“O demônio transportou-o uma vez mais, a um monte muito alto, e lhe mostrou todos os reinos do mundo e a sua glória, e disse-lhe: “Dar-te-ei tudo isso, se, prostando-te diante de mim, me adorares (...) Para trás, Satanás, pois está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus e só a ele servirás.” (Deut 6, 13)
“Em seguida, o demônio o deixou, e os anjos aproximaram-se dele para servi-lo.” (Mat. 4-11).
Para o homem medieval todas as coisas eram sagradas: o mundo, a natureza, o corpo humano. Tudo o que dizia respeito ao sobrenatural e ao extraordinário causava fascínio (LE GOFF & SCHMITT, 2002: vol. II, 105). Esse fenômeno psicossocial é típico das sociedades agrárias, pré-industriais, muito dependentes da natureza e, portanto, à mercê de forças desconhecidas e incontroláveis. O principal desejo da população era aproximar-se do Reino Celeste, sendo o reino terrestre considerado uma cópia imperfeita daquele (AGOSTINHO, 1991). O céu era naturalmente associado a Deus e ao macrocosmo, local onde viviam o Criador e os Anjos. Já o microcosmo, identificado com a natureza, era a moradia dos homens e lugar das tentações (COSTA, 2002).
Assim como eles acreditavam na idéia de um paraíso terreal no Oriente, como nos mostra a lenda sobre o reino de Preste João (COSTA, 2001: 53), coexistia a crença em locais habitados por seres monstruosos, como se observa nos bestiários medievais (VAN WOENSEL, 2001). A Peste Negra (1346-1352) intensificou a preocupação medieval com as “quatro últimas coisas”: Morte, Juízo, Paraíso e Inferno (DEFORT, s/d). Ela teve efeito marcante sobre a arte e a literatura, que se tornaram saturadas de imagens de dor e morte. Peças de mistério com temas religiosos tornaram-se comuns e geralmente falavam sobre a decadência humana e os tormentos do Inferno.
A palavra Paraíso significa jardim ou parque. No Gênesis (2, 8) é empregada para indicar o Jardim do Éden, onde viviam Adão e Eva antes do pecado. A perfeita felicidade que gozavam nossos primeiros pais deu ensejo à aplicação do vocábulo para designar o céu, onde os bons gozarão a eterna felicidade após a morte (Lc: 23, 43; 2Cor: 12, 4; Apc: 2,7). No Novo Testamento a noção de Inferno aparece perfeitamente clara. Segundo a doutrina cristã, o termo Inferno é o lugar de castigo sem fim para os anjos maus e para os homens mortos em estado de pecado mortal. No Antigo Testamento, o Inferno era o Sheol, palavra hebraica que significa a residência dos mortos, um lugar inquietante e triste, mas desprovido de castigos, não possuindo assim a forte conotação que passou a ter no Novo Testamento, isto é, um lugar onde os pecadores pagam por seus erros.
Da paisagem do Sheol é preciso reter dois elementos importantes que reaparecerão tanto no Purgatório quanto no Inferno cristão: a montanha e o rio. O Sheol era temido, mas não aparecia como local de torturas. Em todo caso, encontramos nele três tipos de castigos especiais: o leito de vermes, a sede e o fogo. Podemos observar em Isaías que Lúcifer é atirado à terra e coberto por vermes como castigo por querer se contrapor a Deus (LE GOFF, 1983: 16-21). Não há ensinamento mais claro e certo no Novo Testamento que a realidade do Inferno, a severidade de seus tormentos inimagináveis e sua duração perpétua. A intensidade do sofrimento no Inferno dependerá do número e da grandeza dos pecados cometidos e a pena sofrida jamais será diminuída. O mais importante é que os condenados compreenderão que foram criados só para Deus e que por causa de sua perversidade e orgulho O perderam e estarão para sempre separados Dele (Mt: 7, 23; 25, 10.41).
Assim, desamparado diante de uma natureza freqüentemente hostil, o homem medieval encontrava as origens desse abandono - e as possíveis escapatórias - no mundo do Além. Era demoníaco tudo aquilo que lembrava ao homem que ele era um animal, como por exemplo, a excreção, o vômito, a violência, a doença, a morte e o aspecto grotesco do sexo (MACEDO, 2000: 84). As pessoas viviam no mundo com medo: medo da fome, medo da morte e principalmente medo do Inferno. Acreditavam no sobrenatural, no poder das forças das trevas, na ação de Satã e seus demônios no mundo, em bruxos que faziam pactos com o demônio, renunciando ao cristianismo. A bruxaria satânica era assim a imagem refletida, inversa e abrangente do cristianismo, uma fé alternativa. Satã e seus demônios eram a contrapartida de Deus e seus anjos (RICHARDS, 1990: 82).
O Novo Testamento nos mostra que o mal é uma peça fundamental da teologia cristã, sendo que na base de sua doutrina encontramos mais referências ao mal que ao bem. Para os medievos a comunicação entre os mundos humano e divino estava sempre aberta, o sagrado, o divino ou o demoníaco se encontravam por toda parte. No mundo eram presentes anjos e demônios, a quem se procurava atrair ou exorcizar. Qualquer ataque contra a fé católica era considerado oriundo de Satanás, com o objetivo de desfazer o trabalho de Cristo. Assim, qualquer homem ou governo que tolerasse a heresia estaria, portanto, servindo a Lúcifer. Julgando-se parte inseparável da moral e governo político da Europa, a Igreja considerava a heresia com o mesmo espírito que o Estado considerava a traição: um ataque contra os fundamentos da ordem social - segundo a Bíblia, no caminho do Inferno se encontram todos os pecadores impenitentes. São Paulo preveniu: “Não vos enganeis: nem os ímpios, nem os idólatras, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os ébrios possuirão o reino do Céu” (I Cor: 6).
Em linhas gerais, os relatos de viagem ao Além eram abundantes na literatura medieval. Essas viagens não se encontravam somente na imaginação de algumas mentes clericais; sua presença constante nos escritos da época indicam que tratava-se de preocupação sempre presente nas mentalidades de então. Tais viagens eram descritas das mais diversas formas: a pé, de barco ou a cavalo, e quase sempre eram empreendidas com a ajuda de um guia - uma alma, um animal ou um anjo - que orientava o personagem até seu objetivo, o Inferno ou o Paraíso. O sagrado se manifestava constantemente na sociedade medieval, mas devemos considerar que o “sagrado” do ponto de vista dos homens da época englobava o “profano” (diante do templo). Por isso, a sociedade medieva vivia sob o signo da hierofania, isto é, a constante manifestação do sagrado (FRANCO JÚNIOR, 2001: 139). No final da Idade Média, acreditava-se que o inferno era não apenas um lugar quente, abafado e povoado por danações horrendas. Havia também pântanos fumegantes, onde as almas dos pecadores ardiam em soluções de enxofre. Este fato poderá ser comprovado na breve análise que faremos mais adiante das obras de Ramon Llull e Dante Alighieri.
I. O Imperador do Mal: um breve panorama histórico
Orígenes (c. 185-254), um dos maiores teólogos orientais da Igreja, acreditava ser impossível “... saber as origens do mal sem ter entendido a verdade sobre o chamado Diabo e seus anjos, e quem ele era antes de tornar-se e como ele se tornou um diabo” (LINK, 1998: 9). Seguindo seus passos, traçaremos um breve panorama sobre esse ser que desde suas primeiras aparições, ainda que bem raras no Antigo Testamento, assumiu várias formas, adotou vários nomes e gerou longos debates sobre sua verdadeira identidade. A partir do século IX o Diabo encontra-se bem definido e somente no séc. XIV torna-se tal qual o conhecemos hoje: um ser maligno, de asas, chifres e rabos que habita as profundezas do Inferno, torturando os pecadores continuamente. É uma tarefa árdua delimitar suas origens, já que se trata de um ser inapreensível, dado às suas constantes metamorfoses.
No Novo Testamento e nos textos medievais dois termos de origem grega designam o Diabo ou os diabos: Diabolus – verbo grego cujo significado é jogar no meio ou atravessar o caminho e metaforicamente separar, dividir, fazer tropeçar e cair (Evangelhos de Lucas e Mateus) e daemon - na origem, os espíritos, bons ou maus, intermediários entre os deuses e os homens, muitas vezes o espírito de um herói morto. O Diabo pode também ser designado por expressões que lembram que a categoria dos seres espirituais e angélicos - spiritus malignus,spiritus immundus,ângelus malignus (LE GOFF & SCHMIT, 2002: vol. I, 321). O termo hebreu há-sâtân (o acusador) designa em Jó um anjo da corte celeste encarregado de por a prova os justos; ele exerce o papel de antagonista, querendo testar a fidelidade e a justiça de Jó, assim como feri-lo com desgraças:
“Tendo pois saído o Satanás da presença do Senhor, feriu a Jó duma chaga maligna, desde a planta do pé até o alto da cabeça. Jó sentado num monturo raspava com um pedaço de telha a podridão e sua mulher lhe disse: Ainda tu perseveras na tua simplicidade? Louva a Deus e morre. Jó lhe respondeu: falaste como uma das mulheres tolas. Se nós temos recebido os bens da mão de Deus, por que não receberemos também os males? Em todas estas coisas não pecou Jó com seus lábios.” (Jó: 2, 7-10)
No entanto, somente no Livro do Jubileu - aprócrifo do século I a. C. - que o termo designa o chefe dos demônios. Por outro lado, não podemos confundir as palavras Lúcifer e Satã. Lúcifer, o anjo da luz, é o Senhor, príncipe dos Infernos, aprisionado nas profundezas da terra, enquanto Satã, palavra de origem hebraica que significa “adversário, oponente”, é o primeiro de seus servidores, seu bode expiatório e encarregado de missões na terra (MUCHEMBLED, 2001: 43). Em Jó, Satã é um membro do conselho de Deus (LINK, 1998: 24). No Novo Testamento, Marcos ao referir-se ao Diabo chama-o de Satanás, palavra de origem aramaica, que significa “aquele que é contra, obstrui ou age como adversário”, aumentando ainda mais a confusão semântica desenvolvida em torno do deus do mal. Esta é a primeira passagem em que Satanás equivale ao Demônio:
“E os escribas, que haviam baixado de Jerusalém, diziam: ele está possesso de Belzebu, e em virtude dos príncipes dos demônios, é que expele demônio. E havendo-os convocado, lhes dizia (Jesus Cristo) em parábolas: Como pode Satanás lançar fora a Satanás? E se um reino está dividido contra si mesmo não pode durar aquele reino.” (MAR: 3, 22-24).
Com a tradução da Bíblia para o latim por volta do séc. III, essas confusões semânticas foram desaparecendo e os termos designativos do Diabo foram se definindo pouco a pouco. Nomes específicos passaram a ser usados algumas vezes (Belzebu, Baal, Beliar, Belfegor, Beemor, Asmodeu, Astaroth, Leviatã...), seja para enfatizar a diversidade do mundo infernal, seja, sobretudo no século XV, para designar as potências intermediárias entre Lúcifer e os simples demônios. Na atualidade, todos estes termos se confundem, querendo em geral designar uma só entidade. Segundo o Primeiro Livro de Enoque (TRICCA, 1995-6: 119) - apócrifo do séc. IV a. C. - a queda dos anjos constitui o ato originário de todos os males da terra. Com efeito, são duas as teorias que buscam explicar este fato. A primeira revela que os anjos decaíram do céu, seduzidos e unidos às mulheres, gerando uma raça de bastardos gigantes, os nephilim, que se tornaram espíritos demoníacos:
“Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: “vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!” (...) Entrementes elas engravidaram e deram a luz à gigantes de três mil côvados de altura. Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las.” (1 ENOCH: O livro dos anjos, VI e VII)
A partir do século IV essa teoria declinou, sendo substituída pela segunda versão da queda dos anjos que aponta para Lúcifer que, por invejar a Deus e desejar igualar-se a Ele, foi expulso, rebaixado e condenado a viver nas profundezas da terra por toda a eternidade:
“Arrastada foi a tua soberba até aos infernos, caiu por terra o teu cadáver: debaixo de ti se estenderá por cama a polílha, e a tua coberta serão os bichos. Como caíste do céu, ó estrela d’alva, filho da aurora! Como foste atirado à terra, vencedor das nações! E, no entanto, dizias no teu coração: ‘Hei de subir até o céu, acima das estrelas de Deus colocarei o meu trono... Subirei acima das nuvens... E, contudo, foste precipitado ao Sheol, nas profundezas do abismo.” (IS: 14,11-15)
Para os teólogos cristãos os demônios são criados bons e se tornam maus por vontade e não por natureza. Inumeráveis textos relatam os atos maléficos do inimigo, atribuindo a ele a responsabilidade por todas as catástrofes, tempestades e tormentas, além de serem os corruptores dos frutos da terra, a causa das doenças nos homens e no gado, o motivo pelo qual os navios afundam e desabam as casas. Suas armas favoritas são a tentação e a trapaça, sendo as tentações da carne, do dinheiro, do poder e das honras as mais terríveis.
O Diabo/Satã e seus demônios, com sua aparência multiforme e seus diversos nomes, figuram entre os personagens mais importantes da cultura popular e até mesmo da erudita do Ocidente Medieval. Tido como a encarnação do mal, o oponente das forças celestes, o tentador tanto dos homens bons, como dos ímpios e dos pecadores, ele era considerado onipresente, onisciente e onipotente, e seu poder se fazia sentir em todos os aspectos da vida e das representações mentais medievais. Os demônios eram representados por uma gama riquíssima de imagens, freqüentemente mostrados em traços repugnantes, onde se misturavam formas humanas e animais. Os corpos demoníacos eram retratados com uma tremenda desproporção, excessivamente altos ou baixos, magros ou gordos, normalmente escuros e irregulares, mesclando formas de anfíbios, répteis, símios e dragões. Essa deformação intencional figurada na iconografia cristã aproximava os demônios das figuras de faunos, sátiros e outros personagens mitológicos da tradição pagã. (MACEDO, 2000: 80)
A Igreja era considerada, uma proteção contra o demônio. Seus principais instrumentos de combate às trevas eram os sacramentos (especialmente o do batismo, que limpa o homem do pecado original), os exorcismos, os objetos sagrados, os jejuns e as preces. Os clérigos enfatizavam que o diabo nada poderia fazer contra aqueles que tivessem fé. O sinal da cruz era um gesto de poder infalível que salvava os homens de todos os perigos. O diabo era o inspirador dos inimigos da Igreja e da Cristandade, muitas vezes comparado aos judeus. Nesse aspecto, o Evangelho fornece um forte argumento, quando qualifica os judeus, que não reconhecem Cristo, como “filhos do diabo” (Jo: 8, 44), ou “sinagoga de Satã” (Apc: 2, 9). Por sua vez, os muçulmanos e o Islã representavam o dragão, o monstro de sete cabeças, a encarnação do mal. Maomé, afirmavam alguns, morrera em 666, o número da Besta. Para o ocidente medieval, os sarracenos eram “...demoníacos, bárbaros, cruéis, feios e perversos seguidores do imoral Maomé, um anti-cristo.” (Link, 1983: 105).
A figura do Diabo e a acentuação de seus traços negativos e maléficos ganhou força a partir dos séculos XIII-XIV. A partir de então é certo que ultrapassaram a esfera metafórica dos discursos literários e exegéticos. Embora seja quase impossível avaliar com precisão o impacto social do discurso demonológico, parece certo que ele atingiu círculos cada vez maiores, desde as cortes reais e principescas até aos ricos leigos, que descobriram o Inferno em seus Livros de Horas. Isto sem esquecer as pessoas que freqüentavam muitas igrejas ornamentadas com temas apocalípticos, ou camponeses submetidos a uma pregação do mesmo tipo. Satã era a imagem do mau poder, sendo freqüentemente descrito como um vassalo cuja maldade o fazia querer ser igual a seu senhor, ao invés de ser-lhe submisso. Por exemplo, Satã é associado ao Mau Governo nos afrescos de Ambrogio Lorenzeti (c. 1290-c.1348) (COSTA, 2000: 32).
Assim, feito esse breve relato sobre as diversas formas pelas quais o Diabo era apresentado na Idade Média e os significados que ele adquiria no inconsciente cristão, nos deteremos a partir de agora na obra do filósofo Ramon Llull (1232-1316) e como o reformador catalão apreendeu esse ser demoníaco e seu reino maléfico.
II. O Diabo e o Inferno em Ramon Llull (1232-1316)
Ramon Llull recebeu o mesmo nome de seu pai, nascendo em 1232, pouco depois que sua família se estabeleceu em Maiorca. A personalidade de Ramon, como transparece em certos temas e perspectivas adotados em suas obras e em seu código ético de seus escritos moralizantes - nos fazem pensar em uma etapa da juventude e inicio da maturidade dedicada a uma bem sucedida atividade prática, participando ativamente dos negócios familiares. Para tal atividade não era necessária uma grande preparação teórica, algo impossível nas circunstâncias daqueles anos e incomum à ordem social a qual pertencia. Na Vida Coetânea (1312), Llull afirma não possuir um saber suficiente, nem sequer gramática (para ele falar e escrever corretamente), a não ser uma pequena parte. Ele havia aprendido, como a maioria das pessoas de seu tempo que sabiam ler, utilizando o saltério. Mas, sobretudo, havia aprendido a falar corretamente graças a uma cultura não clerical notavelmente incrementada pela tradição dos relatos de cavalaria e pela cultura dos trovadores.
Ramon Llull se converteu por volta de 1265, com aproximadamente trinta anos de idade. A partir de então dedicou-se à conversão dos infiéis, uma evangelização que acreditava ser possível através do amor e do diálogo. Llull pretendia divulgar a palavra de Deus a todos os homens através da criação de escolas onde se estudasse a língua dos infiéis e os estudantes pudessem se preparar para o martírio, um ideal que perseguiu até o fim de sua vida. Duzentas e oitenta obras de Llull chegaram até os dias de hoje. Sua produção literária pode ser dividida em quatro partes: 1) Fase pré-artística (1271-1274), 2) Fase quaternária (1274-1289), 3) Fase ternária (1290-1308) e 4) Fase pós-artística (1308-1315) (COSTA, 2001: 6). As obras aqui analisadas incluem-se na fase quaternária, excluindo sua autobiografia (Vida Coetânia), ditada a um monge cartuxo em 1311.
Llull procurava as causa primeiras das coisas. Acreditava ser possível conhecer as pessoas através de suas obras. Para ele era necessário fazer o bem, mesmo que isso causasse sofrimento, pois sofrer eleva o homem, o crente só realizaria sua missão se tivesse uma vida ativa, voltada para a difusão da fé cristã. Entre as obras de Llull analisadas aqui temos:
1) A Doutrina para Crianças (c. 1274-1276), uma pequena enciclopédia pedagógica escrita em catalão, em uma época na qual o latim era a única língua de ensinamento. Trata-se de uma obra sobre o ensino primário do século XIII; Ramon Llull escreveu-a pensando na educação de seu filho, contendo, assim aquilo que o autor considerava mais importante para sua formação religiosa, moral e prática;
2) A Vida Coetânea (1311), sua autobiografia. Segundo Ricardo da Costa, a autobiografia de Ramon “é um claro expoente documental do processo medieval da gênese do individuo” (COSTA, 2000: 57). Esta obra é utilizada para referências básicas sobre a vida de Ramon Llull;
3) Félix ou o Livro das Maravilhas (1288-1289)”, uma das primeiras novelas de cunho filosófico-social escritas na Europa medieval. A obra foi escrita por Llull em Paris, durante sua primeira visita àquela cidade. Llull tinha então cerca de 56 anos e
4) Livro dos Anjos (1274?-1283?), um tratado angélico, onde Llull define os anjos, Deus e os demônios.
Na Doutrina para Crianças examinaremos particularmente os capítulos: IX (Descer ao Inferno) e o XCIX (Do Inferno).
A descida de Jesus Cristo ao Inferno, no período entre Sua morte e Ressurreição, consta na Bíblia (Mt XII, 40; At II, 31; Rm X, 7), mas foi especialmente difundida na Idade Média através do Evangelho de Nicodemo, um apócrifo vulgarizado no período. Segundo este relato, Cristo, quando de Sua descida aos infernos, tirou de lá parte daqueles que se encontravam enclausurados, isto é, os justos não batizados por serem anteriores à Sua vinda a terra. Isto significa dizer que Ele retirou essencialmente os patriarcas e os profetas bíblicos (LE GOFF, 1993: 63). Llull descreve tal passagem na Doutrina para Crianças no capítulo IX, o que indica que provavelmente foi influenciado - assim como Dante - pelo texto de Nicodemos:
“Amável filho saiba e creia que quando a alma de Nosso Senhor Deus Jesus Cristo deixou Seu corpo morto na cruz, incontinenti desceu aos infernos e vendo Adão, Abraão e os outros profetas e santos, arrancou-os à força dos demônios e de sua prisão e colocou-os na Glória Celestial que não terá fim. No momento que Adão viu chegar seu Senhor e Seu Criador para livrá-los dos trabalhos e da dor onde estiveram cinco mil anos, disse: estas são as mãos que me criaram e me formaram e este é o Senhor que Se lembrou de nós em Sua Glória.” (RAMON LLULL,1972: 58)
Adiante, vemos os demônios serem descritos de variadas maneiras, como grandes peixes que colocam os pecadores num mar borbulhante e cheio de fogo ardente, como dragões infernais de grandes e agudos dentes, com bocas cheias de fogo, prontos para engolir os infiéis e pecadores que viessem a cair através de uma cachoeira infernal dentro de sua enorme garganta. Em outra passagem vemos os demônios semelhantes a cães, leões e serpentes “... que roerão as orelhas, os olhos, a cara, os braços e as pernas, e entrarão no ventre e roerão seus ossos e comerão seu coração e suas entranhas.” (RAMON LLULL, 1972: 237-239). Em outra parte do Inferno Llull descreve pessoas que arderão por dentro e por fora como tições no fogo incessante. E durante todo o tempo o homem grita de desespero e pavor. (RAMON LLULL, 1972: 238).
Llull descreve os castigos infernais e relaciona-os a cada um dos pecadores. Em Llull, o castigo que os usurários recebem é o de serem amarrados e jogados dentro de um fosso cheio de ouro e prata fundida: já que durante toda a vida se dedicaram a acumular riquezas, que passem então o resto da eternidade junto a elas. (RAMON LLULL, 1972: 239). Aqueles que cometeram o pecado da luxúria são colocados nus dentro de grandes montanhas de gelo e neve nas profundezas do Inferno (RAMON LLULL, 1274-1276: 239): já que se abrasaram no fogo da paixão durante a vida, que congelem agora por toda a eternidade. Para Llull a luxuria era considerada o pior dos pecados (COSTA, 2001: 19). Provavelmente o filósofo catalão baseou-se nas pregações rigorosas de São Paulo contra os pecados carnais:
“Não sabeis porventura que o que se ajunta com a prostituta, faz-se um mesmo corpo com ela? Porque serão, disse, dois em uma carne. Mas o que está unido ao Senhor, é um mesmo com ele. Fugi da fornicação. Todo o outro pecado, qualquer que o homem cometer, é fora do corpo: mas o que comete fornicação peca contra o seu próprio corpo.” (I Cor: 6, 16-18).
O Inferno de Llull está localizado no interior da Terra. É um lugar trancado, fechado e dividido em quatro partes: 1) o Inferno, onde estão os pecadores que nunca sairão, 2) o Inferno chamado Purgatório, onde os homens cumprem pena pelos erros deste mundo - é interessante notar que Llull considera o purgatório como parte do Inferno e não um terceiro lugar, como faz Dante na Divina Comédia, 3) um Terceiro Inferno chamado Abrae, onde estão os profetas que viveram antes do nascimento de Jesus Cristo e 4) o Quarto Inferno. Ali estão as crianças que não foram batizadas - por sua vez, , na obra de Dante os não batizados também estão no Inferno, que ele chama de Limbo, juntamente com aqueles que nasceram antes de Cristo (RAMON LLULL, 1972: 237).
É importante considerar que até o fim do século XII a palavra purgatorium não existe como substantivo. No essencial o purgatório surgiu como um lugar de purgação dos pecados veniais, ou melhor, dos pecados perdoáveis e também dos sete pecados capitais: acídia, soberba, glutonia, avareza, inveja, ira e luxúria, só que cometidos de maneira mais branda. O Purgatório é o lugar onde os mortos sofrem provação que, se forem superadas, poderão levá-los à vida eterna. Os homens presos no Primeiro Inferno luliano nunca podem morrer: são continuamente torturados por demônios que, armados “de cutelos bem cortantes”, dividem e estraçalham o homem dar-lhe a bênção da morte (RAMON LLULL, 1972: 239). As almas dos homens no Inferno luliano sofrem por entender e lembrar toda a Glória que perderam; sua vontade odeia a memória que os lembra que poderiam estar no Paraíso (RAMON LLULL, 1972: 240). Dante faz a mesma afirmação com relação às almas que estão no Limbo, onde não existiam castigos físicos, apenas o desejo de conquistar a salvação e ter a certeza de que nunca conseguirão obtê-la.
No Félix ou o Livro das Maravilhas (1288-1289), Llull deixa bem claro a enorme pena que Maomé sofre no Inferno, já que foi ele o responsável pela condenação de tantos homens:
“Félix teve uma grande maravilha com aquela grande pena que o corpo sofrerá no Inferno e disse que grande pena será aquela que terá Maomé, que proporcionou a tantos homens estarem no Inferno, pois na pena de cada um será multiplicada a pena de Maomé. Quando Félix se maravilhou longamente com a grande pena de Maomé, se maravilhou muito fortemente dos cristãos terem tão pouco cuidado de converter os infiéis, e teve a opinião de como se preocupavam tão pouco, teriam a mesma pena que os infiéis suportam nos Infernos.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 387).
Um pouco antes descreve o diabo da seguinte maneira:
“Os diabos, enquanto criaturas, têm qualidades semelhantes às propriedades de Deus, isto é, o diabo tem bondade e grandeza, duração, poder, ciência e vontade, pois essas qualidades Deus criou aí para que o diabo com elas fruísse as propriedades de Deus, isto é, a bondade, a grandeza e as outras. Mas como o diabo obra contrariamente a cada uma dessas qualidades, tem a maior pena que pode existir, assim como a bondade do diabo, que é boa pois foi criada, converte-se em má pela má obra que o diabo faz.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 381)
Para Ramon Llull os diabos foram originalmente criados bons, como todos os anjos do Senhor, e tornaram-se maus quando desejaram ser semelhantes a Deus:
"Quando Félix ouviu essas palavras, entendeu como era muito grande a glória que os diabos teriam se não a tivesse perdido, e maravilhou-se como puderam perder tão grande glória por nada. O eremita disse que no princípio, no momento que Deus criou todos os anjos, estes que agora são diabos desejaram ser semelhantes a Deus, isto é, cada um quis ser bom por si mesmo e ser grande por si mesmo, e assim de todas as suas qualidades. E cada um quis ter sua finalidade e seu cumprimento por si mesmo e em si mesmo. E como cada um desejou ser semelhante a Deus, foi justo que cada um estivesse em pena e perdesse a glória para a qual foram criados.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 382)
Assim, os demônios devem sofrer grandes sofrimentos, pois a eles foi dada a glória de olhar a Deus e de conhecer toda a Sua bondade, mas ao invés de renderem louvores ao Criador, eles O invejaram e tramaram contra Ele. Llull deixa bem claro no Livro dos Anjos que os demônios devem sofrer pena pelos seus pecados. (45-6). Sob essa ótica, Llull divide o castigo infernal de duas formas: na primeira pena, os anjos malignos entendem toda a Glória Celeste que perderam e lamentam com toda sua vontade e entendimento o fato de terem sido expulsos do Paraíso (44); já a segunda forma de castigo faz com que todas as sete dignidades angélicas (Bondade, Grandeza, Poder, Sabedoria, Amor, Justiça e Perfeição) estejam em total desacordo, assim como o fogo, a água, o ar e a terra se contrastam por corrupção nos corpos dos homens doentes e dos pecadores mortos (46). É interessante ressaltar que o próprio Llull afirma não encontrar palavras capazes de descrever os tormentos sofridos pelos demônios, tamanha a magnitude deles (45).
As penas infernais que os homens sofrem no inferno são também citadas por Llull no Livro das Maravilhas, no décimo livro “Do Inferno”, onde ele cita novamente os quatro elementos que compõem o corpo humano (ar, água, fogo e terra) que simultaneamente consumiriam o homem; assim os pecadores seriam atormentados pelo calor em toda sua forma e matéria e da mesma maneira sentiriam a umidade do ar, o frio da água e a secura da terra; “...uma pena em diferença, em umidade e em contrariedade, sem nenhuma concordância.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 386)
III. O Diabo e o Inferno na obra de Dante Alighieri
Dante Alighieri nasceu em Florença (1265-1321) e, ao contrário do que se pensa, ao escrever seu imortal poema intitulou-o Comédia (somente a partir do século XVI passou a ser denominado “A Divina Comédia”). Exilado em Ravena (1307) por motivos políticos e condenado à morte na fogueira caso tentasse regressar a Florença, Dante escreveu seu poema influenciado pela filosofia escolástica, sendo o “Inferno” concebido a partir da “Eneida” de Virgílio (SCHIAVO, 2000: 125). Inspirado em seu amor platônico e juvenil por Beatriz, Dante escreveu “A Comédia”, visando acima de tudo conhecer “... o lugar limitado que ocupa o homem no universo, criado, circunscrito e dominado completamente por Deus...” (MAURO, 1998: 7)
Para o poeta o homem sem Deus é um ser perdido e a salvação só seria alcançada por aqueles que possuíssem as quatro virtudes cardeais (força, justiça, prudência e temperança), juntamente com as três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), as únicas capazes de nos conduzir a Deus - Llull dá a mesma importância às virtudes cardeais e teologais como premissa básica para a salvação humana. Assim, o poema ilustra a pretensão humana de viver em conformidade, em harmonia e de acordo com a vontade de Deus. Dessa forma, o poema é um retrato e síntese do pensamento medieval em relação à estrutura do universo.
A fim de reformar moralmente o mundo, Dante construiu uma inesquecível viagem por mundos extraterrenos, pois entendia que o mundo, e principalmente a sociedade da qual fazia parte, encontrava-se numa situação imoral e degradante. Desde o século XI a Itália passava por importantes transformações que mais tarde abalariam todo o mundo tripartido feudal. Dessa forma, a crítica dantesca é uma forma de redenção humana, e baseia-se especialmente nas transformações políticas, sociais, econômicas e religiosas italianas.
Assim, sob a ótica da danação e da perdição que o mundo se encontrava, Dante considera que os homens devem voltar-se para os bens celestiais, os únicos que podiam torná-los felizes em vida e bem-aventurados na eternidade (MAURO, 1998: 13). Relatando o que nos aguardava após a morte, Dante empreende uma viagem por três reinos do outro mundo: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Trata-se da essência do pensamento medieval, que não pensava nada fora do sagrado: o mundo era entendido como uma hierofania. A preocupação apologética, a defesa da fé cristã e o trabalho de conversão dos não-cristãos era a mola mestra do século XIII. Em sua peregrinação imaginária, Dante é guiado por Virgílio, poeta que para Dante simbolizava a razão humana, única força capaz de tornar os homens dono das quatro virtudes cardeais que os conduziriam às portas da felicidade. Nosso poeta inicia sua viagem pelo Inferno na Sexta-feira Santa, finalizando-a na Páscoa: são três dias de viagem pelas profundezas da terra como
“... o esquema métrico e o número de cantos (33) que correspondem a um múltiplo de três, número que simboliza a aceitação total e absoluta dos mistérios da religião cristã: a crença sem silogismos defectivos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, sentidos e entendidos como uma só pessoa...” (Mauro, 1998: 12)
O Inferno é concebido como uma imensa cratera escavada nas profundezas da terra com a queda do corpo do Anjo rebelde expulso do Paraíso. Ao chegarem no Inferno, as pessoas são julgadas pelo monstro Minos, que lhes impõe a devida penitência. As penas variavam de pecado para pecado: quanto mais grave a falta cometida (incontinência, violência, fraude e traição, os quatro pecados mais graves que um homem poderia cometer em vida) mais severa seria a pena e maior a profundidade infernal. As almas pecadoras jamais regressariam do Inferno. Mergulhadas em profundas trevas, jamais veriam novamente a luz do Sol e sofreriam, ora os rigores de um frio hibernal, ora os ardores de chamas abrasadoras. Dividido em nove círculos, o Inferno dantesco é cheio de abismos tenebrosos, pântanos, lagos e rios que exalam vapores fétidos; tempestades de chuva, de neve, de granizo e de tições acesos; ventos uivantes e frio petrificador; corpos torturados, rostos contorcendo-se em gritos e gemidos.
Às portas do Inferno nos deparamos com um portal contendo a seguinte inscrição:
“Por mim se chega ao reino do pranto, por mim se chega à dor que não tem fim, por mim se chega ao ondenado povo. A justiça inspirou meu grande Artífice. Formaram-me o Poder Divino, o Supremo saber e o Primeiro Amor. Tudo o que antes de mim foi criado, eterno será, sendo eu também eterno: Perdei, ó vós que entrais, toda Esperança.” (Canto III: 37)
Ao entrar no pátio que o levaria ao primeiro círculo do Inferno, Dante se depara com os ignavos, espíritos que em vida não praticaram o mal, mas também não fizeram nada em prol do Bem. Estes eram picados por nuvens de vespas e moscardos, roídos por vermes e obrigados a correr sem parar atrás de uma insígnia – símbolo da sociedade clássica (Canto III: 37). Após ver essa cena, Dante se dá conta de que se encontra não propriamente no Inferno, mas no Limbo, local de moradia de Virgílio. Ali estão as crianças mortas sem batismo, todos os bons pagãos e todos os bons judeus, exceto uns poucos heróis do Antigo Testamento, os quais Cristo, em uma visita ao Limbo, libertara mandando-os para o Céu (Canto IV: 43). Apesar de ser o primeiro círculo do Inferno, no Limbo não há castigos: o único sofrimento dos que lá se encontram consiste em desejar eternamente um destino melhor e saber que jamais o terão.
Prosseguindo sua viagem, nosso poeta depara-se com Minos à entrada do segundo círculo que ao perceber Dante, faz com que um ser vivente tente obstruir-lhe a passagem. Entretanto, Virgílio intervém, argumentando que esta era a suprema vontade celestial. Contrariado, o monstro acata a vontade divina e permite a passagem dos peregrinos. Com efeito, é importante observar a predominância da vontade Divina mesmo nas profundezas do Inferno, fato que pode ser observado também em várias outras passagens de um círculo para o outro. O segundo círculo é um local onde os luxuriosos são jogados incessantemente de um lado para o outro por terríveis ventos (Canto V: 49), quando então se inicia os tormentos físicos infernais.
No terceiro círculo são punidos os condenados pela gula. Estes estão estendidos na lama. Expostos a uma perpétua chuva, pesada, maldita e fria, são espancados todo o tempo por Cérbero, feroz cão de três cabeças que, com suas aguçadas garras, estraçalhava-os e devora-os incessantemente (Canto VI: 55).
Ao se aproximar do quarto círculo, Dante e seu guia deparam-se com Plutão, demônio que reage ferozmente ante a presença dos dois viajantes. Mais uma vez Virgílio intervém, fazendo valer o apoio divino que os assiste. Neste círculo, são punidos os avarentos e os pródigos. Eles lutam entre si, rolando pesados blocos de pedra que se chocam exaustivamente numa competição infinita (Canto VII: 61).
No quinto círculo, encontram-se numerosos espectros avançando uns contra os outros e ferindo-se violentamente com unhadas e dentadas. Estes se deixaram vencer pela cólera e pelo orgulho, juntamente com os preguiçosos (Canto VII: 61).
Ao se aproximarem do sexto círculo, mais uma vez Dante e seu guia se vêem impedidos de prosseguir. Desta vez, Virgílio não interfere e aguarda a chegada de um mensageiro celeste para ajudá-los a entrar. Ao chegar, o anjo abre as portas com o toque de uma varinha. Assim, Dante e Virgílio entram no sexto círculo, onde as almas dos hereges estão sendo assadas em sepulturas de fogo (Canto IX: 73).
No sétimo círculo, dividido em três giros, são punidos os violentos. O Minotauro governa este espaço infernal - o que deixa evidente a influência mitológica grega nos relatos de Dante. Ali são punidos aqueles que cometeram crimes violentos contra pessoas, contra Deus e contra si próprios. Carregam a pena de viverem perpetuamente sob a ameaça de morrerem afogados em um caudaloso rio de sangue, o Flegetonte, onde centauros atiram-lhes setas todas as vezes que suas cabeças emergem. No primeiro giro do sétimo círculo encontramos os homicidas, os salteadores e os tiranos; no segundo os suicidas e perdulários (esbanjadores, gastadores), e no terceiro e último giro, sob uma chuva de fogo, são punidos aqueles que cometeram violência contra Deus, contra a natureza ou contra a arte - os blasfemos (que se encontram deitados), os usurários (sentados) e os sodomitas (em um contínuo e incessante andar) (Cantos XI; XII, XIII E XIV: 85-108).
Findo este círculo, Dante e Virgílio são escoltados pelo monstro Gerión para as profundezas do oitavo círculo, que o poeta chama Malebolge, onde são penitenciados os que cometeram fraude. Este círculo é constituído por dez valas, e em cada vala é punida uma categoria de fraude (Canto XVIII: 127).
Na primeira vala encontramos os rufiões e os sedutores; na segunda os aduladores, submersos no esterco. Os simoníacos encontram-se na terceira vala, fixados de cabeça para baixo em estreitos buracos, só com a perna para fora e com o fogo ardendo sobre as plantas dos pés (Canto XVII-XIX: 127-138). Na quarta vala deste círculo estão os adivinhos, cujas cabeças estão invertidas, o que os obriga a andar para trás (Canto XX: 139). Na quinta vala estão os traficantes, nadando eternamente em um lago de piche fervente (Canto XXI: 145). A sexta vala pertence aos hipócritas, entre eles Caifás, o sacerdote que instigou os fariseus a crucificar Cristo (Caifás jaz no único caminho daquele abismo, prostrado e crucificado no chão, de maneira que todos que por ali passam são obrigados a pisar em seu corpo). Na sétima vala, os ladrões são atormentados por cobras venenosas (Canto XXIII, XXIV: 157-168). Chamas fazem arder o corpo dos maus conselheiros na oitava vala. Os escandalosos e cismáticos são punidos no nono abismo. Ali os espíritos condenados percorrem constantemente a vala, sendo cruelmente esquartejados a cada volta por um diabo armado com uma espada. Nesta vala encontra-se Maomé, tido pelos cristãos como o maior herege de todos (Cantos XXVI-XXVIII: 175-192). Na décima vala encontram-se os falsários e os alquimistas com o corpo todo coberto por sarnas e impossibilitados de se moverem (hidropisia) (Canto XXIX: 193).
Por fim os poetas atingem o nono círculo do inferno, onde são punidos os traidores, distribuídos em quatro giros: Caína, Antenora, Ptoloméia e Judeca. No primeiro giro encontram-se os traidores de parentes; no segundo os da pátria, todos imersos no gelo de Cocito, só com a cabeça para fora (Canto XXXII: 211). No terceiro giro (Ptoloméia) os traidores de seus hóspedes estão imersos no gelo como os outros, mas com os rostos voltados para cima, o que faz com que suas lágrimas congelem impedindo-lhes a seqüência do pranto. Ali estão as almas danadas enviadas antes mesmo da morte de seus corpos, os quais, ocupados por um demônio que lhes substitui a alma, permanecem como viventes no mundo até sua morte física (Canto XXXIII: 217). No quarto e último giro do nono círculo, anuncia-se o rei do Inferno, Lúcifer. Este surge do gelo, do centro da terra, agitando um gélido vento com suas seis enormes asas. Lá se encontram os pecadores da Judeca. Lúcifer é descrito por Dante como um monstro com imensas asas abertas, não emplumadas como as dos anjos, mas negras como as de um morcego. Ele possui três faces: amarela, preta e vermelha, simbolizando respectivamente a impotência, a ignorância e ódio, atributos opostos aos da Trindade. Cada uma das três bocas mastiga incessantemente um pecador. Judas é o principal, os outros dois são Bruto e Cássio. Os outros traidores da Judeca se encontram completamente afundados no gelo e nenhum é identificado (Canto XXXIV:225).
Findo a viagem pelo inferno, Dante e Virgílio escalam o corpo de Lúcifer até alcançarem a entrada de uma caverna, quando alcançam a superfície no hemisfério austral, saindo do abismo infernal para rever as estrelas e prosseguirem em sua viagem até o Purgatório.
À guisa de conclusão: uma breve análise comparativa das obras de Ramon Llull e Dante Alighieri
A priori podemos ressaltar uma diferença básica entre os dois autores: Llull é um filósofo, um místico; Dante é um político e um poeta. Esta diferença pode ser observada na maneira com a qual os dois escritores pensam os alquimistas: para Dante eles deveriam sofre as penas infernais; para Llull basta provar que a alquimia é um embuste:
“Félix perguntou ao filósofo se a alquimia é a arte pela qual se pode fazer a transmutação de um metal em outro. O filósofo respondeu que convém à transmutação de um elemento em outro a transmutação substancial e acidental, isto é, a forma e a matéria devem se transmudar com todos seus acidentes em uma substância nova composta de novas formas, matérias e acidentes. E tal obra, belo amigo, disse o filósofo a Félix, não pode ser feita artificialmente, porque a natureza possui o ofício de todos os seus poderes.” (RAMON LLULL, 1989: vol. II, 120)
Entretanto, naturalmente ambos têm em comum o desejo de reformar o mundo. Assim, ressaltaremos as diferenças e semelhanças em relação ao Diabo e ao Inferno contidas nas obras de Llull e Dante.
Diferenças:
1) Llull entende o Purgatório como Inferno, já Dante o concebe como um terceiro lugar. Isso demonstra uma maior interação de Dante com a produção literária da época, visto que a noção de Purgatório, surgida no século XII, já se encontrava bem consolidada no século XIII. Ao que tudo indica, Llull parece se ater mais às verdades católicas contidas na Bíblia (que não reconhece o Purgatório como um terceiro lugar): para os cristãos um Inferno temporário como o Purgatório seria uma obra contrária à perfeição da vontade divina, pois repugnaria a justiça e as mais solenes promessas e advertências de Deus, que ofereceu aos homens todos os meios para se salvar;
2) Para Llull, os piores pecados que um homem poderia cometer seriam, respectivamente, a luxúria, a deslealdade, a injúria e a falsidade. Por sua vez, Dante destaca a traição, a incontinência, a fraude e a violência.
Semelhanças:
2) Ambos concordam ao afirmar que, por mais que o corpo sofra castigos corporais e mortes terríveis, há um eterno renascer para o recomeço de todas as torturas. Os quatro elementos (água, fogo, terra e ar) castigam simultaneamente os homens;
3) As crianças não batizadas são colocadas no Inferno, pois não foram libertadas do pecado original;
4) Ambos descrevem o sofrimento que as almas têm em saber que estão no Inferno e que de lá não poderão sair, por saberem que foram criadas para o Céu e para a Glória de Deus, mas por soberba, luxúria e os outros pecados que os afastaram de Deus, estão condenadas a penar eternamente.
5) Ambos deixam clara a repugnância que tinham pela figura de Maomé que, por seus atos, não foi sozinho para o Inferno, mas levou consigo um grande número de pessoas.
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Fontes Primárias
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