ele veio para este país logo antes da revolução. Ele trazia uma carta de apresentação de Benjamin Franklin, naquela época o maior americano.

Em Filadélfia, Paine foi empregado para escrever numa revista, a "Revista da Pensilvânia". Sabemos que ele escreveu pelo menos cinco artigos. O primeiro era contra a escravidão, o segundo contra os duelos, o terceiro sobre o tratamento dos presos -- mostrando que o objetivo deveria ser recuperar, e não punir ou degradar -- o quarto sobre os direitos da mulher, e o quinto, sobre a formação de sociedades para proteção de crianças e dos animais.

Daí você vê que ele propunha a grande reforma do nosso século.

A verdade é que ele lutou durante toda a sua vida para o bem dos seus semelhantes, e fez tudo o que pode para a fundação da grande república, mais que qualquer outro homem diante da nossa bandeira.

Ele deu suas opiniões sobre religião -- sobre as Sagradas Escrituras, e sobre a superstição no seu tempo. Era perfeitamente sincero e o que ele dizia era claro e honesto.

A Idade da Razão encheu de ódio os corações daqueles que amavam seus inimigos, e todo o clérigo se tornou, e ainda o é, feroz inimigo de Thomas Paine.

Ninguém respondeu -- ninguém quer responder, seus argumentos contra os dogmas da inspiração -- suas objeções contra a Bíblia.

Ele não se levantou contra as superstições do seu tempo. Enquanto ele odiava Jeová, ele amava o Deus da Natureza, o criador e mantenedor de tudo. Nisto ele estava errado, porque, como Watson dissera em resposta a Thomas Paine, o Deus da Natureza é tão impiedoso e cruel como o Deus da Bíblia.

Mas Paine foi um dos pioneiros -- um dos Titãs, um dos heróis, que orgulhosamente deram sua vida, todos os seus atos e pensamentos, para libertar e civilizar o homem.

Li Voltaire. Voltaire, o maior homem deste século, que contribuiu mais para a liberdade de pensamento e de expressão que qualquer outro ser, humano ou "divino". Voltaire, que tirou a máscara da hipocrisia e encontrou abaixo do sorriso pintado as garras do ódio. Voltaire, que atacou a selvageria da lei, as decisões cruéis dos tribunais, resgatou pessoas vítimas das rodas e dos patíbulos. Voltaire, que declarou guerra contra a tirania dos tronos, a ambição e iniqüidade do poder. Voltaire, que encheu as carnes dos padres com a lança pontudas da sua sabedoria, que fez o juiz piedoso que o amaldiçoou em público, rir de si próprios em privado. Voltaire, que se juntou aos oprimidos, resgatou os desafortunados, apoiou o obscuro e o fraco, civilizou juizes, repeliu leis e aboliu a tortura em seu país natal.

Em todas as direções, este incansável homem lutou contra o absurdo, o miraculoso, o supersticioso, o idiota, o injusto. Ele não tinha nenhuma reverência pelo antigo. Não tinha qualquer inclinação pela pompa e cerimonial. Pelos crimes da coroa ou pretensão de mitra. Abaixo da coroa ele encontrou um criminoso, abaixo da mitra, um hipócrita.

No âmago da sua consciência, da sua razão, ele denunciou o barbarismo e os bárbaros do seu tempo. Denunciou tudo isto e seu julgamento tem sido reafirmado por todo o mundo. Voltaire acendeu a tocha e deu a outros a chama sagrada. E continuará brilhando enquanto o homem amar a liberdade e a verdade.

Li Zeno, o homem que disse, séculos antes de Cristo ter nascido, que um homem não podia ser dono de outro homem.

"Não importa que você afirme que seu escravo foi comprado ou capturado. Aqueles que afirmam possuir seu semelhante olham para as profundezas e esquecem da justiça que deveria governar o mundo".

Tomei conhecimento de Epicurus, que ensinou a religião na utilidade, da temperança, da coragem e sabedoria, e que disse: "Por que eu deveria temer a morte? Se existo, a morte não existe. Quando ela existir, eu não mais estarei aqui. Então, por que eu temeria algo que só existirá quando eu não mais existir?".

Li sobre Sócrates, quando em julgamento por sua vida, disse, entre outras coisas, para seus juizes estas maravilhosas palavras: "Não procurei durante minha vida acumular riquezas ou adornar meu corpo, mas procurei enfeitar minha alma com as jóias da sabedoria, paciência, e acima de tudo, com o amor da liberdade."


Então, li sobre Diógenes, o filósofo que odiava o supérfluo -- o inimigo do desperdício e da ganância, e que um dia entrou num templo, com reverência aproximou-se do altar, esmagou um piolho entre as unhas dos seus polegares e disse solenemente: "O sacrifício de Diógenes a todos os deuses". Ele parodiou todas as crenças e colocou a essência da religião.

Diógenes devia saber sobre as passagens "inspiradas" -- "Sem derramamento de sangue não há remissão dos pecados".

Comparo Zeno, Epicuro e Sócrates, três pagãos miseráveis que nunca tinham ouvido falar do Velho Testamento ou dos Dez Mandamentos, com Abraão, Isaac e Jacó, três favoritos de Jeová, e eu seria depravado o suficiente para achar que os pagãos eram superiores aos patriarcas -- e ao próprio Jeová.

VII

Então, minha atenção se voltou para outras religiões, para os livros sagrados, os credos e cerimônias de outros países -- da Índia, Egito, Assíria, Pérsia, dos povos extintos e ainda existentes.

Concluí que todas as religiões tiveram a mesma fundação -- a crença no sobrenatural -- uma força acima da natureza que o homem poderia influenciar pela adoração, sacrifício e oração..

Descobri que as religiões repousam sobre uma compreensão equivocada da natureza -- que a religião de um povo era a ciência desse povo, ou seja, sua explicação sobre o mundo, sobre a vida e morte, sobre a origem e destino.

Percebi que todas as religiões tinham substancialmente a mesma origem, e que não havia mais que uma religião no mundo. As ramos e as folhas podiam mudar, mas o tronco era o mesmo.

O pobre africano que dedica seu coração a deuses de pedra está no mesmo nível do clérigo bem adornado que suplica a seu Deus. Os mesmos erros, as mesmas superstições, junta os joelhos e atinge os olhos de ambos. Ambos anseiam por ajuda sobrenatural e nenhum dos dois tem a menor noção da uniformidade da natureza.

Parece provável que o primeiro cerimonial religioso tenha sido a adoração do sol. O sol era o "pai do céu", o que "via tudo", a fonte de vida, o lado flamejante do mundo. O sol era considerado o deus que combatia a escuridão, a força do mal, o inimigo do homem.

Houve muitos deuses-sóis e eles pareciam ser a principal divindade das antigas religiões. Eles foram adorados em muitas regiões, muitos povos que já atingiram a extinção.

Apolo era um deus-sol que combateu e conquistou a serpente da noite. Baldur era um deus-sol. Era apaixonado pela manhã, uma donzela. Krishna era um deus-sol. Ao seu nascimento, o Ganges foi formado, desde sua nascente até o mar, e todas as árvores, as mortas e as viventes, floresceram em folhas e flores. Hércules era um deus-sol, e também o era Sansão, cuja força estava nos cabelos, ou seja, em sua luz. Foi tosado em sua força por Dalila, a sombra, a escuridão. Osiris, Baco, Mitra, Buda, Quetzalcoalt, Prometeu, Zoroastro, Perseu, Cadom, Lao-tsé, Fo-hi, Horus, Ramsés, eram todos deuses-sóis.

Todos estes deuses tinham deus como pai e eram filhos de virgens. O nascimento de quase todos foi anunciado por uma estrela, celebrado por música celestial, e vozes declararam que tinham vindo para abençoar este pobre mundo. Todos eles nasceram em local pobre. Em cavernas, abaixo duma árvore, em hospedarias simples. Tiranos tentaram destruí-los a todos quando ainda eram bebês. Todos estes deuses-sóis nasceram no solstício de inverno. No Natal. Quase todos foram adorados por sábios magos. Todos jejuaram por quarenta dias. Todos ensinaram em parábolas. Todos experimentaram milagres. Todos tiveram uma morte violenta e todos ressuscitaram dos mortos.

A história desses deuses é exatamente a história do nosso Cristo.

Isto não é uma coincidência, um acidente. Cristo era um deus-sol. Cristo foi um nome novo para uma velha biografia -- uma sobrevivência. O último dos deuses-sóis. Cristo não era um homem, mas um mito. Não uma vida, mas uma lenda.


Descobri que nós não apenas pegamos emprestado nosso Cristo. Mas todos os nossos sacramentos, símbolos e cerimônias foi um legado que recebemos de um passado sepultado. Não há nada de original no Cristianismo.

A cruz já era um símbolo milhares de anos antes de nossa era. Era um símbolo da vida. Da imortalidade -- do cordeiro de Deus, e era já colocada em tumbas muitas eras antes de uma só linha da Bíblia ser escrita.

Batismo é muito mais antigo que o Cristianismo e Judaísmo. Os hindus, egípcios, gregos, batizavam-se muito antes de um católico ter vivido. A eucaristia foi emprestada dos pagãos. Ceres foi uma deusa dos campos. Baco, o do vinho. Nas suas festas eles molhavam o pão no vinho e diziam: "Esta é a carne da deusa". Então, bebiam vinho e choravam: "Este é o sangue do nosso deus".

Os egípcios tinham uma trindade. Adoravam Osíris, Ísis e Orus milhares de anos antes que o Pai, o Filho e o Espírito Santo fossem conhecidos.

A árvore da vida cresceu na Índia e entre os Astecas muito antes do Jardim do Éden ser plantado.

Muito antes da Bíblia ser escrita, outros povos haviam tido seus livros sagrados.

Os dogmas da tentação do homem, do arrependimento e a salvação pela fé são muito mais antigos que nossa religião.

Em nossos Evangelhos abençoados -- em nosso "esquema divino" -- não há nada novo, nada original. Tudo é velho -- emprestado, remendado, adaptado.

Então conclui que todas as religiões foram produzidas naturalmente, e que todas eram variações, modificações de uma. Então senti que eram todas produto do trabalho do homem.

VIII

Os Teólogos sempre insistiram que seus deuses eram os criadores de todas as coisas vivas -- que as formas, partes, funções, cores e variedades de animais eram expressão se sua vontade, gosto e sabedoria. Que eles foram produzidos exatamente da mesma forma que existem hoje. Que ele inventou barbatanas, pernas e asas, que ele colocou para esses seres armas para o ataque, carapaças para defesa, que os adaptou para tipos de alimento e clima, levando em consideração todos os fatos relacionados com a vida.

Insistiram que o homem era um tipo especial de criação, não relacionado com os animais abaixo dele. Eles também afirmaram que todas as formas de vegetação, de plantas pequenas a florestas eram exatamente iguais às formas que tinham na criação.

Homens de inteligência, que em sua maior parte eram livres de preconceitos religiosos, examinaram essas coisas -- estavam procurando fatos. Examinaram fósseis de animais e plantas, estudaram formas de animais, seus ossos e músculos, os efeitos do clima e da alimentação, as estranhas modificações pelas quais eles passaram.

Humboldt publicou seus estudos, preenchidos por grandes pensamentos, com esplêndidas generalizações, com sugestões que estimulavam o espírito da observação, e com conclusões que satisfaziam a mente. Ele demonstrou a uniformidade da natureza, o parentesco entre todos os seres que vivem e crescem, que respiram e pensam.

Darwin, com seu "Origem das Espécies", sua teorias sobre seleção natural, a sobrevivência dos mais adaptados, a influência do ambiente, derramou uma enchente de luz sobre o grande problema das plantas e vida animal.

Estas coisas têm sido pensadas, afirmadas, sugeridas por muitos outros, mas Darwin, com infinita paciência, com perfeito cuidado e candura, encontrou os fatos, preencheu as profecias, demonstrou a veracidade dos fatos, suposições e declarações. Ele foi, em meu julgamento, o mais inteligente observador, o melhor julgador dos significados e valores de um fato, o maior naturalista que o mundo já produziu.

A visão teológica começou a parecer pequena e vil.

Spencer mostrou sua teoria da evolução e sustentou-a através de incontáveis argumentos. Colocou-se em grande altitude, e com visão de filósofo, um profundo pensador, pesquisou o mundo. Ele tem influenciado o pensamento dos mais sábios.

Teologia pareceu mais absurda do que nunca.

Huxley entrou na lista por Darwin. Nenhum homem tivera melhor espada -- uma melhor bainha. Desafiou o mundo. Os grandes teólogos e os pequenos cientistas -- aquelas que tinham mais coragem que razão, aceitaram o desafio. Seus pobres corpos foram levados embora pelos amigos.

Huxley teve inteligência, genialidade, e coragem para expressar suas idéias. Ele era absolutamente leal para o que ele acreditava que fosse verdade. Sem preconceito e sem medo ele seguiu os passos da vida desde as menores formas até as maiores.

Teologia parecia menor ainda.

Haeckel começou na mais simples célula, foi de mudança a mudança -- de forma em forma -- seguiu a linha do desenvolvimento, o caminho da vida, até atingir a espécie humana. Era tudo natural. Não havia qualquer interferência do exterior.

Li os trabalhos desses grandes homens. E muitos outros. E fiquei convencido de que estavam certos, e que todos os teólogos, todos os que acreditavam na "criação especial" estavam absolutamente errados.

IX

Dei um passo seguinte. O que é matéria -- substância? Pode ser destruída, aniquilada? É possível conceber a destruição do mais simples átomo de substância? Ela pode ser reduzida a pó -- mudada de sólido para líquido -- de líquido a gás, mas tudo isto permanece. Nada é perdido, nada é destruído.

Deixe um Deus infinito, se há algum, atacar um grão de areia -- atacá-lo com infinita força. Não poderá ser destruído. Ele não se renderá. Ele desafia todas as forças. Substância não pode ser destruída.

Então dei mais um passo.

Se matéria não pode ser destruída, não pode ser aniquilada, não pode ter sido criada.

O indestrutível tem de ser incriável.

Então perguntei a mim mesmo: o que é força?

Não podemos conceber a criação da força, ou de sua destruição. Força pode ser mudada de uma forma para outra -- de movimento para calor -- mas não pode ser destruída, aniquilada.

Se a força não pode ser destruída, não pode ser criada. É eterna.

Outra coisa. Matéria não pode existir separadamente da força. Força não pode existir separadamente da matéria. Matéria e força só podem ser concebidas em conjunto. Isto tem sido mostrado por vários cientistas, mas mais claramente por Buchner.

Mente é uma forma de força, portanto ela não poderia formar ou criar matéria. Inteligência é uma forma de força que não poderia existir separadamente da matéria. Sem matéria não poderia existir mente, vontade, força de qualquer tipo, e não poderia existir qualquer substância sem força.

Matéria e força não foram criadas. Elas existem desde sempre. Não podem ser destruídas.

Não houve, não há nenhum criador. Então, vem a questão; Há um Deus? Haverá um ser de infinita inteligência, força e bondade, que governa o mundo?

Pode haver bondade sem muita inteligência. Mas parece-me que infinita bondade e infinita inteligência têm de estar juntas.
Na natureza vejo, ou pareço ver, bem e mal -- inteligência e ignorância, bondade e crueldade, cuidado e desprezo, economia e desperdício. Vejo meios que não justificam os fins -- formas que parecem falhar.

Parece-me infinitamente cruel que vida se alimente de vida -- criar animais que devorem outros.

Os dentes e presas, garras e patas, que amedrontam e aprisionam, enchem-me de horror. O que pode ser mais assustador que um mundo em guerra? Todo local, um campo de batalha. Toda flor um Golgotha -- em toda gota de água, perseguição, captura e morte. Em baixo de qualquer casca de árvore, vida espreitando vida. Em qualquer lâmina de vidro, algo que mata, -- algo que sofre. Em toda a parte o forte vivendo do fraco, o superior no inferior. Em toda a parte, o fraco, o insignificante vivendo no forte, o inferior no superior. O maior, alimento para o menor, homens sacrificados como alimento de micróbios.

Assassinatos em todo o universo. Em todo local, dor, doença e morte. Morte que não espera por maturidade ou cabelos brancos, mas que leva bebês e juventude feliz. Morte que leva a mãe da criança desamparada, morte que enche o mundo com tristeza e lágrimas.

Como pode o cristão explicar estas coisas?

Sei que a vida é boa. Lembro o sol brilhando e a chuva. Então, penso em enchentes e terremotos. Não esqueço a saúde, o lar, o amor. Mas e as epidemias e a fome? Não posso harmonizar todas estas contradições -- estas bênçãos e agonias, com a existência de um Deus infinitamente bom, sábio e poderoso.

Os teólogos afirmam que o que chamamos mal é para nosso próprio benefício, que nós fomos colocados neste mundo de tristezas e pecado para desenvolver o caráter. Se isto é verdade, pergunto por que crianças morrem? Milhões e milhões respiram umas poucas vezes e desfalecem para sempre nos braços de suas mães. A estas não é permitido desenvolver o caráter.

Teólogos afirmam que serpentes possuem presas para se defender nos inimigos. Por que Deus que as fez, fez também seus inimigos? E por que muitas espécies de serpentes não têm presas?

Teólogos dizem que Deus fez os hipopótamos com carapaça de escamas e placas, exceto as partes inferiores para que outros animais não os ataquem. Mas o mesmo Deus fez o rinoceronte com chifres pontiagudos com os quais ele pode estripar um hipopótamo.

O mesmo Deus fez a águia, o abutre, o falcão e também suas presas indefesas.

Em todo lado parece haver criação para atacar criação.

Se Deus criou o homem -- se é o pai de todos nós, por que ele fez os criminosos, os dementes, os deformados, os idiotas?

Deverá um homem inferior agradecer a Deus? Deverá uma mãe que carrega nos seus braços uma criança idiota agradecer a Deus? O escravo tem que agradecer a Deus?


Teólogos afirmam que Deus governa o vento, a chuva, o relâmpago. Então, o que dizer dos ciclones, enchentes, a seca, o raio que matam?

Suponha que haja alguém neste país que controla o vento, a chuva, o relâmpago, e suponha que o elejamos para governar estas coisas, e suponha que ele faça com que todos os estados sequem e que ao mesmo tempo, desperdice água no mar. Suponha que ele permita que o vento destrua cidades e que esmague milhares de homens e mulheres, e que raios fulminem mulheres e crianças. O que diríamos? O que deveríamos achar de tal selvagem?

E no entanto, de acordo com teólogos, este é exatamente o curso seguido por Deus.

O que achar de um homem, que não quer, apesar de poder, ajudar seus amigos? Entretanto o Deus cristão permitiu que seus inimigos torturassem e queimassem seus amigos e adoradores.
Quem terá ingenuidade suficiente para explicar isto?

O que um homem, podendo prevenir, permitiria que um inocente fosse aprisionado, jogado em masmorras, para ver esvair-se sua pobre vida naquele lugar?

Se Deus governa o mundo, por que a inocência não é uma perfeita proteção? Por que a injustiça triunfa?

Quem pode responder estas perguntas?

Em resposta, o homem inteligente e honesto deve dizer: Eu não sei.

X

Este Deu deve ser, se existir, uma pessoa -- um ser consciente. Quem pode imaginar uma personalidade infinita? Este Deus tem que ter força e não é concebível força independente de matéria. Este Deus tem de ser material. Ele tem de ter meios pelos quais ele transforma força no que chamamos pensamento. Quando ele pensa, usa força; força que tem de ser substituída. E nos dizem que ele é infinitamente inteligente. Se é, ele não pensa. Pensamento é uma escada, um processo pelo qual nós atingimos uma conclusão. Aquele que já sabe todas as conclusões, não pensa. Ele não pode ter esperança nem medo. Quando o conhecimento é perfeito não pode haver paixão, nem emoção. Se Deus é infinito ele não quer. Ele já tem tudo. E aquele que não quer, não faz. O infinito deve viver na calma eterna.

É tão impossível conceber tal ser como imaginar um triângulo quadrado, ou um círculo sem diâmetro.

E no entanto nós somos ensinados a amar esse Deus. Podemos amar o desconhecido, o inconcebível? Poderá ser nossa obrigação amar alguém? É nossa obrigação agir com justiça, honestidade, mas não pode ser nossa obrigação amar. Não podemos ser obrigados a admirar uma pintura -- a apreciar um poema -- ou amar uma música. Admiração não pode ser controlada. Gosto e amor não são dependentes da vontade. Amor é, e deve ser livre. Ele surge do coração como o perfume de uma flor.

Por milhares de anos homens têm tentado amar os deuses -- tentando amaciar seus corações, tentando obter sua ajuda.

Vejo todos eles. O panorama passa na minha frente. Vejo-os com as mãos estendidas -- com olhos respeitosamente fechados -- adorando o sol. Vejo-os curvando-se, no seu medo e necessidade, diante de pedras -- implorando a serpentes, bestas e árvores sagradas -- rezando para ídolos de pedra e madeira. Vejo-os construindo altares para forças invisíveis, manchando-os com o sangue de crianças e de animais. Vejo os sacerdotes e ouço seus cânticos solenes. Vejo as vítimas moribundas, os altares esfumaçados, os incensadores balançando, a fumaça subindo. Vejo homens semi-deuses -- os cristãos penitentes, em muitos países. Vejo notícias de coisas comuns da vida transformando-se em milagres, à medida que se espalham de boca em boca. Vejo profetas loucos lendo livros secretos do destino através de sinais e sonhos. Vejo todos eles -- os assírios recitando as orações de Ashnur e Ishtar -- os hindus adorando Brahma, Vishnu e Draupadi, os braços brancos -- os caldeus oferecendo sacrifícios a Bel e Hea -- os egípcios curvando-se para Ptah e Ftah, Osíris e Ísis -- os medas aplacando a tempestade -- adorando o fogo -- os babilônios suplicando a Bel e Murodach -- vejo todos eles à beira do Eufrates, do Nilo, do Tigre, o Ganges. Vejo os gregos construindo templos a Zeus, Netuno e Vênus. Vejo os romanos ajoelhando-se para centenas de deuses. Vejo outros construindo ídolos e depositando neles todas as suas esperanças e medo, Vejo as multidões boquiabertas recebendo como verdades os mitos e fábulas de tempos passados. Vejo-os dando suas ferramentas, suas fortunas para vestir o sacerdote, para construir os telhados abobadados, as naves espaçosas, as cúpulas elevadas. Vejo-os esfarrapados, amontoados em cabanas, devorando migalhas e restos, porque tinham dado o melhor para fantasmas e deuses. Vejo-os construindo suas crenças horríveis e enchendo o mundo de ódio, guerras e morte. Vejo-os com suas faces empoeiradas nos anos negros da peste e da morte súbita, quando bochechas eram murchas e lábios eram pálidos por falta de pão. Ouço suas rezas, seus suspiros, suas lamentações. Vejo-os beijar lábios inconscientes enquanto suas lágrimas mornas molham a face pálida do morto. Vejo as nações crescerem e decaírem. Vejo-as serem capturadas e escravizadas. Vejo seus altares desmoronarem como a terra comum, seus templos se desmanchando até virar pó. Vejo seus deuses envelhecerem, enfraquecerem, adoecerem e desaparecerem. Vejo-os caindo de tronos nevoentos desamparados e mortos. Os adoradores não recebiam qualquer ajuda. A injustiça triunfava. Trabalhadores eram pagos com chicote -- bebês, vendidos, -- inocentes colocados no patíbulo, os heróis queimando em chamas. Vejo os terremotos destruindo, os vulcões transbordando, os ciclones devastando, as enchentes destruindo, os raios matando.

As nações pereceram. Os deuses morreram. As ferramentas e as riquezas, perdidas. Os templos haviam sido construído em vão, e as preces não respondidas morreram no ar.

Então perguntei a mim: há uma força sobrenatural -- uma mente arbitrária, um Deus entronizado - um ente supremo que faz oscilar as marés e ventos, do qual tudo depende?

Não nego. Eu não sei -- mas não acredito. Acho que o natural é o supremo -- que da cadeia infinita nenhum elo pode ser quebrado -- que não há qualquer ser sobrenatural que responda às preces. Nenhuma força que se adore pode modificar as coisas -- nenhuma força que cuide do homem.

Acredito que com braços infinitos a natureza abrace o tudo -- que não há qualquer interferência -- qualquer possibilidade -- que atrás de qualquer fato estão as necessárias e incontáveis causas e além de qualquer fato, os necessários e incontáveis efeitos.

O homem deve proteger a si próprio. Ele não pode depender do sobrenatural -- do imaginário pai do céu. Ele pode se proteger compreendendo os fatos da natureza, desenvolvendo sua mente, até o ponto em que ele poderá suplantar as dificuldades e tirar benefícios das forças da natureza.

Há um Deus?
Não sei.

O homem é imortal?
Não sei.

Uma coisa eu sei, e é que nem a esperança, nem o medo, crença, negação, podem mudar os fatos. As coisas são como são, e serão como deverão ser. Nós esperamos e temos esperanças.

XI
Quando me tornei convencido de que o Universo é natural -- que todos os deuses e fantasmas eram mitos, entraram na minha mente, na minha alma, em cada gota do meu sangue, o senso, o sentimento e a alegria da liberdade. Os muros da prisão racharam e caíram. As masmorras foram invadidas pela luz, e todas as travas, as algemas, as barreiras, viraram pó. Eu não era mais um servo, um servente ou um escravo. Não havia mais para mim nenhum mestre em todo este gigantesco mundo -- nem mesmo no espaço infinito. Eu estava livre -- livre para pensar, para expressar meus pensamentos, livre para viver meu próprio ideal, livre para viver para mim e para aqueles que amo. Livre para rejeitar toda e qualquer crença cruel e ignorante, todos os "livros sagrados" que selvagens ignorantes produziram, e todas as bárbaras lendas do passado, livre de papas e padres, livre de todos os "chamados" e dos "excluídos", livre dos erros santificados e das mentiras santas, livre do medo de sofrimento eterno, livre dos monstros alados da noite -- livre de diabos, fantasmas e deuses. Pela primeira vez eu era livre.

Não havia lugares proibidos em qualquer recanto da mente -- não havia ar ou espaço que a imaginação não pudesse atingir com suas asas coloridas -- nenhuma algema me prendendo -- nenhum chicote nas minhas costas -- nenhum fogo na minha carne, nenhum mestre me encarando nem ameaçando, nada mais de seguir os passos dos outros, nenhuma necessidade de me curvar, ajoelhar ou rastejar, ou expressar palavras mentirosas. Eu estava livre. Coloquei-me de pé e sem medo e alegremente, encarei o mundo.

E então, meu coração foi preenchido de gratidão, com a paixão por todos aqueles heróis, os pensadores, que deram suas vidas pela liberdade de mãos e cérebros, pela liberdade de trabalho e pensamento, por aqueles que tombaram nos campos cruéis da guerra, por aqueles que morreram nas masmorras, acorrentados, por aqueles que subiram orgulhosamente os degraus do patíbulo, aqueles cujos ossos foram esmagados, cujas carnes foram feridas e rasgadas, por aqueles consumidos pelo fogo, por todos os bravos, sábios e bons de todos os países, cujo saber e ações resultaram em liberdade para os filhos dos homens. Quando me dispus a segurar a tocha que eles acenderam e a ergui no alto, aquela chama pôde ainda iluminar a escuridão.

Vamos ser verdadeiros para nós mesmos. Verdadeiros para os fatos que conhecemos e, acima de tudo, preservar a veracidade de nossas almas.

Se há deuses, não podemos ajudá-los. Mas podemos ajudar nossos semelhantes. Não podemos amar o inconcebível, mas podemos amar nossas esposas, filhos e amigos.

Podemos ser tão honestos quanto ignorantes. Se formos perguntados sobre o que há além do horizonte do desconhecido, nós devemos responder que não sabemos. Nós podemos dizer a verdade e podemos gozar da liberdade abençoada que os bravos conquistaram. Podemos destruir os monstros da superstição, a serpente silvante da ignorância e do medo. Podemos afastar nossas mentes das coisas assustadoras que dilaceram e ferem com bicos e garras. Podemos civilizar nosso semelhante. Podemos preencher nossas vidas com ações generosas, com palavras carinhosas, com arte e música e todo o êxtase do amor. Podemos inundar nossos anos com o brilho do sol -- com o clima divino da candura, e podemos beber até a última gota do cálice dourado da felicidade.
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