terça-feira, 18 de outubro de 2011

John P. Meier, Geza Vermes e John Dominic Crossan: Por que Jesus foi detido? Do que foi acusado? Como o condenaram? Quem o matou?


A Acusação: Blasfêmia

A Galiléia da época de Jesus vivia um período de extrema pobreza. “A região, ao norte da Judéia, sempre havia sido pobre. Mas não miserável, como durante a dominação romana”, escreveu John Dominic Crossan, professor da DePaul University, de Chicago, Estados Unidos e autor de O Jesus Histórico, a Vida de um Camponês no Mediterrâneo. Segundo ele, os camponeses tinham de pagar impostos ao Império Romano, que havia tomado Jerusalém em 63 a.C., aos sacerdotes do Templo em Jerusalém, e ao rei Herodes Antipas. Isso deveria consumir pelo menos dois terços de toda a produção, segundo os cálculos de Crossan. Como resultado de tripla tributação, a população empobrecia e perdia a esperança em tempos melhores.

Também havia uma crescente desconfiança em relação aos sacerdotes do templo. “Em várias passagens dos evangelhos, Jesus critica duramente os sacerdotes por desprezarem os pobres e darem importância excessiva ao ouro”, diz o teólogo Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Esse descontentamento geral explodiria na guerra dos judeus contra Roma, que durou do ano 66 ao 70. Uma das primeiras ações dos rebeldes foi invadir o templo e rasgar todas as listas de devedores, os maus pagadores de impostos, que ficavam guardadas no local. Roma acabaria vencendo, e o templo foi destruído. “Mas o fato mostra que a revolta contra a cobrança de impostos e a política da elite sacerdotal era imensa”, diz André Chevitarese.

Era o cenário propício para que líderes como Jesus fossem ouvidos. A visão mais aceita hoje em dia é que Jesus, que vinha da parte mais afastada do Império Romano, era mais um entre tantos pregadores. Essa interpretação é sustentada por estudiosos como o padre católico John P. Meier, autor de Um Judeu Marginal, Repensando o Jesus Histórico, e professor da Universidade Católica da América, em Washington, Estados Unidos. “É um fato que na época de Jesus devia haver pelo menos outras cinco ou seis pessoas que se diziam o Messias”, afirma Antônio Manzatto.

O poder local, formado por uma aliança entre a elite judaica e os romanos, via esse movimento de líderes messiânicos com desconfiança. “O discurso era revolucionário, o que poderia abalar as estruturas do poder”, diz André. O de Jesus era seguramente bombástico. Ele pregava a igualdade, o respeito aos pobres, o amor.

Mas se Jesus era apenas um dentre tantos pregadores messiânicos, tudo mudou quando ele chegou a Jerusalém, pouco antes da Páscoa judaica, por volta do ano 30. Naquela época, Jerusalém triplicava de tamanho. Apesar de não ser a capital romana do território ocupado (os romanos preferiam governar de Haifa, de frente para o mar Mediterrãneo), lá ficava o Sinédrio, instituição judaica que funcionava como tribunal e poder legislativo, além do palácio de Pôncio Pilatos, a casa de Herodes Antipas, o rei e, é claro, o Templo Sagrado.

Segundo os evangelhos, Jesus já era conhecido na Galiléia por suas pregações, seus milagres e pela cura de enfermos quando chegou a Jerusalém. De acordo com as leis e tradições judaicas, isso bastava para ser considerado um blasfemo. A cura, na época, era um monopólio divino. No entanto, sua chegada a Jerusalém foi ainda mais recheada de provocações à ordem. Ao entrar na cidade a uma semana da Páscoa, sentado em um jumento, ele comparou-se ao Messias, invocando deliberadamente a profecia do livro de Zacarias sobre a sua chegada (“Aí vem o teu rei, justo e salvador, montado num burrinho”). A ofensa final, no entanto, foi invadir o templo e expulsar fariseus e saduceus. Se isso tiver ocorrido como dizem os evangelhos, ele acabava de comprar uma briga e tanto.

Os juízes: Judeus ou Romanos?

Segundo a Bíblia, Jesus estava reunido com seus seguidores no Monte das Oliveiras, em Jerusalém, quando foi preso, à noite, depois de ser traído por Judas. Jesus teria sido detido pelos guardas do templo, por ordem do Sinédrio – o conselho formado pela elite judaica que controlava o santuário. Mas há controvérsias. Segundo o próprio evangelho de Mateus, a população da cidade estranhou uma patrulha àquela hora na rua. De fato, isso seria pouco comum. “Para operar além das paredes do templo, os guardas devem ter contado com o apoio de soldados romanos”, diz a historiadora Norma Musgo Mendes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Os evangelistas discordam quando relatam os fatos após a prisão de Jesus. Em comum, eles trazem a versão de que os sacerdotes do templo decidem não condená-lo à pena capital. Se fosse sentenciado à morte pelo Sinédrio, provavelmente seria apedrejado. O prisioneiro é então enviado para a autoridade suprema local, o procurador romano na Palestina, Pôncio Pilatos, a quem cabia julgar questões de interesse do Império.

Aqui, começa outra grande polêmica sobre a narração bíblica. Não haveria nenhuma razão para Jesus não ser condenado sumariamente por Pilatos, mas os evangelhos, única fonte escrita do processo, contam que o governador teria hesitado em sentenciar Jesus e tentado libertá-lo pelo menos duas vezes. Numa, após interrogar Jesus e, tendo-o considerado inocente, resolveu soltá-lo, mas voltou atrás quando foi vaiado pelo povo que acompanhava o julgamento. Em outra, teria pedido que o povo escolhesse entre Jesus e Barrabás, um criminoso conhecido, para que ele soltasse um deles, em um perdão especial devido à Páscoa. O povo teria escolhido Barrabás para ser salvo. No fim, Pilatos teria lavado as mãos, para simbolizar sua inocência em relação ao veredicto. Segundo um dos evangelhos, o de Lucas, o governador ainda teria mandado Jesus para o rei Herodes, mas esse não aceitou julgá-lo e o enviou de volta.

Para alguns historiadores, todo o julgamento é inverossímil, distante das práticas das autoridades romanas na Palestina. “Jesus não era uma pessoa importante na época, era mais um pregador que vinha da distante Galiléia. O mais provável é que ele nem sequer tenha sido julgado, mas, em vez disso, condenado sumariamente à morte”, afirma Gabriele Cornelli. Segundo ele, a passagem do julgamento no Novo Testamento foi escrita com o propósito de orientar os primeiros cristãos a como se portar diante dos sacerdotes e dos romanos.

André Chevitarese concorda. “Os evangelhos devem ser lidos não como uma reportagem, mas como um programa teológico com fundo histórico”, diz. Ele defende que os autores dos evangelhos, que foram escritos entre 40 e 80 anos após a morte de Jesus (e, portanto, depois que os romanos destruíram Jerusalém), utilizaram a narração do julgamento de Jesus para reforçar a cisão entre cristãos e judeus. “Isso era fundamental para afirmar os preceitos da nova religião, e, ao mesmo tempo, não cutucar o Império Romano, com o qual o cristianismo teria de conviver”, afirma André.

Essa análise dos relatos explicaria porque Pilatos é retratado de modo tão brando nos quatro evangelhos. “Até a mulher dele, Cláudia, tenta influenciar o julgamento, a favor de Jesus. Tudo para construir a imagem de um Pilatos bonzinho e não o típico governante romano que estava lá para fazer valer a lei e a ordem”, diz André. No entanto, Filão, o Judeu, historiador que viveu entre 20 a.C e o ano 50 menciona a crueldade de Pilatos e seu autoritarismo em centenas de casos de julgamentos de rebeldes e escravos (aliás, Filão também não se refere a Jesus).

O teólogo Paul Winter, autor de Sobre o Processo de Jesus, aponta outras passagens conflitantes. Para ele, a cena em que o povo escolhe Jesus para morrer no lugar de Barrabás não faz sentido do ponto de vista histórico. Primeiro, havia quatro prisioneiros para serem julgados, incluindo os dois ladrões que morreram na cruz ao lado de Jesus. Nesse caso, de acordo com Winter, não faria sentido o povo escolher um entre dois prisioneiros, e não entre quatro. Em segundo lugar, o hábito de se libertar um preso na Páscoa era raro, e não um fato comum como fazem crer os textos bíblicos.

O veredicto: Cupaldo de Sedição

Outro dedo a apontar para Pilatos e os romanos, quando se procura um culpado pela morte de Jesus, é o debate sobre por qual crime, afinal, ele foi condenado. Vimos que, segundo os evangelhos, os judeus do templo de Jerusalém o acusaram de blasfêmia, mas o historiador Geza Vermes, da Universidade de Oxford, Inglaterra, duvida disso. “Casos de pessoas que se autoproclamavam messias eram comuns naquela época e não espantavam mais ninguém”, afirma. “Jesus foi levado à morte por crime de sedição, de rebeldia política contra os interesses romanos. Só isso justificaria o fato de ter sido julgado por Pilatos e condenado à crucificação.”

Para a historiadora Norma Mendes, é possível que tenha havido uma aliança entre os sacerdotes judeus e os romanos para que Jesus fosse condenado à morte. Aí faria sentido que o Sinédrio o acusasse de blasfêmia e o apresentasse a Pilatos como agitador político, para que fosse morto sem a participação direta da elite judaica.

A pena: Crucificação

“Uma vez que Jesus foi condenado por Pilatos, como aparece na Bíblia, a pena podia ser uma só: crucificação, precedida de açoitamento”, diz o historiador e arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas, no interior de São Paulo. Essa era uma pena bastante comum nos territórios ocupados pelos romanos. No ano que Jesus nasceu, por exemplo, mais de 2 mil condenados foram mortos dessa forma. A crucificação era considerada a mais degradante e brutal pena capital. Primeiro, o condenado era violentamente espancado, chicoteado e flagelado. Depois disso, uma pesada tora de madeira era colocada sobre suas costas e seus braços presos às extremidades. Assim ele carregava sua cruz até o local onde seria erguida. O condenado podia ter o calcanhar preso com pregos à madeira, ou as mãos, se não fossem amarradas com cordas.

O teólogo Antônio Manzatto acredita que o sofrimento de Jesus descrito na Bíblia seja fiel ao que realmente ocorria em casos de crucificação. Para ele, não haveria interesse dos evengelistas de exagerar na narrativa dos sofrimentos de Jesus. “O mais importante naquele momento era ressaltar a mensagem do fundador da nova religião. Jesus deve ter sofrido como todos que eram crucificados. Nem mais, nem menos”, afirma.

Segundo Pedro Paulo Funari, a morte na cruz advinha da sede e da asfixia causada pela posição em que o corpo ficava pendurado. O suplício poderia levar dias. No caso de Jesus que, segundo os evangelhos, morreu em poucas horas, isso poderia ser explicado pela perda excessiva de sangue, já que ele teve as mãos pregadas à cruz. Guardas romanos tomavam conta o tempo todo do lugar, não permitindo que dessem água ao condenado ou o tirassem da cruz. A agonia era assistida por familiares e a população em geral.

A falta de sepulturas para os milhares de crucificados daquela época levou os historiadores e arqueólogos a uma conclusão surpreendente: os corpos crucificados não eram retirados da cruz, mas deixados expostos aos elementos até serem devorados pelos abutres e cães. “É a única explicação plausível. O que teria sido feito dos restos mortais dos condenados crucificados que jamais foram encontrados?”, diz o historiador Gabriele Cornelli. Segundo ele, fazia parte da pena a humilhação pública, mesmo depois da morte.

No caso dos familiares de Jesus, é possível que tenham obtido autorização para levar seu corpo. “Os romanos concediam essas autorizações às vezes”, afirma Norma Mendes. Três dias depois que Maria recolheu os restos mortais de seu filho, tem início o maior relato de fé até então conhecido, a ressureição. Está para nascer não só o Cristo (o ungido, em grego), mas uma religião que abraçaria todo o mundo ocidental a ponto de hoje, dois milênios após os fatos analisados nesta reportagem, o cristianismo ser o credo de mais de 2 bilhões de pessoas e influenciar o modo de pensar e agir de grande parte da humanidade. “Direitos humanos, amor ao próximo, perdão, são todos preceitos morais que regem a vida da maioria das pessoas, sejam elas cristãs ou não”, diz o teólogo Antônio Manzatto. “Faz todo o sentido que sua vida seja objeto de tantos estudos e polêmicas.”


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