Para além das divergências envolvendo o nome desta importante figura para o Ocidente, uma coisa é certa: ele não apenas existiu como pode ser estudado e recomposto, mesmo após quase dois milênios de sua morte.
Falar em mito é abordar realidades culturais extremamente complexas, com inúmeras possibilidades de interpretação e múltiplas perspectivas. Isso porque o estabelecimento de mitos é algo comum a várias sociedades de tempos, localidades e culturas diversas. Logo, as definições para o termo são também abundantes.
livros sobre o Jesus Histórico
Mircea Eliade, um dos muitos estudiosos do assunto, se arriscou a conceituar “mito”, mesmo consciente de que provavelmente não conseguiria abarcar todos os tipos e funções dos mitos. Para ele, uma definição menos imperfeita, exatamente por ser ampla, é: “O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do ‘princípio’”.
Como a definição é demasiadamente vasta, poderíamos perfeitamente falar que Jesus, figura largamente conhecida no Ocidente, é um mito. Afinal, os escritos cristãos contam a história de um princípio, o início da chamada Era Comum e o fazem por meio dos relatos sagrados do surgimento de um deus capaz de vencer a própria morte.
Porém, quando muitos se referem a Jesus como mito, não pensam nessa definição, mas naquela outra que é muito mais corriqueira, na qual o mito é um relato fantástico protagonizado por um ou mais seres que, como aponta o dicionário Houaiss, “encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana”, ou seja, lenda.
Analisando a questão pelo senso comum, a afirmação até faz sentido, visto que, ao contrário de Maomé e à semelhança de Sócrates e Buda, Jesus não produziu escritos. Isto é, ele não deixou nada de concreto “confirmando” a sua existência e isso, claro, facilitou a propagação de sua figura como Deus e da religião da qual é centro, o cristianismo.
Em outras palavras, Jesus poderia facilmente ter sido “criação” da mente de pessoas que propagavam uma religião há milênios atrás e que misturaram diversos relatos orais até chegar a uma figura que conseguisse chamar a atenção das pessoas daquele tempo. Jesus, então, não existiu? E não falo aqui da hierofania suprema que é, pelo menos para os cristãos, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, tal como escreve o próprio Eliade. Não. Refiro-me aqui à existência histórica de Jesus, o nazareno. Não pisou sobre a Terra este homem chamado Jesus?
As discussões desta reportagem começaram em conversa com o professor Dominique Santos, do departamento de História Antiga da Universidade Regional de Blumenau, que indicou André Leonardo Chevitarese, caso eu quisesse me aprofundar no tema. “Escreva um e-mail para o André Chevitarese. Ele te auxiliará nisso”. E-mail enviado, não demorou muito para receber uma resposta positiva, junto com um número de telefone.
Chevitarese, que é professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ), atendeu à ligação na tarde de uma quinta-feira e não se importou em detalhar alguns pontos sobre seu objeto de pesquisa. Primeiro: Jesus existiu ou é, como afirmam muitos, apenas um mito?
André Chevitarese: “Jesus foi um judeu. Nunca foi cristão e nunca foi Deus, mas se viu como alguém que recebeu o chamado para construir, no seu tempo histórico, o reino divino”
Ele começa explicando que tudo o que se fala sobre Jesus hoje não é derivado, obviamente, do século I, mas de pesquisas que falam sobre esse período. Assim, em meados do século XX, começaram a aparecer as primeiras notícias de pesquisas históricas que davam conta de que Jesus, na verdade, era um mito. A esse tipo de leitura denominou-se Escola Mitológica, que tinha como premissa ler a história de Jesus como uma criação composta de modo a agregar mitos de vários deuses e heróis do mediterrâneo a fim de compor a figura tal qual aparece nas narrativas evangélicas.
Porém, de acordo com Chevitarese, as questões formuladas no final do século XIX já foram largamente superadas, tendo a academia criado critérios metodológicos para dizer que Jesus não é um mito. “Podem gostar ou não dele, mas ele está longe de ser um mito; pelo contrário, ele é uma figura real, de carne e osso, e que se pode, sob muitos aspectos, ser reconstruído”, afirma o professor.
Quais são os critérios? O primeiro deles, segundo Chevitarese, é a múltipla atestação. Isso acontece quando dois ou mais autores que nunca se leram ou se conheceram são capazes de afirmar, palavra por palavra, ditos atribuídos a um terceiro indivíduo. “Quando isso ocorre, certamente esse terceiro indivíduo tem grandes probabilidades de ter existido”, diz.
Jesus, por exemplo, é citado por vários autores que nunca se viram ou se leram. Paulo, o apóstolo, nunca leu nenhum dos evangelistas. Marcos, que é o primeiro dos evangelistas, nunca leu Paulo. Por sua vez, Josefo, historiador judeu não-cristão nascido em Jerusalém apenas quatro anos após a crucificação de Jesus, nunca leu Paulo ou Marcos. E a lista continua. Muitos autores dos séculos I e II falaram sobre esse homem, o que levanta evidências reais sobre sua existência.
Então, tendo existido, quem foi Jesus? Historicamente, ele aparece nas narrativas como um camponês judeu, nascido em Nazaré, e que nunca se casou. Foi um homem que se viu como alguém que recebeu o chamado para construir, no seu tempo histórico, o reino de Deus. Tendo instaurado esse reino, ameaçou a soberania romana e, por isso, foi preso, e crucificado.
Em alguns pontos, os relatos bíblicos — dos textos canônicos contidos na Bíblia cristã — convergem com as pesquisas históricas; em outros, não. Dessa forma, é necessário aprofundar a discussão do tema:
1) Os textos bíblicos afirmam que o nascimento de Jesus aconteceu em Belém, enquanto as pesquisas apontam que ele nasceu em Nazaré, tanto que era chamado de “Jesus de Nazaré”. De acordo com Chevitarese, Nazaré era uma cidade “insignificante”. “A arqueologia nos ajudou a entender a cidade de Nazaré, pois ela foi plenamente escavada. Tratava-se de uma vila situada numa montanha, com poucas casas, pouca gente e nenhum prédio público”, conta.
Porém, por que os textos bíblicos relatam o nascimento de Jesus em Belém? Aqui, com um pouco de interpretação, Chevitarese explica: “O nascimento em Belém foi uma invenção dos evangelistas, como Marcos, Lucas e Mateus, que queriam vincular Jesus à família de Davi. Ao fazer isso, eles pretendiam dizer: esse sujeito tem legitimidade para reivindicar ser o Messias porque ele é da linhagem de Davi, isto é, Jesus passou a ser uma pessoa mais importante”.
O ponto levantado pelo professor é o seguinte: sendo Nazaré uma vila sem muita importância para a região da época, sob esse ponto de vista, se os relatos evangelísticos colocassem Jesus como nazareno de nascimento, as pessoas não o receberiam com bons olhos. Para sustentar seu ponto de vista, Chevitarese cita a fala de Natanael, no diálogo que tem com Filipe nos versículos 45 e 46 do evangelho de João, capítulo 1: “Filipe encontrou Natanael e lhe disse: ‘Achamos aquele sobre quem Moisés escreveu na Lei, e a respeito de quem os profetas também escreveram: Jesus de Nazaré, filho de José’. Perguntou Natanael: ‘Nazaré? Pode vir alguma coisa boa de lá?’. Disse Filipe: ‘Venha e veja’”.
2) É verdade que Jesus nunca se casou? Após o lançamento de “O Código Da Vinci”, essa é uma pergunta que se tornou comum, dada alta penetração do best-seller entre os leitores médios do mundo. Porém, grande parte das pessoas se esquece que o livro de Dan Brown está no campo da ficção e não da História. Historicamente falando, nenhuma documentação dá conta de um casamento de Jesus.
Chevitarese explica que, se Jesus fosse o único judeu na primeira metade do século I a ter escolhido uma vida celibatária, a probabilidade de essa informação ter sido uma invenção seria grande, tendo em vista a preocupação da cultura judaica, naquele período, em perpetuar a “raça judaica”. Contudo, afirma ele, “quando olhamos para outros indivíduos judeus do tempo de Jesus, verificamos que muitos também escolheram a vida celibatária.”
O professor relata sobre a existência de narrativas que não provêm do material cristão e que informam que Jesus foi celibatário, mas não era o único. Um exemplo de celibatário foi João, cognominado Batista. “Logo, podemos também concluir que a ideia construída pela documentação do século I não é inverídica. E é assim que a academia vai produzindo provas acerca de Jesus”, argumenta.
3) Por que Jesus foi preso? Talvez essa seja a pergunta mais simples de ser respondida. Chevitarese explica que Jesus anunciou o reino de Deus pautado em três princípios: um reino de paz, fartura e justiça. “Ora, se ele estava instaurando um reino, é notório que iria dar errado, pois já havia um reino soberano: Roma. Então, sobre os três pilares instaurados por Jesus: paz, porque Roma traz a guerra; fartura, porque Roma traz a fome; e justiça, porque Roma é injusta.” Esse desafio a Roma faz com que as autoridades romanas prendam e crucifiquem aquele judeu de origem camponesa.
O professor relata que Jesus estava sempre em locomoção e pregou seu ministério, na grande maioria, em pequenas aldeias ou cidades muito pequenas, como Tiberíades, cidade situada às margens do mar da Galileia. Isso porque, quando o movimento foi crescendo, Jesus passou a ser perseguido. “Jesus só vai a uma cidade grande para morrer, que é Jerusalém”, conta.
Segundo Chevitarese, a arqueologia ajuda os pesquisadores a entender a questão, começando de Nazaré, cidade onde Jesus teria nascido. Nazaré foi plenamente escavada por arqueólogos e o resultado mostra que a vila situada numa montanha, com poucas casas, ficava a sete quilômetros de uma importante cidade chamada Séforis. Essa cidade, de acordo com o professor, foi reconstruída ao longo dos séculos I e II.
“Então, se Jesus foi o filho do carpinteiro que aprendeu o ofício do pai, ele não iria lançar mão da carpintaria em Nazaré, porque lá não havia nada de interessante. Em compensação, a sete quilômetros de lá estava sendo reconstruída uma cidade gigantesca para os padrões da época comportando, inclusive, um teatro romano para cinco mil lugares”, garante.
Em outras palavras, se Jesus foi um carpinteiro, ele foi trabalhar em Séforis e lá teria tido contato com uma gama de pessoas e culturas, pois naquela grande cidade havia sírios, gregos, romanos, judeus, fenícios, egípcios etc. “Ou seja, existia em Séforis uma plêiade de línguas e etnias. Logo, aquele judeu teve, então, um primeiro contato com um mundo ‘globalizado’ e observa algo que não o anima”. Começaria aí a ideia do ministério de Jesus.
Dessa forma, sendo perseguido, quando Jesus entra em Jerusalém, na antevéspera da páscoa, ele é preso. Naquele período, páscoa era uma festa política, pois marcava a saída dos judeus do Egito. Só que, naquele ambiente, não se podia comemorar a liberdade, pois Roma dominava a Judeia, a Galileia, a Samaria etc. Logo, havia tensão na cidade.
Deixar pessoas, como Jesus, soltas no meio de uma Jerusalém com milhares de pessoas era, portanto, arriscar uma revolta aberta. É isso o que faz as autoridades romanas prenderem-no. E o fizeram em conjunto com um pequeno setor da elite judaica que se beneficiava da ocupação romana. Ela identificava lideranças populares que ameaçassem o império e mandava matar. O que há de história é isso”, arremata.
O que existe de histórico na Bíblia?
A Bíblia é um conjunto de textos sagrados no qual os cristãos baseiam sua fé. Porém, a Bíblia também pode ser usada como documento histórico, afinal seus escritos remetem há séculos atrás. A questão é: até que ponto os historiadores podem utilizar esses textos como objeto de pesquisa histórica?
André Leonardo Chevitarese diz que a pesquisa histórica não trabalha com a ideia de Bíblia, visto que “nunca foi encontrada uma Bíblia, ou um Novo Testamento; ao contrário, os autores dos textos eram autônomos e, num determinado momento, se sentiram tocados ou receberam visitas de missionários e foram organizando suas comunidades; muitas delas, nós não sabemos quais são ou onde ficavam.”
Segundo ele, o chamado corpus neotestamentário é produto do final do século III, início do século IV, pois é nesse período que os livros começam a ser reunidos. “Por isso não é bom, para os historiadores, trabalhar com a ideia de Bíblia, porque os livros são isolados e é assim que eles devem ser lidos. Inclusive, Bíblia é uma palavra que vem do nominativo plural neutro [do grego] que significa ‘livros’. Portanto, não se trata de um livro apenas”, explica.
Sendo a Bíblia um conjunto de livros, afirma Chevitarese, é importante relatar que como eles foram reunidos e quais deles foram escolhidos, uma vez que há um vasto material cristão não-bíblico. Os livros escolhidos compõem, assim, o cânone bíblico, sendo chamados apócrifos os não-bíblicos. Teologicamente, os livros canônicos têm mais valor, afinal foram selecionados por uma razão. Porém, para a pesquisa histórica, todo o material interessa, tanto o bíblico quanto o apócrifo.
Chevitarese relata haver muita coisa que ajuda a entender a sociedade em que Jesus viveu, a começar pela cronologia dos livros. O professor classifica a cronologia proposta pelos teólogos para o Novo Testamento, começando em Mateus e terminando em Apocalipse, como ruim, uma vez que as cartas paulinas foram escritas antes. Ele ressalta que, para os historiadores, a noção temporal da documentação textual é importante e precisa ser cronologicamente organizada.
As cartas paulinas, por exemplo: são 13, mas apenas sete são consideradas autênticas, isto é, escritas por Paulo, o apóstolo; as outras seriam atribuídas a indivíduos não identificados, cujos textos acabaram reunidos como sendo de um único autor. “Entretanto, o ponto principal é: nenhum dos autores dos textos que compõem o ‘novo testamento’ foi testemunha ocular de Jesus. Em muitos casos, o que Jesus disse é mais resultado do que a liderança dessas comunidades gostaria que ele tivesse dito do que propriamente o que ele, na primeira metade do século I, de fato disse”, diz.
Paulo teria sido um dos únicos a conhecer Jesus. De acordo com o professor, em alguns casos, em relação aos evangelistas, os autores conheceram pessoas que conviveram com Jesus e, portanto, dependiam delas para falar sobre ele. “E cada autor tem percepções diferentes sobre quem era aquele homem. Só mesmo com muita fé é que se consegue ler o ‘novo testamento’ e chegar a alguma conclusão”.
E quais são os materiais apócrifos utilizados pelos pesquisadores para entender a vida de Jesus? Chevitarese revela que há textos escritos por cristãos, principalmente nos séculos I, II, III, que somam um número maior que aqueles que constituem o Novo Testamento. “Nós temos as cartas de Inácio, um cristão situado na década de 90 do século I, que fala sobre suas comunidades e sobre o que acontece dentro do Império Romano. Fala de perseguições, mas também de conforto”, conta.
O professor fala também sobre o evangelho de Tomé, que se situa, em sua percepção, entre os anos 90 do século primeiro e 120 do segundo. “Ou seja, antes de João. E esse texto é fantástico, na medida em que se refere a Jesus como aquele que vive e que nunca provou da morte. E esse texto também não está no novo testamento. Então, no fundo, a Bíblia é feita de escolhas.”
O que fez alguns textos entrarem no Novo Testamento e outros não, segundo o professor, foi o conteúdo. Ele explica que, na tradição latina, para estar entre o material neotestamentário, o texto tinha que dizer que Jesus morreu, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia. “Se não mencionou esses acontecimentos, está fora dos escritos. Por isso, existe uma quantidade absurda de materiais que não está na Bíblia. Mesmo assim, se compararmos a Bíblia católica à ortodoxa, sempre haverá uma pequena variação de textos”, resume.
Por que o movimento cristão permanece até os dias atuais
Movimentos messiânicos não eram novidade no período histórico em que Jesus viveu. Existiram, antes e depois de Jesus, outros líderes que se autodenominavam Messias, palavra que vem do hebraico “mashiah” ou “mashiach” e significa “ungido” — o termo era usado para denominar os reis de Israel e faz referência à profecia de que o Messias seria descendente do rei Davi. No grego, a palavra é traduzida como “christós”, vocábulo do qual se origina o “Cristo” atribuído a Jesus.
Então, se existiram outros movimentos messiânicos naquele período histórico, por que o iniciado por Jesus sobreviveu enquanto os outros tiveram uma vida mais curta? Para o professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH-UFRJ) André Leonardo Chevitarese, a questão se explica da seguinte maneira: em muitos casos, os movimentos messiânicos tinham um cunho muito “nacionalista” — palavra usada entre aspas porque a ideia de nação é do século XIX e não do século I.
Grande parte dos líderes messiânicos tinha como foco uma dimensão voltada para o etnos judaico, para libertar as terras de Judá e garantir a independência de Israel de Roma, característica não atribuída de modo arraigado ao movimento liderado por Jesus, que rapidamente deixou de ser lido como algo específico do ambiente judaico e ganhou uma dimensão universal. “Isto é, Jesus se mostrava como quem veio para libertar os oprimidos, os pobres, os doentes. Então, esse movimento transcende em muito as fronteiras judaicas”, explica.
Para o professor, um ponto importante a ser levado em consideração é o fato de que “o Império Romano continuou existindo depois de Jesus. Assim, as elites romanas foram se apropriando de tudo, jogando no lixo o movimento revolucionário do reino instaurado. É aí que surge a segunda vinda de Jesus, isto é, por enquanto, vale tudo. Se pecou, basta pedir perdão. Ou seja, um movimento que inicialmente era revolucionário foi acomodado em um movimento pacífico, ordeiro, que aceita todas as condições humilhantes que o mundo coloca em oposição a uma vida futura ou a uma intervenção divina que poderá acontecer”, sustenta.
Ademir Luiz, historiador e professor pós-doutor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), o conceito de “messias” foi transfigurado pelo cristianismo. Segundo ele, a noção de Messias como filho único de Deus, Filho de Deus que é também Deus, foi, basicamente, uma criação de Paulo, apóstolo. “Na prática, o que chamamos de cristianismo é, na verdade, paulismo. Havia muitos cristianismos nos primeiros séculos. Eram bastante diferentes entre si. O modelo vencedor foi o de Paulo, que colocava Jesus como Cristo, portanto, como uma divindade por si só”, afirma.
Ademir Luiz: “Na prática, o que chamamos de cristianismo é, na verdade, paulismo. Havia muitos cristianismos nos primeiros séculos e o modelo de Paulo foi o vencedor”
Em relação à duração do movimento de Jesus, Ademir Luiz afirma não acreditar que ele tenha adquirido muito destaque em vida. Para ele, Jesus, certamente, tinha seguidores e simpatizantes, inclusive entre pessoas ricas e influentes de Jerusalém, mas não o suficiente para fazer dele “uma celebridade como João Batista. Tanto que não há relatos com autenticidade totalmente comprovada em documentos de época citando-o, fora os evangelhos que foram escritos por seus seguidores. As tão faladas citações a Jesus nos livros do historiador judeu Flávio Josefo são controversas, provavelmente inclusões posteriores nos textos originais”, argumenta.
É comum ouvir de pesquisadores que Jesus teria participado do movimento liderado por João Batista e que, em determinado momento, os dois tiveram divergências, o que teria feito o primeiro se desvencilhar do segundo e “fundar” seu próprio ministério. Para Ademir Luiz, o episódio em que João Batista batiza Jesus serve, inclusive, como evidência da própria existência de Jesus.
De acordo com ele, o batismo de Jesus é um constrangimento, afinal, é o maior sendo batizado pelo menor. Além do mais, ser batizado representava, desde aquela época, se reconhecer como pecador. Se Jesus, como Deus, não pecou, por que se submeter ao batismo? “É o que chamamos de ‘Critério do Constrangimento’. Por exemplo: Jesus morreu crucificado? A crucificação era um modo de execução usado apenas contra bandidos reconhecidos ou rebeldes, sendo considerado muito degradante. Portanto, para um cristão do século I saber que seu messias foi morto crucificado era constrangedor. Mas esse fato não foi escondido, certamente por ser de conhecimento público. Então, se é constrangedor e ficou, provavelmente, é verdade”, argumenta.
“Jesus de Nazaré é um dos personagens mais bem documentados do ‘Mundo Antigo"
Raul Vitor Peixoto: “Acreditar na existência de Jesus não é uma questão de fé, mas de concordar com o árduo trabalho de pesquisa de historiadores”
Raul Vitor Rodrigues Peixoto foi o único historiador cristão entrevistado para esta reportagem. Ele, que é professor de História do Instituto Federal de Goiás (IFG) e doutorando em Literatura Apocalíptica Comparada pela Universidade de Brasília (UnB), respondeu às mesmas perguntas feitas aos outros pesquisadores.
Raul diz que reconhecer a existência de Jesus é mais que uma questão de fé, visto que Jesus é “um dos personagens mais bem documentados do chamado ‘Mundo Antigo’” e relata que, pesquisadores estrangeiros atuais, não têm mais dúvidas acerca desse assunto; ao contrário, já avançam para outras questões. Leia trechos da entrevista.
A pergunta sobre a existência de Jesus parece inevitável no Brasil, país em que muitos historiadores ainda duvidam de sua existência. Como o sr. vê a questão?
Eu vejo a questão de muitos dos meus colegas ainda duvidarem da existência de Jesus de Nazaré com muito pesar. Coloco dessa forma porque isso, infelizmente, demonstra um triste descompasso da academia brasileira com o que vem sendo pesquisado em grandes centros de referência ao redor do mundo. A possibilidade do homem Jesus de Nazaré não ter existido é um debate superado em grupos de especialistas internacionais como o Enoch Seminar. Em 2014, tive oportunidade de apresentar parte da minha tese de doutoramento, sobre literatura apocalíptica judaica, em uma conferência organizada por esse grupo de pesquisa no Canadá e não encontrei um só pesquisador discutindo se Jesus de Nazaré havia de fato existido — o que inclui historiadores declaradamente ateus e judeus. É por isso que falo sobre esse “descompasso” da academia brasileira. Jesus de Nazaré é um dos personagens mais bem documentados do chamado “Mundo Antigo”. A metodologia que utilizamos para comprovar que Jesus existiu é a mesma que usamos para diversos outros personagens da Antiguidade que, por sua vez, passam incólumes na questão de sua existência.
Para além da Bíblia, como foi a trajetória de Jesus até sua morte?
Esta é uma questão que revela, em algum aspecto, um pressuposto falso. As pessoas tendem a achar que a Bíblia cristã já surgiu “compilada de capa preta e fechada com zíper”. O Novo Testamento é um amálgama de documentos que circulava de maneira independe a partir da segunda metade do primeiro século. Isso significa que, quando as pessoas querem uma prova “extra bíblica” acerca de qualquer aspecto da vida de Jesus de Nazaré, isso já demonstra uma falta de entendimento de como a Bíblia surgiu. Porém, eu entendo que com “para além da Bíblia” busque-se um tipo de consenso acadêmico sobre como tenha sido a trajetória de Jesus. Sobre isso, há muita discussão, até porque esse é o estágio no qual se encontram as pesquisas acerca de Jesus.
O que pode ser dito é que ele se insere muito bem no movimento apocalipticista messiânico do primeiro século na Palestina. Ao anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus pregava uma nova ordem de justiça que desafiava não apenas o Império Romano, como é muito comum se afirmar, mas toda a classe sacerdotal — e dominante — judaica. É importante frisar que a trajetória de Jesus envolve todo um conteúdo místico que não surgiu nas fontes mais antigas por acaso. Ele teve um ministério como exorcista e intérprete da Lei Judaica. Suas interpretações incomodavam frontalmente partidos judaicos bem estabelecidos como o dos Saduceus e Fariseus. Muitos pesquisadores hoje afirmam que a crucificação de Jesus teve seu estopim em evento no qual ele desafiou os comerciantes do Templo de Jerusalém causando grande tumulto e prejuízo aos mesmos.
Existem divergências sobre a existência de Judas, o traidor. Jesus não teria sido traído, mas capturado. Isso porque, na avaliação dos pesquisadores, além de não haver indícios concretos de sua existência, a presença de Judas é necessária apenas para o acréscimo de caráter simbólico. Esse entendimento serve para vários outros pontos. Como o sr. analisa isso?
Um dos vários critérios para se julgar os elementos narrativos de uma fonte histórica é o que podemos chamar de “constrangedor” ou “vexatório”. O fato dos Evangelhos Sinóticos narrarem que Jesus escolheu pessoalmente seus discípulos e depois narrar que um deles o entregou às autoridades judaicas é especialmente constrangedor. Bem como vários outros, como a negação do Apóstolo Pedro, por exemplo, que no livro de Atos aparece como um dos líderes do movimento cristão. Esse critério, somado à presença de Judas nas narrativas mais antigas, colocam a existência dele em bases seguras.
É possível retirar informações históricas da narrativa dos evangelhos (atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João), mesmo que estes tenham um forte cunho teológico?
Os historiadores têm metodologias longamente discutidas para utilizar qualquer traço do passado humano como fonte histórica. Há escritos gregos com altíssima carga mitológica que são utilizados como fonte histórica. O Evangelho em si é considerado pela história como um gênero textual da Antiguidade e há toda uma dinâmica para sua análise. Pesquisadores de longa e reconhecida carreira acadêmica no campo da vida do Jesus Histórico, como Géza Vermes e Ed Parish Sanders, trabalharam com esses quatro Evangelhos, contextualizando-os no judaísmo da época e com escritos de historiadores como Flávio Josefo, os Manuscritos do Mar Morto e outras literaturas Rabínicas.
Dadas todas as aparentes contradições entre as pesquisas históricas e as constatações dos evangelhos, como acreditar na existência de Jesus, como Cristo, se não for pela fé?
Particularmente vejo o Novo Testamento como extremamente persuasivo. As chamadas “inconsistências” nas narrativas neotestamentárias apenas provam a variedade de fontes orais para o ministério de Jesus Cristo. Eu estou bem ciente das diferenças cronológicas e quantitativas entre as narrativas dos Evangelhos sinóticos, entretanto, não vejo nenhuma contradição no núcleo da mensagem pregada por Jesus. Há bases bastante estabelecidas hoje para afirmar que certos trechos das cartas do Apóstolo Paulo — já aceitas como mais antigas que os próprios Evangelhos — serem citações de hinos cristãos anteriores à própria conversão de Paulo ao Cristianismo (Filipenses 2:6-11; 1 Coríntios 15:3-5). Com isso quero dizer que a crença de que Jesus havia ressuscitado dentre os mortos é bastante antiga e seu início próximo ao evento de sua morte. De fato, a expansão primitiva do Cristianismo é impulsionada majoritariamente pela crença na Ressurreição, tanto de Jesus como do indivíduo que crê. É interessante analisar a contradição latente de uma sociedade que ao mesmo tempo que abraça o relativismo da pós-modernidade e, consequentemente, seu desprezo pelo dogmatismo cientificista querer “provas cabais e incontestáveis” quando se trata dos milagres de Jesus.
Quanto a escolha dos textos para compor a Bíblia, não as vejo de maneira “arbitrária e maquiavélica” como muitos entendem. Outro fator extremamente interessante é que os apócrifos, que aterrorizam as mentes de muitos que pensam serem eles livros que “destruiriam o cristianismo tal como conhecemos” apresentam um Jesus igualmente miraculoso e sobrenatural, aliás muito mais sobrenatural eu diria – já que a apocrifia gnóstica considerou Jesus de fato um espírito. A História moderna se nega a priori a creditar o sobrenatural, portanto seria estranho esperar dela outra atitude que não essa em relação a Jesus Cristo. Pessoalmente, a mensagem de Jesus Cristo dá total sentido a minha vida e não só me fornece uma diretriz de amor incondicional àqueles que estão a meu redor como também traz à luz os meus erros e a minha necessidade de reconciliação com Deus e com o próximo.
Como Jesus é visto pelos cristãos atuais
Superada a aparente polêmica sobre a existência de Jesus, e esclarecidos alguns dos pontos mais importantes em relação a como a História o enxerga, é possível debater a forma como seus seguidores o veem quase dois mil anos após a sua morte. Atualmente, os cristãos, sobretudo os evangélicos, estão no centro de muitas polêmicas no Brasil, sobretudo políticas e econômicas. Com toda essa atenção para alguns dos religiosos, que posição Jesus ocupa na vida de uma sociedade cuja maioria da população se diz cristã?
Pedro Alcântara: “As pessoas hoje têm dificuldade em ver Jesus em sua totalidade. A maioria dos cristãos vê um Cristo parcial”
Pedro Alcântara, pastor de jovens da Igreja Batista de Água Branca e mestrando em Filosofia na Universidade Federal de Goiás (UFG), entende que Jesus é mal interpretado atualmente, sobretudo porque a busca das pessoas é pelo Jesus de milagres, o Jesus místico, e não pelo Jesus que chama para uma vida de arrependimento, de compromisso e de obediência à vontade de Deus.
Para ele, “as pessoas hoje têm dificuldade em ver Jesus em sua totalidade: como Senhor, Filho de Deus, criador e sustentador de todas as coisas, como alguém que nos adverte para uma vida de conduta ética, de moral estabelecida pela Bíblia. Acredito que a maioria dos cristãos vê um Cristo parcial”, relata.
Pedro afirma entender o “Jesus integral” como aquele que age não apenas na vida econômica de alguém, como se tem pregado atualmente, mas em todas as áreas do ser humano. “Gosto muito da frase de um pastor holandês chamado Abraham Kuyper. Ele diz que não há um único centímetro quadrado no mundo em que Cristo não coloque o pé e diga: ‘Isso é meu’. Essa frase simboliza a soberania de Cristo sobre todas as coisas. Então, quando digo ‘Jesus integral’, quero dizer que Jesus tem mandamentos para todas as áreas do ser humano, da vida profissional à artística. Não se trata, portanto, de ver Jesus como o gênio da lâmpada que irá realizar todos os desejos de alguém. O cristianismo hoje é muito antropocêntrico e não é assim. Jesus tem vontade própria e é ela que deve ser obedecida pelo homem”, explica.
Mas Jesus já foi visto, alguma vez na História, de maneira integral? Para Pedro, sim. Ele diz que sempre existiram movimentos que buscaram preservar esse “Jesus integral” do qual fala e cita três exemplos:
1) “A igreja de Atos, como vemos na narrativa de Lucas. Vemos alguns problemas dentro daquela igreja, sim, mas se buscava esse Jesus integral, que é Senhor, mas também é Salvador”;
2) “Temos o movimento da Reforma Protestante, que buscou corrigir as distorções pelas quais Jesus estava sendo apresentado pela Igreja Católica, até então”;
3) “O movimento puritano, grupo que ficou conhecido dentre os cristãos por viverem uma vida piedosa e pela tentativa de levar os ensinamentos de Jesus para todas as áreas da vida”.
Fora isso, aponta, existiram alguns “avivamentos” ocorridos nos Estados Unidos, como com Jonathan Edwards e George Whitefield, “avivalistas que buscavam uma transformação social completa apresentando um Jesus integral, totalmente vivo.” “Esses movimentos”, continua ele, “são algo que me dá esperança de que nós podemos, hoje, experimentar a soberania de Cristo em todas as áreas de nossa vida.”
O “upload” de Jesus
“Parece que Jesus é visto hoje mais como o avô que faz todas as vontades do neto do que como o Pai. Talvez pelo fato de vivermos em um mundo do politicamente correto, a percepção que tenho é que Jesus é visto, pregado e buscado dessa forma. E perdemos muito em não termos uma noção muito clara sobre quem Ele é.” A fala é do seminarista Wanderson Oliveira.
Wanderson, que estuda no Seminário Teológico Batista Goiano, afirma que o Jesus de hoje está mais dentro daquilo que se entende por moral. “Quando alguém vai falar contra o aborto, usa Jesus e a Bíblia; mas quando alguém vai falar a favor também usa Jesus e a Bíblia. Então, a verdade é que ninguém sabe quem é Jesus porque lemos muito pouco e somos pouco instruídos. Vivemos em um país que é ‘cristão’ e onde parece que todos sabem do que falam, mas não sabem. É por isso que, aparentemente, as coisas estão muito vagas. Ao mesmo tempo em que cresce o número de evangélicos, também aumenta, assustadoramente, o número de pessoas ‘perdidas’ dentro das igrejas”, diz.
Wanderson Oliveira: “A maioria das pessoas fica dentro de uma noção muito vaga sobre quem é Jesus e isso cria uma confusão. Quem não é cristão acha que tem a resposta e quem é também não sabe responder”
A figura de Jesus, dessa forma, estaria mais ligada às polêmicas criadas no campo moral do que propriamente no espiritual. E isso num momento em que, sobretudo no Brasil, polêmicas morais surgem todos os dias e aos montes. O seminarista diz que não vê Jesus, em seu tempo histórico, perdendo tempo com discussões que “não levam a nada. Então, quando alguém pergunta a ele se é lícito pagar imposto, a resposta é simples: ‘Dê a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus’. Pronto. Ele não entra na discussão se é certo ou não.”
A dificuldade, assim, está em tentar explicar Jesus a partir dos conceitos ou preconceitos de cada um. “É muito difícil contextualizar Jesus a partir do que nós vemos. Então, eu vejo Jesus da seguinte forma: Deus que se fez homem para nos mostrar como o homem deve ser. Eu o vejo vivendo o que ele é, um Deus de amor que veio para resgatar aquele que está perdido e tento me adequar a esse estilo de vida e mostrar, de alguma forma, esse isso às outras pessoas”, afirma.
O que o seminarista diz é que, quando se tenta encaixar Jesus dentro dos padrões morais atuais, existem claras dificuldades. “O certo seria olhar o modo de vida de Jesus e nos encaixarmos nele. Não o contrário. Nos perdemos quando ficamos tentando dar upload em Jesus. Parece que Ele vai mudando de opinião de geração após geração. Não muda. O que muda é a sociedade. Existem, hoje, igrejas de nichos porque as pessoas adaptam Jesus àquilo que elas escolhem para viver. E não entendo que seja assim. Jesus está lá e nós é que temos que nos adaptar a Ele.
O grande problema de dar “upload” em Jesus, segundo Wanderson, é o afastamento que isso provoca. Para ele, essas atualizações parecem afastar Jesus das pessoas: “Aqueles que estão em pecado sentem que Jesus não os aceitará, mas é o contrário. Onde abunda o pecado, superabunda a graça. Mas parece que os líderes das igrejas perderam o senso desse Jesus que mais se aproxima de quem precisa. Então, vamos cada vez mais segregando a igreja para ficar parecida com gente santa, sendo que estão muito longe de serem santos. Enquanto isso, Jesus está disposto a salvar tanto os que estão perdidos dentro da igreja quanto os que estão fora”.
As fatias de Jesus
Juan Arias é um jornalista e escritor espanhol que lançou, em 2000, um livro chamado “Jesus, esse grande desconhecido”. A teoria de Arias diz que, apesar de tudo o que foi escrito sobre Jesus e criado em torno de seu nome, ele continua sendo um grande desconhecido, visto que tudo o que conhecemos a seu respeito, seja do ponto de vista histórico ou da fé, advém de uma experiência tardia. Afinal, todo esse conhecimento vem de escritos e experiências relatadas ou compiladas 100 depois da vida e morte de Jesus.
Padre Paulo Cezar Nunes de Oliveira: “Jesus se tornou um objeto que é fatiado e vendido de acordo com a necessidade do crente ou do cliente”
Num primeiro momento, a teoria parece ir contra a fé cristã, desacreditando Jesus. Porém, como explica o padre Paulo Cezar Nunes de Oliveira, o conhecimento sobre quem foi Jesus não é de suma importância para os cristãos, visto que “a relevância de Jesus para o crente não é necessariamente o que se sabe dEle, mas o que se fala sobre Ele”, diz. Em outras palavras, para o crente, o importante não é exatamente quem foi Jesus, mas que se crê a respeito dele.
Mesmo assim, aponta o padre, Jesus é alguém que dividiu a História e aponta: talvez, o que faça de Jesus alguém famoso seja o seu desconhecimento. “Se Ele fosse extremamente conhecido, poderia deixar de encantar, pois o que fascina em Jesus são justamente as suposições em torno dEle; são essas suposições que geram a fé. A fé nasce da imaginação, que dá força para os grupos religiosos. E é essa polissemia que dá força para que Jesus permaneça vivo até os dias de hoje. E aí não se pode esquecer que a Bíblia é um livro polissêmico e que permite diversas interpretações”.
Segundo Paulo Cezar, que é mestre em Ciências da Religião e professor de História do Cristianismo, sendo a Bíblia polissêmica, a religião cristã sempre teve visões diversas acerca de Jesus. Logo, seria certo dizer que o cristianismo de antes está muito próximo do cristianismo de hoje. “Há um grande equívoco de nossa parte supor que o cristianismo ‘original’ era unânime. Na verdade, nunca existiu um cristianismo ‘original’. Se observarmos as cartas de Paulo e também Atos dos Apóstolos, vemos descrições muito claras de que havia, no início, três ou quatro correntes bem definidas, além das muitas subcorrentes intermediárias”, explica.
Dessa forma, seria possível falar em mais de 30 correntes dentro desse cristianismo chamado inicial. “Portanto, nunca houve unanimidade acerca de Jesus, tanto que o cânon bíblico só foi fechado por volta do ano 370 depois da morte de Cristo. Além disso, é preciso levar em consideração também que os cristianismos eram diferentes de acordo com as culturas. Os cristãos da Galácia tinham um jeito de crer; os de Corinto tinham outro. E, diante dessa dificuldade de ter uma doutrina única, Paulo, que é um dos grandes fundadores doutrinários do cristianismo, acabou abrindo exceções, pois o importante era manter a paz entre os cristãos e não na unidade doutrinária”, relata.
Atualmente, é possível falar em pelo menos três grandes movimentos cristãos: o católico, o protestante e o pentecostal. Porém, existe um Cristo na Igreja Católica que não é unânime entre todos os católicos e o mesmo ocorre no protestantismo, no pentecostalismo e nos outros movimentos. Ou seja, como aponta Paulo Cezar, talvez existam mais de mil correntes com visões diferentes a respeito de Jesus dentro do próprio cristianismo.
Paulo Cezar explica: “No catolicismo, por exemplo, se pegarmos a Teoria da Libertação, que é mais recente, Jesus é apresentado como o grande libertador dos pobres. É inspirado no Êxodo, naquele que ajudou a libertar o povo do Egito; e o fez por meio da luta e da organização do próprio povo. É o Cristo que está ao lado do pobre sofredor. Se pegarmos o grupo pentecostal, mais representado nos grupos de oração e da renovação carismática católica, Jesus também é libertador, mas um libertador individual, que te liberta no âmbito da sua vida. É um Jesus mais responsável por uma pessoa e não por uma sociedade. Encontramos, também dentro da Igreja Católica, a imagem de um Jesus exorcista, que elimina o mal”. E há várias outras imagens.
A talvez única diferença entre os cristãos de antigamente e os atuais, na visão de Paulo Cezar, seja o Jesus como produto. Ele diz que Jesus se tornou um objeto que é fatiado e vendido de acordo com a necessidade do crente ou do cliente. “Essa é a grande novidade da figura de Jesus no mundo de hoje. Algumas igrejas apresentam Jesus como sendo aquele que cura, ou que dá prosperidade, ou que resolve as causas afetivas. Então, estando bem com Jesus, se está bem com o mundo”, ressalta.
Paulo Cezar cita: “No mercado editorial, por exemplo, há livros de autoajuda — que só ajudam à editora e o autor — que trabalham Jesus como o maior psicólogo que já existiu, enquanto outros dizem que Ele foi o maior empreendedor que já existiu. Então, toma-se uma pequena fatia de Jesus e destrincha-se essa fatia para qualquer coisa: líder, marqueteiro, psicólogo, empreendedor etc.”.
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