quinta-feira, 18 de março de 2010

O Trabalho da Crítica Textual

A Crítica Textual

Introdução

Existe uma matéria bíblica que se encarrega da tarefa de dar ao leitor e exegeta o texto original da Bíblia. Ela se chama crítica textual. É uma matéria bíblica muito importante e ao mesmo tempo pouco conhecida pelo grande público. Essa é a razão pela qual escrevo esse artigo. Trataremos, neste momento, apenas aspectos teóricos e introdutórios e mencionaremos exemplos somente com o objetivo de mostrar a problemática, sem pretender dar soluções.

Hoje, em nossas casas, temos a Bíblia e poucas vezes nos interrogamos sobre o processo pelo qual passou o texto que lemos. A Bíblia foi escrita não como um único livro, mas é composta por diversos livros, que nasceram independentes um do outro e só mais tarde foram unidos e formaram um único volume. Cada livro tem uma história particular. Além disso, naquele tempo não existiam as editoras que faziam milhares de cópias idênticas do mesmo volume. Existia um original e este era copiado manualmente. Da primeira cópia nasciam outras e dessa forma se multiplicavam e acabaram chegando até nós. Ou seja, nós recebemos o texto graças às cópias transcritas do original, que hoje não existe mais.

Provavelmente você já experimentou copiar textos, com a mão ou digitando. Pode você imaginar quantos erros estamos sujeitos? Transcrevendo podemos confundir um “o” com um “a”, “e” com “l” ou até mesmo pular de uma linha diretamente para outra, deixando para trás algum pedaço do texto. Tudo isso acontecia também com quem copiava os textos bíblicos. E esses erros cresciam na medida em que as cópias aumentavam. Se o primeiro que copiou do original cometeu um erro, esse erro foi reproduzido na cópia seguinte onde provavelmente se acrescentaram outros erros.

Outra coisa que pode acontecer é que quem copia um texto eventualmente não concorda com aquilo que está escrito e resolve fazer uma “correção”. Façamos um exemplo, inventado, para deixar mais claro.

Em João 1 lemos: “O Verbo se fez carne”. Imaginemos que o copista que transcreveu o texto original pensasse: “Essa frase é muito vaga. Vamos acrescentar ‘em Belém’”. Neste caso poderíamos ter em nossas bíblias a seguinte frase: “O Verbo se fez carne em Belém”. Esse texto, contudo, não teria sido aquele escrito por João, mas se trataria de um acréscimo.

É aqui que entra em campo a crítica textual. Temos certeza que o texto que temos nas cópias que chegaram até nós é o texto original? A crítica textual procura desvelar todos os eventuais erros e nos entregar o texto original, aquele escrito pelo autor inspirado.

Algumas dificuldades com o texto bíblico.

Continuamos com exemplos mais concretos. O texto em hebraico do Antigo Testamento inteiro mais antigo que existe foi transcrito por volta do ano 1000 depois de Cristo (Código de Leningrado). Invés a Vulgata, tradução em latim da Bíblia feita por Jerônimo a partir dum texto hebraico do seu tempo, é do IV século. Quando você encontra uma discordância – e existem diversas – entre o texto em hebraico, do ano 1000, e a Vulgata, escrita 600 anos antes, o que fazer?

Outra dificuldade.

O livro do Sirácida (Eclesiástico) – presente somente nas bíblias católicas – chegou até nós através de manuscritos em grego. Todavia, em 1896 foi encontrado um manuscrito hebraico deste livro. Se confrontarmos o Sirácida grego com o Sirácida hebraico a diferença é expressiva. Como comportar-se? Qual texto terá que tomar como verdadeiro o biblista que decide fazer uma tradução para o português, que quer publicar uma Bíblia?

Outro exemplo, sem querer provocar polêmica, está na oração do pai nosso. Uso esse texto por que é bem conhecido e usado muitas vezes nas nossas orações.

Nas Bíblia católica é normal encontrar o seguinte texto em Mateus 6:
Eis como deveis rezar: Pai nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso Reino; seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje; perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. (Bíblia Ave Maria)

Entre nós evangélicos,lemos:

Portanto, orem assim: "Pai nosso, que estás no céu, que todos reconheçam que o teu nome é santo. Venha o teu Reino. Que a tua vontade seja feita aqui na terra como é feita no céu! Dá-nos hoje o alimento que precisamos. Perdoa as nossas ofensas como também nós perdoamos as pessoas que nos ofenderam. E não deixes que sejamos tentados, mas livra-nos do mal.

[POIS TEU É O REINO, O PODER E A GLÓRIA, PARA SEMPRE. AMÉM!]" (Bíblia Sagrada – (Nova Tradução na Linguagem de Hoje)

Há algumas frases que são diferentes, por questões de escolha do tradutor, e não nos interessam. Quero chamar a atenção para o último versículo da versão da NTLH, que coloquei em letras maiúsculas. Por que esse texto não aparece na versão católica e de onde ele vem?

Os textos mais antigos da Bíblia – Os textos de referência.

As testemunhas do texto bíblico podem ser divididas por material (pergaminho, papiro), formato (rótulo ou código), tipo de escritura (até o século X se usava a escritura em maiúsculo, em seguida se usou a letra minúscula), antigüidade (papiros até o século IV), conteúdo (alguns manuscritos trazem somente o Antigo Testamento, outros só os Evangelhos, outros apenas as cartas dos apóstolos...), língua (hebraico e hebraico ou traduções em latim, siríaco, copta, georgiano, armeno, etc.) e outros critérios.

Durante os séculos, os estudiosos da crítica textual descobriram, reuniram e catalogaram um número enorme de manuscritos bíblicos dos dois testamentos. Para o Novo Testamento, em 2005, existiam 5.745 manuscritos. Destes 118 são papiros, 317 Maiúsculos, 2877 minúsculos e 2433 lecionários. Esses manuscritos podem ser livros com toto o texto da Bíblia ou apenas fragmentos de papiros com poucas palavras de um versículo. Apenas poucos pedaços de textos são próximos ao período em que os textos originais foram escritos. Um dos textos mais antigos que temos do Novo Testamento é o papiro P45 (Chester Beatty Library, Irlanda), do fim do segundo século depois de Cristo, e contém pedaços de textos dos evangelhos.

Em relação ao Antigo Testamento o texto fundamental para nós hoje é o assim chamado Texto Massorético (TM), que é o fruto do trabalho de um grupo de escribas, os massoretas, que colocaram os sinais vocálicos para o texto hebraico. A língua hebraica não tem vogais e como na idade média não era mais falada, escrupulosos escribas se dedicaram a definir como deveria exatamente ser pronunciadas certas as palavras sagradas. Para tanto acrescentaram ao texto original sinais que ajudam na pronúncia das palavras e ajudam na correta interpretação do texto inspirado. Tais sinais são chamados “massoras”. Esse trabalho foi realizado entre os séculos VI e X depois de Cristo.

Na crítica textual é importante estabelecer qual é a relação entre o Texto Massorético e os textos originais, sobre os quais se basearam os massoretas para realizar seu trabalho. Tal objetivo se alcança através do estudo da história do texto do Antigo Testamento. A este propósito, poderíamos dizer, de forma breve, que existem 4 ramos que mostram formas diferentes deste texto: um texto que serviu de base para o trabalho dos massoretas, o “proto-massoretico”; a tradução grega, “Setenta”, realizada no século II antes de Cristo; os documentos encontrados em Qumran, próximo ao Mar Morto; o Pentateuco Samaritano, ou seja a Bíblia da comunidade samaritana, que conservou somente os 5 primeiros livros da Bíblia como escritura inspirada por Deus. De cada uma destas etapas existem manuscritos que ajudam o crítico textual a resolver os problemas que o texto põe.

Cada manuscrito encontrado ganhou um código particular. No início se começou nomeando os manuscritos mais antigos, os Maiúsculos, com letras, primeiro do alfabeto árabe e depois do alfabeto grego. Assim o Código Alexandrino recebeu como identificativo a letra “A” e o Sinaítico a letra alfa. Coma as letras não bastavam, foi decidido identificá-los com números, com um zero na frente. Os manuscritos mais recentes, os minúsculos, invés, foram identificados com números, sem o zero na frente. Os papiros são catalogados com a letra “P” seguida por um número. Para os textos antigos de versões em outras línguas usa-se outros códigos. Por exemplo, o “d” indica a Vetus Latina, enquanto que a Vulgata é indicada com “Vg”.

Edições críticas dos manuscritos – Stuttgartensia e Nestle-Aland
Quando alguém decide traduzir um trecho bíblico a partir do original precisa necessariamente entrar nesse mundo. Esses manuscritos estão espalhados pelo mundo, nos museus e bibliotecas. Obviamente o tradutor não pode visitar cada museu para ver as variantes e comparar um manuscrito com o outro e escolher qual texto tomar para a sua tradução. Esse trabalho já foi feito e é disponível em diversas compilações. Existem duas clássicas, uma para o Antigo e outra para o Novo Testamento. A Bíblia Hebraica Stuttgartensia é a obra de referência para as variantes do Antigo Testamento. Invés, para o Novo Testamento, é o assim chamado Nestle-Aland Novum Testamentum Graece. As duas edições reúnem todas as variantes de textos existentes. O editor escolheu um texto base (Codex Lenigradensis (L) para a Biblia Hebraica), mas na nota de rodapé e nas margens coloca todas as outras opções que existem, usando os códigos típicos dos manuscritos. Os tradutores das bíblias, invés de visitarem museus e bibliotecas atrás de manuscritos, usam essas edições a partir das quais realizam suas traduções.

O método da Crítica Textual

Como descobrir qual é o texto original, aquele escrito pelo autor inspirado? Para alcançar tal meta, a critíca textual realiza um trabalho crítico que segue critérios determinados, usando sobretudo uma metodologia baseada em comparações. As comparações são feitas entre os diferentes manuscritos que trazem a mesma citação. No processo de comparação existe um critério elementar e simples, mas ele é fundamental: o texto que explica melhor a origem das outras variantes tem boas chances de ser considerado o texto original.

Voltando ao exemplo fictício dado acima, se tivéssemos duas variações:

A - O Verbo se fez carne

B - O Verbo se fez carne em Belém

Como explicar “em Belém” na variante B e a ausência dessa indicação geográfica na variante A. Qual explica melhor a outra? Dificilmente a B consegue explicar a A, pois por que motivo teria o escriba deixado fora “em Belém”? Normalmente se acrescenta algo e não se tira. Todavia a variante A pode muito bem explicar a B. Um copista pode ter ficado insatisfeito com a frase e ter querido precisar o lugar onde o Verbo se encarnou. Por isso ele acrescentou “em Belém”. Portanto, neste caso, a variante A seria original, pois graças a ela se pode explicar por que surgiu a variante B.

Obviamente esse julgamento é auxiliado por outros critérios científicos. O exegeta precisa, em primeiro lugar, analisar o valor de cada testemunha, de cada manuscrito. Por exemplo, um texto presente em um manuscrito do III século tem muito mais valor do que um do X século.
Feito este passo, é necessário utilizar os critérios “internos”, ou seja, aquilo que tem a ver com a transcrição do texto, ou seja, aquilo que é provável que o copista tenha feito quando transcreveu. Nesse sentido existem diversos erros clássicos que foram cometidos: aplografia (uma palavra ou sílaba que ocorre duas vezes é escrita uma única), ditografia (uma palavra ou sílaba que ocorre uma única vez é repetida), parablepsis (quando uma palavra ou frase é repetida na mesma folha e o olho salta de um lugar para o outro, deixando para trás um pedaço do texto) e outros erros inconscientes. Existem ainda os erros deliberados, tais como o acréscimo, como no caso “em Belém”, a explicação de um texto teologicamente difícil onde o copista, com palavras suas, tenta elucidar o conteúdo.

Existem 4 regras clássicas para julgar o valor de uma variante:
1. Lectio difficilior – A variante mais improvável é aquela que pode ser original;
2. Lectio brevior – A frase mais breve tende a ser a original;
3. Lectio difformis – Dentro de um mesmo contexto, se uma frase é diferente e inovador, pode ser a original;
4. Ceterarum originem explicat – O princípio explicado acima: a variante que consegue explicar a gênesis das outras é a original.

Essa é a estrada pela qual passaram muitas das traduções que temos em nossas mãos, sem que seja percebida pelo leitor final. Conhecer esse processo certamente nos ajuda a valorizar o empenho dos tradutores e nos dá parâmetros para a escolha de uma versão para a nossa leitura pessoal. Além, obviamente, de permitir que interpretemos o texto de forma coerente com a intenção do autor.

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