quarta-feira, 6 de novembro de 2019

John P. Meier e o Jesus Ressuscitado


John Meier distingue 'o verdadeiro Jesus' de 'o histórico Jesus'. Meier afirma que o que quer que tenha acontecido com o verdadeiro Jesus após sua morte, sua ressurreição não pode pertencer ao Jesus histórico, porque esse evento não é, em princípio, aberto à observação de qualquer observador. Mas por que pensar que a ressurreição não é observável dessa maneira? Meier encontra justificativa na visão de Gerald O'Collins de que, embora a ressurreição de Jesus seja um evento real, não é um evento no espaço e no tempo e, portanto, não deve ser chamado de histórico, uma vez que uma condição necessária das ocorrências históricas é que elas são conhecidas. ter acontecido em nosso continuum espaço-temporal. Este é um bom argumento para o fato de a ressurreição ser, em princípio, excludente do Jesus histórico? Um exame atento do argumento revela que não e que a adoção de Meier por esse procedimento contradiz a própria metodologia histórica de Meier.

John Meier é o estudioso histórico de Jesus mais importante e influente que está escrevendo. Quando ele, portanto, declara que, por uma questão de princípio, ele como historiador não pode e, portanto, não discutirá o assunto da suposta ressurreição de Jesus, qualquer pessoa interessada na pesquisa da Vida de Jesus desejará conhecer as razões dessa portentosa restrição.

Desde o início de seu volumoso e contínuo estudo do Jesus histórico, Meier deixa claro que a ressurreição de Jesus é estritamente proibida para ele como historiador: seu estudo 'nos levará aos momentos finais trágicos e momentosos de A vida de Jesus, terminando com sua crucificação e enterro. . . . o tratamento da ressurreição é omitido não porque é negado, mas simplesmente porque a definição restritiva do Jesus histórico que vou usar não nos permite avançar em assuntos que só podem ser afirmados pela fé. ' 

À primeira vista, pode-se pensar que temos aqui uma expressão do naturalismo metodológico da parte de Meier. É uma queixa comum entre os estudiosos bíblicos conservadores que o ceticismo sobre a historicidade da ressurreição de Jesus se baseia não tanto em uma escassez de evidências quanto em um pressuposto metodológico ou mesmo metafísico do naturalismo, que impede a hipótese de que "Jesus ressuscitou dos mortos". de estar entre as várias explicações concorrentes dos fatos. Como um evento milagroso, a ressurreição é excluída do conjunto de opções explicativas ao vivo, que se restringe a hipóteses puramente naturalistas e, portanto, não pode sequer ser considerada pelo historiador.

Mas essa não é a fonte da inibição de Meier. Como é evidente em seu tratamento dos milagres de Jesus, Meier está bastante disposto a considerar a historicidade do evento supostamente milagroso em si, mesmo se prescindindo de um julgamento sobre sua natureza milagrosa. Ele define um milagre da seguinte maneira:

Um milagre é (1) um evento incomum, surpreendente ou extraordinário que é, em princípio, perceptível por um observador interessado e de mente justa, (2) um evento que não encontra explicação razoável nas habilidades humanas ou em outras forças conhecidas que operam em nosso mundo do tempo e do espaço e (3) um evento que é o resultado de um ato especial de Deus, fazendo o que nenhum poder humano pode fazer.

É a terceira condição que constitui no pensamento de Meier o obstáculo para o veredicto de um historiador de que algum evento é um milagre. Ele observa: 'Quem afirma que um milagre aconteceu está dizendo com efeito: "Deus agiu aqui para realizar o que nenhuma força humana ou qualquer outro poder conhecido em nosso mundo pode realizar. Esse evento extraordinário foi causado somente por Deus". Enquanto Meier pensa que é possível ao historiador provar que tal afirmação é falsa, ele pensa que 'é inerentemente impossível para historiadores que trabalham com evidências empíricas dentro dos limites de sua própria disciplina, sempre fazer um julgamento positivo: "Deus agiu diretamente aqui para realizar algo além de todo poder humano". 

Curiosamente, Meier pensa que o filósofo ou teólogo poderia legitimamente fazer tal julgamento, mas não o historiador:
Certamente, um historiador profissional que também é cristão crente pode passar de um julgamento ("esse evento extraordinário, ocorrendo em um contexto religioso, não tem explicação discernível") para um segundo julgamento ("esse evento é um milagre operado por Deus"). Mas esse julgamento adicional não é feito em sua capacidade de historiador profissional. O julgamento de que esse evento em particular é um milagre realizado por Deus necessariamente leva a pessoa que faz o julgamento ao reino da filosofia ou da teologia. 

Essa diferenciação parece assumir uma bifurcação notavelmente ingênua entre filosofia e história. Meier trata a história como se fosse um reino intocado, imaculado por julgamentos filosóficos. Que tal bifurcação é insustentável está claro nos julgamentos filosóficos de Meier, exercidos em sua capacidade de historiador, pois tudo o que fomos e iremos discutir neste artigo diz respeito à filosofia da história. A definição de Meier do milagroso, sua proibição dos julgamentos do historiador sobre a natureza milagrosa dos eventos, suas várias distinções sobre o Jesus histórico e o verdadeiro Jesus, seu argumento de que a ressurreição não é um evento histórico são todos resultado de julgamentos filosóficos sobre Parte de Meier. Se esses julgamentos filosóficos são permitidos ao historiador em sua obra, por que não o julgamento filosófico de que algum evento é um milagre? Meier não fornece justificativa para pensar que tal julgamento poderia ser feito pelo filósofo (ou pelo historiador atuando como filósofo), mas não pelo historiador como tal. Ele apenas faz a pergunta: 'Quais evidências e critérios poderiam justificar um historiador como historiador para alcançar tal julgamento?' Como Meier deve saber da vasta literatura sobre o problema dos milagres mencionado em suas notas de rodapé, essa pergunta não ficou de todo respondida por aqueles que pensam que os milagres são identificáveis ​​através de investigação histórica.

Mas deixe isso passar. A restrição de Meier contra a identificação histórica de milagres implica, no máximo, que o historiador deve prescindir de julgamentos como 'Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos', mas ainda permitiria o julgamento 'Jesus ressuscitou dos mortos'. Tais julgamentos diferenciados seriam paralelos àqueles que, por conta de Meier, são proibidos ou permitidos ao historiador que investiga os supostos milagres realizados por Jesus. Meier não descarta as histórias de milagres fora dos limites, assim como as narrativas da ressurreição, mas procura fazer um julgamento histórico sobre a ocorrência dos eventos, deixando de lado a questão de sua natureza milagrosa. Assim como o historiador pode afirmar que Jesus ressuscitou várias pessoas dentre os mortos, ele também pode afirmar com base na evidência de que o próprio Jesus ressuscitou dentre os mortos. Não se pode negar consistentemente à metodologia de Meier ao historiador a possibilidade do julgamento "Jesus ressuscitou dos mortos", alegando que esse evento é tão obviamente milagroso, pois isso envolveria a interpretação do historiador sobre o caráter milagroso da alegada evento, que Meier insiste é impossível para o historiador como tal. Essa situação pode nos parecer uma reductio ad absurdum da afirmação de Meier de que o historiador não pode identificar nenhum evento como milagroso; mas ainda assim, se mantivermos sua severidade com relação aos tipos de julgamentos abertos ao historiador, o julgamento de que 'Jesus ressuscitou dos mortos' deve estar entre eles, pois não se refere a Deus nem identifica a ressurreição de Jesus como um milagre. .

Como um aparte, é uma curiosidade desse debate que o próprio Meier realmente não pense que a ressurreição de Jesus, se ocorreu, foi um milagre. Ele adverte contra 'agrupar os milagres do ministério público de Jesus e sua ressurreição'. Ele afirma: 'Eu não classificaria a ressurreição como um milagre, uma vez que ela não se encaixa na definição que propus acima. Isto é, não é, em princípio, perceptível por todo e qualquer observador (cf. a declaração do apóstolo Pedro em Atos 10.40-41). 'Deixe de lado o apelo tendencioso a Atos 10.40-41, que, dado o retrato fisicalista de Lucas das aparições da ressurreição de Jesus, certamente faz referência à seletividade divina das testemunhas do que à natureza supostamente puramente intra-mental das aparições de Cristo. Se a ressurreição de Jesus não conta na definição de Meier como um milagre, então isso é certamente uma redutio dessa definição. E, de fato, sua definição está manchada de noções epistêmicas irrelevantes para o fato de um evento ser um milagre. Na condição (2), por exemplo, por que se diz que as forças são 'conhecidas'? Se um evento é causado por forças puramente naturais que, devido à ignorância humana, ainda não foram descobertas, ainda é um milagre? Nessa definição, os eventos que antes eram milagres (não apenas considerados milagres) agora perderam esse status. Ser um milagre se torna uma função do conhecimento humano. Ou então, por que a explicação mencionada na condição (2) deve ser 'razoável'? O que parece relevante é se o evento é explicável em termos de habilidades humanas ou forças naturais, e não se essa explicação é razoável, dado o estado do conhecimento humano em um determinado momento. Do mesmo modo, a condição (1), embora crucial para a identificação de qualquer evento como um milagre, é irrelevante para um evento ser um milagre. Certamente seria milagroso se Deus de repente aniquilasse todos os observadores sencientes do universo; no entanto, esse evento seria, em princípio, inobservável. Portanto, considerações epistêmicas são importantes para o discernimento de um milagre, mas não para o fato de um evento ser um milagre. Portanto, mesmo que a ressurreição de Jesus não fosse, como Meier pensa, em princípio perceptível por todo e qualquer observador, não deveria, portanto, ser considerada não milagrosa.

Em suma, a aversão de Meier a investigar historicamente a suposta ressurreição de Jesus não se deve às suas reservas sobre a identificação de algum evento como um milagre pelos historiadores. Pois ele não classifica a ressurreição de Jesus como um milagre, e, em qualquer caso, a aplicação de sua restrição quanto à identificação de milagres impediria o historiador apenas de julgamentos como 'Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos', mas deixaria aberta a possibilidade de julgamentos como 'Jesus ressuscitou dos mortos'. Então, por que Meier se recusa a investigar a ressurreição ou a discutir as narrativas da ressurreição?

Ele diz que a ressurreição está fora dos limites devido à definição restritiva do Jesus histórico que ele usará ao longo de sua investigação. Então, qual é essa definição? Meier diz que o Jesus histórico ou o Jesus da história (os termos são usados ​​como sinônimos) 'é uma abstração e um construto modernos. Por Jesus da história, quero dizer o Jesus a quem podemos "recuperar" e examinar usando as ferramentas científicas da pesquisa histórica moderna. Meier observa que 'Esta definição não é uma invenção arbitrária minha; é o geralmente aceito nas pesquisas atuais da história de Jesus. O Jesus histórico deve ser contrastado com o Jesus real. As linhas de abertura do primeiro capítulo de Meier de seu primeiro volume distinguem claramente os dois: 'O Jesus histórico não é o Jesus real. O verdadeiro Jesus não é o Jesus histórico. Podemos pensar que, por 'o verdadeiro Jesus' Meier, significa a pessoa humana que realmente viveu e operou. Mas isso seria um erro. Para Meier, o verdadeiro Jesus também é uma abstração e construção moderna, mas mais completa. O Meier mais próximo chega de uma definição do Jesus real é "um registro razoavelmente completo de palavras e ações públicas" de Jesus. Mais tarde, ele se refere ao Jesus real como "um retrato biográfico razoavelmente completo". Além dessas duas abstrações, há uma terceira abstração oculta nas asas, que Meier chama de "realidade total" de Jesus, que é "tudo o que ele". . . jamais pensou, sentiu, experimentou, pensou e disse. 

Embora não seja estritamente pertinente à nossa investigação, não posso deixar de refletir que essa distinção é bizarra quase ao ponto de incoerência e quase inteiramente irrelevante para a verdadeira preocupação do historiador. Nem a realidade total de Jesus, nem o Jesus real, nem o Jesus histórico são um ser humano de carne e osso que realmente viveu. Pois todas elas são meras abstrações, de modo que se referir a elas pelo nome próprio 'Jesus', como se alguma delas já foi um ser humano, é totalmente enganador. O indivíduo chamado Jesus de Nazaré era um judeu que viveu na Palestina do primeiro século. Mas as entidades mencionadas por Meier são, de fato, coleções de proposições ou declarações. Nenhum deles é um 'ele', mas um 'ele'; nenhum é sequer um indivíduo, mas uma classe. A realidade total de Jesus parece ser o conjunto de todas as proposições verdadeiras sobre Jesus (isto é, sobre o indivíduo acima referido que realmente viveu na Palestina do primeiro século). O verdadeiro Jesus parece ser o conjunto de todas as proposições verdadeiras sobre a vida pública de Jesus. Como tal, o verdadeiro Jesus parece ser um subconjunto adequado da realidade total de Jesus, compreendendo proposições suficientes para constituir uma descrição bastante completa da vida pública de Jesus de Nazaré. O Jesus histórico parece ser o conjunto de todas as proposições que podem ser tornadas prováveis ​​por pesquisas históricas. Como tal, o Jesus histórico pode ou não ser um subconjunto apropriado do Jesus real, pois as proposições que compõem o Jesus histórico podem não ser todas verdadeiras. A evidência histórica pode apoiar uma proposição que é de fato falsa, de modo que uma proposição pertencente ao Jesus histórico pode não ser um membro do Jesus real.

O que é evidente é que essas coleções de proposições não são nenhuma delas e, como tal, não são objeto do estudo do historiador. Um filósofo pode tomar proposições como objeto de seu estudo, perguntando, por exemplo, se o Princípio da Bivalência se sustenta universalmente em relação a elas, ou se proposições verdadeiras têm criadores de verdade. Mas os historiadores não tomam como objeto de seus estudos coleções de proposições; pelo contrário, estudam as pessoas e os eventos referidos por essas proposições. Alguém se pergunta como a pessoa real Jesus de Nazaré conseguiu escapar do interesse de Meier. A reductio da afirmação de Meier de que ele está perseguindo o Jesus histórico em seu estudo é o fato de que, se 'Jesus' se refere ao Jesus histórico, então praticamente todas as frases sobre Jesus nos enormes volumes de Meier se tornam falsas. Pois o Jesus histórico, ao contrário das afirmações de Meier, não nasceu em Nazaré, não falava grego e não morreu por crucificação. Como um conjunto de proposições, o histórico Jesus não é um ser humano e, portanto, nunca nasceu, nunca falou nenhum idioma e não poderia morrer. Somente uma pessoa pode fazer essas coisas e, por conta de Meier, o histórico Jesus não é uma pessoa. Como tal, o Jesus histórico não é o objeto da investigação do historiador. O que Meier e o resto de nós realmente queremos saber é se a pessoa que Jesus de Nazaré nasceu em Nazaré, falava grego, foi executada por crucificação e assim por diante.

Meier afirma que o fracasso em distinguir entre o Jesus real e o Jesus histórico levou a "confusão infinita" na busca do Jesus histórico. De fato, é a distinção traçada por Meier que é terrivelmente confusa. A confusão se torna evidente nas próprias locuções de Meier, como, por exemplo, quando ele diz: 'o registro "razoavelmente completo" do Jesus "real" está irrevogavelmente perdido para nós hoje', pois, em sua definição, essa afirmação é como gaguejando, significando 'o registro razoavelmente completo do registro razoavelmente completo está perdido para nós hoje'. Nas definições de Meier, somos forçados a afirmar as conclusões aparentemente incoerentes de que o Jesus real não era uma pessoa real e que o Jesus histórico não era uma pessoa histórica. Como bom historiador, Meier está realmente atrás do Jesus que realmente viveu, e atribuir o nome próprio de Jesus a coleções de proposições só pode levar à confusão.

Agora alguém pode me acusar de pedantismo e quebra de lógica. Obviamente, há algum tipo de distinção entre o que Jesus realmente era e o que a investigação histórica pode estabelecer sobre Jesus! Claro que existe, mas não há distinção entre dois Jesus. Em vez disso, 'como Jesus realmente era' e 'que investigação histórica pode estabelecer sobre Jesus' se refere a duas classes de proposições sobre Jesus. Tentamos descobrir como era realmente Jesus por meio do que a investigação histórica pode estabelecer sobre Jesus. Como a investigação histórica é incerta, nossas conclusões serão provisórias. Mas serão conclusões sobre Jesus , ou seja, sobre a pessoa real que é o referente dessas proposições. Tanto na linguagem comum quanto na história da pesquisa, frases como 'o Jesus histórico' e o Jesus real' geralmente se referem ao indivíduo que realmente viveu, e usá-las como nomes de classes de proposições é idiossincrático e enganoso. Podemos traçar as distinções necessárias de uma maneira mais filosoficamente discriminadora e menos confusa. Ao fazer isso, evitaremos a ilusão de que, ao investigar Jesus historicamente, não estamos estudando o verdadeiro Jesus que realmente viveu e operou.

Mas nós discordamos. Como vimos, Meier considera o Jesus histórico o que podemos recuperar e examinar sobre Jesus usando as ferramentas científicas da pesquisa histórica moderna. Tudo certo; então, o que é essa definição que impede que as narrativas da ressurreição sejam examinadas com tais ferramentas e que recuperemos a ressurreição de Jesus como parte do Jesus histórico? Meier responde que 'no contexto histórico-crítico, o "real" foi definido - e deve ser definido - em termos do que existe neste mundo de tempo e espaço, o que pode ser experimentado em princípio por qualquer observador e o que pode ser razoavelmente deduzido e inferido de tal experiência. Aqui, Meier parece declarar três condições necessárias para que algo seja real - isto é, pertencendo a um retrato biográfico razoavelmente completo de alguém - no contexto da investigação histórica. Se considerarmos o histórico como um subconjunto adequado do real, nada poderá fazer parte do Jesus histórico, a menos que seja parte do Jesus real. Se a ressurreição de Jesus falha em atender às condições de fazer parte do Jesus real, segue-se que também não faz parte do Jesus histórico. A dificuldade com essa interpretação do raciocínio de Meier é que o Jesus histórico não parece ser um subconjunto apropriado do Jesus real. Para determinadas mudanças nas evidências históricas, existem de fato muitos Jesus históricos, mas Meier parece querer dizer que existe apenas um Jesus real. Se dizemos que há também uma multiplicidade de Jesus reais, então o Jesus histórico atual não precisa ser um subconjunto de vários possíveis Jesus reais. Portanto, algo (como a ressurreição) poderia pertencer ao Jesus histórico, mesmo que não faça parte do Jesus real. Talvez Meier seja melhor entendido como o pensamento de que as três condições mencionadas acima de algo ser um membro do Jesus real também são condições necessárias de algo ser um membro do Jesus histórico.

Agora, as três condições declaradas por Meier para que algumas coisas sejam historicamente recuperáveis ​​parecem bastante comuns. Então, quais dessas condições impedem a ressurreição de pertencer ao Jesus histórico? Aqui as coisas realmente se tornam interessantes. Que eu saiba, Meier nunca nega que a terceira condição possa ser cumprida, ou seja, que possa ser razoavelmente deduzida e deduzida de fatos como o túmulo vazio de Jesus, suas aparências post mortem e a origem do Caminho Cristão que Jesus ressuscitou dos mortos. Mas Meier duvida que a primeira condição possa ser cumprida pela ressurreição de Jesus. Citando Gerald O'Collins, Meier afirma que 'embora a "ressurreição seja um evento físico real envolvendo a pessoa de Jesus de Nazaré", a ressurreição de Jesus "não é um evento no espaço e no tempo e, portanto, não deve ser chamado de histórico, "uma vez que" devemos exigir que uma ocorrência histórica seja algo significativo que se sabe ter acontecido em nosso continuum espaço-temporal ".

Aqui, Meier afirma que a ressurreição de Jesus foi um evento corporal real, mas não ocorreu no tempo e no espaço. Consequentemente, pode-se dizer que ocorreu de fato sem ser histórico no sentido idiossincrático de Meier, ou seja, recuperável pelas ferramentas científicas da pesquisa histórica. Agora, a afirmação de que a ressurreição de Jesus pode ser um evento físico real, envolvendo a pessoa Jesus de Nazaré, sem ser uma ocorrência no tempo e no espaço, é certamente estranha. Infelizmente, Meier não explica o paradoxo. Mas uma consulta ao artigo de O'Collins, publicada neste Journal , lança luz sobre o dilema. [23]

A chave para entender a afirmação de O'Collins de que a ressurreição não ocorre no espaço e no tempo é sua concepção da ressurreição como um tipo de transição. A ressurreição, na sua opinião, é a transição de Cristo do espaço e do tempo para uma nova realidade. 'Através da ressurreição, Cristo passa da esfera empírica deste mundo para um novo modo de existência no "outro" mundo de Deus. " Através da ressurreição, Cristo se afasta das condições comuns localizáveis ​​e datáveis ​​de nossa experiência para se tornar uma realidade de outro mundo. Enquanto aqueles ressuscitados dentre os mortos por Jesus durante seu ministério terrestre 'retomam a vida em condições corporais normais', de modo que 'Sua vida no espaço-tempo continua,' Jesus 'não volta à vida em nosso continuo no espaço-tempo'. Cristo "do outro lado da ressurreição" não continuou a existir sob as condições corporais que experimentamos e nas quais o historiador opera. 

Agora, antes de prosseguir, deve-se dizer que a afirmação de O'Collins de que a ressurreição de Jesus não envolveu um retorno à vida em nosso continuum espaço-tempo pressupõe uma interpretação incorreta das narrativas do evangelho, para não falar de textos judaicos. Um dos méritos do exaustivo estudo de NT Wright sobre textos antigos sobre a ressurreição dos mortos é sua demonstração de que a noção de ressurreição não era uma fuga para um domínio não-espaço-temporal do outro mundo, mas envolvia inerentemente a restauração da vida no mundo. reino do espaço e do tempo. É claro que a vida não era uma mera reanimação da existência mortal, mas era corporal, física e espaço-temporal. O'Collins transformou a ressurreição de Jesus na tradução de Jesus para o céu, no padrão de Enoque e Elias, uma categoria bem diferente da ressurreição dos mortos.

Mas deixe isso passar. Vamos conceder a O'Collins que, com a ressurreição, o verme do espaço-tempo quadridimensional que era o ser humano Jesus de Nazaré chegou abruptamente ao fim. Ainda assim, podemos objetar, a superfície tridimensional final desse worm no espaço-tempo tinha coordenadas espaço-temporais específicas. Foi nesse lugar e hora que a ressurreição ocorreu. Pannenberg faz uma observação semelhante, observando que se a tumba vazia é histórica, a ressurreição ocorreu no espaço. "Se realmente aconteceu", diz ele ironicamente, "aconteceu na Palestina e não por exemplo na América. Poder-se-ia acrescentar: 'E aconteceu a tempo também, por volta de 30 dC e não, por exemplo, em 1967'.

Em sua resposta a Pannenberg, a concepção de O'Collins da ressurreição como uma transição se torna crucial. Ele responde:
Parece estranho, no entanto, falar de uma transição "fora do espaço", a uma realidade não localizável no espaço, ocorrendo no espaço, na Palestina. Pois mesmo que o "ponto inicial" dessa transição estivesse localizado no espaço, isso não nos justificaria ao concluir que a transição "ocorreu" no espaço. Além disso, parece preferível falar da tumba que contém o corpo do Jesus histórico não como "o ponto inicial" da transição, mas como sendo o último local onde Jesus, no sentido histórico normal, era localizável. 

Podemos deixar de lado imediatamente o arenque vermelho da tumba não sendo o ponto inicial da transição, pois ninguém sugeriu isso. Antes, a ideia é que o verme do espaço-tempo quadridimensional que, em seus estágios finais, é o cadáver de Jesus, tem seu término em um determinado local espacial que está no túmulo. Por que não dizer que a ressurreição ocorreu lá (e depois)? A resposta, diz O'Collins, é que não se deve dizer que uma transição fora do espaço ocorra no espaço.

Há algo de certo e errado nessa resposta. Compare um cliente saindo de um supermercado. Sua saída da loja ocorre na loja? Em qualquer ponto da loja, inclusive até seu ponto limite, o comprador ainda está no edifício e, portanto, ainda não saiu da loja. Mas uma vez que ele está fora da loja, não há um primeiro ponto no qual ele possa sair da loja, pois entre qualquer ponto externo e os limites da loja, há uma densa série de pontos mais próximos em cada um dos quais o comprador já havia saído. a loja. Então, onde é que ele sai da loja?

É evidente que O'Collins se envolveu involuntariamente nos antigos paradoxos soritas do movimento. Eventos de transição, como parar, sair e morrer, não ocorrem em nenhum momento do espaço-tempo. Que os paradoxos sorites são, de fato, o culpado aqui, e não a natureza da ressurreição, é evidente pelo fato de que mesmo se a ressurreição fosse concebida como uma transformação totalmente no espaço e no tempo, não seria possível especificar um único ponto do espaço-tempo em o que aconteceu. Ou isso ainda não teria acontecido ou já aconteceu. No entanto, assim como é perfeitamente aceitável dizer que o comprador saiu do edifício, digamos, pela porta da frente e não pela entrada dos fundos, a transformação de Jesus em seu estado glorificado pode ser localizada de maneira semelhante no sentido de que se pode especificar o espaço-tempo ponto em que sua existência corruptível terminou. Assim, assim como o historiador pode determinar onde alguém saiu de um edifício ou quando alguém morreu, não há, em princípio, objeção ao historiador determinar onde e quando a ressurreição de Jesus ocorreu. Seria como determinar, com base em testemunhos e evidências, onde e quando as crianças da história de CS Lewis entraram pela primeira vez neste mundo em Nárnia.

A ironia final do apelo de Meier ao argumento de O'Collins como justificativa para ignorar as narrativas da ressurreição é que O'Collins, ele próprio um forte defensor da credibilidade histórica da ressurreição de Jesus, no mesmo artigo continua insistindo: argumentar que a ressurreição de Cristo não é adequadamente descrita como um evento histórico não é afirmar que evidências e investigações históricas são irrelevantes. Ele lista três áreas de investigação: (1) a 'fé proclamadora' dos discípulos pode ser investigada pelo historiador; (2) As aparições de Cristo em momentos e lugares definidos para um número específico de pessoas são históricas do lado daqueles que o encontraram; e (3) a tumba vazia pode ser objeto de investigação pelo historiador. Esses são precisamente os três fatos estabelecidos de forma independente, que argumentei em outros lugares, que são mais bem explicados pela ressurreição de Jesus, a saber, a origem do Caminho Cristão, as aparências post mortem de Jesus e a descoberta do túmulo vazio de Jesus. Mesmo tendo em vista a conclusão de O'Collins de que a ressurreição de Jesus não era "histórica", ainda todas as evidências da ressurreição de Jesus permanecem intactas para serem exploradas pelas ferramentas científicas da pesquisa histórica. No entanto, Meier ignora esse aspecto do argumento de O'Collins em silêncio.

Portanto, não se pode dizer que os eventos das narrativas da ressurreição ou mesmo a própria ressurreição falham em atender à primeira condição que Meier estabelece por ser histórica. O que, então, sobre a segunda condição, que um evento deve ser experimentável em princípio por qualquer observador? Já vimos que Meier nega que a ressurreição "esteja em princípio aberta à observação de todo e qualquer observador". Mas ele não se explica. Não vejo razão para pensar que alguém sentado na tumba vigiando o corpo de Jesus não teria observado sua ressurreição. Se Meier pretende simplesmente reiterar o argumento de O'Collins sobre a ressurreição ser uma transição fora deste mundo, a ressurreição seria inobservável apenas no sentido de que o desaparecimento repentino de uma pessoa é inobservável: é possível ver a pessoa no último ponto em que ele existe visivelmente, mas não há primeiro ponto em que ele se foi (sorites novamente). E, novamente, mesmo que fosse verdade que a ressurreição não é, em princípio, observável por ninguém, isso ainda não é desculpa para ignorar os eventos das narrativas da ressurreição listadas por O'Collins.

Isso leva ao meu ponto final. O argumento de O'Collins de que a ressurreição de Jesus não ocorreu no espaço e no tempo é o resultado de um estudo histórico prolongado da evidência do Novo Testamento da ressurreição de Jesus. Mas, na ausência de tal investigação, como Meier sabe se a ressurreição de Jesus, se ocorreu, ocorreu no espaço e no tempo e se foi observável ou não? Como ele pode saber a priori que Wright não está certo de que a ressurreição de Jesus foi um evento espaço-temporal que era, em princípio, observável por qualquer observador imparcial e interessado? Como ele sabe que a ressurreição de Jesus só pode ser afirmada pela fé e não por meio de investigação histórica, além de uma investigação desse tipo?

Só consigo pensar em uma resposta para essa pergunta: teologia. É uma convicção teológica da parte de Meier que a ressurreição de Jesus é afirmada apenas pela fé. O compromisso teológico de Meier se intromete em um comentário como o seguinte sobre a abordagem histórica de Pannenberg à ressurreição: 'Na minha opinião, a abordagem geral de Pannenberg à revelação e fé, por um lado, e à história e razão, por outro, cria mais dificuldades do que resolve. Às vezes chega perto de dizer que o objeto da fé pode ser comprovado por pesquisas históricas. O que é, é claro, irônico sobre isso é que Meier evita compromissos teológicos em seu trabalho como historiador, aspirando a abordar questões de uma posição teologicamente neutra. Mas parece claro que John Meier, como historiador, não tocará no Senhor ressuscitado, porque seus compromissos teológicos anteriores o impedem. Espero que, em vista das críticas acima, ele rejeite esses compromissos e traga seus consideráveis ​​talentos à questão da historicidade das aparências post mortem de Jesus, sua tumba vazia, a origem da crença dos discípulos em sua ressurreição, e, finalmente, sobre o enigma da própria ressurreição de Jesus. Essa seria uma conclusão adequada para sua obra-prima.

Understanding the Divine: Insights from John’s Gospel - N.T. Wright

Paul for Tomorrows World - N.T. Wright

Torá: o Plano de Deus e a Matriz do Universo


A Matriz do Universo

O Povo Judeu sempre soube que a Torá é o plano de D-us para o mundo, a matriz de tudo o que existe. Hoje, modernos computadores e avançadas ferramentas matemáticas corroboram essa verdade.

O que é a Torá? Um livro de histórias contendo lições eternas, um código de leis e éticas e um registro da História Judaica antiga, escrito por Moshé? Não. A Torá é o único trabalho escrito que não contém nenhuma palavra sequer escrita por um ser humano. Não se trata de um livro de história, tampouco é meramente um compêndio de leis e certamente não é um trabalho de literatura. Mais exatamente, os Cinco Livros da Torá, o Chamishá Chumshei Torá, é um trabalho de autoria Divina. Trata-se da matriz do Universo, da planta pré-existente da Criação. O Midrash nos ensina: “Quando o ser humano constrói um palácio, ele não o faz de acordo com sua sabedoria, mas seguindo a sabedoria de um artífice. E este tampouco constrói segundo sua sabedoria: ele recorre a plantas e projetos de modo a saber onde colocar os quartos e corredores.

O Santo, Bendito Seja, assim o fez. Ele buscou na Torá e criou o mundo”. Este ensinamento encontra eco no Talmud:
“D’us criou o mundo a partir de um plano e um propósito. Seu plano era a Torá, que precede o mundo” (Shabat, 88b).

O Zohar, obra fundamental da Cabalá, revela que D’us criou o universo todo através das letras da Torá. Esta obra nos ensina que todas as letras do alfabeto hebraico apresentaram-se diante d’Ele e Ele escolheu para o ponto de partida, a segunda letra, Bet (que é a primeira letra da primeira palavra da Torá –Bereshit – “No princípio”). Além disso, as várias combinações das letras em todas as suas permutações se apresentaram para participar na Criação do universo (Zohar II, 204a). Assim diz o Zohar: “Quando o Santo, Bendito Seja, criou o mundo, Ele o fez através do poder secreto das letras” (Zohar IV, 151b).

A Torá, portanto, não é apenas a essência do judaísmo. É também a essência de toda a Criação. O Talmud insinua este fato através do seguinte relato: Quando Rabi Meir (o Baal HaNes – “o Mestre dos Milagres”) era jovem, ele trabalhava como Sofer, um escriba, transcrevendo rolos da Torá e os trechos escritos em pergaminho e colocados nos Tefilin e nasMezuzot. Quando o Rabi Yishmael tomou conhecimento da profissão de Rabi Meir, ele o alertou: “Meu filho, seja cuidadoso em seu trabalho, pois ele é celestial. Se você subtrair ou agregar uma única letra, poderá destruir o mundo inteiro”.

De fato, a atitude de quem se aproxima da Torá como uma obra composta por D’us é inteiramente diferente daquele que acredita que a mesma foi obra de um ser humano. Maimônides, o Rambam, uma das maiores autoridades sobre a Lei Judaica e codificador dos Treze Princípios da Fé Judaica, estipula a visão de que cada palavra e cada letra da Torá foi escrita por D’us e entregue a Moshé, que as transcreveu. Se o Chumash é conhecido como os Cinco Livros de Moshé, isto é apenas porque ele, entre todos os homens, foi quem mereceu recebê-los de D’us para os ensinar ao Povo Judeu. O Oitavo Princípio de Fé de Maimônides ensina que Moshé apenas transcreveu a Torá como um secretário que anota um ditado. O Talmud alerta que questionar a origem Divina de sequer uma única letra da Torá equivale a negar a Torá em sua totalidade (Sanhedrin,99a).

As letras da Torá original adquiriram forma física ao serem ditadas por D’us e transcritas por Moshé, em uma sequência precisa, letra por letra. A Torá original era uma scripta continua – uma sequência contínua de letras sem quebras de pontuação ou espaços entre letras. A Torá original, que desceu dos Céus para a Terra, foi transcrita como uma chama negra sobre uma chama branca. Mais tarde, revestiu-se de tinta preta sobre pergaminho branco. A Vontade e Sabedoria Divinas, Seu projeto para criar o universo, foram embutidas nas letras da Torá.

A transmissão letra-a-letra da Torá foi preservada até nossos dias. Quando um rolo da Torá é transcrito, deve ser copiado letra por letra, uma de cada vez, de um outro rolo sem imperfeições. O Sofer que transcreve um Sefer Torá tem que ser extremamente preciso em seu trabalho, pois se apenas uma única letra estiver faltando ou fora de lugar ou escrita de forma inadequada, todo o rolo será considerado “pasul”, ou seja, inválido.

Rashi ressalta a importância de cada uma das letras, fazendo eco à advertência feita por Rabi Yishmael. Rashi escreve: “(Está escrito) ‘O Senhor, Teu D’us é Emet (a Verdade)’. Se escreveres Emet sem a primeira letra, destruirás o mundo. (Está escrito) ‘E D’us disse (singular)’. Se escreveres, ‘E D’us disse (plural)’, destruirás o mundo”.

Seria esta declaração um exagero de linguagem – uma expressão de zelo religioso? Não, segundo a Cabalá. O misticismo judaico ensina que como a Torá é a matriz do universo, ela é a origem de tudo o que existe. As letras da Torá são a agência de D’us para a contínua criação e existência do mundo. Pois o Zohar ensina: D’us consultou a Torá e criou o mundo; o homem estuda a Torá e sustém o mundo.

O Código Supremo

Um dos maiores Sábios e estudiosos da Torá de todos os tempos foi o Rabi Eliyahu, o Gaon de Vilna, (século 18). Em toda a história judaica, muito poucos Sábios possuíram sua profundidade e amplitude de conhecimento sobre a Torá. Ele era também um gênio em matemática. É lembrado não apenas por seu conhecimento e compreensão quase sem paralelo da Torá, mas também por ter sido um racionalista: enfatizava o estudo da “Torá revelada” – isto é, o Talmud e a Lei judaica – em oposição ao misticismo judaico, e era hostil ao entusiasmo místico irrestrito e tudo que não fosse firmemente fundamentado na Lei e na tradição judaicas. Contudo, em um de seus trabalhos, o Gaon escreveu: “Tudo o que existiu, existe e existirá até o fim dos tempos está incluído na Torá, os Cinco Livros de Moshé”. E, para assegurar que suas palavras não fossem mal interpretadas, explicou: 
“…e não apenas no sentido geral, mas inclusive os detalhes de cada pessoa individualmente, e o mais mínimo detalhe de tudo o que aconteceu a essa pessoa desde o dia de seu nascimento até o dia de sua morte; da mesma forma, sobre todas as espécies de animais e seres vivos que existem, e de plantas, e de tudo o que cresce ou é inerte”.

O Gaon de Vilna, que estudou profundamente a Torá e conhecia de cor cada uma de suas palavras e letras, percebeu que os Cinco Livros de Moshé não são apenas o núcleo do judaísmo, mas um Código Mestre, que contém informações detalhadas sobre tudo o que existe e ocorre no mundo.

Outros Sábios que viveram antes dele também tinham aludido ao fato de que a Torá contém informação criptografada. Nachmânides, o Ramban,ensinava que a penúltima porção da Torá, Haazinu, contém alusões ao nome e destino de cada pessoa. Ele também afirmou que os Cinco Livros de Moshé consistem inteiramente de permutações dos Nomes de D’us, cujas letras, segundo nos ensina o Talmud, criaram os Céus e a Terra (Berachot, 55a).

Ainda mais reveladora foi uma declaração feita por Rabi Moshé Cordovero (o Ramak), pai do moderno estudo da Cabalá e professor do Arizal, o maior cabalista de todos os tempos. Escreveu o Ramak: “A quantidade de coisas que se pode descobrir na Torá através de certos métodos é ilimitada – infinita. Tais questões são enormemente poderosas e muito profundamente ocultas. Pela forma como são ocultas, não é possível entendê-las plenamente, mas apenas em parte…Os segredos da Torá são revelados… pulando-se letras”.

O que quis dizer o Ramak com “pular letras”? Rabeinu Bachya ben Asher (século 13) descreveu um método de se pular um intervalo igual de letras na Torá para desvendar uma informação codificada. Ele indicou uma observação pouco conhecida, feita pelo Rabeinu Tam, de que, codificado dentro do trecho inicial do primeiro livro da Torá, há um Nome de D’us composto por 42 letras.

A ideia de que há informação codificada na Torá ajuda a explicar por que uma única letra faltante invalida todo um Sefer Torá. As próprias letras são de importância capital; senão, por que uma única letra que faltasse ou estivesse fora de lugar seria tão grave preocupação se o significado da palavra não mudasse? Uma letra que falte no Talmud ou mesmo nos outros 19 livros do Tanach (a Bíblia judaica) não os invalidam. Além do mais, oTalmud, ao comentar sobre a importância das letras da Torá, faz a seguinte pergunta: “Por que os Sábios da antiguidade eram chamados de Sofrim?” E responde: “Porque eles contavam (sofer, do infinitivo lispor, em hebraico) todas as letras da Torá” (Kidushin, 30a). Sabemos que Rabi Akiva, o maior Sábio em toda a nossa história, passava muito tempo contando e estudando as letras da Torá. Por que ele e outros de seus contemporâneos passariam seu precioso tempo contando e estudando as letras da Torá ao invés de apenas se concentrar em seu conteúdo e suas leis? Seria porque sabiam que, embutidas em código, dentro das letras da Torá, estão os segredos do universo, que lá foram colocados pelo Infinito Criador?

Mas talvez nós, judeus, não possamos ser objetivos acerca da Torá, por ser esta a essência do judaísmo. Portanto, cabe-nos perguntar: seriam os Cinco Livros de Moshé considerados o projeto da Criação, ou ao menos um Código Mestre, por homens de visão, não judeus? A resposta é sim.

Blaise Vigenere (1523-1596), autor e criptólogo de renome, era cristão e se aprofundou no estudo do misticismo judaico. Em um de seus tratados, ele cita o Zohar: “O mundo é criado de acordo com a semelhança de seu arquétipo, sendo o arquétipo a configuração das letras que são derivadas dos próprios Nomes de D’us, Ele mesmo – que dá a cada elemento do mundo sua natureza essencial”.

Blaise Pascal (1623-1662), matemático francês, físico, inventor, e filósofo católico, que assentou as bases para o método científico, deixou uma nota antes de falecer: “O Velho Testamento é um código”.

Sir Isaac Newton, físico, uma das mentes mais brilhantes de todos os tempos, era um cristão que passou grande parte de sua vida estudando a Bíblia hebraica. Ele, também, acreditava que a Torá era um Código Mestre e, assim sendo, buscou decifrar os códigos nela criptografados.

Judeus e cristãos creem que a Torá é a Palavra de D’us – que foi transmitida pelo Infinito Criador a Moshé no Monte Sinai. Mas será a Torá verdadeiramente a matriz do universo, o Código de todos os códigos?

Sequências Equidistantes de Letras

O conceito de pular letras para decifrar um código é um método bem conhecido e amplamente usado na ciência da criptografia. Oferecemos aqui um simples exemplo de como, ao pular um intervalo igual de letras na Torá, pode-se encobrir informações que podem ter sido propositalmente codificadas nesse intervalo.

Abram seu livro de orações no Kidush recitado nas noites de Shabat. O primeiro parágrafo é retirado de um trecho da Torá: Gênese, 2:1-3. Observem que este trecho contém uma palavra que é repetida três vezes: HaShevii (O Sétimo). A palavra é central para o Kidush porque o Shabat é o sétimo dia da semana. É importante também ter em mente que o mandamento da guarda desse dia foi imposto unicamente aos Filhos de Israel. Como ensina o Midrash, quando D’us criou o tempo, dividindo-o em sete dias, Ele prometeu ao recém-criado Shabat que “Israel será para sempre seu novo par”.

Agora, sigam até a última letra da segunda palavra do Kidush - HaShishi. A letra é um Yud. Ignorem os espaços entre as letras, pois, como vimos acima, a Torá original transmitida a Moshé não continha espaços entre as palavras. Agora contem sete letras. A sétima letra é um Shin (ou Sin). Contem outras sete letras. A sétima letra é um Reish. Contem novamente. A sétima letra é um Alef. Contem mais uma vez. A sétima letra é um Lamed. O que constatamos? Que as letras Yud, Sin, Reish, Alef e Lamed, que formam a palavra “Israel”, são separadas por espaços em intervalos iguais de letras. E é especialmente significativo que essas letras sejam espaçadas em intervalos de sete letras, pois o número 7 simboliza o Shabat. Teremos nós decifrado um código ou será esta apenas uma curiosa coincidência? Teriam sido essas palavras da Torá, que falam do sétimo dia da Criação, e que são recitadas como parte do Kidush, escritas precisamente como estão, de modo a codificar a palavra Israel em intervalos de sete letras? Esta é o tipo de pergunta que os cripto-analistas tentam responder: se uma sequência equidistante de letras é um código ou uma mera coincidência.

A codificação feita pulando-se letras é uma forma de encriptação que deve ser preservada da maneira mais precisa possível – não apenas sua estrutura de palavra por palavra, mas também a sequência de suas letras. Se uma única letra for adicionada, subtraída ou colocada fora de lugar, um código lá embutido não poderá ser decifrado. Voltemos ao texto do Kidushpara ver o que acontece se removermos uma única letra de uma de suas palavras.

A terceira palavra do Kidush é Vayechulu. Suponhamos que a primeira letra dessa palavra, o Vav, foi acidentalmente apagada. Esse Vav não muda, de fato, o significado do versículo, pois funciona como a conjunção “e”. Voltemos, agora, à primeira letra do “código Israel” que encontramos em um intervalo de sete letras. A letra é um Yud, que é a última letra da palavra HaShishi. Contem sete letras. Como o Vav da palavra Vayechulu foi eliminado, a sétima letra agora é um Mem. Contem outras sete letras. A sétima letra é um Tzadi (sofit, de final de palavra). Contem outras sete letras.

A sétima letra é um Mem. Por fim, contem mais sete letras. A sétima letra é um Lamed. Tendo eliminado o Vav, o que temos? A palavra que se formou agora nos intervalos de sete letras é: Yud, Mem, Tzadi, Mem e Lamed – uma palavra sem significado algum. Eliminando uma única letra de apenas uma palavra pode não ter mudado drasticamente o significado do versículo, mas o “código Israel” desapareceu completamente. A mesma coisa ocorreria se uma única letra fosse trocada de lugar ou agregada ao texto. Numa passagem que contém sequências equidistantes de letras, nenhuma delas pode ser alterada.

Mas como podemos saber se palavras ou padrões encobertos em sequências equidistantes de letras foram propositalmente embutidos em um texto por seu autor ou se foram meras coincidências ocasionais? Talvez se o leitor procurar com afinco, poderá encontrar padrões interessantes de palavras embutidos neste artigo em sequências equidistantes de letras. Mas, se encontrar algum, tenha certeza de que foi totalmente não intencional, uma grande coincidência! Por outro lado, se o autor de um texto revelasse ter propositalmente criptografado um código no mesmo, saberíamos não ser uma simples coincidência.

Mas, o que ocorre quando desconhecemos o autor ou não o podemos alcançar? Ter descoberto a palavra “Israel” codificada em um intervalo de sete letras num trecho curto da Torá, que fala do Sétimo Dia da Criação e é parte do Kidush, é, de fato, notável! Mas, talvez este código seja apenas uma coincidência que pode ser encontrada em outros trechos da Torá e mesmo em um texto hebraico não religioso. Quando um criptólogo ou matemático questiona se uma estrutura oculta é real, o que realmente está questionando é se foi colocada deliberadamente ou se é mera ocorrência do acaso, por mais sistemática que seja. Esta é a questão crucial em toda a criptologia.

A menos que o autor de um texto revele ter criptografado informações em sua obra, é impossível ter-se 100% de certeza de que uma sequência equidistante de letras ou outro tipo de código é genuíno ou não. A criptologia apenas pode determinar a probabilidade de que um código tenha sido propositalmente embutido em um texto. Isto é feito através da Estatística. Se a pessoa pode determinar, através de instrumentos matemáticos, a improbabilidade de um determinado padrão ser encontrado ao acaso, essa pessoa terá a resposta da probabilidade dessa estrutura ser deliberada – isto é, proposital.

Um exemplo: imaginem que ao ler um livro, vocês percebam que em uma das páginas a letra “e” nunca aparece. Isso seria um fenômeno pouco provável, pois é difícil escrever uma frase, que dizer de uma página, sem usar a letra “e”. Vocês acreditariam tratar-se apenas de uma coincidência? Ou que o autor propositalmente evitou usar tal letra naquela página? Bem, e se um livro inteiro não tivesse uma única letra “e”? Ainda acreditariam ser uma coincidência? Na verdade, tal livro existe. Mas sabemos que o autor evitou propositalmente o uso dessa letra, pois deu o título à sua obra de, “Uma História de Mais de 50 Mil Palavras Sem Usar a Letra E”. Esse livro foi publicado em 1939 por Ernest Vincent Wright. Mas, e se o autor tivesse dado um nome diferente a seu trabalho sem nunca mencionar que tinha evitado usar a letra “e”? Ninguém teria 100% de certeza de que ele tinha intencionalmente escrito o livro inteirinho sem um único “e”. Talvez fosse apenas uma extraordinária coincidência, uma aberração estatística, que nenhuma de suas 50.000 palavras tivessem um único “e”. Mas as chances de um fenômeno desses não ser deliberado são extraordinariamente pequenas.

Imaginemos, agora, um cenário ligeiramente diferente. E se o livro de 50.000 palavras contivesse apenas 100 letras “e”? Teríamos a mesma certeza de que o autor tinha evitado intencionalmente o uso dessa letra? São essas as perguntas que devem ser feitas ao se examinar um texto que contém padrões estatísticos estranhos, cujo autor não está disponível para informar se seus códigos são genuínos ou simples coincidência.

É importante enfatizar que em Estatística não há prova absoluta – apenas probabilidade. A probabilidade de um fenômeno seruma coincidência pode ser mínima – uma em um trilhão – mas sempre há a possibilidade de que seja apenas uma coincidência. É possível que uma roleta não viciada gire mil vezes, um milhão, talvez, e que a bolinha branca sempre pare no mesmo número. A probabilidade disto ser uma coincidência – a dizer, que a roleta não seja viciada – é infinitesimal. Mas não é de todo impossível.

Como na ciência da Probabilidade não há certezas, a pergunta que cada pessoa, cientista ou leiga, deve fazer a si mesma é: em que momento eu acredito que um padrão é proposital e não simples coincidência? Será quando a probabilidade de ser acidental é, digamos, uma em mil? Uma em um milhão? Ou ainda menos?

Sequências Equidistantes de Letras no Livro de Gênese

Em agosto de 1994, um artigo polêmico foi publicado na prestigiosa publicação matemática americana, Statistical Science. Intitulava-se “Sequências Equidistantes de Letras no Livro de Gênese”. Escrito por três proeminentes cientistas israelenses, o artigo fazia uma alegação chocante – de que, criptografado em Gênese, o primeiro livro da Torá, há detalhes da vida de indivíduos contemporâneos. Os três cientistas, usando métodos rigorosamente científicos, não apenas tinham encontrados padrões interessantes na Torá, que poderiam ter sido criptografados por um “Codificador Mestre”, mas informações detalhadas sobre a vida de homens que somente viveriam milhares de anos após o Livro Sagrado ter sido recebido pelo Povo Judeu.

Se o artigo estivesse correto – se os códigos fossem genuínos – essa pesquisa indiscutivelmente seria a descoberta científica mais surpreendente de todos os tempos. Pois corroboraria o que o Gaon de Vilna alegara – de que “tudo o que existiu, existe e existirá até o fim dos tempos está incluído na Torá… e não apenas no sentido geral, mas inclusive os detalhes de cada pessoa individualmente”. Se os resultados dos três cientistas israelenses fossem impecáveis, a afirmação de que a Torá é de autoria Divina e que é a matriz e o projeto do universo precisaria ser levada muito a sério. Isto seria equivalente a provar que há um D’us e que Ele é o autor da Torá.

Devido à natureza extremamente controvertida das conclusões do artigo, de suas implicações e ramificações, a Statistical Science testou e replicou seus resultados durante seis anos antes de decidir por sua publicação. Nas palavras de Robert Kass, PhD, Editor da publicação e Chefe do Departamento de Estatística da Universidade Carnegie-Mellon, instituição de renome por seus departamentos de Matemática e Ciências: “Nossos peritos ficaram desconcertados: suas crenças anteriores os levaram a pensar que o Livro de Gênese não pudesse conter referências significativas a indivíduos contemporâneos, porém, quando os autores fizeram análises e verificações adicionais, os efeitos persistiam. O trabalho é, portanto, apresentado aos leitores da Statistical Science como um intrigante quebra-cabeças”.

Um quebra-cabeças, de fato, para aqueles que questionam a autoria Divina da Torá, pois as probabilidades de que os códigos encontrados no Livro de Gênese fossem coincidências foram inferiores a um em 50.000! No artigo, essas probabilidades foram relatadas mais precisamente como sendo inferiores a um em 62.500. Além do mais, o método estatístico conservador para mensurar essas probabilidades foi desenvolvido pelos próprios peritos, que estavam extremamente céticos quanto à descoberta dos cientistas israelenses.

É importante mencionar que a grande maioria das revistas científicas aceitam publicar trabalhos cujas hipóteses têm uma chance em 20 de ser coincidência. Mas como o fenômeno dos códigos encontrado no Livro de Gênese era tão singular, e suas implicações tão abrangentes, o editor da Statistical Science e seus peritos, recusaram-se a publicar o artigo a menos que a probabilidade de seus resultados serem uma coincidência fossem iguais ou inferiores a uma em 1.000. Os resultados ultrapassaram essa exigência em mais de 60 vezes.

Os resultados relatados no artigo da Statistical Science foram apenas um entre os vários padrões de códigos que os cientistas israelenses encontraram nos Cinco Livros de Moshé. As probabilidades de que cada um desses outros códigos seja apenas coincidente são extremamente pequenas – em alguns casos, inferiores a um em um milhão. E a probabilidade de que todos os códigos que eles encontraram na Torá fossem uma grande coincidência é infinitesimal.

A maioria dos cientistas e matemáticos que se aprofundaram no fenômeno dos códigos da Torá eram ateus fervorosos. Sua descoberta não lhes trouxe nem fama nem fortuna; nenhum deles escreveu um best-seller ou um filme de sucesso. A mudança que a descoberta causou em suas vidas foi o fato de se terem tornado seguidores fervorosos e cumpridores da Lei Judaica. Ninguém pode questionar suas credenciais e sua capacidade profissional e, até agora, sua motivação para a pesquisa e disseminação do fenômeno dos códigos da Torá parece ser impecável.

Nós, o Povo Judeu, vimos preservando a integridade da Torá há mais de 3.000 anos. Nosso povo viveu e morreu pela Torá. Incontáveis judeus, desde os menos cultos e não-religiosos aos mais Sábios, voluntariamente entregaram sua vida – enfrentaram prisões, tortura e morte – para preservar a Sagrada Torá. Por que tamanha lealdade ao que parece ser um livro de histórias incomuns e leis complicadas? Porque nosso Povo, tendo recebido a Torá no Monte Sinai 50 dias após ter deixado o Egito, recebeu-a do próprio D’us.

O Povo Judeu como um todo sempre soube que a Torá não é apenas um livro de religião, mas é o plano e propósito de D’us para o mundo – o projeto da Criação, a matriz de tudo o que existe. Hoje, modernos computadores e avançadas ferramentas matemáticas o corroboram.

No artigo desta edição, “Os Códigos da Torá”, descrevemos em maior detalhe a história que explica este fenômeno. Trata-se de um assunto que diz respeito não apenas aos judeus, mas a todos aqueles que, independentemente de sua religião, buscam fortalecer sua fé em D’us.

O Pecado de Moisés


Por que Moisés não entrou na Terra de Israel?

Sábios, comentaristas bíblicos e até mesmo o próprio Moisés, empenharam-se em dar um significado a esse incidente, relatado no quarto livro da Torá.

O Texto narra que os Filhos de Israel, após terem vagado pelo deserto durante quarenta anos, chegam a Kadesh, na fronteira da Terra Prometida. Não há água por perto e o povo está sedento. Como faziam sempre que algo lhes afligia ou preocupava, lamentaram-se a Moisés: ..."Se, ao menos, tivéssemos perecido quando morreram nossos irmãos [na revolta de Korach]"... "Por que trouxeste a Congregação do Eterno a este deserto para que, aqui, nós e nossos animais, perecêssemos? E por que nos fizeste sair do Egito, para nos trazer a este lugar do mal?..." (Números, 20: 3-5).

Moisés e seu irmão Aarão rezaram a D'us para que surgisse água para o povo. O Eterno respondeu, ordenando a Moisés: …"Toma teu cajado e reúne a congregação, tu e teu irmão Aarão, e, na presença deles, dirige-te à rocha, e da rocha jorrará água". O povo judeu reuniu-se diante da pedra e Moisés clamou: "Agora, escutai, ó rebeldes! Será que tiraremos água desta rocha para saciar vossa sede?" E Moisés levantou sua mão e, com o cajado, bateu duas vezes na pedra. Dela jorra água em abundância e o povo e os animais se saciam. A seguir, D'us diz a Moisés: "Como não acreditaste em Mim, para me santificar aos olhos dos Filhos de Israel, não te caberá levá-los à Terra que Eu lhes dei".

O erro de Moshé, aos olhos dos Sábios

O que teria Moisés feito de errado nesse incidente, que ficou conhecido como as "Águas da discórdia"? Rashi, comentarista clássico da Torá, ressalta que D'us instruiu Moisés a falar à pedra - e não a golpeá-la. E explica que, tivesse ele extraído água da rocha apenas por se ter dirigido à mesma, ter-se-ia realizado um milagre de proporções muito maiores, e, este sim, haveria "santificado a Mim, vosso D'us, aos olhos dos Filhos de Israel".

O Rabi Moshé ben Maimon, Maimônides, oferece uma explicação diferente: o pecado de Moisés teria sido perder a paciência com o povo judeu, quando seus membros reclamaram acerca da falta d'água. Pessoa alguma, sobretudo um líder de sua estatura, considerado o homem mais espiritual que já existiu, deveria dar sinais de impaciência, ao falar. Segundo Maimônides, teria sido o desabafo "Escutai, o rebeldes!", bradado por Moisés, o que lhe teria custado a entrada na Terra Santa.

Rabi Moshé ben Nachman, Nachmânides, por sua vez, não aceita nenhuma das duas explicações acima. Esse místico comentarista bíblico levanta a seguinte colocação: se foi tão errado Moisés ter golpeado a rocha, para que lhe teria o Todo Poderoso ordenado levar consigo o cajado, quando da extração de água para o povo judeu? De fato, a Torá ressalta que Moisés "tomou o cajado diante do Eterno, como Este lhe ordenara" (Números, 20: 9). Ademais, em ocasião anterior, D'us instruíra Moisés a extrair água da rocha, golpeando-a (Êxodo, 17:6). Não teria sido razoável Moisés supor que D'us lhe dissesse levar consigo o cajado para servir idêntico propósito?"

Nachmânides também contesta a explicação de Maimônides, justificando que o episódio das "Águas da discórdia" não foi a primeira vez em que Moshé se mostrou enfurecido com os Filhos de Israel. Durante 40 anos o povo judeu reclamou, rebelou-se e pecou diante de seu líder. E muito embora Moshé os amasse e protegesse, incondicionalmente, sempre os repreendia - até mesmo por motivos bem menos importantes. Por que, então, seria punido dessa vez, em que lhes falou com rispidez, e não nas instâncias anteriores?

Segundo Nachmânides, Moisés errou ao dizer ao povo judeu: "Extrairemos, nós, portanto, água desta rocha para saciá-los?". As palavras do profeta, explica-nos o sábio, poderia induzir-nos a acreditar que fora Moshé - e não D'us - quem realizara o milagre de tirar água de uma simples pedra. Qualquer um - especialmente um líder espiritual - que leva as glórias por um feito sobrenatural está usurpando o lugar do Criador. No instante em que um líder do povo judeu desenvolver seu próprio ego, ele terá fracassado em sua missão. Nachmânides encontra respaldo para sua explicação nas palavras de D'us a Moisés: "Por não teres acreditado em Mim"…, que seriam uma indicação de que Moisés falhara não em uma questão de atitude - tal como golpear a rocha ou se dirigir a seu povo com impaciência - mas em uma questão de fé. Mas, obviamente, também a explicação de Nachmânides é passível de ser contestada, pois, como atesta a própria Torá, homem algum jamais se aproximou do grau de humildade pessoal e de entendimento sobre o Divino alcançado por Moisés.

Outros sábios tentaram encontrar diferentes justificativas para o episódio das "Águas da discórdia". Cada um de seus comentários ensina importantes lições, pois, como está no Talmud, os ensinamentos de nossos Sábios, ainda que se contradigam, são portadores das Palavras de D'us. Mas, isto posto, não podemos deixar de nos perguntar: se Moshé cometeu tão grave pecado a ponto de lhe ser vetado o acesso à Terra de Israel, qual a razão para tanta polêmica sobre qual teria sido o seu erro? A Torá Escrita não o explicita, em passagem alguma. Quando um sábio o culpa de um determinado erro, outro prontamente o isenta. Considerando-se cada uma das explicações em separado, Moisés é culpado de vários delitos; mas, quando consideradas em conjunto, estes anulam-se mutuamente, isentando Moshé Rabenu de qualquer culpa que seja.

A versão "oficial" diz que Moisés teria desobedecido a uma ordem Divina. Tendo-lhe sido ordenado falar à rocha, ele a tinha golpeado com seu cajado. Mas a questão se complica ainda mais quando nos conta a Torá Oral que Moisés, de fato, iniciou por falar à rocha. Mas tal ação não fez jorrar a água. Por essa razão, o profeta faz o que lhe ordenara o Todo Poderoso em ocasião anterior: bate na pedra com o bastão. E é então que brota a água - contudo, em escassa quantidade. Havia que jorrar com mais intensidade e volume para poder saciar o povo judeu todo e seus animais. E é quando Moshé volta a golpear a rocha. De acordo com o Midrash, o próprio Moshé ficou perplexo com as conseqüências do incidente. Após a comunicação de que não poderia adentrar a Terra Prometida, ele teria dito ao Criador: "Trata-se de uma armadilha contra mim!". A Torá de certa forma respalda a queixa de que todo o episódio teria sido um pretexto utilizado por D'us para vetar sua entrada na Terra de Israel, pois, como veremos adiante, o Eterno "aguardou" 40 anos para "encontrar" um motivo para decretar que Moisés morreria no deserto.

O primeiro Tishá b'Av

Quarenta anos antes do incidente das "Águas da discórdia" ocorreu um evento que marcou, para sempre, a História Judaica. Doze homens - os líderes de cada uma das Tribos de Israel - são enviados em uma missão de espionagem à Terra Santa. Ao voltarem, dez dos doze "espiões", relatam ao povo judeu que a Terra, de fato, era grandiosa, mas que não teriam condições de a conquistar, já que não tinham chance alguma frente aos gigantes que a habitavam. E, muito embora D'us lhes houvesse prometido que conquistariam a Terra, ao ouvir o relato dos espiões, os judeus caem em prantos, desesperados. Essas lamentações e pranto desenfreados ocorreram na noite de Tishá b'Av - nono dia do mês de Menachem Av, no calendário hebraico.

Desapontado com a falta de fé de Seu Povo, D'us decreta que a geração que saíra do Egito, em sua totalidade - a dizer, os homens com mais de 20 anos - pereceriam no deserto. As únicas exceções seriam os dois espiões que não haviam sustentado o relato dos demais dez. E estes eram Yehoshua, filho de Nun, e Caleb, filho de Yefuneh.

Moisés e Aarão não eram culpados pelo pecado dos "espiões" ou pelo erro do povo que, ao chorar na noite de Tishá b'Av, demonstrou uma falta de fé em D'us. Eles deveriam ter sido incluídos, juntamente com Yehoshua e Caleb, entre os homens com mais de 20 anos que teriam o mérito de pisar na Terra Santa. Contudo, sabemos que isso não ocorreu - o que revela que seu destino também fora selado naquela noite de 9 de Av. Mas, como não haviam cometido pecado algum, D'us "buscara" um motivo para lhes negar aquele mérito. E este se apresentou, 40 anos mais tarde, no episódio das "Águas da discórdia". Toda a situação que o envolvera - a ordem que Moisés recebeu de levar seu bastão e de falar à rocha, não de a golpear - tudo aquilo fora concebido para o confundir e o fazer "tropeçar". "Trata-se de uma armadilha que Tu armaste contra mim", cita o Midrash como sendo as palavras que Moshé teria proferido ao Todo Poderoso.

Mas, por que razão teria D'us assim agido, especialmente em se tratando de Seu servo mais fiel? Se Moshé era inocente do pecado de sua geração, por que teria sido forçado a partilhar de sua sorte? O Midrash usa a seguinte parábola para o explicar: "Um pastor recebeu de seu rei a incumbência de cuidar e alimentar um rebanho de ovelhas, mas o pastor, descuidado, deixou-as dispersarem-se. Ao tentar entrar no palácio real, de volta, o rei não lhe permite a entrada, dizendo: 'Quando for recuperado o rebanho que lhe confiei, também você será readmitido'...".

Moisés não apenas foi o maior profeta da História da humanidade. Foi, também, modelo supremo do líder judeu, pastor fiel e zeloso, como o chama o Zohar. E um pastor fiel e zeloso é aquele que jamais deixa de lado seu rebanho, sem perder de vista nenhum de seus membros, pelos quais assume contínua e total responsabilidade. A geração que errou no episódio dos "espiões" foi aquela que Moisés, pessoalmente, conduzira para fora do Egito. Para proteger seu povo, ele tivera que enfrentar tudo e todos - o império egípcio, os inimigos do povo judeu com quem lutou no deserto e, até mesmo D'us, quando Ele ameaçou aniquilá-los. Durante sua longa jornada de 40 anos pelo deserto, Moisés lhes ensinou a Torá, cuidando de todas as suas necessidades materiais e espirituais. Ele não poderia - nem lhe teria permitido D'us - entrar na Terra de Israel, deixando-os sós, para trás. "És o líder dessa gente", lembra-lhe o Eterno; "seu destino é o teu destino".

O mesmo pode ser aplicado a muitos Sábios que seguiram os passos de Moshé Rabenu. Se alguém se perguntar por que tantos nunca pisaram na Terra de Israel, é porque eles, como Moisés, não podiam e nem desejariam deixar para trás de si o Povo Judeu. Enquanto um único judeu viver na Diáspora, sujeito aos perigos da perseguição e da assimilação, o Moshé de sua geração permanecerá "para trás", a fim de cuidar "de seu rebanho".

Explicação mística

Há outra explicação, esta mística, para o fato de Moshé não ter entrado na Terra de Israel. Tudo o que o profeta conseguiu era eterno. A Torá que nos transmitiu é eterna e jamais será abandonada pelo povo judeu. O Mishkan, Tabernáculo que ele ergueu em pleno deserto, nunca foi destruído - como o foram o Primeiro e o Segundo Templos, ambos extintos na trágica data de Tishá b'Av. A tradição ensina que o Mishkan foi misteriosamente escondido, onde até hoje permanece intacto. E preservadas, também o foram, as duas primeiras estelas de safira, contendo os Dez Mandamentos, que Moisés se viu forçado a quebrar, e que foram abrigadas no Aron Hacodesh, que ainda segundo a tradição está oculto em algum ponto, sob o Monte do Templo, em Jerusalém. (Morasha 49).

Os místicos revelam ser esta a razão para o veto à entrada de Moisés na Terra de Israel. Se ele tivesse sido o construtor do Templo Sagrado, este jamais teria sido destruído. Tivesse ele liderado nosso povo já em sua Terra, de lá jamais teríamos sido exilados. E, sendo assim, não tivesse ele morrido no deserto, o povo judeu jamais se teria dispersado pelos quatro cantos da Terra.

Não temos ideia do tipo de país que nossos antepassados teriam construído, se nunca tivessem sido exilados. Mas o que sabemos é que se jamais tivesse existido o primeiro Tishá b'Av - o relato dos espiões e o pranto generalizado de nosso povo; se não tivesse Moshé sido impedido de entrar na Terra de Israel; se não tivesse o Templo sido arrasado e nosso povo, exilado… o mundo seria, hoje, um lugar muito diferente, bem mais sombrio do que é. Pois coube aos judeus a missão e a dádiva Divina de ajudar e curar.

Próximo está o dia, porém, em que estará terminada a missão de nosso povo fora de Israel. Quando isto ocorrer, o Templo Sagrado será reconstruído e se iniciará uma era de paz, justiça e prosperidade para toda a humanidade. Segundo uma opinião do Talmud, isto deverá ocorrerá no nono dia do mês de Av, Tishá b'Av. Tudo indica que a justiça poética agrada aos olhos de D'us. Isto porque justamente no dia em que houve um incidente com dez espiões, que custou a Moisés a sua entrada em Israel e levou nosso povo ao exílio, há de ser o dia em que tal exílio se extinguirá. Será esse o dia em que Mashiach, a incorporação do espírito e da liderança de Moshé Rabenu, conduzirá o povo judeu, em sua totalidade, para fora do deserto e para dentro da Terra de Israel.

Amor e Casamento no Judaísmo


O casamento é a base da existência humana. É o que nos permite constituir família e encontrar alegria e realização na vida. É algo de profundo valor, pelo qual vale a pena lutar.

O casamento é um dos alicerces do judaísmo. O primeiro mandamento da Torá diz que um homem e uma mulher devem casar-se e constituir família – para “crescer e multiplicar-se”. Todos os seres humanos anseiam por amor – querem amar e ser amados – e sonham em encontrar sua “cara-metade” e viver “felizes para sempre”. Contudo, vivemos em uma época na qual muitos casamentos não dão certo, na qual os índices de divórcio são muito altos e muitas pessoas talvez continuem casadas, sem serem felizes.

Quando um casal judeu se casa, recebe sete bênçãos – as Sheva Berachot – sob a Chupá, o pálio nupcial. Uma destas é que sua união seja “binyan adei ad” – uma construção eterna. Como pode um casamento ser eterno? Afinal de contas, o ser humano é muito volátil. Além disso, como assegurar que o júbilo e a felicidade estejam presentes na vida de um casal quando sabemos que a felicidade é aquilo que buscamos para nós mesmos, não para os outros? Seria, então, uma união feliz algo realista?

O simples fato de as pessoas fazerem esta pergunta denota certa falta de fé no futuro de uma união. As pessoas não deveriam perguntar “se”, mas “como”. A pergunta não deveria ser “se o casamento será feliz”, mas “como fazer o casamento dar certo e ser uma união feliz”. Quando algo é verdadeiramente importante para nós, não consideramos possibilidades de fracasso nem que a batalha está perdida. Quando algo é verdadeiramente significativo para nós, encontramos os meios para garantir que dê certo.

É evidente que todos nós temos dúvidas: casamos com a pessoa certa? Como será nossa vida?
A resposta a perguntas deste tipo deveriam ser: podemos e havemos de vencer todo e qualquer obstáculo. O ceticismo e os sentimentos de insegurança derivam de uma inclinação para o mal que reside dentro de todos nós e que deseja nos derrotar e dissuadir de fazer as escolhas certas na vida. O primeiro passo para se ter um casamento feliz e eterno, portanto, é não lhe dar ouvidos.

O que é o amor

Um dos segredos de um casamento feliz é um entendimento maduro do que é o amor. Precisamos aprender a inculcar em nós mesmos a noção de que amor, felicidade, prazer e dor são sentimentos que não podem ser separados. Aquele que acredita que amor é só prazer e que não suporta dor, é alguém que desconhece o que é sofrer e compartilhar as dores e os problemas do outro.

Poucas são as coisas verdadeiramente valiosas, na vida, que são obtidas sem esforço, sacrifício ou até sofrimento. Em muitos casos, alcança-se a felicidade e alegria através da dor. Por exemplo, a mulher aguenta desconforto e dor ao dar a luz.

E após o nascimento da criança, os pais se empenham para dar o melhor a seu filho. Eles compartilham as alegrias da criança, mas também sentem suas dores.

O mesmo deveria valer no relacionamento entre cônjuges; eles deveriam se amar e compartilhar os momentos de alegria e dor do outro, como o fazem com seus filhos. Pais saudáveis nunca magoam propositalmente seus filhos. O mesmo é válido para casais saudáveis: o júbilo de um deve ser o júbilo do outro e o sofrimento de um deve ser o sofrimento do outro. Conta-se a história de um rabino que levou sua mulher ao médico, pois ela sentia dores nas pernas. Ao ver o médico, ele disse: “Doutor, estamos com dor nas pernas”. Para aquele homem, a mulher e ele constituíam uma só pessoa, assim ambos tinham dores nas pernas.

Mas um casamento feliz obviamente não é definido por dores compartilhadas, mas por alegrias compartilhadas. A Meguilat Esther, que nos conta a história de Purim, relata que após terem triunfado sobre Haman os judeus vivenciaram “luz, felicidade, júbilo e glória”. “Luz” e “felicidade” são dois conceitos entrelaçados que são primordiais para o que buscamos no casamento. De modo simplista, a luz e a felicidade são a forma de se atingir uma união duradoura. Pois, o que é a luz? Ao entrar em um quarto escuro e acender a luz, o quarto nos parece totalmente diferente, no entanto, a luz não mudou os objetos que lá estavam. A diferença entre um local com e sem luz é que quando há luz, podemos apreciar a beleza, mas também ver os perigos. Sabemos por onde andar e onde não devemos ir.

E, por que a felicidade é comparada à luz? Por que a Meguilat Esther justapõe os dois conceitos? Porque, de modo similar à luz, o júbilo nos ajuda a ver as coisas como elas devem ser vistas. A verdadeira alegria é enxergar com os olhos do coração. Quando alguém sente júbilo, consegue encontrar razões infinitas para ser feliz. Mas quem vive sem alegria é alguém que vive no escuro, sem ver nada e ninguém. O maior milagre poderia descortinar-se diante de seus olhos e a pessoa não o perceberia. Um dos segredos de um casamento bem sucedido é a felicidade – a capacidade de enxergar com o coração, de apreciar o outro e as muitas bênçãos que a vida nos proporciona.
E o que é o amor? Filósofos, escritores, poetas – todos tentam defini-lo. O amor é a união desses dois elementos – a luz e a felicidade. Quando amamos alguém, verdadeiramente, amamos ver essa pessoa. Conta-nos a Torá que nosso patriarca, Yaacov, trabalhou sete anos para poder desposar sua amada, Rachel, dizendo que esses anos “pareceram-lhe uns poucos dias, tamanho era seu amor por ela”. O que a Torá nos ensina é que o amor dele por ela era tão grande que lhe bastava apenas vê-la. O simples fato de Rachel existir era razão suficiente para nosso patriarca se sentir feliz. Portanto, qualquer sacrifício que precisasse fazer para viver perto dela, vê-la e, um dia, casar-se com ela, Yaacov realizaria com alegria.

A verdadeira felicidade, portanto, é a capacidade de ver as coisas sob uma luz positiva. É ignorar – ou ao menos minimizar – o que é temporário e sem importância, e concentrar-se no que é real e eterno. Em um casamento, um casal não se deve fixar no que é transitório e que, com o tempo, deixará de existir ou será transformado, mas sim naquilo que perdurará: os valores do companheirismo e amor sincero, a construção de uma família, a constituição das gerações futuras.
Com certeza, há aqueles que se enganam a si próprios, acreditando ser mais fácil viver sozinho. Quem vive só não precisa dar de seu tempo ao outro, incomodar-se com ele e nem aguentar seus problemas. Mas viver só também significa viver uma vida despida daquilo que mais valorizamos: amor, companheirismo, verdadeira felicidade e intimidade. Aquele que se casa, mas pensa apenas em si próprio, não pode ter um casamento feliz. Pois o casamento representa compromisso – um compromisso com a vida – com o passado, presente e futuro. Para que um casamento funcione, marido e mulher precisam querer dar de si ao outro e abrir mão das coisas em benefício do outro. Se um dos cônjuges dá e se sacrifica, e o outro apenas recebe sem dar algo em troca, a união não perdurará, e, ainda que perdure, não será feliz e nem uma verdadeira parceria.

Diferentemente de outras religiões, o judaísmo permite o divórcio. No passado, havia casais que se divorciavam porque, por uma razão ou outra, a vida a dois era impossível: era melhor viver separado do que em situação de inimizade. Mas hoje, os casais se divorciam pelas razões mais triviais – e a raiz de muitos desses divórcios é a relutância em sacrificar o mínimo que seja de seu conforto e suas vontades. O lema dessas pessoas é que, na vida, o mais importante é ser feliz – agora e sempre. E se alguém – mesmo o nosso cônjuge – fizer nossa vida um pouco menos feliz, é melhor, então, desmanchar o casamento. Seguramente, muitas pessoas se divorciam porque é preciso fazê-lo. Mas também é justo dizer-se que, hoje, poucos são os que estão dispostos a fazer o menor sacrifício que seja – isto é, mudar um pouco a sua vida para acomodar o outro. Todos estão em busca de sua própria felicidade. Mas o que é a verdadeira felicidade? Não é um objeto que se pode encontrar na rua ou comprar em loja. É algo que introduzimos em nossa vida e em nosso lar.

É evidente que o que temos em casa não surgiu por si só – foi introduzido lá por alguém. Se a pessoa quer encontrar a felicidade e a paz em seu lar, ela deve introduzi-la. Este sentimento não entra sozinho. Igualmente, se alguém julga que seu lar é marcado por brigas e infelicidade, é porque alguém lá as introduziu. O lar deve ser um refúgio de júbilo, paz e felicidade, e não um lugar de conflitos e preocupações. Todos querem chegar em casa e lá encontrar paz e júbilo; mas isso requer certa pró-atividade. Quando alguém chega a seu lar e vê que lá não há paz cabe a ele ser o agente da mudança.

As pessoas perguntam: nosso lar não é o lugar onde somos livres para fazer o que quisermos? Expressar nossas frustrações, raiva e tristeza se assim o quisermos? Pois não é. O lar deve ser como o Jardim do Éden – um refúgio, um porto seguro, onde somente prevaleçam a harmonia, a paz e o amor. Se quisermos discutir problemas, é melhor fazê-lo fora de casa, distante de nossos filhos. Se um casal almeja ter um lar feliz, não deve levar para lá nada de negativo ou destrutivo. De outro modo, essa família não se sentirá bem vinda em sua própria casa, em seu próprio refúgio. Até o local de trabalho lhes parecerá mais aconchegante. E isto é extremamente prejudicial para qualquer união.

Um dos mandamentos mais importantes da Torá é a colocação da Mezuzá nos umbrais das portas de casa. Além de fonte de proteção, é o símbolo de que o lar de cada um de nós é um pequeno templo e, assim sendo, não se deve deixar nele entrar nada que não seja adequado a um santuário.

Definição judaica de amor

O amor, segundo o judaísmo, é medido pelo que queremos fazer por outra pessoa – quão disponíveis somos, quanto de nós estamos dispostos a dar e a sacrificar. O casamento significa abrir espaço dentro de si próprio para deixar o outro entrar. Mas quando a pessoa ama a si mesmo em demasia – quando ela deseja estar apenas consigo mesma – ela não pode esperar que seu casamento dê certo. É o amor o que abre espaço para o outro ser parte de nossa vida. O verdadeiro amor não é egoísta; pelo contrário, ele se manifesta quando a pessoa se esquece de si – esquece aquilo que quer ou que a incomoda – e pensa no outro.

Mas isso também significa que o amor pode ser perigoso e destrutivo. Como é uma emoção muito dominante, muitos se aproveitam de quem os ama, manipulando-os para seus propósitos egoístas.
Em um casamento feliz, não pode haver uma situação onde um explora o amor e a generosidade do outro. Há que haver reciprocidade, e mais, é preciso amar o outro no mínimo tanto quanto a pessoa ama a si própria. O Rebe de Lubavitch ensinava que o amor significa não poder viver sem o seu amado. É uma alma completando a outra. Na verdade, é a mesma alma em dois corpos diferentes que se unem sob a Chupá.

De acordo com a mística judaica o primeiro ser humano foi inicialmente criado metade homem e metade mulher. Isto significa que um homem não é completo sem uma mulher, nem ela é completa sem o homem. Os seres humanos procuram o amor e o casamento não nos sentimos inteiros quando sozinhos. É nosso cônjuge quem completa a imagem Divina que reside dentro de nós.

Casar-se significa unir-se à nossa metade que reside em um corpo diferente. O casamento é a reconexão de duas partes em um todo, e, assim sendo, é a cura para muitas feridas. Em hebraico, a palavra para homem é “Ish”, que contém a letra Yud; e a palavra mulher, “Ishá”, contém a letra Hei. Ambas formam um dos Nomes de D’us. Isto nos ensina que quando um homem e uma mulher vivem juntos com amor e harmonia e respeito, D’us habita em seu meio.

Vivemos ou existimos?

Nós, enquanto adultos, podemos escolher como levar nossa vida. Há um versículo na quinto livro da Torá, em que D’us nos diz que Ele está colocando dois caminhos diante de nós – a vida e o oposto da vida – e Ele nos ordena escolher a vida. Nossos Sábios perguntam: que tipo de escolha é essa? Quem optaria pelo oposto da vida? E respondem que, de fato, muitas pessoas optam por não viver – escolhem simplesmente existir.

O Talmud ensina que aquele que é mau, mesmo enquanto ainda está na Terra, é chamado de morto, ao passo que o justo, mesmo após deixar este mundo, é chamado de vivo. O Talmud explica que a verdadeira vida não é medida por quanto tempo passamos na Terra, mas pelo impacto positivo que causamos. Um justo deixa um impacto incomensurável e eterno, mesmo depois de não estar mais entre nós. Aqueles que optam pela vida são aqueles que infundem energia positiva nos demais. Aqueles que optam pelo oposto de vida são aqueles que sugam a energia dos outros. Eles não impactam as pessoas de forma positiva, não geram energia. Vivem apenas para si mesmos, geralmente levando uma vida egoísta e arrogante e se tornam um peso para quem os cerca. Eles não compartilham nada com ninguém e, como só se preocupam consigo mesmos , ninguém mais lhes importa, a menos que possam levar alguma vantagem. São muitos os que vivem assim, mas na realidade não estão realmente vivendo, eles apenas existem.

Viver, de verdade, significa diminuir a matéria e gerar energia. Significa abrir espaço ao “outro”. Significa não se importar tanto consigo mesmo, mas sim com o bem-estar dos demais. As histórias de amor geralmente terminam com as palavras: “E eles viveram felizes para sempre”. É importante observar as palavras: diz-se que eles “viveram”, não que “existiram” felizes para sempre.

Para ser feliz a pessoa precisa estar viva e, para estar viva, não pode preocupar-se apenas consigo própria. Quando a Torá descreve o casamento como uma união entre homem e mulher que se tornam uma só carne, está nos dizendo qual o segredo de um casamento feliz: somente quando um homem e uma mulher se tornam verdadeiramente um, eles podem viver felizes para sempre.

A Cabalá ensina que o casamento é a fusão de duas almas. Esta visão poética de duas almas que se reúnem e se fundem sob a Chupá é, sem dúvida, uma inspiração. Mas é importante observar que é mais fácil a fusão de duas almas do que de dois corpos, pois o ser humano é, por natureza, egoísta. Cada pessoa tem suas necessidades, seus desejos, suas preferências e suas antipatias. Viver com alguém – não em um mundo imaginário, mas no mundo real – geralmente requer algum sacrifício. Em geral temos que fazer coisas que não queremos e abandonar coisas que gostamos de fazer. É preciso deixar de lado nosso ego – e isto, para muitos, é o mais difícil de fazer. O Tzemach Tzedek, o terceiro Rebe de Lubavitch, ensinava: “As crianças são felizes e os adultos, infelizes, porque as crianças preferem ser felizes a estar certas, ao passo que os adultos preferem estar certos a estarem felizes”. É por isso que muitos casais carecem de paz e felicidade, pois cada cônjuge quer estar com a razão o tempo todo.

Vale a pena ouvir o conselho do famoso rabino e psiquiatra norte-americano, o Rabi Dr. Abraham J. Twerski: “Se você está certo o tempo todo e seu cônjuge está errado o tempo todo, significa que você está casado com um perdedor. E quem quer estar casado com um perdedor?”.

Intimidade e limites

Como viver realmente feliz? Quando construímos uma vida atraente, todos nós queremos dela participar. Quando um lar transborda não só de felicidade, mas de júbilo e entusiasmo, todos os obstáculos podem ser vencidos. Mas mesmo as relações mais felizes necessitam de limites para que possam perdurar.

Um dos conceitos fundamentais da Cabalá se refere às Sefirot, que são energias Divinas utilizadas para criar o mundo e que continuam a sustentá-lo. A alma humana também é composta dessas emanações Divinas. Há três que são Sefirot intelectuais e sete que são emocionais. A duas primeiras emocionais são Chessed e Guevurá – que são livremente traduzidas como bondade e severidade. Os místicos ensinam que todo relacionamento saudável precisa dessas duas forças opostas. Não pode haver bondade sem disciplina, nem disciplina sem bondade.

Quando esses conceitos são aplicados ao casamento, significa que o amor precisa ser restringido. Apesar da união, há que haver limites entre marido e mulher, senão a relação de respeito não se desenvolverá nem perdurará. A verdadeira intimidade não significa saber apenas como amar, mas também respeitar. Se há muito amor e pouco respeito, o casamento desandará. Isto é válido para qualquer relacionamento: entre pais e filhos, professores e alunos, entre o homem e D’us.

Outro conceito que é central a qualquer relacionamento, especialmente para o casamento, é a diferença entre direitos e deveres. A expressão “minha” mulher e “meu” marido não significa que os cônjuges são propriedade, um do outro, e, portanto, podem fazer ou dizer o que acharem por bem. Nenhum ser humano “possui” o íntimo do outro. Quando marido e mulher creem possuir o outro, os limites são ultrapassados e, por fim, o próprio relacionamento se desfará. “Meu” cônjuge significa que eu tenho obrigações com o outro, não direitos ou posse sobre o outro. Significa que é meu dever cuidar, fazer o melhor para atender suas necessidades e tentar fazê-lo feliz.

O mandamento de pureza familiar – época do mês em que marido e mulher não podem ter intimidade física – reafirma os princípios de limites e de respeito. Este mandamento da Torá pode parecer inconveniente, mas como os demais, foi-nos dado em nosso benefício. Há várias razões biológicas e relacionadas à saúde para um casal não ter intimidade durante o período da Nidá feminina. O ciclo menstrual é uma transformação para a mulher e, durante essa época do mês, ela necessita de espaço para si própria. Quando um casal consegue respeitar esse ritmo biológico – criado e ditado por nosso Criador – marido e mulher têm condições de manter acesas as chamas de seu relacionamento e, ao mesmo tempo, preservar o respeito e os limites entre si, algo que jamais deve ser ultrapassado.

O compromisso com o casamento

A maioria das pessoas percebe que para ter sucesso em tudo na vida a pessoa necessita dedicar tempo e esforço ao que quer. Não se pode ser um erudito sem estudar, não se pode ser um atleta sem treinar, não se pode ter um negócio bem sucedido sem dedicar-se ao mesmo. De igual maneira, não se pode ter um casamento feliz se não se é comprometido com o mesmo. As pessoas encontram tempo e energia para tanta coisa – trabalho, hobbies, atividades prazerosas, mas quanto tempo dedicam a seu casamento? Quanto cada um de nós investe em seu relacionamento? Mas não se trata apenas de quanto tempo se passa com o cônjuge, mas da qualidade desse tempo. Quando marido e mulher passam tempo com o outro, eles têm que estar presentes, não apenas fisicamente, mas também espiritualmente. E, se escolhermos nossos piores momentos para estar ao lado de nosso cônjuge – quando estamos cansados, aborrecidos, preocupados – esse relacionamento não florescerá.

Estar comprometido com o seu casamento significa, também, ser generoso com o cônjuge. A generosidade é o maior mandamento da Torá, aplicável a todos e, mais ainda, à nossa família. Se alguém tem um relacionamento comercial de valor – um grande cliente, por exemplo – fará o impossível para preservá-lo. Não quer perder o cliente. Somos atenciosos com as necessidades de nossos clientes ; atentamos para não perder a paciência ao falar com eles, tentando agradá-los para que não nos deixem por outro comerciante. Nosso cliente mais importante, nosso maior investidor é nosso cônjuge. É ele quem merece nossa maior atenção e respeito. Se as pessoas tratassem seus esposos como tratam de seus grandes clientes, os casamentos raramente fracassariam...

Se os atos de generosidade são instrumentais para construir e manter um casamento feliz, os atos de crueldade são uma forma certa de arruinar qualquer relacionamento. Quando os cônjuges se desrespeitam e se insultam, especialmente em público, eles estão envenenando seu casamento. Humilhar alguém em público, segundo o Talmud, é o mesmo que assassiná-lo. Isto se aplica a todos, inclusive aos membros de uma família. Obviamente os cônjuges podem apontar os erros um do outro, mas isto deve ser feito na privacidade e em tom respeitoso. E se um tiver que criticar o outro, devem fazê-lo de maneira carinhosa, nunca se esquecendo de mencionar as boas qualidades do outro. Se tiver que criticar alguém, teça elogios a esse alguém, no mesmo momento. Uma crítica deve ser acompanhada por, no mínimo, quatro elogios.

Todos nós merecemos um relacionamento feliz e amoroso, mas, mesmo assim, tantos casamentos estão ruindo. A razão para tal não é o fato de ser necessário seguir regras complicadas para que nosso casamento dê certo. É bastante simples o que temos que fazer. Sabemos o que promove e o
que arruína um relacionamento. O problema é nos empenharmos em fazer o casamento funcionar.

O casamento é, acima de tudo, um compromisso entre duas pessoas. E é a paixão desse compromisso o que leva a uma vida feliz para sempre. Os místicos ensinam que o relacionamento entre marido e mulher simboliza o relacionamento do homem com D’us. Se o casamento se baseia em compromisso, amor e respeito, certamente levará ao verdadeiro júbilo e felicidade entre os esposos. E quando o casal é forte, a família é fortalecida. Quando as famílias são fortalecidas, também o é a sociedade e o mundo, em geral. Oramos e esperamos o dia em que o amor e a luz, o júbilo e a satisfação se tornem a realidade de todos os seres humanos.