O estudo das religiões pelos Psiquiatras é importante não só por serem elas manifestação de conteúdo puramente emocional mas também por atingirem a todo o ser humano com maior ou menor intensidade desde sua mais primitiva infância.
A fé, base da religiosidade, é puramente irracional. É uma confiança cega em um ou mais deuses ou santos. Ao religioso não é permitida a investigação ou dúvida a respeito de sua crença. E a crença, que nos é incutida desde a tenra idade, é difícil de ser encarada sob o ponto de vista especulativo. A leitura dos textos religiosos só pode ser feita tendo em vista que se trata de uma verdade revelada pelo deus em questão, comumente através de um profeta ou homem santo e a dúvida do crente, por si só, já consiste em uma blasfêmia.
Assim, ao abordarmos o tema devemos levar em conta o que nos dizia Jonathan Swift escritor Irlandês que viveu de 1667 a 1745: ¨É inútil tentar dissuadir racionalmente um homem de algo que ele não concluiu pela razão¨. Na minha opinião o termo ¨inútil¨ poderia ser substituído por ¨dificílimo¨.
Ao nascer, o ser humano se encontra em extremo estado de desamparo e dependência. Sua imaturidade é gritante, falta-lhe a mielinização das fibras nervosas piramidais, o que o deixa incapaz de se locomover e seus movimentos incoordenados são reflexos de automatismo e defesa. Diferentemente é o que ocorre com muitos outros mamíferos que logo ao nascer se levantam e vão em busca da teta para se alimentar e em poucas horas já podem correr fugindo do perigo.
Se não for socorrido por alguém, via de regra sua mãe ou substituta, o recém nascido humano morrerá em pouco tempo. No plano emocional, a necessidade de alguém que o cuide e proteja o acompanhará por toda a vida em maior ou menor grau.
Internamente, o "bicho homem" é um joguete de suas pulsões amorosas (libidinosas), por um lado, e agressivas (de morte), por outro.
Externamente, é cercado ora por uma natureza amorosa que lhe proporcionaágua, alimento, calor, proteção enfim, ora por outra que o ameaça constantemente com secas, enchentes, tremores de terra, vulcões, raios, perdas dos seus queridos, pela doença e pela morte.
A ignorância acerca de onde veio e para onde vai –- o futuro é uma outra incógnita - torna o ser humano carente de respostas que o tranqüilizem e apavorado diante do desconhecido. A falta de conhecimentos calcados na razão, devido à nossa ignorância, nos leva a procurar respostas fundamentadas na emoção, na fé, nas religiões. E poderíamos dizer, no "que bom se fosse assim ! É dificílimo suportar a nossa ignorância, o não saber ou o saber muito pouco sobre o mundo que nos rodeia e sobre nós mesmos. As religiões pretendem nos oferecer respostas ¨certas e indiscutíveis¨ através dos livros sagrados, e as dúvidas deixariam de existir trazendo-nos a ¨segurança e a tranqüilidade¨. Dizer ¨não sei¨, ignoro, é um golpe insuportável para o nosso narcisismo .
Cada cultura tem seus mitos e crenças para responder às interrogações que vão surgindo. Tentamos explicar a nossa origem e o nosso futuro construindo esquemas que nos proporcionem uma maior tranqüilidade frente ao desconhecido. O modelo utilizado é o humano: deve haver um pai e/ou uma mãe celestiais que nos criaram e que nos cuidam e cuidarão, e nos premiarão ou castigarão segundo nosso comportamento durante nossa vida. A incerteza, então, será substituída por um ilusória segurança. A comunicação com esses poderes, agora celestiais, será feita através de oráculos, de preces, através dos astros, das runas, dos búzios, das cartas ou mesmo das linhas das mãos. A maior parte das vezes com o auxílio de intermediários, profetas, sacerdotes ou guias que se comunicariam diretamente com os deuses.
A reação do ambivalente e desvalido ser humano começa por dissociar internamente o bom do mau. Num segundo tempo, se assim podemos dizer, projeta em lugar que julga seguro, para preservá-lo, tudo o que tem de bom e amoroso e, também, muito de sua onipotência narcísica.
A idéia de um ser poderoso, onipotente e sempre presente, que tudo sabe a nosso respeito e está sempre pronto a vir em nosso socorro como uma mãe ou um pai amorosos, encontra na figura de um deus, ou dos deuses, essa necessidade satisfeita.
Criamos então nesse lugar seguro, "nos céus", um ou mais deuses. E, como ficamos esvaziados, cada vez que precisamos de algo bom, pressurosos corremos ao deus para implorar, de volta, o que necessitamos.
O mesmo ocorre com nossos impulsos agressivos e destrutivos, com o que temos de mau: pomos lá fora numa figura de um deus do mal, um demônio, e o colocamos o mais distante possível: nos confins do inferno.
Assim a nossa "criança primitiva, interna" passa a vida a pedir, a implorar coisas boas, em forma de bênçãos, graças, aos céus, a seu deus ou a seus prepostos e a fugir do mal, do demônio, que a ameaça, interna e externamente.
Resumida e esquematicamente, é o que ocorre no psiquismo do ser humano.
Quando um líder poderoso e onipotente toma as rédeas de um clã, de um povo, se identifica com o deus que cria e a religião está em seu nascedouro. Ela corresponde a uma necessidade interna de se sentir seguro, protegido e amado. A mesma necessidade que tínhamos no início de nossas vidas e que continuamos a ter.
Assim, penso eu, a religião deve ser entendida como uma necessidade do plano emocional que encontra na ilusão uma relativa satisfação e segurança, pois, inclusive "consegue explicar" muitas interrogações até então sem resposta, tais como a nossa origem e nosso futuro, por exemplo.
Podemos comparar a necessidade da religião – e aqui vamos nos arriscar à uma analogia - com a necessidade de uma prótese. Ela funciona como funcionam os óculos, a bengala, a muleta para os que deles necessitam. Não há porque criticá-la ou depreciá-la. Na psicoterapia, seja ela de base analítica ou não, ela deve ser tratada como devem ser tratadas todas as inúmeras faces dos problemas vivenciais humanos. Ela deve ser examinada e compreendida mas nunca depreciada ou combatida. Tentar tirar a religião de quem dela necessita é condenar o crente à orfandade.
Além de uma sensação de segurança as religiões criam códigos de comportamento tentando estimular o que há de bom dentro e fora do homem e, assim levá-lo a fugir do mal, do demônio, exorcizando-o.
As religiões auxiliam o processo civilizatório criando obrigações e proibições procurando coibir os impulsos homicidas, os incestuosos, os canibalísticos, etc, com o fim de proporcionar uma vida em sociedade mais tolerável.
Na religião mosaica, por exemplo, base das outras duas maiores religiões do mundo ocidental atual, a cristã e a maometana, nota-se esse cuidado através dos mandamentos. Neles, o que não é proibido é obrigatório. A religião mosaica obriga o crente a cultuar um só deus, guardando o seu dia, e banir tudo que é mau: proíbe adorar outros deuses que não o considerado "único e verdadeiro", não nomeá-lo, a fim de não banalizá-lo. Ordena honrar pai e mãe com vistas à restrição do incesto. Proíbe fazer imagens e adorá-las, levantar falso testemunho, matar, roubar, cobiçar o que é de outrem e cometer adultério.
O homem, ao projetar na figura de um deus suas boas qualidades, também projeta sua onipotência infantil da qual, narcisisticamente, conserva boa dose pelo correr da vida.
O chefe do clã é o deus primitivo, já que se sente tão identificado com ele que fala em seu nome e se comporta frente aos liderados como um onipotente e todo poderoso deus. Assim também eram e são os profetas.
Vejamos o mito da origem do monoteísmo hebreu: Abrahão, patriarca da religião monoteísta, vem de uma cultura politeísta, na baixa Mesopotâmia, onde seu pai Taré era fabricante de ídolos. Abrahão liderava um clã de pastores nômades, e tinha poderes que iam até, se quisesse, matar seu próprio filho, oferecendo-o em holocausto aos deuses , como era usual entre os povos politeístas da região. Era ele o poderoso deus de seu clã. Em suas andanças pelo fértil crescente, rodeado de desertos, teve sua cobiça aguçada, manifestando seu desejo de ter para si e para os seus aquelas férteis terras pertencentes aos cananeus, cineus, ceneseus, cedmoneus, heteus, fereseus, refaim, amorreus, gergeseus e gebuseus. Expressou sua vontade de possuir essas terras, através de "um pacto com seu deus¨ (YHWH, Javé, El Shadai, Eloim, Adonai), mediante o qual a terra desses povos lhe é "prometida" por esse deus. (Gn.15-12-21). Sua parte no pacto era tomar esse deus como único e verdadeiro, banindo os outros deuses através da destruição de suas imagens, seus templos e inclusive de seus fiéis. Lembramos que pacto semelhante fez Constantino, quando adotou a fé e a cruz cristãs ("In hoc signo vinces"), ao receber a "graça" de derrotar Maxêncio, tornando-se senhor do Ocidente.
Voltemos a Abrahão: como selo desse pacto seu deus exigia a circuncisão de todo o macho de sua casa, dali por diante.
A religião entre os cananeus exigia o sacrifício das primícias, ou seja, aos deuses as primeiras colheitas, as primeiras crias do gado e também o primeiro filho homem. Na troca do politeísmo pelo deus único Javé, está incluído no pacto, embora não explicitado, que dali por diante o sacrifício humano seria substituído pela circuncisão, um sacrifício de sangue, mas bem menor. O que foi, indiscutivelmente, um avanço. Mas o monoteísmo se mostrou mais narcísicamente intransigente e despótico contra os outros deuses ordenando sua destruição. Deveriam ser destruídos não só as imagens como os templos dos que passaram a ser chamados ímpios, idólatras, -– como pejorativo — góis ou gentios. Os adoradores de outros deuses também deveriam ser destruídos.
Atitude semelhante e anterior ao monoteísmo hebreu foi a do faraó egípcio da XVIII dinastia, Amenophis IV (Akhnaton) ao tentar impor o monoteísmo a seu povo. Pretendendo substituir Amon, o deus maior entre os Egípcios e o séqüito de outros deuses menores, por Aton, ordenou eliminar todas as marcas dos deuses anteriores, destruindo tudo que os lembrasse.
Assim se apresentam os monoteísmos: ditatoriais e prepotentes em relação ao politeísmo que tolera os deuses alheios. Mesmo em relação aos outros monoteísmos, a intolerância é gritante. O meu monoteísmo é o único e verdadeiro. O teu é falso e merece ser eliminado. Como se pode notar, o monoteísta, por seus traços narcisistas acentuados ¨é o dono da verdade¨.
A construção dos deuses, se assim podemos dizer, segue um esquema bastante humano: lutam os deuses pela supremacia, pelo poder máximo que no monoteísmo fica nas mãos de um só. E este é truculento e despótico com todos os demais destruindo-os na medida do possível.
O deus único dos judeus, Javé, o deus de Abrahão, agora nos derivados, Cristianismo e Islamismo, passa a ser denominado simplesmente Deus, pelos primeiros, e Allah (Alá) pelos segundos.
O uso que o crente faz da religião depende mais dele próprio do que da religião que ele diz professar. Nas mãos de uns e outros o inicialmente mesmo deus torna os três grupos inimigos entre si. Como os chefes guerreiros e políticos na disputa pelo poder.
Na verdade, a representação de deus é diferente segundo o crente. Se o religioso é uma pessoa tolerante, indulgente e amorosa, assim ele vê seu deus. O deus do intolerante, despótico e arrogante tem as características do devoto. E, diga-se de passagem, esta é a imagem das figuras paterna e materna que cada um internalizou através de introjeções e projeções.
Na hierarquia celestial nota-se claramente a projeção dos humanos. O deus tem o seu séqüito de deuses menores, os santos, reliquat do politeísmo, que chefiam certos setores: os que intermediam graças, os que estão mais próximos ou distantes do poder. Enfim, uma organização à imagem das humanas. Isto reforça a idéia de que seja a projeção o mecanismo primordial da organização celestial.
Uma das preocupações do ser humano, causa de muitas angústias, é com a morte. Ela vem sempre como o inevitável fim de todo o fenômeno vital.
O ser humano dificilmente aceita para si essa seqüência como natural, a vida seguida da morte. O medo do fim nos faz buscar uma fuga através da negação da morte: deve haver uma outra vida, uma imortalidade ! Aí também vem em nosso socorro a religião. Algumas religiões prometem também a imortalidade da alma, a ressurreição do corpo, a vida eterna, a reencarnação neste ou em outros planetas. Algumas, a possibilidade de comunicação com os nossos queridos que morreram, o que, indiscutivelmente, é sedutor. Via de regra tudo está conectado com recompensas ou castigos pela conduta que tivermos em nosso período de vida na terra. Novamente, um esquema "divino", mas muito humano.
Dificilmente alguém deixa de levar em conta a religião, mesmo se apercebendo do quão ilusório é o que ela nos oferece. Tudo vai depender da fé, e ela é irracional. A fé é exigida e cobrada do crente. Ele deve aceitar os ditames de uma crença sem questioná-la, como aceitava e obedecia as ordens dos pais. Aquele que põe em dúvida artigos de fé é banido, excomungado, como na infância era punido pelos pais despóticos. Não há tolerância para com o incrédulo. Há períodos na História em que a intolerância vai a extremos de matar o incrédulo. O Judaísmo fez isso, quando tinha poder para fazê-lo. Fez com seus próprios irmãos como Moisés (Ex: XXXII 1 a 28) ao descer do Sinai e surpreender os adoradores do Bezerro de Ouro. Fez com os seguidores de Yoshua Ben Joseph, que eram mortos a pedradas, e com os ¨idólatras¨ com quem disputavam e continuam a disputar as terras da Palestina.
O Cristianismo assim procedeu durante a Inquisição e as Cruzadas, contrariando o que Cristo pregou: amor, perdão, misericórdia. E o Islamismo também matou e mata em nome de seu deus que também prega o amor e a paz.
O não-crente ou o crente que desobedece é considerado um pecador.
Quanto à posição do Psiquiatra, do Psicoterapeuta com relação ao pecado, podemos dizer que, já que pecado é uma infração, uma transgressão da lei de deus ou dos deuses, é portanto uma noção puramente religiosa. Os pecados poderão ocorrer no plano do pensamento, da palavra ou de atos praticados. A psicoterapia se relaciona a esse conceito na medida em que trata dos sentimentos de culpa do paciente que se sente um pecador.
O não saber, a ignorância, nos deixa à mercê de crendices várias. Na medida em que evoluímos, que progredimos no desvendar os mistérios do mundo, teoricamente, deveriam as ¨crenças¨ se atenuar. Freud comparava a religião a uma neurose infantil que seria superada como a criança supera sua neurose. "A humanidade conseguirá superar essa fase neurótica", afirma ele em "O Futuro de uma Ilusão". Peço permissão para divergir do prognóstico otimista do mestre. E não esqueçamos que ele era visto como um pessimista.
Já sabemos que a terra não é plana, nem o centro do universo; já sabemos que somos produto de uma evolução dos seres vivos e mesmo sabendo que não somos tão donos de nós mesmos - pois há um psiquismo inconsciente que nos maneja bem mais do que o nosso "livre arbítrio" gostaria -, devido ‘a ignorância frente aos mistérios de onde viemos, o que ocorrerá conosco nesta vida e a morte a nos aterrorizar, somos levados ao encontro da religião que nos promete respostas tranqüilizadoras. Isto se deve a que todo o ser humano, que facilmente se adapta aos progressos científicos e tecnológicos, parte emocionalmente e invariavelmente de um ponto zero, ao nascer. Continuamos com essa "criança desvalida interna" que todos temos desde o nascimento. Nosso amadurecimento emocional avança muito lentamente, isto quando avança, deixando ilhotas não resolvidas no decorrer da vida.
As religiões são produto humano, tanto é assim que os deuses podem ser usados para o bem como para o mal. Em nome de um mesmo deus são abençoados antagônicos exércitos que partem para a destruição e para a morte. Tudo dependendo do homem que evoca o nome de seu deus na ocasião. A religião pode até tentar, mas dificilmente consegue o que se propõe: o amor e a paz entre os homens.
Posso parecer pessimista, mas me classificaria mais como realista. Basta olharmos em nosso redor para vermos os estupendos progressos tecnológicos e científicos ao lado do maior primitivismo. Ainda vemos naáfrica tribos mutilando e escravizando outras e negociando-as como escravos como faziam há séculos, quando vendiam seus irmãos derrotados para os brancos ou para outras tribos. Vemos, nos dias de hoje ,em nome de um deus, um ataque cruento e destrutivo e o revide igualmente feroz e bárbaro em nome de outro deus, como nas Cruzadas e na Inquisição.
O progresso tecnológico utilizado e direcionado à destruição deixa a capacidade agressiva do passado, restrita às flechas, lanças, porras, espadas e cimitarras, parecer brinquedos de crianças.
Um avião "invisível" de vários milhões de dólares, um míssil de um milhão de dólares e a possibilidade de utilizarmos gazes, bactérias, vírus ou mesmo bombas atômicas, torna a guerra eminente e a civilização à beira da destruição.
Sintetizando, sou de opinião que a religiosidade deve ser respeitada como qualquer sintoma e como tal deve ser tratada.
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Dr. Sérgio Paulo Annes é Membro Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre – SPPA.
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