1 - Os Evangelistas não era "historiadores". Eram "evangelistas", e isso já diz tudo sobre que tipo de trabalho escreveram:
"Os evangelhos não são nem narrativas históricas, nem biografias (mesmo dentro dos esquemas flexíveis que guiavam estes dois gêneros na Antiguidade). Eles são exatamente aquilo de que passaram a ser chamados mais tarde: Evangelhos, ou “boas novas”. Daí podem-se retirar duas advertências. O que é “bom” depende da interpretação ou opinião de um indivíduo ou de uma comunidade. E “novas” é mais plural do que se pensa" (Crossan, 1994, p. 30).
2 - Nem é preciso ser um historiador mentiroso para se escrever dados falsos e incompativeis com a realidade. Foucault, Derrida, Hyden White, Barthes, De Certeau, e até mesmo Ginzburg já demonstraram que quando se escreve uma narrativa histórica, não se está descrevendo o que se passou, mas aquilo que o autor pensa que ocorreu, segundo a forma de selecionar e organizar o conteúdo dentro de sua mente.
"Tudo o que está narrado nos Evangelhos encontramos interpretados pelos seguidores de Jesus, não por seus adversários, por isso, são interpretações favoráveis: é o Filho de Deus, o Messias. Em outras palavras, é impossível uma interpretação imparcial e neutra" (Arens, 2007, p. 88).
Isso não é "preconceito contra as fontes cristãs" (se fosse, não seria aplicada a qualquer narrativa histórica não-cristã) e nem "pressuposições" (pressuposições são boas, desde que não sejam falsas). É um fato que hoje permeia o mundo acadêmico de modo interdisciplinar mediante a disciplina na Análise do Discurso.
Entre os historiadores da antiguidade existia distinção entre “os eventos que ocorreram (res gestae), e nosso relato a respeito (historia rerum gestarum)”. Portanto, ainda que se queiram que os Evangelistas tenham sido "escritores confiáveis", a própria natureza da narrativa (evangélica ou não) impede os Evangelhos de serem documentos 100 por cento exatos. São frutos de uma compreensão construtiva que traduz de uma realidade captada.
3 - Os Evangelhos são obras de PROPAGANDA RELIGIOSA, e não relatos históricos.
A Primeira Busca Pelo Jesus Histórico (século XVII aos anos 20 do século XX), de cunho Iluminista, foi inaugurada por Hermann Reimarus (1694-1768) e continuada por David F. Strauss (1808-1874), Johann J. Griesbach (1745-1812), e Ernest Renan (1823-1892). Caracterizou-se pela tentativa de elaborar uma figura válida para Jesus utilizando a racionalidade.
No entanto, teve seu fim quando, no início do século XX, Albert Schweitzer (1875-1965) e, mais tarde, Rudolf Bultmann (1884-1976), argumentaram que um Jesus histórico era impossível, pois que os evangelhos são produtos da fé, e não relatos dos quais se possam retirar informações históricas.
"Os quatro evangelhos são realmente fontes difíceis; o fato de serem os primeiros escolhidos da rede não significa a garantia de que eles reproduzem as palavras e os atos históricos de Jesus. Impregnados da fé pascal da Igreja Primitiva, altamente seletivos e ordenados segundo diversos programas teológicos, os Evangelhos canônicos exigem uma seleção minuciosa para deles se retirar informações confiáveis à pesquisa. [...] Décadas de adaptação litúrgica, expansão homilética e atividade criativa por parte dos profetas cristãos deixaram sua influencia nas palavras de Jesus nos Quatro Evangelhos". (Meier, 1993, p. 145).
4 - Os Evangelhos não são os documentos mais "testificados na história".
Muito tem-se comparado o número de manuscritos existentes do Novo Testamento, com os das demais literaturas mundiais. Até o ano de 2005, encontraram mais de 5745 manuscritos do Novo Testamento.
No entanto, apenas 2,8% pertencem a Idade Antiga Tárdia. 97,2% são manuscritos medievais, 93,6% foram escritos depois do século 9° d.C. - ou seja, mais de 800 anos após os relatos que narram.
Apenas 0,03% de todos os manuscritos existentes do Novo Testamento pertencem ao século II d.C., e se constituem meros 2 papiros fragmentados.
Costuma-se comparar o Novo Testamento com a obra antiga Anais, de Tácito - a qual nos restam apenas 2 manuscritos não-completos. Fazem isso jactando-se, mostrando com orgulho que existe muito testemunho textual para o NT do que existe para as obras de Tácito. Mas esquecem-se do que Montaigne, no século XVI d.C., já dizia:
"É certo que nos primeiros tempos, quando nossa religião principiou a ser admitida pelas leis, o zelo dos prosélitos incitou à destruição de livros pagãos e a excessos que acarretaram mais prejuízo do que os incêndios perpetrados pelos bárbaros. Tem-se em Cornélio Tácido um exemplo típico do que afirmo, pois embora o imperador, seu parente, houvesse, mediante decretos especiais, espalhado sua obra pelas bibliotecas do mundo inteiro, nem um só exemplar completo escapou à sanha dos que, por causa de cinco ou seis trechos contrários a nossas crenças, o destruíssem". (Michel de Montaigne, p. 51, Vol. II).
Ou seja: se temos pouco testemunho textual da obra de Tácito, é porque a IGREJA cuidou de destruir todas!
Do mesmo modo, se temos muito testemunho textual do NT (97,2% esritos na Idade Madieval - época em que a cultura, sociedade e política era dominada pela Igreja), é porque a IGREJA reproduziu centenas de cópias do NT para sua propaganda religiosa.
5 - Os evangelistas inventam ditos e atos de Jesus inautêntivos, movidos por suas orientações teológicas e ideológicas.
Um pequeno exemplo disso pode ser observado quando nos deparamos com passagens no NT em que Jesus afirma que sua mensagem é para ser pregada exclusivamente para os judeus (cf. Mc 7.27; Mt 10:6), com observações deliberadamente depreciativas sobre os gentios, chamados de ‘cães’ ou ‘cachorrinhos’ e de ‘porcos’ (Mc 7:27; Mt 15:26; cf. Mt 7:6)”.
No entanto, Lucas, o "Evangelho dos gentios", ao dirigir-se a um público principalmente gentio, risca ou deixa de lado as passagens que em Marcos e/ou Mateus sublinhavam a orientação exclusivamente judaica da missão de Jesus e seus discípulos imediatos.
"Se Jesus tivesse deixado claro aos seus apóstolos que sua mensagem era destinada ao mundo todo, e não apenas aos judeus, seria impossível explicar por que, segundo os Atos dos Apóstolos, a igreja primitiva, e Paulo em particular, encontraram tantas dificuldades, quase insuperáveis, quanto à admissão de gentios na comunidade cristã. A única conclusão lógica possível é que, para legitimar a presença crescente de não judeus na igreja, falas fictícias foram inseridas nos Sinópticos, nas quais o próprio Jesus ordena a proclamação do evangelho além dos confins do mundo judeu" (Vermes, 2006, p. 188,189).
6 – Os evangelistas são tendenciosos, porque cuidam de subtrair tudo aquilo que os desagradam.
Exemplo disso é a figura de João Batista.
Marcos (1.4-11) relata, sem qualquer explicação teológica, o batismo de Jesus – sendo que o batismo era destinado a purificação dos “pecadores” – deixando implícito que Jesus era um pecador se submetendo a João Batista.
Mateus, sentindo-se constrangido ao ver seu “Senhor”, puro e imaculado, sendo batizado, cria um diálogo em que João Batista confessa ser indigno de batizar Jesus e só o batiza depois que o mesmo lhe ordena (Mt 3.13-17).
Já Lucas, afirma que João Batista foi preso e morto antes do batismo de Jesus e por isso deixa de mencionar quem foi que o batizou, sendo significativamente lacônico nessa passagem (Lc 3.19-22).
João, por sua vez, suprime por completo qualquer relato de Jesus sendo batizado (Jo 1.29-34), e acrescenta Jesus como um “batizador” concorrente de João Batista (Jo 3.22,26). Depois de ponderar, pensa que não é correto equiparar Jesus a João Batista pelo ato de batizar e afirma que Jesus “não batizava” (Jo 4.2).
De acordo com Meier (1993, p. 171): “é possivel que a Igreja de então, vendo-se “atrapalhada” com um acontecimento da vida de Jesus considerado cada vez mais embaraçoso, tivesse procurado atenuá-lo de várias formas, até que João Evangelista finalmente o suprimiu de seu Evangelho".
Segundo Crossan (1994, p. 268), a “tradição não parece aceitar muito bem a idéia de João batizar Jesus, pois isso faz com que João pareça superior e Jesus um pecador”.
“O Batista constituía uma pedra no caminho no inicio da história de Jesus segundo o cristianismo, uma pedra bastante conhecida para ser ignorada ou negada, uma pedra que cada um dos evangelistas tinha que contornar da melhor forma possível”. (Meier, 1996, p. 37).
Se os Evangelhos fazem isso com João Batista, o que podemos pensar sobre o que fizeram a respeito de Jesus?
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Fontes:
ALAND, Kurt (ed.) [et al]. The New Testament Greek. Third Edition. Stuttgart-Germany: United Bible Societies, 1988.
ARENS, Eduardo. A Bíblia sem mitos. Uma introdução crítica. São Paulo: Paulus, 2007.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Trad. de Maria de L. Menezes; rev. técnica [de] Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
FUNARI, Pedro Paulo A. Documentos: Análise tradicional e hermenêutica contemporânea. In: ______________. Antiguidade clássica. A história e a cultura a partir dos documentos. 2.ed. Campinas,SP: Editora da UNICAMP, 2003.
GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CHEVITARESE, André Leonardo. CORNELLI, Gabrielli; SELVATICI, Mônica (Org.) Jesus de Nazaré: Uma Outra História. São Paulo: AnnaBlume; FAPESP, 2006.
CROSSAN, John Dominic. O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu mediterrâneo. Trad. André Cardoso. 2. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: as raízes do problema e da pessoa. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993. Vol. I.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Mentor. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. II, livro I.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril, 1974. (Coleção. Os Pensadores). Volume 2.
VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Fontes:
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CHEVITARESE, André Leonardo. CORNELLI, Gabrielli; SELVATICI, Mônica (Org.) Jesus de Nazaré: Uma Outra História. São Paulo: AnnaBlume; FAPESP, 2006.
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MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: as raízes do problema e da pessoa. 3. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1993. Vol. I.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Mentor. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Vol. II, livro I.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Abril, 1974. (Coleção. Os Pensadores). Volume 2.
VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Um comentário:
Muito bom o texto e concordo que o objetivo dos evangelistas tenha sido propagandístico, não histórico.
Tenho há alguns meses refletido a respeito da autoria dessas 4 obras e de Atos que as considero realmente anônimas já que inexiste qualquer autoria declarada.
Para mim está bem claro que foram os discípulos gregos quem os escreveram, mas é bem evidente que existe uma tradição semita anterior desconhecida, exceto os Manuscritos do Mar Morto que não são cristãos.
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