terça-feira, 22 de março de 2016

Perseguição aos Cristãos primitivos e a Igreja


A primeira perseguição contra a Igreja deu-se no ano 67 d.C, sob o domínio de Nero, o sexto imperador de Roma. Durante os cinco primeiros anos de seu reinado, o monarca agiu de forma tolerante. Depois, porém, deu vazão às mais atrozes barbaridades. Entre outros caprichos diabólicos, ordenou que a cidade de Roma fosse incendiada — ordem cumprida por seus oficiais, guardas e servos. Enquanto a cidade imperial ardia em chamas, subiu à torre de Mecenas a fim de tocar lira e entoar o cântico do incêndio de Tróia. Fez questão de declarar abertamente que “desejava a ruína de todas as coisas antes de sua morte”. Além do grande edifício do Circo, muitos palácios e casas foram destruídos. Milhares de pessoas pereceram nas chamas; outro tanto foi sufocado pela fumaça ou sepultado sob as ruínas.

Quando Nero percebeu que sua conduta era intensamente censurada, e que ele se tornara objeto de profundo ódio, decidiu culpar os cristãos pelo incêndio voraz. Assim, além de livrar-se, aproveitou para regalar-se com novas crueldades.

Foi esta a causa da primeira perseguição. As brutalidades cometidas contra os cristãos eram tais, que até os próprios romanos foram movidos pela compaixão. Nero desenvolveu requintes para as suas crueldades, e inventou castigos que só a mais infernal imaginação poderia conceber. Em particular, fez com que alguns fossem costurados em peles de animais selvagens e lançados aos cães para serem destroçados. Outros, com as vestes encharcadas de cera inflamável, foram atados aos postes de seu jardim particular, onde lhes atearam fogo para que ardessem como tochas de iluminação. A perseguição generalizou-se por todo o império romano. Contudo, o espírito do cristianismo só aumentava. Foi durante essa perseguição que os apóstolos Paulo e Pedro sofreram o martírio.

Aos seus nomes pode-se acrescentar Erasto, tesoureiro de Corinto; Aristarco, o macedônio; Trófimo, de Éfeso, convertido através da mensagem de Paulo e que se tornou seu colaborador; José, comumente chamado Barsabás; Ananias, o bispo de Damasco; e cada um dos setenta.

A Segunda Perseguição sob Domiciano, em 81 d.C.
O imperador Domiciano, por natureza inclinado à crueldade, matou primeiro seu irmão, suscitando logo a segunda perseguição aos cristãos. Em sua fúria, matou alguns senadores romanos; uns, por desconfiança, e outros, para confiscar-lhes os bens. De imediato, ordenou a execução de todos os pertencentes à linhagem de Davi.

Entre os numerosos mártires dessa perseguição, nomeiam-se Simeão, bispo de Jerusalém, e o evangelista João, lançado em óleo fervente, o qual nenhum mal lhe fez e, a seguir, foi exilado na ilha de Patmos. Flávia, filha de um senador romano, foi quem ditou a seguinte lei: “Que nenhum cristão, uma vez trazido ao tribunal, fique isento de castigo, sem que renuncie a sua religião”.

Durante esse reinado, foram escritas várias histórias, inventadas com a finalidade de causar dano aos cristãos. Tal era o fanatismo dos pagãos, que se qualquer fome, epidemia ou terremoto assolasse alguma das províncias romanas, culpavam os cristãos. As perseguições fizeram aumentar o número de informantes, e muitos, movidos pela cobiça, testificavam falsamente contra a vida de inocentes.

Outra dificuldade era que, ao serem levados aos tribunais, os cristãos eram submetidos a um juramento; caso se recusassem a fazê-lo, eram sentenciados à morte, e caso se confessassem cristãos, a sentença era a mesma.

Os nomes abaixo identificam os que mais se destacaram dentre os numerosos mártires dessa perseguição.

Dionísio, o areopagita, era ateniense de nascimento e instruído em toda literatura útil e estética da Grécia. Viajou ao Egito para estudar astronomia e fez observações muito precisas do grande eclipse sobrenatural ocorrido na crucificação de nosso Salvador. A santidade de sua vida e a pureza de suas maneiras recomendaram-no de tal modo diante dos cristãos, que foi designado bispo de Atenas.

Nicodemos, um benevolente cristão, sofreu em Roma durante o furor da perseguição de Domiciano.

Protásio e Qervásio foram martirizados em Milão.

Timóteo, o célebre discípulo de Paulo, foi bispo de Éfeso, onde pastoreou zelosamente a igreja até 97 d.C. Nesse tempo, quando os pagãos estavam para celebrar a festa chamada Catagogião, Timóteo repreendeu-os severamente por sua ridícula idolatria. Exasperado, o povo caiu sobre ele, armado de paus. Terrivelmente espancado, o discípulo de Paulo expirou dois dias depois.

A Terceira Perseguição sob Trajano, em 108 d.C.
Na terceira perseguição, Plínio, o Jovem, homem erudito e famoso, vendo a lamentável matança de cristãos, foi movido pela compaixão e escreveu a Trajano, comunicando-lhe que milhares de pessoas eram mortas diariamente sem que nada houvessem feito às leis romanas; não mereciam, portanto, aquela perseguição. “Tudo o que eles contam acerca de seu crime ou erro (ou como tenha que se chamar) somente consiste nisto: que costumam reunir-se em determinados dias, antes do amanhecer, e repetir juntos uma oração que honra a Cristo como Deus, além de se comprometerem a não cometer maldade alguma, não furtar, roubar ou adulterar; nunca mentir, e jamais defraudar alguém. Feito isto, costumam separar-se e voltar a reunir-se depois para uma inocente refeição em comum”.

Nessa perseguição sofreu o bem-aventurado Inácio, muito considerado por todos os cristãos. Ele havia sido designado ao bispado de Antioquia, em sucessão a Pedro. Contam alguns que, ao ser enviado da Síria a Roma, porque professava a Cristo, foi entregue às feras para ser devorado. Também dizem que quando passou pela Ásia (atual Turquia), debaixo do mais apurado cuidado de seus guardiões, fortaleceu e confirmou as igrejas em todas as cidades por onde passava, tanto com suas exortações como pela pregação da Palavra. Assim, ao chegar a Esmirna, escreveu aos cristãos de Roma a fim de exortá-los a não empregarem meio algum para libertá-lo de seu martírio; que não o privassem daquilo que mais anelava e esperava. “Agora começo a ser um discípulo, fiada me importa das coisas visíveis ou invisíveis, para poder ganhar somente a Cristo. Que venham sobre mim o fogo e a cruz, manadas de bestas selvagens, rompimento de ossos e dilaceramento do corpo, e toda a malícia do diabo. Que assim seja, se eu tão-somente puder ganhar a Cristo Jesus!” E quando recebeu a sentença de ser lançado às feras, tal era o seu desejo de padecer que, cada vez que ouvia rugir os leões, dizia: “Sou o trigo de Cristo; vou ser moído com os dentes de feras para que possa ser achado pão puro”.

Adriano, o sucessor de Trajano, deu andamento a esta terceira perseguição com a mesma severidade que o seu antecessor. Nesse tempo foram martirizados Alexandre, bispo de Roma; seus dois diáconos, Quirino e Hermes, com suas famílias; Zeno, um nobre romano, e cerca de outros dez mil cristãos.Muitos foram crucificados no monte Ararate, coroados de espinhos e traspassados com lanças, numa imitação da paixão de Cristo. Eustáquio, um valente comandante romano, com muitos êxitos militares, recebeu ordem do imperador para unir-se a um sacrifício idólatra em celebração a uma de suas próprias vitórias. Sua fé, porém (pois era cristão), era maior que a sua vaidade, e ele, nobremente, recusou-se a comparecer. Enfurecido pela negativa, o ingrato imperador esqueceu-se dos serviços do destro comandante e ordenou o seu martírio, bem como o de toda a sua família.

No martírio de Faustines e Jovitas, ambos os irmãos e cidadãos de Bréscia, tantos foram os seus padecimentos e tão grande a sua paciência, que Calocerio, um pagão, ao contemplá-los, foi tomado de admiração e exclamou: “Grande é o Deus dos cristãos!” Por isso, foi preso e sofreu igual sorte.Muitas outras crueldades tiveram de sofrer os cristãos, até que Quadratus, bispo de Atenas, fizesse uma erudita apologia a favor deles, diante do imperador, que então se achava presente. Aristides, um filósofo da mesma cidade, também contribuiu, ao escrever uma elegante epístola que levou Adriano a diminuir sua severidade e ceder a favor dos cristãos.Adriano, ao morrer em 138 d.C, foi sucedido por António Pio, um dos mais gentis monarcas que já reinaram, e que deteve as perseguições contra os cristã.

A Quarta Perseguição sob Marco Aurélio, em 162 d.C.

No ano 161 de nosso Senhor, Marco Aurélio assumiu o trono. Embora elogiável no estudo da filosofia e em sua atividade de governo, era um homem de natureza rígida e severa; foi duro e feroz contra os cristãos, e desencadeou a quarta perseguição.

As crueldades executadas nesta perseguição foram de tal calibre que muitos dos espectadores estremeciam de horror ao vê-las, e ficavam atónitos diante da coragem dos que as sofriam. Alguns dos mártires eram obrigados a passar, com os pés já feridos, sobre espinhos, cravos, conchas afiadas, etc. Outros eram açoitados até que seus tendões e veias ficassem expostos, e, depois de haverem sofrido os mais atrozes tormentos já inventados, eram mortos das maneiras mais terríveis.

Germânico, jovem ainda, porém verdadeiro cristão, foi entregue às feras por causa de sua fé. Enfrentou tudo com coragem tão assombrosa, que muitos pagãos se converteram ao cristianismo.

Policarpo, o respeitado bispo de Esmirna, ocultou-se ao ouvir que o procuravam; foi, porém, descoberto por um menino. Depois de servir uma refeição aos guardas que o prenderam, pediu-lhes uma hora de oração, e foi atendido. Orou com tal fervor que os soldados, os quais o haviam detido, arrependeram-se de havê-lo feito. Todavia, levaram-no ao procônsul; ele foi condenado e queimado na praça do mercado.

O procônsul pressionou-o: “Jura e te darei a liberdade. Blasfema contra Cristo”.

Policarpo respondeu-lhe: “Durante oitenta e seis anos o tenho servido, e nunca me fez mal algum. Como blasfemaria eu contra o meu Rei, que me tem salvado?”

Policarpo assegurou-lhes que se manteria imóvel na estaca; então, ao contrário do que se costumava fazer, foi apenas atado, e não cravado. Ao acenderem a fogueira, as chamas rodearam-lhe o corpo, como um arco, sem tocá-lo. Ordenaram então ao carrasco que o traspassasse com uma espada. Com isto, manou tão grande quantidade de sangue que o fogo apagou-se. Não obstante, por instigação dos inimigos do Evangelho, principalmente dos judeus, ordenou-se que seu corpo fosse consumido na fogueira; e a petição de seus amigos, que lhe queriam dar um sepultamento cristão, foi desprezada. Contudo, recolheram-lhe os ossos e o que foi possível de seus restos mortais, e os enterraram decentemente

Metrodoro, um ministro e pregador impetuoso, e Peônio, autor de várias e excelentes apologias à fé cristã, foram também queimados. Carpo e Papilo, dois dignos cristãos, e Agatônica, uma piedosa mulher, sofreram o martírio em Pergamópolis, na Ásia.

Felicitate, uma ilustre dama romana, de classe social elevada e muito virtuosa, era devota crista. Tinha sete filhos, a quem educara com a mais exemplar piedade. Enero, o mais velho, foi flagelado e prensado com pesos até morrer. Félix e Felipe, que o seguiam em idade, foram descerebrados com garrotes. Silvano, o quarto, foi jogado de um precipício e morreu. Os três mais novos, Alexandro, Vital e Marcial, foram decapitados. A mãe foi morta com a mesma espada que os mataram.

Justino, o célebre filósofo, foi martirizado nesta perseguição. Era natural de Neápolis, em Samaria, e nascera em 103 d.C. Foi um grande amante da verdade e erudito universal; investigou as filosofias estóica e peripatética, e provou a pitagórica, mas, ao desgostar-se da conduta de um de seus professores, investigou a platónica, na qual encontrou grande deleite. Por volta do ano 133 d.C, aos trinta anos, converteu-se ao cristianismo e, desde então, pela primeira vez, percebeu a real natureza da verdade.

Escreveu uma elegante epístola aos gentios e empregou seus talentos para convencer os judeus da verdade dos ritos cristãos. Dedicou grande tempo a viajar, até estabelecer sua residência em Roma, no monte Viminal.

Abriu uma escola pública; ensinou a muitos que foram, posteriormente, destacados personagens na história; e escreveu um tratado para refutar todo tipo de heresias. Quando os pagãos começaram a tratar os cristãos com severidade, Justino escreveu sua primeira apologia a favor deles. Este escrito, que exibe grande erudição e genialidade, fez com que o imperador publicasse um edito em favor dos cristãos.

Pouco depois entrou em frequentes discussões com Crescente, pessoa de vida viciosa, conquanto célebre filósofo cínico. Os argumentos de Justino foram poderosos, porém odiosos para Crescente, que decidiu, e conseguiu, sua destruição.

A segunda apologia de Justino, devido a certas coisas que continha, deu ao cínico Crescente a oportunidade de predispor o imperador contra ele; por isso, Justino foi detido juntamente com seis companheiros. Como se recusassem a prestar sacrifícios aos ídolos pagãos, foram condenados ao açoite seguido de decapitação. Esta sentença cumpriu-se com toda a severidade imaginável.

Vários foram decapitados por se recusarem a sacrificar à imagem de Júpiter; em particular, Concordo, diácono da cidade de Espólito.

Quando algumas das agitadas nações do Norte levantaram armas contra Roma, o imperador pôs-se em marcha para enfrentá-las. Não obstante, viu-se preso numa emboscada e temeu perder todo o seu exército. Isolados entre montanhas, rodeados de inimigos, e com muita sede, em vão invocaram as divindades pagãs. Então o imperador ordenou aos homens pertencentes à Legião do Trovão que orassem ao seu Deus pedindo socorro. De imediato veio a milagrosa resposta: caiu uma chuva torrencial, que foi recolhida e represada pelos homens, trazendo alívio repentino e assombroso. Parece que a tormenta intimidou de tal forma os inimigos que uma parte deles desertou até o exército romano; o restante foi derrotado, e as províncias rebeldes foram totalmente recuperadas.

Este episódio fez com que a perseguição se atenuasse por algum tempo, ao menos nas zonas sob a inspeção do imperador. Observamos, porém, que logo se desencadearia na França, particularmente em Lyon, onde as torturas impostas aos cristãos quase ultrapassam a capacidade de descrição.

Eis os principais desses mártires: um jovem chamado Vetio Agato; Blandina, uma dama cristã de débil constituição; Sancto, diácono em Vienna — a este aplicaram pratos de bronze em brasas sobre as partes mais sensíveis do corpo; Bíblias, uma frágil mulher que fora apóstata anteriormente; Attalo, de Pérgamo, e Potino, o conceituado bispo de Lyon, que tinha noventa anos. No dia em que Blandina e outros três campeões da fé foram levados ao anfiteatro, penduraram-na em um lenho a fim de expô-la como alimento às feras. Entretanto, com suas fervorosas orações, ela alentava os companheiros. Nenhuma das feras a tocou, e ela foi levada de volta à masmorra. Ao ser retirada de lá pela terceira e última vez, saiu acompanhada por Pontico, um adolescente de quinze anos. A consistência da fé deles enfureceu de tal maneira a multidão, que não foram respeitados nem o sexo dela nem a juventude dele; ambos foram objeto de todo tipo de castigos e torturas. Fortalecido por Blandina, o menino perseverou até a morte; ela, depois de suportar os sofrimentos mencionados, foi finalmente morta à espada.

Nessas ocasiões, os cristãos caminhavam para o martírio coroados com guirlandas de flores; por elas, recebiam no Céu imarcescíveis coroas de glória.

Dizem que a vida dos cristãos primitivos consistia em “perseguição sobre a terra e orações no subsolo”. Suas vidas estão expressas no Coliseu e nas

catacumbas. Debaixo de Roma estão os subterrâneos que chamamos de catacumbas, e tanto serviam de templos como de tumbas. A primitiva comunidade cristã em Roma poderia ser chamada, com razão, de a Igreja das Catacumbas. Perto desta cidade existem cerca de sessenta catacumbas, onde podem ser percorridas umas seiscentas milhas de galerias, e isto não é a totalidade. Elas têm uma altura de aproximadamente oito pés (2,4 metros) e uma largura entre três e cinco pés (em torno de 1 a 1,5 metro), e contêm, de cada lado, várias fileiras de cavidades compridas, baixas e horizontais, umas sobre as outras, como as beliches de um barco. Nestes cubículos eram postos os cadáveres e em seguida eram fechados com uma simples lápide de mármore ou grandes lajes de argila, unidas com concreto. Nestas lápides ou lajes estão gravados ou pintados epitáfios e símbolos. Tanto pagãos como cristãos sepultavam seus mortos nessas catacumbas. Quando foram abertos os sepulcros cristãos, os esqueletos contaram sua terrível história. Encontraram-se cabeças separadas do corpo, costelas e clavículas quebradas, e ossos calcinados pelo fogo. Apesar da terrível história de perseguição que aí se lê, as inscrições respiram gozo, paz e triunfo. Eis algumas delas:

“Aqui jaz Márcia, posta a repousar em um sonho de paz.”

“Lorenzo a seu mais doce filho, levado pelos anjos.”

“Vitorioso em paz e em Cristo.”

“Ao ser chamado, foi-se em paz.”

Ao ler estas inscrições, recordemos a história de perseguições, tortura e fogo contada pelos esqueletos.

Entretanto, a plena força destes epitáfios é melhor apreciada quando os contrastamos com os epitáfios pagãos, tais como:

“Vive para esta hora presente, porque de nada mais estamos seguros.”

“Levanto minhas mãos contra os deuses que me arrebataram aos vinte anos, mesmo não havendo feito algo de errado.”

“Uma vez não era. Agora não sou. Nada sei dele, e não é minha preocupação.”

“Peregrino, não me maldigas quando passares por aqui; porque estou em trevas e não posso responder.”

Os mais frequentes símbolos cristãos nas paredes das catacumbas são: um pastor com um cordeiro nos ombros, um navio com as velas desfraldadas, harpas, âncoras e, principalmente, o peixe.

A Quinta Perseguição sob Severo, em 192 d.C.

Severo, recuperado de uma grave enfermidade após haver recebido cuidados de um cristão, chegou a ser um grande benfeitor dos cristãos em geral. Ao prevalecer, porém, os preconceitos e a fúria da multidão ignorante, foram postas em ação leis obsoletas em relação aos adeptos do cristianismo. O avanço do movimento alarmava os pagãos e reavivava o velho hábito de se culpar os cristãos pelas desgraças acidentais que sobrevinham. Esta perseguição desencadeou-se em 192 d.C.

Embora rugisse a malícia persecutória, o Evangelho resplandecia fulgurantemente; firme como uma rocha, resistia com êxito aos ataques dos inimigos. Tertuliano, que viveu nessa época, informa-nos que, se os cristãos houvessem se retirado em massa dos territórios romanos, o império teria ficado grandemente despovoado.

Victor, bispo de Roma, sofreu o martírio no primeiro ano do terceiro século, em 201 d.C. Leônidas, pai do célebre Origenes, foi decapitado por Cristiano. Muitos dos ouvintes de Origenes também foram martirizados; em particular dois irmãos, Plutarco e Sereno. Um outro Sereno, e também Heron e Heráclides, foram decapitados. Com Rhais deu-se o seguinte: derramaram-lhe breu fervente sobre a cabeça, e logo o queimaram, como também a sua mãe Marcela. Potainiena, irmã de Rhais, foi executada da mesma forma que ele. Entretanto, Brasílides, oficial do exército, que recebeu ordens para presidir a execução, converteu-se ao Evangelho.

Quando pediram a Brasílides que fizesse um certo juramento, afirmou que não poderia jurar pelos ídolos romanos, porque era cristão. Cheia de estupor, a multidão não podia crer no que ouvia; porém, após confirmar o que dissera, ele foi arrastado à presença do juiz, lançado no cárcere e, pouco depois, decapitado.

Irineu, bispo de Lyon, nascera na Grécia e recebera uma educação esmerada e cristã. Supõe-se, em geral, que o relato das perseguições em Lyon tenha sido escrito por ele mesmo. Sucedeu ao mártir Potino, como bispo de Lyon, e pastoreou com grande discrição sua comunidade cristã; opunha-se fervorosamente às heresias em geral e, por volta de 187 d.C, escreveu um célebre tratado contra as mesmas. Victor, bispo de Roma, desejoso de impor ali a observação da Páscoa, ao preferir este a outros lugares, provocou algumas desordens entre os cristãos. De maneira particular, Irineu escreveu-lhe uma epístola sinódica, em nome das igrejas galicanas.

Este zelo pelo cristianismo acabou por destacá-lo como objeto de ressentimento diante do imperador, o que lhe custou a decapitação em 202 d.C.

As perseguições, ao se estenderem à África, provocaram a morte de muitos cristãos. Mencionaremos os mais destacados entre eles:

Perpétua, de aproximadamente vinte e dois anos, casada. Com ela sofreram Felicitas, também casada e em adiantado estado de gestação, e Revocato, escravo e catecúmeno de Cartago. Outros presos destinados a sofrer nessa ocasião foram Saturnino, Secúndulo e Satur. no dia marcado para a execução deles, foram levados ao anfiteatro. A Satur, Secúndulo e Revocato mandaram que corressem entre os domadores das feras. Estes, dispostos em duas fileiras, flagelavam-nos severamente enquanto corriam. Felicitas e Perpétua foram despidas e expostas a um touro bravo, que se lançou primeiro contra Perpétua, deixando-a inconsciente; logo arremessou-se contra Felicitas, e a içou terrivelmente pelos chifres. Como ambas continuassem vivas, o carrasco atravessou-as com uma espada. Revocato e Satur foram devorados pelas feras; Saturnino foi decapitado, e Secúndulo morreu no cárcere. Estas execuções aconteceram em março de 205 d.C.

Esperato e outros doze foram decapitados, e o mesmo aconteceu com Androcles, na França. Asclepíades, bispo de Antioquia, sofreu muitas torturas, mas não foi morto.

Cecília, jovem dama de uma boa família em Roma, casada com um cavaleiro chamado Valeriano, ganhou o marido e o irmão para Jesus, que foram por isso decapitados. O oficial que os levou à execução foi convertido por eles e sofreu a mesma sorte. A dama foi lançada despida em um banho fervente e, após permanecer ali um tempo considerável, foi decapitada. Isto aconteceu em 222 d.C.

Calixto, bispo de Roma, sofreu o martírio em 224 d.C, mas não há registro sobre a forma de sua morte. Urbano, bispo de Roma, sofreu a mesma sorte em 232 d.C.

A Sexta Perseguição sob Maino, em 235 d.C.
Em 235 d.C, começou, sob o comando de Maximino, uma nova perseguição. O governador de Capadócia, Seremiano, fez todo o possível para exterminar os cristãos daquela província.

As principais pessoas a morrer sob este reinado foram: Pontiano, bispo de Roma (seu sucessor, um grego chamado Anteros, ofendeu o governo ao

reconhecer os atos dos mártires); Pamaquio e Quirito, senadores romanos, juntamente com suas famílias; Simplício, também senador; Calepódio, um ministro cristão que foi lançado ao rio Tiber; Martina, uma nobre e formosa donzela; e Hipólito, um prelado cristão que foi atado a um cavalo selvagem e arrastado até morrer.

Durante esta perseguição, suscitada por Maximino, muitos cristãos foram executados sem julgamento e enterrados indiscriminadamente em montões; às vezes, cinquenta ou sessenta eram jogados juntos em uma vala comum, sem a menor decência.

Ao morrer o tirano Maximino, em 238 d.C, substituiu-o Qordiano. Durante seu reinado, assim como no de Felipe, seu sucessor, a Igreja esteve livre das perseguições num período de mais de dez anos. Porém, em 249 d.C, por instigação de um sacerdote pagão, e sem conhecimento do imperador, desatou-se em Alexandria violenta perseguição.

A Sétima Perseguição sob Décio, em 249 d.C.
Esta foi ocasionada, em parte, pelo aborrecimento que Décio tinha para com seu antecessor, Felipe, considerado cristão, e também por seu ciúme diante do assombroso avanço do cristianismo. O que ocorria era que os templos pagãos começavam a ser abandonados e as igrejas cristãs tornavam-se repletas.

Estas razões estimularam Décio a tentar a extirpação do nome “cristão”. E, desafortunadamente para o Evangelho, vários erros ocorreram, nesse tempo, dentro da Igreja. Os cristãos achavam-se divididos entre si; os interesses próprios separavam aqueles a quem o amor deveria manter unidos; a virulência do orgulho deu ocasião a uma série de facções.

Os pagãos, em geral, ambicionavam pôr em ação os decretos imperiais e consideravam o assassinato dos cristãos um mérito para si próprios. Nessa ocasião, os mártires foram inumeráveis; relacionaremos, porém, apenas os principais.

Fabiano, bispo de Roma, foi a primeira pessoa, em posição eminente, a sentir a severidade dessa perseguição. O falecido imperador havia posto seu tesouro aos cuidados desse homem, devido à sua integridade. Mas Décio, por não encontrar tanto quanto sua avareza o fizera imaginar, decidiu vingar-se do bom prelado. Fabiano foi, então, preso e decapitado em 20 de janeiro de 250 d.C.

Julião, nativo da Cilicia, como nos informa Crisóstomo, foi preso por ser cristão. Posto em uma bolsa de couro, junto com várias cobras e escorpiões, foi lançado ao mar.

Pedro, um jovem muito simpático, tanto pelo seu físico como por suas qualidades intelectuais, foi decapitado por se recusar a sacrificar a Vénus. No julgamento, declarou: “Estou atónito ao ver que sacrificais a uma mulher tão infame, cujas abominações são registradas por vossos próprios historiadores e cuja vida consistiu em ações que vossas próprias leis castigariam. Não oferecerei sacrifício a ela, mas ao verdadeiro Deus apresentarei a oferta aceitável de louvores e orações”. Ao ouvir isto, Óptimo, procônsul da Ásia, ordenou que o preso fosse estirado na roda de tormento, onde se lhe romperam todos os ossos. Depois, foi decapitado.

Nicômaco, obrigado a comparecer diante do procônsul como cristão, recebeu ordens de sacrificar aos ídolos pagãos. No entanto, ele replicou: “Não posso dar a demónios a reverência devida somente ao Todo-Poderoso”. Esta maneira de falar enfureceu de tal modo o procônsul, que Nicômaco foi posto no potro. Depois de suportar os tormentos por um tempo, retratou-se. Porém, logo depois desta prova de debilidade, entrou em agonia; tombou ao chão e morreu imediatamente.

Denisa, uma jovem de apenas dezesseis anos, ao contemplar este terrível juízo, exclamou: “Oh, infeliz, para que comprar um momento de alívio à custa de uma eternidade de misérias?!” Ao ouvi-la proferir tais palavras, Óptimo chamou-a e, ao saber que ela também era cristã, mandou decapitá-la.

André e Paulo, dois companheiros de Nicômaco, sofreram o martírio por apedrejamento em 251 d.C. e morreram invocando o nome de seu Redentor.

Alexandro e Epímaco, de Alexandria, foram presos como suspeitos de serem cristãos. Diante da confirmação, foram golpeados com estacas, rasgados com ganchos de ferro e, finalmente, queimados. Também nos informa um fragmento preservado por Eusébio que quatro mulheres mártires sofreram naquele mesmo dia e no mesmo lugar, mas não da mesma maneira; foram decapitadas.

Luciano e Marciano, dois malvados pagãos versados nas artes mágicas, converteram-se ao cristianismo e, para expiar os erros passados, passaram a viver como eremitas e alimentar-se apenas de pão e água. Depois de um tempo nesta condição, tornaram-se zelosos pregadores e ganharam muitas almas para Jesus. Vindo a perseguição, foram presos e levados diante de Sabino, o governador da Bitínia. Quando lhes interrogaram em nome de que autoridade pregavam, Luciano respondeu que “as leis da caridade e da humanidade obrigavam todo homem a buscar a conversão de seus semelhantes e a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para libertá-los dos laços do diabo”.

Havendo Luciano respondido desta maneira. Marciano acrescentou que a conversão deles “havia sido pela mesma graça concedida ao apóstolo Paulo, que, de zeloso perseguidor da Igreja, convertera-se em pregador do Evangelho”.

O procônsul, ao perceber que não podia prevalecer sobre eles no sentido de obrigá-los a renunciar a fé, condenou-os a ser queimados vivos. A sentença foi logo executada.

Trifon e Respício, dois homens ilustres, foram apreendidos como cristãos e encarcerados em Nisa. Tiveram os pés traspassados com cravos; foram arrastados pelas ruas, açoitados, descarnados com ganchos de ferro, queimados com tochas, e finalmente decapitados no dia primeiro de fevereiro de 251 d.C.

Ágata, uma bonita dama siciliana, não era tão notada por seus dotes naturais, mas por sua piedade. Tal era a sua formosura que Quintiano, governador da Sicília, apaixonou-se por ela e fez muitas tentativas de vencer sua castidade; todas, porém, sem êxito. A fim de satisfazer mais facilmente suas paixões, colocou a virtuosa dama nas mãos de Afrodica, mulher infame e depravada. Esta miserável usou todos os artifícios para arrastá-la à prostituição; contudo, viu falidos todos os seus esforços, pois a castidade de Ágata era inexpugnável, e ela sabia muito bem que só a virtude poderia dar-lhe a verdadeira felicidade. Afrodica fez saber a Quintiano a inutilidade de seus esforços, e este, enfurecido ao ver seus desígnios frustrados, tornou sua concupiscência em ressentimento. Quando Ágata se confessou cristã, ele decidiu satisfazer-se com a vingança, desde que não podia gratificar-se com a paixão. Por ordens suas. Ágata foi flagelada, queimada com ferros em brasa e descarnada com ganchos de ferro. Ao suportar estas torturas com admirável força, foi posta nua sobre brasas misturadas com vidro, e logo devolvida ao cárcere, onde expirou no dia 5 de fevereiro de 251 d.C.

Cirilo, bispo de Qortyna, foi preso por ordens de Lúcio, governador daquela região, que o exortou a obedecer à ordem imperial, a fazer os sacrifícios e a salvar da destruição sua venerável pessoa de oitenta e quatro anos. O bom prelado respondeu que, como havia ensinado a outros durante muito tempo a salvar suas almas, agora só podia pensar na própria salvação. O digno prelado escutou, sem a menor emoção, a sua sentença, dada com furor; caminhou animadamente até o lugar da execução e sofreu o martírio com total integridade.

Em nenhum lugar a perseguição manifestou-se com tanta ira como na ilha de Creta, pois o governador, sumamente ativo na execução dos éditos imperiais, fez correr rios de sangue dos piedosos cristãos.

Babylas, um cristão com educação académica, chegou a ser bispo de Antioquia em 237 d.C, depois de Zebino. Atuou com zelo incomparável e pastoreou a igreja com uma prudência admirável durante os tempos mais tormentosos. A primeira desgraça a ocorrer em Antioquia durante a missão de Babylas foi o cerco orquestrado por Sapor, rei da Pérsia, que, ao invadir toda a Síria, tomou e saqueou essa cidade, entre outras, e tratou os moradores cristãos com maior dureza que os outros; porém, logo foi derrotado por Qordiano.

Depois da morte de Qordiano, o imperador Décio, que o sucedeu, visitou Antioquia e ali expressou o desejo de visitar uma comunidade cristã. Babylas opôs-se absolutamente a isso e não permitiu a sua entrada. O imperador dissimulou momentaneamente a ira, mas logo mandou buscar o bispo e, ao repreendê-lo duramente por sua insolência, ordenou que sacrificasse às divindades pagãs como expiação por sua ofensa. Ao recusar, Babylas foi deixado no cárcere, preso em cadeias, e tratado com a maior severidade. Logo depois, foi decapitado juntamente com três jovens que foram seus alunos. Isto aconteceu em 251 d.C.

Neste mesmo tempo foi encarcerado Alexandro, bispo de Jerusalém, e ali morreu devido à dureza de sua reclusão.

Juliano, um ancião aleijado por causa de uma artrite, foi atado juntamente com Cronión a corcovas de camelos, flagelados cruelmente e logo lançados ao fogo, onde morreram. Também quarenta donzelas foram queimadas em Antioquia, após sofrerem encarceramento e flagelos.

Em 251 d.C, o imperador Décio, depois de erigir um templo pagão em Éfeso, ordenou que todos os habitantes da cidade sacrificassem aos deuses. Esta ordem foi nobremente desprezada por sete de seus próprios soldados: Maximiano, Marciano, Joanes, Malco, Dionísio, Seraión e Constantino. O imperador, desejoso de que eles renunciassem a fé cristã mediante suas exortações e apelos, deu-lhes um tempo considerável até voltar de uma expedição. Durante a sua ausência, os bravos soldados fugiram e ocultaram-se em uma gruta. Ao regressar e tomar conhecimento do fato, o imperador ordenou que a entrada da caverna fosse fechada, e todos morreram de fome.

Teodora, uma jovem e formosa dama de Antioquia, recusou-se a sacrificar aos deuses de Roma. Foi, por isso, condenada a viver em um bordel, onde sua

virtude seria sacrificada à brutalidade e à concupiscência. Dídimo, um cristão, entrou naquele recinto vestido com um uniforme de soldado romano, revelou-se a Teodora e aconselhou-a a fugir disfarçada com aquela roupa, ficando ele em seu lugar. Quando descobriram no bordel um homem no lugar da formosa dama, Dídimo foi levado diante do governador, a quem confessou a verdade. Ao declarar-se cristão, recebeu imediata sentença de morte. Teodora, ao ouvir que seu libertador morreria, rogou perante o juiz e implorou que a sentença recaísse sobre ela. Não obstante, surdo aos clamores dos inocentes e insensível à justiça, o implacável juiz condenou a ambos. Dídimo e Teodora foram decapitados e depois tiveram os corpos queimados.

Secundiano, acusado de ser cristão, era levado ao cárcere quando Veriano e Marcelino indagaram aos soldados que o conduziam: “Para onde levais um inocente?” A pergunta fez com que também fossem presos e, após serem torturados, os três foram pendurados e decapitados.

Orígenes, o célebre presbítero e ensinador da Palavra de Deus em Alexandria, foi preso aos sessenta e quatro anos e largado numa imunda masmorra, totalmente acorrentado, com os pés no cepo e as pernas estiradas ao máximo, durante vários dias seguidos. Foi ameaçado com fogo e torturado com todos os requintes de crueldade inventados pelas mentes mais diabólicas. Durante o seu terrível e prolongado tormento, morreu o imperador Décio. Qallo, seu sucessor, envolveu-se numa guerra com os godos e, com isso, os cristãos tiveram um certo alívio. Orígenes obteve então a liberdade e retirou-se para Tiro, onde ficou até a morte, que lhe sobreveio aos sessenta e nove anos.

Qallo, depois de concluir suas guerras, deparou-se com uma praga no império. Ele ordenou, então, que fossem oferecidos sacrifícios aos deuses pagãos. Esta medida fez com que novas perseguições aos cristãos fossem desencadeadas, desde a capital do império até as províncias mais afastadas. Muitos foram as vítimas da impetuosidade da população, assim como do preconceito dos magistrados. Entre esses mártires estiveram Cornélio, bispo cristão de Roma, e Lúcio, seu sucessor, em 253 d.C.

A maioria dos erros introduzidos na Igreja, nesta época, resultou de se colocar a razão humana em competição com a revelação. Quando, porém, os teólogos mais capazes demonstraram a falibilidade de tais argumentos, as opiniões que se haviam levantado desvaneceram-se como as estrelas diante do Sol.

A Oitava Perseguição sob Valeriano, em 257 d.C.
A oitava perseguição veio sob o comando de Valeriano, em abril de 257 d.C, e continuou por três anos e dez meses. Foram inumeráveis os mártires dessa perseguição; suas torturas e mortes eram variadas e penosas. Citamos a seguir os mais ilustres nomes dentre eles, embora não se tenha respeitado classe, sexo ou idade.

Rufina e Secunda eram duas formosas e refinadas damas, filhas de Asterio, eminente cavalheiro de Roma. Rufina, a mais velha, estava prometida em casamento a Armentário, um jovem da nobreza. Secunda, a mais nova, a Verino, pessoa de linhagem fina e opulenta. Os pretendentes eram ambos cristãos, mas ao levantar-se a perseguição, renunciaram a fé para salvar suas fortunas. Esforçaram-se muito, então, na tentativa de persuadir as damas a fazerem o mesmo. Frustrados em seus propósitos, tornaram-se tão abjetos que chegaram ao ponto de denunciá-las. Ambas foram presas e levadas a comparecer perante Junio Donato, governador de Roma. Lá, em 257 d.C, selaram com sangue o seu martírio.

Estêvão, bispo de Roma, foi decapitado naquele mesmo ano. Também Saturnino, o piedoso bispo ortodoxo de Toulouse, por se recusar a sacrificar aos ídolos, foi tratado com as mais bárbaras e inimagináveis crueldades. Ataram-lhe os pés à cauda de um touro, e o enfurecido animal desceu em disparada as escadarias do templo. O crânio do digno mártir abriu-se, de onde saiu seu cérebro, que se espalhou pelo chão.

Sixto sucedeu a Estêvão como bispo de Roma. Supõe-se que era grego de nascimento e servira durante algum tempo como diácono, sob a direção de Estêvão. Sua grande fidelidade, singular sabedoria e coragem incomum distinguiram-no em muitas ocasiões. E o feliz resultado de uma polémica travada com alguns hereges é geralmente tido como uma confirmação de suas características de piedade e prudência. Mo ano 258 d.C, Marciano, que dirigia os assuntos do governo em Roma, conseguiu uma ordem do imperador Valeriano para matar todo o clero cristão que atuava na capital do império. Por ordem dele, Sixto e seis de seus diáconos sofreram o martírio.

Acerquemo-nos do fogo do martirizado Lorenzo, para que nossos corações sejam aquecidos. O implacável tirano Marciano, ciente de que Lorenzo não só era ministro da Palavra de Deus, mas também tesoureiro das finanças da igreja em Roma, prometeu ao imperador, com o aprisionamento de uma só pessoa,

uma dupla presa: primeiro, com o espírito da avareza, puxaria para o governo todo o tesouro dos cristãos pobres; depois, com a ferocidade da tirania, trataria de agitá-los, perturbá-los e esgotá-los em seus trabalhos diários. De rosto feroz e cruel semblante, o ambicioso lobo perguntou onde Lorenzo havia empregado as riquezas da igreja em Roma. Este, pedindo-lhe três dias de prazo, prometeu declarar onde se encontrava o tesouro. Enquanto isso, fez congregar uma grande quantidade de cristãos pobres. Ao chegar o dia em que deveria dar a resposta, Lorenzo recebeu do perseguidor ordens de se manter fiel à promessa. Então, o valente ministro, estendendo os braços aos pobres, declarou: “Estes são o precioso tesouro da igreja em Roma; estes são verdadeiramente o tesouro, aqueles em quem reina a fé de Cristo, em quem Jesus Cristo tem sua morada. Que jóias mais preciosas pode ter Cristo, senão aquelas nas quais prometeu morar? Porque assim está escrito: Tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; fui forasteiro e me hospedastes’. E também: ‘Sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes’. Que maior riqueza pode possuir Cristo, nosso Mestre, que o povo pobre em quem deseja ser visto?”

Ah! que língua poderia expressar o furor e a raiva do coração do tirano? Agora batia o pé, lançava olhares furiosos, gesticulava ameaçadoramente, comportava-se como louco. Seus olhos relampagueavam fogo; a boca espumava como a de um javali e mostrava os dentes como um infernal mastim, não era mais um homem racional; era um leão rugidor e rompante.

“Acendam o fogo”, guinchou ele, “e não economizem lenha. Este vilão pensa que engana o imperador? Acabem com ele! Acabem com ele! Açoitem-no com chicotes, sacudam-no com varas, apliquem-lhe golpes com os punhos, descerebrem-no com garrotes. Este traidor zomba do imperador? Pincem-no com uma tenaz ardente, imprensem-no com placas incandescentes, atem-lhe as mãos e os pés, e quando a grelha de ferro estiver em brasas, amarrem-no a ela. Sob pena de nosso maior desagrado, cada um de vocês, verdugos, cumpra sua missão”.

Ditas estas palavras, foram prontamente cumpridas. Depois de cruéis tormentos, o manso cordeiro foi posto — não direi que sobre uma cama de ferro incandescente, mas em suave colchão de plumas. Pois Deus operou de modo tão milagroso para com Lorenzo, que a cama de fogo serviu-lhe de leito de repouso eterno.

Na África, a perseguição rugiu com peculiar violência; milhares receberam a coroa do martírio. Dentre eles destacamos as personalidades mais distintas:

Cipriano, bispo de Cartago, um eminente prelado e adorno da Igreja. O esplendor de seu génio era temperado pela solidez de seu juízo; tinha todas as virtudes de cavalheiro combinadas às qualidades de um cristão. Sua doutrina era ortodoxa e pura; sua linguagem, fácil e elegante; e seus modos, gentis e atraentes. Era, em resumo, um pregador piedoso e cortês. Em sua juventude, fora educado nos princípios dos gentios e, possuidor de uma fortuna considerável, vivera em todo o esplendor da riqueza e em toda a dignidade da pompa.

Por volta do ano 246 d.C, Cecílio, ministro cristão em Cartago, tornou-se o feliz instrumento da conversão de Cipriano e, pelo grande afeto que sempre sentiu pelo mestre, este jovem resolveu ser chamado Cecílio Cipriano. Antes de seu batismo, estudou cuidadosamente as Escrituras e, impressionado com a beleza da verdade, decidiu praticar as virtudes que nelas se recomendavam. Depois de seu batismo, vendeu suas posses, distribuiu seu dinheiro aos pobres, vestiu-se de modo simples e iniciou uma vida austera. Em pouco tempo foi nomeado presbítero. Era tão admirado por suas virtudes e obras que, por ocasião da morte de Donato, em 248 d.C, foi eleito, quase unanimemente, bispo de Cartago.

Os cuidados de Cipriano não se estendiam somente a Cartago, mas a Numídia e Mauritânia. Em todas as suas palestras, sempre aconselhou seus obreiros, ciente de que só a unanimidade ajudaria o progresso da Igreja. Esta era a sua máxima: “O bispo está na igreja, e a igreja no bispo, de forma que a unidade só pode ser preservada mediante um estreito vínculo entre o pastor e sua igreja”.

Em 250 d.C, Cipriano foi publicamente proscrito pelo imperador Décio sob o nome de Cecílio Cipriano, bispo dos cristãos. O clamor universal dos pagãos foi: “Cipriano aos leões; Cipriano às feras”. O bispo apartou-se do furor da multidão, e suas possessões foram imediatamente confiscadas. Durante seu retiro, escreveu trinta piedosas e elegantes epístolas ao seu rebanho. Contudo, vários cismas ocorridos na Igreja provocaram nele grande ansiedade. Com o abrandamento do rigor da perseguição, voltou a Cartago e fez tudo o que estava ao seu alcance para desfazer as opiniões erróneas. Quando uma terrível peste sobreveio a Cartago, foi, como de costume, atribuída aos cristãos. Os magistrados começaram logo uma perseguição, o que ocasionou uma carta deles a Cipriano. Em resposta, ele reivindicou a causa do cristianismo. Em 257 d.C, Cipriano teve de comparecer diante do procônsul Aspásio Paturno, que o desterrou para uma pequena cidade, no mar da Líbia. Ao morrer este procônsul, voltou a Cartago; porém, logo foi preso e levado diante do novo governador, que o condenou à decapitação. A sentença foi executada no dia quatorze de setembro de 258 d.C.

Os discípulos de Cipriano, martirizados nesta perseguição, foram Lúcio, Flaviano, Victórico, Remo, Montano, Julião, Primelo e Donaciano.

Em Útica, a tragédia foi maior: por ordem do governador, trezentos cristãos foram postos ao redor de um forno de cozimento de cerâmica. Após prepararem as brasas e o incenso, receberam a ordem para que sacrificassem a Júpiter, ou seriam jogados ao fogo. Recusaram unanimemente e, cheios de bravura, saltaram no forno, onde foram imediatamente asfixiados.

Fructuoso, bispo de Tarragona, na Espanha, e seus dois diáconos, Augúrio e Eulogio, foram queimados por serem cristãos.

Alexandro, Malco e Prisco, três cristãos da Palestina, e uma mulher da mesma região, acusaram-se voluntariamente de serem cristãos, pelo que foram sentenciados a ser devorados por tigres, determinação que foi executada.

Máxima, Donatila e Secunda, três jovens de Tuburga, receberam como bebida fel e vinagre, foram duramente flageladas, atormentadas sobre um patíbulo, sujas com cal, assadas sobre uma grelha de ferro, maltratadas por feras, e finalmente decapitadas.

É oportuno observar a singular, porém mísera sorte do imperador Valeriano, que durante muito tempo, e tão duramente, perseguiu os cristãos. Este tirano foi feito prisioneiro, mediante um estratagema, por Sapor, imperador da Pérsia, que o levou ao seu próprio país e tratou-o ali com a mais inusitada indignidade, ao fazê-lo sempre ajoelhar-se como o mais humilde escravo e colocar sobre ele os pés, como se fora uma banqueta, quando montava em seu cavalo. Depois de tê-lo humilhado durante sete anos neste abjeto estado de escravidão, fez com que lhe tirassem os olhos, apesar de já possuir oitenta e três anos de idade. Ainda não saciados os seus desejos de vingança, ordenou que o esfolassem e esfregassem-lhe sal na carne viva. Sob tais torturas, morreu Valeriano, um dos mais tiranos imperadores de Roma e um dos maiores perseguidores dos cristãos.

Em 260 d.C, assumiu Qallieno, filho de Valeriano, e durante seu reinado (exceto por alguns poucos mártires) a Igreja gozou paz.

A Nona Perseguição sob Aureliano, em 274 d.C.
Eis os dois mártires desta perseguição:

Félix, bispo de Roma, que assumiu o cargo em 274 d.C, foi a primeira vítima da petulância de Aureliano, ao ser decapitado no dia vinte e dois de dezembro do mesmo ano.

Agapito, um jovem cavalheiro que vendera suas possessões e dera o dinheiro aos pobres, foi preso como cristão, torturado, e logo decapitado em Praeneste, cidade que dista um dia de viagem de Roma.

Foram eles os únicos mártires registrados durante este reinado, que tão cedo viu o seu fim, quando foi o imperador assassinado em Bizâncio por seus próprios criados.

Aureliano foi sucedido por Tácito, que foi seguido por Probo, e este, por Caro. Quando este último foi morto por um raio, sucederam-no os seus filhos Carnio e Numeriano. Durante todos estes reinados a Igreja teve paz.

Diocleciano ascendeu ao trono imperial em 284 d.C. No princípio, mostrou grande favor aos cristãos. No ano 286 d.C, fez sociedade com Maximiano. Alguns cristãos foram mortos antes que se desatasse uma perseguição geral. Dentre eles destacam-se os irmãos Feliciano e Primo.

Marco e Marceliano eram gémeos, naturais de Roma e de nobre linhagem. Seus pais eram pagãos, porém os tutores responsáveis por sua educação criaram-nos como cristãos. Sua constância venceu os que desejavam vê-los convertidos ao paganismo; seus pais e toda a família converteram-se à fé que antes reprovavam. Foram martirizados ao serem atados a estacas, com os pés traspassados por cravos. Depois de permanecer nesta situação um dia e uma noite, foram transpassados com lanças, que lhes puseram fim aos sofrimentos.

Zoe, a mulher do carcereiro que cuidou dos mártires acima mencionados, converteu-se através deles. Foi por isso pendurada numa árvore com um fogo de palha sob si. Seu corpo foi lançado a um rio, atado a uma pedra, para que afundasse.

No ano 286 d.C, teve lugar um acontecimento dos mais notáveis registrados nos anais da Igreja. Uma legião de soldados, composta de seis mil seiscentos e sessenta seis homens, era totalmente constituída por cristãos. Era chamada Legião Tebana porque os homens haviam sido recrutados em Tebas. Estiveram alojados no Oriente até que o imperador Maximiano ordenou que se dirigissem às Qálias, a fim de o ajudarem contra os rebeldes de Borgonha. Passaram os Alpes, entraram nas Qálias, sob as ordens de Maurício, Cândido e Exupérnio, seus dignos comandantes, e finalmente reuniram-se ao imperador.

Nesta ocasião, Maximiano ordenou um sacrifício geral, que deveria ser assistido por todo o exército. Também determinou um juramento de lealdade e de auxílio na extirpação dos cristãos das Qálias. Alarmados diante de tais ordens, cada um dos componentes da Legião Tebana recusou-se, por completo, a sacrificar e fazer os juramentos propostos. Extremamente enfurecido com a recusa, Maximiano ordenou que toda a legião fosse dizimada, isto é, que selecionassem um de cada dez homens, e os matassem à espada. Após a execução da ordem sanguinária, o restante permaneceu inflexível; por isso deu lugar à segunda dizimação: um de cada dez homens dos que ficaram vivos morreu de igual modo.

Este segundo castigo não teve maiores efeitos que o primeiro; os soldados mantiveram-se firmes em sua decisão e em seus princípios. Porém, por conselho de seus oficiais, declararam fidelidade ao seu imperador. Poder-se-ia pensar que isso abrandaria o soberano, mas o efeito foi contrário. Encolerizado diante da perseverança e unanimidade dos soldados, determinou que toda a legião fosse morta. A ordem foi executada pelas outras tropas, que os despedaçaram com suas espadas em 22 de setembro de 286 d.C.

Alban, que deu nome a St. Alban’s, em Hertfordshire, foi o primeiro mártir britânico. A Inglaterra havia recebido o Evangelho de Cristo através de Lúcio, o primeiro rei cristão; porém, não sofreu a ira da perseguição até muitos anos depois. Alban era originalmente pagão, mas foi convertido através de Anfíbalo, um evangelista, a quem deu refúgio por causa de sua religião. Os inimigos de Anfíbalo, ao inteirar-se do lugar onde estava escondido, chegaram à casa de Alban. A fim de facilitar a fuga do mensageiro de Deus, Alban apresentou-se como a pessoa a quem buscavam.

Descoberto o engano, o governador ordenou que o açoitassem, e o sentenciou à decapitação no dia 22 de junho de 287 d.C. Assegura-nos o conceituado Beda que, nesta ocasião, o carrasco converteu-se subitamente ao cristianismo e pediu permissão para morrer por Alban ou com ele. Ao obter sua segunda petição, foram ambos decapitados por um soldado, que assumiu voluntariamente o papel de carrasco. Isto aconteceu no dia vinte e dois de junho de 287 d.C, em Verulam, agora St. Alban’s, em Hertfordshire, onde foi erigida uma magnífica igreja em sua memória, no tempo de Constantino, o Grande. Destruído nas guerras saxônicas, o nobre edifício gótico foi reconstruído por Offa, rei de Mércia, e junto a ele levantou-se um monastério, onde ainda é visível parte de suas ruínas.

Fé, uma mulher cristã da Aquitania, França, foi assada sobre uma grade de ferro e depois decapitada em 287 d.C.

Quintin era um cristão natural de Roma; porém, decidiu empreender a propagação do Evangelho nas Qálias com um tal Luciano, e pregaramjuntos em

Amiens. Luciano dirigiu-se a Beaumaris, onde foi martirizado. Quintin permaneceu em Picardia e mostrou grande zelo em seu ministério. Preso como cristão, foi estirado com roldanas até que se lhe deslocassem os membros. Seu corpo foi dilacerado com açoites de arame farpado, e depois derramaram-lhe óleo fervente sobre a carne viva. Suas faces e axilas foram queimadas com tochas. Após tanta tortura, foi enviado de volta à masmorra, onde morreu no dia 31 de outubro de 287 d.C. Seu corpo foi lançado ao rio Somme.

A Décima Perseguição sob Diocleciano, em 303 d.C.
Sob os imperadores romanos, a chamada Era dos Mártires foi ocasionada, em parte, pelo aumento do número de cristãos e por suas crescentes riquezas, que suscitaram o ódio de Qalerio, filho adotivo de Diocleciano. Some-se a isto o estímulo de sua mãe, uma fanática pagã, que praticamente empurrou o imperador a iniciar esta perseguição.

O dia fatal, assinalado para o início da sangrenta obra, era vinte e três de fevereiro de 303 d.C., data em que se celebraria a Terminalia, e que, como se jactavam os cruéis pagãos, poria fim ao cristianismo. Mo dia marcado, iniciou-se a perseguição em Nicomédia. Pela manhã, o prefeito da cidade chegou à igreja dos cristãos com um grande número de oficiais e, após arrebentarem as portas, tomaram todos os livros sagrados e lançaram-nos às chamas.

Toda esta ação ocorreu na presença de Diocleciano e Qalerio que, não satisfeitos em queimar os livros, fizeram desmoronar a igreja, de modo que não ficasse dela nem o rastro. O gesto foi seguido de um severo edito que ordenava a destruição de todas as demais igrejas e todos os livros cristãos. Logo veio a ordem para banir os seguidores de Cristo de todas as possessões romanas.

A publicação deste edito ocasionou um martírio imediato porque um atrevido cristão não só o arrancou do lugar onde estava posto, mas execrou o nome do imperador pela injustiça cometida. A provocação foi suficiente para atrair a vingança pagã sobre o tal cristão, que foi então preso, severamente torturado e, finalmente, queimado vivo.

Todos os cristãos foram encarcerados. Qalerio ordenou secretamente que ateassem fogo ao palácio imperial para que os seguidores de Cristo fossem acusados de incendiários; assim teria uma razão plausível para, com a maior das severidades, levar a cabo a perseguição. Começou um sacrifício generalizado; houve vários martírios. Não se fazia distinção de idade ou sexo. O simples nome “cristão” era tão odioso aos pagãos que todos, imediatamente, caíram vitimados. Muitas casas foram incendiadas, e famílias cristãs inteiras pereceram nas chamas. Outros tiveram pedras penduradas ao pescoço e, atados juntos, foram lançados ao mar. A perseguição generalizou-se em todas as províncias romanas, principalmente no Leste. Pelo longo tempo que durou — dez anos — é impossível determinar o número de mártires e descrever as várias formas de martírio.

Açoites, espadas, punhais, cruzes, veneno e fome foram empregados para matar os cristãos. Esgotou-se a imaginação no esforço de inventar torturas contra pessoas que não haviam cometido crime algum, a não ser pensar de maneira distinta dos seguidores da superstição.

Uma cidade da Frigia, totalmente povoada por cristãos, foi queimada, e todos os moradores pereceram nas chamas.

Cansados da carnificina, vários governantes de províncias apresentaram-se diante da corte imperial para mostrar a ilegalidade de tal conduta. Assim, muitos foram livres da execução, mas, ainda que não fossem mortos, tudo se fazia para que suas vidas se tornassem miseráveis. Muitos tiveram as orelhas e o nariz cortados, o olho direito arrancado, os membros inutilizados mediante terríveis deslocações, e as carnes queimadas com ferro em brasa.

Lembremos agora, de maneira particular, das pessoas mais destacadas dentre aquelas que deram suas vidas nesta sangrenta perseguição.

Sebastião, um célebre mártir nascido em Narbona, nas Qálias, e que chegou a ser oficial da guarda do imperador romano, permaneceu um verdadeiro cristão em meio à idolatria. Não se deixou seduzir pelos esplendores da corte, nem se levar pelos maus exemplos; tampouco se contaminou por esperanças de ascensão.

Ao recusar-se a abraçar o paganismo, foi levado, por ordem do imperador, a um campo perto da cidade, chamado Campo de Marte, e ali o atacaram com flechas. Executada a sentença, alguns piedosos cristãos dirigiram-se ao local da execução a fim de sepultar o corpo. Foi então que perceberam nele sinais de vida. Levado imediatamente para um lugar seguro, em pouco tempo Sebastião recuperou-se, a fim de preparar-se para um segundo martírio. Pois, tão logo pôde sair, colocou-se intencionalmente no caminho do imperador, quando este subia a um templo pagão, e repreendeu-o pelas muitas crueldades e irracionais prejuízos contra o cristianismo.

Ao recobrar-se do assombro, Diocleciano ordenou que Sebastião fosse preso e levado a um lugar perto do palácio, e que ali fosse golpeado até morrer.

Para que os cristãos não conseguissem recuperar nem lhe sepultar o corpo, ordenou que fosse lançado ao esgoto. Todavia, Lucina, uma dama cristã, encontrou um modo de tirá-lo dali e de sepultá-lo nas catacumbas.

Neste tempo, os cristãos, após sérias ponderações, concluíram ser ilegítimo portar armas sob as ordens de um imperador pagão. Maximiliano, o filho de Fábio Victor, foi o primeiro a ser decapitado por causa desta norma.

Vito, siciliano de alta classe, foi educado como cristão e teve suas virtudes aumentadas com o passar dos anos. Em todas as suas aflições, susteve-o a sua constância; a sua fé foi superior aos maiores perigos. Seu pai, Hylas, que era pagão, ao descobrir que o filho fora instruído nos princípios do cristianismo pela ama que o criara, empregou todos os esforços para demovê-lo da fé. Desiludido, por nada conseguir, sacrificou o filho aos ídolos, no dia 14 de junho de 303 d.C.

Victor era um cristão de boa família, em Marselha, na França. Passava grande parte da noite em visita aos aflitos e aos débeis, obra que não podia ser realizada durante o dia, por questão de segurança. Victor gastou sua fortuna na minoração das angústias dos cristãos pobres. Finalmente, teve sua prisão decretada pelo governador Maximiano, que ordenou fosse ele atado e arrastado pelas ruas. No cumprimento dessa ordem, Victor recebeu da enfurecida plebe todo tipo de crueldades e indignidades. Como continuasse inflexível, sua força foi interpretada como obstinação.

Levantou então os olhos ao céu, orou a Deus que lhe desse paciência; depois, sofreu as torturas com a mais admirável firmeza. Os carrascos, cansados de atormentá-lo, levaram-no a uma masmorra. Nesta prisão, ganhou para Cristo os carcereiros Alexandro, Feliciano e Longino. Ao inteirar-se disso, o imperador ordenou que fossem imediatamente executados. Os policiais foram decapitados, e Victor novamente levado ao tronco. Depois de golpeado sem misericórdia, foi de novo lançado ao cárcere. Ao ser interrogado pela terceira vez acerca de sua religião, perseverou em seus princípios.

Trouxeram então um pequeno altar, e ordenaram-lhe que oferecesse incenso sobre ele. Inflamado de indignação diante de tal ordem, precipitou-se valentemente e, com um chute, derrubou o altar e o ídolo. Maximiano achava-se presente, e ficou de tal modo enfurecido, que ordenou a amputação do pé que golpeara o altar. Pouco depois, Victor foi jogado em um moinho e destroçado. Isto se deu no ano 303 d.C.

Quando Máximo era governador da Cilicia, na cidade de Tarso, fizeram comparecer diante dele três cristãos: Taraco, um ancião; Probo e Andrônico.

Depois de repetidas torturas e exortações a que se retratassem, receberam finalmente a sentença de morte. Levaram-nos ao anfiteatro, soltaram sobre eles várias feras. Contudo, nenhum dos animais, ainda que famintos, os quis tocar. Então o domador soltou um grande urso, que naquele mesmo dia havia destruído três homens; tanto este voraz animal como uma feroz leoa recusaram atecax os presos. Ao perceber que era impossível destruí-los através das feras, Máximo ordenou sua morte pela espada, no dia 11 de outubro de 303 d.C.

Romano, natural da Palestina, era diácono da igreja em Cesaréia, quando se iniciou a perseguição de Diocleciano. Condenado por sua fé, em Antioquia, foi flagelado e posto no tronco. Seu corpo foi rasgado com ganchos; sua carne, cortada com facas; seu rosto, marcado; seus dentes, quebrados com golpes; e seus cabelos, arrancados pela raiz. Pouco depois ordenaram que fosse estrangulado. Era dia o 17 de novembro de 303 d.C.

Susana, sobrinha de Caio, bispo de Roma, foi induzida pelo imperador Diocleciano a se casar com um nobre pagão, parente próximo dele. Ao recusar a honra que lhe era proposta, foi decapitada.

Doroteo, homem notável na casa de Diocleciano, era cristão, e muito se esforçou a fim de ganhar outros para Cristo. Em seus labores religiosos, foi ajudado por Qorgonio, outro cristão que também pertencia ao palácio. Ambos foram torturados e estrangulados.

Pedro, um eunuco pertencente à cada do imperador, era um cristão de singular modéstia e humildade. Foi posto sobre uma grelha de ferro e assado em fogo lento, até expirar.

Cipriano, o mago (assim chamado para ser distinguido de Cipriano, bispo de Cartago), era natural de Antioquia. Recebeu uma educação académica em sua juventude, e aplicou-se particularmente à astrologia. Depois, viajou para ampliar seus conhecimentos, e visitou vários países, entre eles Grécia, Egito, índia, etc. Com o passar do tempo, conheceu Justina, uma jovem dama de Antioquia, cuja linhagem, beleza e qualidades suscitavam a admiração geral. Um cavalheiro pagão pediu a Cipriano que o ajudasse a conquistar o amor de Justina. Porém, após ele empreender esta tarefa, foi convertido; queimou seus livros de astrologia e magia, recebeu o batismo, e sentiu-se animado pelo poderoso espírito da graça. A conversão de Cipriano exerceu grande efeito sobre o cavalheiro pagão, que logo abraçou o cristianismo. Durante as perseguições de Diocleciano, Cipriano e Justina foram aprisionados como cristãos. Ele foi dilacerado com tenazes; ela, açoitada. Após outros tormentos, foram decapitados.

Eulália, dama espanhola de família cristã, fora notável em sua juventude, por seu gentil temperamento e grande sabedoria, raramente encontrados nos caprichosos anos juvenis. Após ser ela presa como cristã, o magistrado tentou, com os modos mais sutis, ganhá-la para o paganismo. Eulália ridicularizou as divindades pagãs com tal aspereza, que o juiz, enfurecido por sua conduta, ordenou que fosse torturada. Assim, seus flancos foram dilacerados com garfos, e seu tórax queimado, até que espirou nas chamas. Era dezembro de 303 d.C.

No ano 304 d.C, quando a perseguição atingiu a Espanha, Daciano, governador de Tarragona, ordenou que Valério, o bispo, e Vicente, o diácono, fossem presos, atados com correntes e encarcerados. Como os prisioneiros se mantivessem firmes em sua resolução, Valério foi exilado, e Vicente, posto no tronco. Seus membros foram deslocados, e sua carne rasgada com garfos. Depois, foi posto sobre uma grelha, com fogo por baixo, e pontas para cima, que lhe atravessavam a carne. Estes tormentos não o destruíram nem fizeram com que mudasse de atitude; foi então levado de volta ao cárcere, confinado em uma pequena e imunda masmorra escura, repleta de pedras pontiagudas e de cacos de vidro, onde morreu em 22 de janeiro de 304 d.C. Seu corpo foi jogado a um rio.

A perseguição de Diocleciano tomou feições mais duras em 304 d.C, quando muitos cristãos foram torturados de modo cruel, e mortos das maneiras mais penosas e ignominiosas. Citaremos dentre estes cristãos os mais eminentes.

Saturnino, bispo de Albitina, cidade da África, foi, depois de torturado, enviado de novo ao cárcere, onde morreu de fome. Seus quatro filhos, após serem atormentados de várias maneiras, tiveram a mesma sorte.

Dativas, um nobre senador romano; Telico, um piedoso cristão; Victoria, uma jovem dama de fina linhagem e grande fortuna, com alguns outros de classes sociais mais humildes, todos eles discípulos de Cristo, foram torturados de maneira similar, e pereceram de igual forma.

Agrape, Quionia e Irene, três irmãs, foram encarceradas em Tessalônica, quando a perseguição de Diocleciano chegou à Grécia. Receberam nas chamas a coroa do martírio, em 25 de março de 304 d.C. O governador, ao perceber que não podia causar qualquer impressão a Irene, ordenou que a fizessem desfilar nua pelas ruas, e quando a vergonhosa ordem foi executada, acendeu um fogo junto à muralha da cidade. Nessas chamas, subiu ao Céu o espírito desta jovem cristã.

Agato, homem piedoso, Cassice, Felipa e Eutiquia foram martirizados nessa mesma época. Os detalhes, porém, não nos foram transmitidos.

Marcelino, bispo de Roma, que sucedeu a Caio naquela cidade, opôs-se intensamente às honras divinas dadas a Diocleciano. Por isso, sofreu o martírio mediante uma variedade de torturas, no ano 304 d.C. Até expirar, consolou sua alma com a perspectiva dos gloriosos galardões, que receberia pelos sofrimentos experimentados no corpo.

Victorio, Carpoforio, Severo e Severiano eram irmãos, e os quatro ocupavam cargos de grande confiança e honra na cidade de Roma.

O Helenismo e os Judeus


INTRODUÇÃO

A uns dois ou três séculos antes de Cristo, muitos judeus já experimentavam uma grande influência da cultura helenística. Especialmente a população judaica da diáspora, como, por exemplo, os judeus que residiram em Alexandria, que por sinal foi a cidade modelo desse banho cultural [Paul, André, pág. 47]. Assim, Já desde o tempo de Alexandre, a influência grega começava a minar o judaísmo, embora encontrasse continua resistência por parte dos fariseus e seus simpatizantes. Tal influência helenística sobre os judeus, envolvia, principalmente o aspecto cultural, que por sua vez, era alimentado pelas filosofias existente da época. E os efeitos da filosofia eclética de Filo, por exemplo, incontestavelmente encontram-se no fundo cultural de grande parte da vida e literatura do Novo Testamento [Dana, H. E. pág. 113].
Portanto, procuraremos destacar aqui alguns exemplos do Novo Testamento nos quais podemos observar alguns efeitos do helenismo sobre os judeus. Vale lembrar que alguns destes exemplos não se encontram de maneira explicita em alguns dos textos, no entanto poderão demonstrar tais influências de modo implícito.

Influência Filosófica:

Uma das maiores influências do helenismo sobre os judeus que podemos destacar no Novo Testamento é a filosofia grega, a qual gerou muitas mudanças no pensamento judaico, causando, dessa forma, muitos efeitos no modo de se compreender a vida.

Dentre essas influências, podemos observar, de modo positivo, os efeitos da filosofia que tratava da necessidade de se livrar dos padrões tradicionais de comportamento herdados dos antepassados, o que levou a sociedade a adotar certa ênfase no individualismo. Esta influência pode ser observada no fato de que tal ênfase individualista contribuiu, ou facilitou, na época do Novo Testamento, a adoção do conceito de religião pessoal. Assim, quando Jesus desafiava seus ouvintes a deixarem pai e mãe a fim de segui-lo (Lc. 14.26;Mat. 10.37), não encontrava, por parte do conceito tradicional, nenhuma barreira que dificultasse sua mensagem. Assim, podemos observar, apartir desta passagem, que os judeus nos tempos do Novo Testamento, já haviam aderido muitos elementos da filosofia grega. E neste sentido podemos apontar, no Novo Testamento, outro exemplo dessa influência helênica sobre os judeus. Trata-se da declaração do apóstolo Pedro, a qual este fez diante do sinédrio judaico em certa ocasião (Atos 5.29). Após serem, os apóstolos, advertidos a não pregarem o evangelho de Cristo, encontramos Pedro e os demais respondendo ao sinédrio; Antes importa obedecer a Deus do que aos homens [ARA]. Esta era uma frase já conhecida desde os tempos de Sócrates. Este acreditava em princípios universais de verdade e de direito, os quais encontravam em Deus, o qual ele considerava supremo em conduta e caráter, sua forma ultima de expressão pessoal. Aos seus perseguidores atenienses ele dissera; “importa mais obedecer a Deus do que a vós” [Dana, H. E. pág.159]. Ao expressar-se desta maneira, não somente o apóstolo Pedro mas também o sinédrio judaico que não retrucara a tal declaração, parece demonstrar certa familiaridade com alguns conceitos filosóficos. E não apenas isto, mas também demonstram concordarem com tais conceitos que refletem alguns princípios universais de verdade e de direito. 

No entanto, quando se trata da influência que os gregos causaram no mundo de então, precisamos reconhecer que isso não se deu de maneira limitada. Tal influência abarcara todos os aspectos da sociedade. E o próximo aspecto que destacamos é a questão do idioma. 

Influência Lingüística:

Como já observamos, desde o tempo de Alexandre, a influência grega espalhara-se por todas as partes. E o principal instrumento que contribuira grandemente para esse evento foi o idioma grego. Através de uma língua comum, utilizada pela maioria em geral na comunicação popular. Sendo assim, todo o mundo greco-romano do primeiro século usava o idioma grego (koinê) como principal meio de comunicação [Dana, H. E. pág.146]. No entanto, embora houvesse, por parte de alguns judeus, certa resistência quanto à cultura helênica, o que incluía o uso do idioma grego, muitos judeus, principalmente alguns estudiosos, o aderiram sem problemas At. 21.37-39. Além disso, deve-se levar em consideração que os escritores do Novo Testamento utilizaram o grego koinê para escrever.
O fato de que muitos judeus usavam o grego para se comunicarem pode ser visto também em outras passagens como At. 11.20; 17.4; 19.10. Destas referências podemos observar também que, evidentemente, foram os cristãos judaicos de língua grega que pregaram o evangelho aos gregos pela primeira vez [Coenen, L. pág. 924].

Contudo, além da influência filosófica e Lingüística que os judeus experimentaram, existe um outro fator digno de nota. Ao estudar o Novo Testamento, nos deparamos também com a questão do costume que os envolveu. 

Costumes:

Outra situação, em que podemos ver que o helenismo era predominante na sociedade, no tempo do Novo Testamento, é o fato de que se utilizavam dos costumes gregos de maneira natural. O apóstolo Paulo, por exemplo, comumente utilizava-se de termos e exemplos provenientes da cultura grega para falar à igreja. Podemos observar que ao escrever suas cartas, o apóstolo costumava usar termos provenientes da cultura helênica. Em Filemom 4, encontramo-lo fazendo a seguinte declaração; Dou graças ao meu Deus, lembrando-me sempre de ti nas minhas orações [ARA]. Devemos observar que, era um aspecto comum nas cartas helenísticas que o remetente louvasse os deuses pela saúde e bem-estar de seus destinatários, e os assegurasse de suas orações por eles. Paulo (como Judeu) dá um conteúdo distintamente cristão à fórmula ao dar a razão de seu agradecimento [Fritz, 488].

Os judeus já estavam tão acostumados com a (ou influenciados pela) cultura grega que em Atos 6.1 encontramos uma referência a um grupo de crentes judeus helenistas. Ora, naquele tempo, multiplicando-se o numero dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária [ARA]. Desta passagem podemos concluir que a influência helênica sobre os judeus era tão grande que podia até distinguir-se entre um grupo e outro (judeus de fala hebraica e os de fala grega), e, percebe-se, pela passagem, que havia uma certa discriminação até entre os judeus cristãos, o que logo refletiria em um problema, ou uma ameaça à unidade da igreja. No entanto, sob a direção do Espírito Santo, os apóstolos logo solucionam o problema, designando pessoas para tratarem da questão da distribuição (At.6.3-7). Vale observar aqui, ainda falando de costumes, que todos os irmãos (os sete) escolhidos tinham nomes gregos e não judaico, embora fossem judeus. Isso mais uma vez mostra o fato de que para os judeus era coisa normal aderir elementos da cultura grega em seu meio. 

E tal influência estende-se um pouco mais na vida da sociedade judaica. Observando com mais cuidado o livro de Atos, percebemos outra vez a evidência dos efeitos do helenismo sobre a vida dos judeus. Como já foi observado acima, as influências do helenismo na sociedade judaica era muito forte. E, de fato, os judeus e os gregos viviam, em todos os lugares, lado a lado, e por conta disto surgiam muitos casamentos mistos. Exemplo disto, observamos que um destes casamentos teve como filho Timóteo, filho de uma judia crente, mas de pai grego, como podemos ver em Atos 16.1.

Um outro caso que queremos destacar aqui é a questão da circuncisão judaica. Como sabemos, a circuncisão era de extrema importância na vida religiosa dos judeus. No entanto, já desde ha muito os judeus vinham experimentando forte influência do helenismo, tanto na maneira de pensar como na maneira de viver em sociedade. Menelau, por exemplo, que comprara de Antíoco IV o oficio de sumo sacerdote, ignorou as leis judaicas, construindo uma praça de esportes em Jerusalém onde atletas nus se reuniam para disputas esportivas gregas. Menelau e seus amigos restabeleceram seus prepúcios, de modo que viessem parecer gregos quando entrassem em banhos públicos [Packer, J. I. pág. 86].

Esta prática parece repetir-se posteriormente, e isso em uma ocasião bem interessante. Em I Corintios 7.18 encontramos a orientação de Paulo; Foi alguém chamado estando circunciso? Não desfaça a circuncisão [ARA]. Paulo foi o apóstolo que mais falou à igreja com respeito a justificação do pecador. E quando tocava neste assunto, geralmente argumentava que a circuncisão, ou incircuncisão física não significava nada com respeito à salvação. Portanto, em decorrência disto, alguns judeus helenistas que abraçara a fé cristã não viam mais sentido no fato de serem circuncidados. Como sabemos, na igreja de Corinto havia alguns membros judeus (I Co.1.14 cf. At. 18.8), e é de nos chamar a atenção aqui o fato de que um grupo de crentes em Corinto parece que desejavam, por algum motivo, desfazer sua circuncisão. O que nos parece provável é que a exemplo de outros como Menelau e seus amigos, alguns ali, judeus helenistas, estivessem desfazendo sua circuncisão.

Com certeza estes são apenas uns poucos exemplos de muitos outros que podemos encontrar no Novo Testamento com respeito aos efeitos do helenismo sobre a vida dos judeus. Também reconhecemos que tal influência helênica fora muito mais abrangente do que os pontos apresentados aqui, ou seja; a filosofia, o idioma, os costumes são apenas alguns aspectos do helenismo. Certamente a cultura helênica teve expressão em muitas outras áreas como; na política, economia, e provavelmente na religião.

Museu de Antiguidades: Egípcias, Romanas, Orientais

A Intrigante Escultura de uma Divindade Romana

Uma escultura de uma misteriosa divindade romana nunca antes vista foi descoberta em um templo antigo na Turquia e está a intrigar os especialistas.

O relevo do século 1 aC, de um deus barbudo enigmático levantando-se de uma flor ou planta, foi descoberto no local de um templo romano, perto da fronteira com a Síria.

O relevo antigo foi descoberto em um muro de sustentação de um mosteiro cristão medieval.

"É claramente um deus, mas no momento é difícil dizer exatamente quem é", disse Michael Blomer, arqueólogo da Universidade de Muenster, na Alemanha, que está escavando o local.

"Existem alguns elementos que lembram antigos deuses do Oriente Próximo, por isso pode ser um deus muito antigo, anterior aos romanos", acrescentou. No entanto, o antigo deus romano é um completo mistério.

Encruzilhada cultural

O templo fica em uma montanha perto da cidade moderna de Gaziantep, acima da antiga cidade de Doliche, ou Duluk. A área é uma das mais antigas regiões estabelecida continuamente na Terra, e por milênios, ficou no cruzamento de várias culturas diferentes, desde os persas aos hititas e sírios.

Durante a Idade do Bronze, a cidade estava na estrada entre a Mesopotâmia e o Mediterrâneo antigo. Em 2001, quando a equipe de Blomer começou a escavar no local, quase nada era visível a partir da superfície.


Através de anos de escavação meticulosa, a equipe finalmente descobriu as ruínas de uma antiga estrutura da Idade do Bronze, bem como um templo romano dedicado a Júpiter Era Dolichenus, uma versão romanizado da antiga Aramean ou deus do céu e da tempestade, que dirigiu o panteão do Oriente Próximo, Blomer disse.

Durante o segundo e terceiro séculos dC, o culto de Júpiter Dolichenus se tornou uma religião global provavelmente porque muitos soldados romanos foram recrutados a partir da área onde era adorado e os soldados levaram consigo o seu deus, acredita Gregory Woolf, classicista na Universidade de St. Andrews, na Escócia, que não esteve envolvido na escavação.

Depois do templo ser destruído, os cristãos medievais construiram o mosteiro Mar Salomão sobre a fundação do local, e depois das Cruzadas, o local tornou-se o lugar do enterro de um famoso santo islâmico.

A equipe de Blomer estava escavando uma das paredes do contraforte antigo do mosteiro quando descobriram o relevo que mostrava um homem barbudo levantando-se de uma planta e mantendo o talo de uma outra.

A parte inferior do relevo contém imagens de um crescente, uma roseta e uma estrela. A parte superior foi interrompida, mas quando fosse concluída teria ficado com o tamanho de um ser humano.

Divindade desconhecida

A divindade misteriosa pode ter sido uma romanização de um deus local do Oriente Médio, e os elementos agrícolas sugerem uma conexão com a fertilidade. Mas, além disso, a identidade da divindade tem desafiado os especialistas.

O relevo mostra alguns elementos associados à Mesopotâmia. Por exemplo, a roseta na parte inferior pode estar associada a Ishtar, enquanto a lua crescente na base é um símbolo do deus da lua Sin, afirma Nicole Brisch, especialista em estudos do Oriente Médio na Universidade de Copenhague, na Dinamarca.

O fato de ele estar saindo de uma planta é uma reminiscência dos mitos de nascimento de alguns deuses, como o deus mistério no culto de Mitra, que nasceu a partir de uma rocha, ou a deusa grega Afrodite, que nasceu da espuma do mar, especula Woolf.

Deuses híbridos

Embora a identidade dos deuses possa até ser um mistério, a sua hibridização não é incomum para a época, afirma Woolf. "Quando o estilo dominante na área é grego e romano, eles dão aos seus deuses um face-lift", afirmou Woolf ao site Livescience.

Por exemplo, os antigos deuses egípcios acabam usando as roupas de legionários romanos e deuses da Mesopotâmia antigos. As melhores chances de identificar esta divindade enigmática é encontrar uma representação semelhante em algum lugar com uma inscrição que o descreva. 

Apócrifos: Analisando as Evidências



O termo apócrifo geralmente se refere a livros polêmicos do Antigo Testamento que os protestantes rejeitam e os católicos romanos e as igrejas ortodoxas aceitam. A palavra apócrifo significa “escondido” ou “duvidoso”. Os que aceitam esses documentos preferem chamá-los “deuterocanônicos”, isto é: livros do “segundo cânon”.

A Posição Católica Romana

Católicos e protestantes concordam quanto à inspiração 27 livros do NT. Diferem em 11 obras de literatura do AT (7 livros e 4 partes de livros). Essas obras polêmicas causaram discórdias na Reforma e, em reação à sua rejeição pelos protestantes, foram "infalivelmente" declaradas parte do cânon inspirado das Escrituras em 1546 pelo Concílio de Trento.

O Concílio afirmou:

“O Sínodo [...] recebe e venera [...] todos os livros [incluindo os apócrifos] tanto do Antigo quanto do Novo Testamento - visto que um só Deus é o Autor de ambos [...] que foram ditados, ou pela própria palavra de Jesus ou pelo Espírito Santo [...] se alguém não aceitar com sagrados e canônicos os livros mencionados integralmente com todas as suas partes, como costumavam ser lidos na Igreja Católica [...] será anátema” (Schaff 2.81).

Outro documento de Trento diz:

“Mas se alguém não aceitar o que está nos livros como sagrados e canônicos, inteiros com todas as partes da Bíblia [...] e se consciente e deliberadamente condenar a tradição mencionada anteriormente, que seja anátema” (Denzinger, Sources, nº 784).

A mesma linguagem afirmando os apócrifos é repetida pelo Concílio Vaticano II. Os apócrifos que Roma aceita incluem 11 ou 12 livros, dependendo de Baruque 1 até 6 ser dividido em duas partes. Baruque 1 até 5 e a carta de Jeremias (Baruque 6). O deuterocânon apócrifos pelos protestantes exceto a Oração de Manassés e 1 e 2 Esdras (chamados 3 e 4 Esdras pelos católicos romanos; Esdras e Neemias eram chamados 1 e 2 Esdras pelos católicos).

Apesar do católico romano ter 11 obras de literatura a mais que a versão protestante, apenas 7 livros a mais, ou um total de 46, aparecem no índice (o AT judeu e o protestante têm 39). Como se vê na tabela seguinte, outras 4 peças de literatura estão incorporadas a Ester e Daniel.

Livros apócrifos 
Livros deuterocanônicos
Sabedoria de Salomão Livro da Sabedoria (c.30 a. C)
Eclesiástico (Siraque) Siraque (132 a. C)
Tobias (c. 200 a. C) Tobias
Judite (c. 200 a. C) Judite
1 Esdras (c. 150-100 a. C) 3 Esdras
1 Macabeus (c. 110 a. C) 1 Macabeus
2 Macabeus (c. 110-70 a. C) 2 Macabeus
Baruque (c. 150-50 a. C) Baruque capítulos 1-5
Carta de Jeremias Baruque 6 (c. 300-100 a. C)
2 Esdras (c. 100 d. C) 4 Esdras
Adição a Ester Ester 10.4-16.24
Oração de Azarias (c. 200-1 a.C) Daniel 3.24-90: “A canção dos três rapazes”
Susana (c. 200-1 a. C) Daniel 13
Bel e o dragão Daniel 14 (c. 100 a. C)
Oração (ou segunda Oração) de Manassés (c. 100 a. C) - -

Argumentos Católicos em favor dos Apócrifos

O cânon maior às vezes é denominado “cânon alexandrino”, em contraposição ao “cânon palestinense”, que não contém os apócrifos, porque supostamente eram parte da tradução grega do AT (a Septuaginta, ou LXX) preparada em Alexandria, Egito. As razões geralmente dadas à essa lista são.

O NT reflete o pensamento dos apócrifos, e até faz referência a eventos neles descritos (Hb 11.35 com 2 Mac 7.12).

O NT cita mais o AT grego com base na LXX, que continha os apócrifos. Isso dá aprovação tácita ao texto inteiro.

Alguns pais da igreja primitiva citaram e usaram os apócrifos como Escritura na adoração pública.

Esses pais da igreja, como Irineu, Tertuliano e Clemente de Alexandria aceitavam todos os apócrifos como canônicos.

Cenários de catacumbas cristãs primitivas retratam episódios dos apócrifos, mostrando-os como parte da vida religiosa cristã primitiva, o que, no mínimo, revela grande apreço pelos apócrifos.

Manuscritos primitivos importantes (Álef, A e B ) intercalam os apócrifos entre os livros do AT como parte do AT greco-judaico.

Concílios da igreja primitiva aceitaram os apócrifos: Roma (382), Hipona (393) e Cartago (397).

A Igreja Ortodoxa aceita os apócrifos. Sua aceitação demonstra que se trata de uma crença cristã comum, não restrita aos católicos romanos.

A Igreja Católica Romana considerou os apócrifos como canônicos no Concílio de Trento (1546), de acordo com os concílios anteriores já mencionados e com o Concílio de Florença, pouco antes da Reforma (1442).

Os livros apócrifos continuaram sendo incluídos em versões bíblicas protestantes até o século XIX. Isso indica que mesmo os protestantes aceitavam os apócrifos até recentemente.

Livros apócrifos com texto em hebraico foram encontrados entre os canônicos do AT na comunidade do mar Morto em Qumran, logo faziam parte do cânon hebraico.

Resposta aos Argumentos Católicos

(1) O NT e os apócrifos. Pode haver no NT alusões aos apócrifos, mas não há nenhuma citação definitiva de qualquer livro apócrifo aceito pela Igreja Católica Romana. Há alusões aos livros pseudepigráficos (falsas escrituras) que são rejeitadas por católicos romanos e protestantes, tais como Ascensão de Moisés (Jd 9) e o Livro de Enoque (Jd 14,15). Também há citações de poetas e filósofos pagãos (At 17.28; 1 Co 15.33; Tt 1.12). Nenhuma dessas fontes é citada como Escritura, nem possui autoridade. O Novo Testamento simplesmente faz referência a verdades contidas nesses livros que, por outro lado, podem conter (e realmente contêm) erros. Teólogos católicos romanos concordam com essa avaliação. O NT jamais se refere a qualquer documento fora do cânon como autorizado.

(2) A LXX e os apócrifos. O fato de o NT citar várias vezes outros livros do AT grego não prova de forma alguma que os livros deuterocanônicos que ele contém sejam inspirados. Não é sequer um fato comprovado que a LXX do século I contivesse os apócrifos. Os primeiros manuscritos gregos que os incluem datam do século IV d.C.

Mesmo que esses escritos estivessem na LXX nos tempos apostólicos, Jesus e os apóstolos jamais os citaram, apesar de supostamente estarem incluídos na mesma versão do AT geralmente citada. Até as notas da New American Bible [Nova Bíblia Americana, NAB] admitem de forma reveladora que os apócrifos são "livros religiosos usados por judeus e cristãos que não foram incluídos na coleção de escritos inspirados". Pelo contrário, “...foram introduzidos bem mais tarde na coleção da Bíblia. Os católicos os chamam livros 'deuterocanônicos'” (NAB, p. 413).

(3) Usados pelos pais da igreja. Citações dos pais da igreja para apoiar a canonicidade dos apócrifos são seletivas e enganadoras. Alguns pais pareciam aceitar sua inspiração; outros os usavam para propósitos devocionais e homiléticos (pregação), mas não os aceitavam como canônicos. Um especialista nos apócrifos, Roger Beckwith, observa:

“Quando examinamos as passagens nos primeiros pais que supostamente deveriam estabelecer a canonicidade dos apócrifos, descobrimos que algumas delas são tiradas do grego alternativo de Esdras (1 Esdras) ou de adições ou apêndices de Daniel, Jeremias ou algum outro livro canônico, e que [...] não são muito relevantes; descobrimos ainda que, dentre as que são, muitas não dão qualquer indício de que o livro seja considerado Escritura” (The Old Testament, cânon 387)

Epístola de Barnabé 6.7 e Tertuliano, Contra Marcião 3.22.5, não citam Sabedoria 2.12, e sim Isaías 3.10, e Tertuliano, De anima [Da alma] 15, não cita Sabedoria 1.6, e sim Salmos 139.23, como a comparação entre as passagens demonstra. Da mesma forma, Justino Mártir, Diálogo com Trifão 129, claramente não cita Sabedoria , e sim Provérbios 8.21-25. Chamar Provérbios de "Sabedoria" está de acordo com a nomenclatura comum dos pais [ibid., p. 427].

Geralmente, nas referências, os pais não estavam afirmando a autoridade divina de nenhum dos onze [livros] canonizados "infalivelmente" por Trento. Citavam, apenas, uma obra bem conhecida da literatura hebraica ou um escrito devocional ao qual não davam nenhuma probalidade de inspiração do Espírito Santo.

(4) Os pais e os apócrifos. Alguns indivíduos da igreja primitiva valorizavam muito os apócrifos; outros se opunham com veemência a eles. O comentário de J.D.N.Kelly de que "para a grande maioria [dos pais] [...] as escrituras deuterocanônicas se classificavam como Escritura no sentido completo" está fora de sintonia com os fatos. Atanásio, Cirilo de Jerusalém, Orígenes e o grande teólogo católico romano e tradutor da Vulgata , Jerônimo, todos se opunham à inclusão dos apócrifos. No século II d.C, a versão síriaca (Peshita) não continha os apócrifos (Introdução bíblica, cap. 7 a 9).

(5) Temas apócrifos na arte das catacumbas. Muitos teólogos católicos também admitem que as cenas das catacumbas não provam a canonicidade dos livros cujos eventos retratam. Tais cenas indicam o significado religioso que os eventos retratados tinham para os cristãos primitivos. No máximo, demonstram respeito pelos livros que continham esses eventos, não o reconhecimento de que fossem inspirados.

(6) Livros nos manuscritos gregos. Nenhum dos grandes manuscritos gregos (Álef, A e B ) contém todos os livros apócrifos. Tobias, Judite, Sabedoria e Siraque (i.e, Eclesiástico ) são encontrados em todos eles, e os manuscritos mais antigos (B e Vaticano) excluem totalmente Macabeus. Mas os católicos apelam a esse manuscrito para apoiar sua posição. Além disso, nenhum manuscrito grego contém a mesma lista de apócrifos aceita por Trento (1545-63; Becwith, p. 194,382-3).

(7) Aceitação pelos primeiros concílios. Esses foram concílios locais e não eram impostos à igreja toda. Concílios locais geralmente erravam nas suas decisões e mais tarde eram anulados pela igreja universal. Alguns apologistas católicos argumentam que, mesmo que um concílio que não seja ecumênico, seus resultados podem ser impostos se forem confirmados. Mas reconhecem que não há maneira de saber quais afirmações dos papas são infalíveis. Na verdade, admitem que outras afirmações dos papas são até heréticas, tais como a heresia monelita do papa Honório I (m.638).

Também é importante lembrar que esses livros não são parte das Escrituras cristãs (período do NT). Encontram-se, assim, sob a jurisdição da comunidade judaica que os compusera e que, séculos antes, os rejeitara como parte do cânon.

Os livros aceitos por esses concílios cristãos podem até não ser os mesmos em cada caso. Portanto, não podem ser usados como prova do cânon exato mais tarde proclamado "infalível" pela Igreja Católica em 1546. Os Concílios locais de Hipona e Cartago no Norte da África foram influenciados por Agostinho, a voz mais importante da antigüidade, que aceitava os livros apócrifos canonizados mais tarde pelo Concílio de Trento. Mas a posição de Agostinho é infundada: 1) O próprio Agostinho reconheceu que os judeus não aceitaram esses livros como parte do cânon ( A cidade de Deus , 19.36-38). 2) Sobre os livros dos Macabeus, Agostinho disse: "...tidos por canônicos pela igreja e por apócrifos por judeus. A igreja assim pensa por causa dos terríveis e admiráveis sofrimentos desses mártires..."(Agostinho, 18.36). Nesse caso, O livro dos mártires , de Foxe, deveria estar no cânon. 3) Agostinho era incoerente, já que rejeitou livros que não foram escritos por profetas, mas aceitou um livro que parece negar ser profético (1 Macabeus 9.27). 4) A aceitação errada dos apócrifos por Agostinho parece estar ligada a sua crença na inspiração da LXX, cujos manuscritos gregos mais recentes os continham. Mais tarde Agostinho reconheceu a superioridade do texto hebraico de Jerônimo comparado ao texto grego da LXX. Isso deveria tê-lo levado a aceitar a superioridade do cânon hebraico de Jerônimo também. Jerônimo rejeitava completamente os apócrifos.

O Concílio de Roma (392) que aceitou os livros apócrifos não incluiu os mesmos livros aceitos por Hipona e Cartago. Ele não inclui Baruque, apenas seis, não sete, dos livros apócrifos declarados canônicos mais tarde. Até Trento o descreve como livro separado (Denzinger, nº 84).

(8) Aceitação pela Igreja Ortodoxa. A igreja grega nem sempre aceitou os apócrifos e sua posição atual não é inequívoca. Nos Sínodos de Constantinopla (1638), Jafa (1642) e Jerusalém (1672) esses livros foram declarados canônicos. Mesmo até 1839, no entanto, seu Catecismo maior omitia expressamente os apócrifos porque não existiam na Bíblia hebraica.

(9) Aceitação nos Concílios de Florença e Trento. No Concílio de Trento (1546) a proclamação infalível foi feita aceitando os apócrifos como parte da Palavra inspirada de Deus. Alguns teólogos católicos afirmam que o Concílio de Florença, anterior a Trento (1442) fez a mesma declaração. Mas esse concílio não afirmou nenhuma infalibilidade, e a decisão do concílio também não tem nenhuma base real na história judaixa, no NT ou na história da igreja primitiva. Infelizmente, a decisão de Trento veio num milênio e meio depois de os livros serem escritos e foi uma polêmica óbvia contra o protestantismo. O Concílio de Florença proclamou que os apócrifos eram inspirados para apoiar a doutrina do purgatório que havia surgido. Mas as manifestações dessa crença na venda de indulgências chegaram ao ponto máximo na época de Martinho Lutero, e a proclamação de Trento sobre os apócrifos era uma contradição clara ao ensino de Lutero. A adição infalível oficial dos livros que apóiam orações pelos mortos é muito suspeita, chegando apenas alguns anos depois de Lutero protestar contra essa doutrina. Ela tem toda a aparência de uma tentativa de dar apoio "infalível" para doutrinas que não têm verdadeira base bíblica.

(10) Livros apócrifos nas versões protestantes. Os livros apócrifos apareceram em versões bíblicas protestantes antes do Concílio de Trento e geralmente eram colocados numa seção separada porque não eram considerados de igual autoridade. Apesar de anglicanos e alguns outros grupos não-católicos terem sempre dado muita importância ao valor inspirativo e histórico dos apócrifos, nunca os consideraram de origem divina e autoridade igual a das Escrituras. Até teólogos católicos durante o período da Reforma distinguiam entre o deuterocânon e o cânon. O cardeal Ximenes fez essa distinção na sua imponente Bíblia, a Poliglota complutense (1514-1517) às vésperas da Reforma. O cardeal Cajetano, que depois se opôs a Lutero em Ausburgo, em 1518, publicou, depois da Reforma ter começado, o Comentário sobre todos os livros históricos autênticos do Antigo Testamento (1532), que não continha os apócrifos. Lutero falou contra os apócrifos em 1543, incluindo tais livros no fim da sua Bíblia (Metzger, p.181ss.).

(11) Livros apócrifos em Qumran. A descoberta dos rolos do mar Morto em Qumran não incluía apenas a Bíblia da comunidade (o AT) mas também sua biblioteca, com fragmentos de centenas de livros. Entre eles se achavam alguns livros apócrifos e apenas livros canônicos serem encontrados em pergaminhos e escritos especiais indica que os apócrifos não eram considerados canônicos pela comunidade de Qumeran. Menahem Mansur alista os seguintes fragmentos dos apócrifos e dos livros pseudepígrafos : Tobias , em hebraico e aramaico; Enoque , em aramaico;Jubileus , em hebraico; Testamento de Levi e Naftali , em aramaico; literatura apócrifa de Daniel , em hebraico e aramaico; e Salmos de Josué (Mansur, p.203). O especialista em manuscritos do mar Morto, Millar Burroughs, concluiu: "Não há motivo para acreditar que algumas dessas obras fosse venerada como Escritura Sagrada" (More light on the Dead Sea Scrolls p. 178).

No máximo, tudo o que os argumentos usados em favor da canonicidade dos livros apócrifos provam é que vários livros receberam níveis variados de aceitação por pessoas diferentes na igreja cristã, geralmente não atingindo a confirmação de sua canonicidade. Só depois de Agostinho e dos concílios locais que ele dominou declararem-nos inspirados é que começaram a ser usados e, por fim, receberam aceitação "infalível" da Igreja Católica Romana em Trento. Isso ainda não atinge o tipo de reconhecimento inicial, contínuo e total entre as igrejas cristãs dos livros canônicos do AT protestante e da Torá judaica (que exclui os apócrifos). Os verdadeiros livros canônicos foram recebidos imediatamente pelo povo de Deus no cânon crescente das Escrituras (Introdução bíblica, cap. 8). Qualquer debate subseqüente foi travado pelos que não estiveram numa posição, assim como sua audiência imediata, de saber se eram de um apóstolo ou profeta autorizado. Eles já estavam no cânon; algumas pessoas em gerações posteriores questionaram se deviam estar ali. Eventualmente, todos os antilegomena (livros questionados mais tarde por algumas pessoas) foram retidos no cânon. Isso não aconteceu com os apócrifos, pois os protestantes rejeitaram todos eles e até os católicos rejeitaram 3 Esdras , 4 Esdras e A oração de Manassés .

Argumentos a favor do cânon protestante

A evidência indica que o cânon protestante, que consiste em 39 livros da Bíblia hebraica e exclui os apócrifos, é o verdadeiro cânon. A única diferença entre o cânon protestante e o palestino está na sua ordem. A Bíblia tem 24 livros. Combinados em uma só estão 1 e 2 Samuel, bem como 1 e 2 Reis, 1 e 2 Crônicas, Esdras e Neemias (o que reduz o número em quatro). Os 12 profetas menores são contados como um único livro (reduzindo o número em 11). Os judeus palestinos representavam a ortodoxia judaica. Portanto, seu cânon era reconhecido por ortodoxo. Foi o cânon de Jesus ( Introdução bíblica , cap. 4), Josefo e Jerônimo. Foi o cânon de muitos pais da igreja primitiva, entre eles Orígenes, Cirilo de Jerusalém e Atanásio.

Os argumentos que apoiam o cânon protestante podem ser divididos em dois grupos: históricos e doutrinários.

1. Argumentos históricos.

a) Teste da canonicidade. Ao contrário do argumento católico com base no uso cristão, o verdadeiro teste da canonicidade é a característica profética. Deus determinou quais livros estariam na Bíblia ao dar sua mensagem a um profeta. Então apenas livros escritos por um profeta ou porta-voz credenciado por Deus são inspirados ou pertencem ao cânon das Escrituras.

É claro que, apesar de Deus ter determinado a canonicidade desta maneira, o povo de Deus teve de descobrirquais desses livros eram proféticos. O povo de Deus a quem o profeta escreveu sabia que os profetas satisfaziam os testes bíblicos para serem representantes de Deus, e eles autenticaram ao aceitar os livros como vindos de Deus. Os livros de Moisés foram aceitos imediatamente e guardados num lugar sagrado (Dt 31.26). O livro de Josué foi aceito imediatamente e preservado com a Lei de Moisés (v. Js 24.26). Samuel foi acrescentado à coleção (v. 1 Sm 10.25). Daniel já tinha uma cópia do seu contemporâneo Jeremias (Dn 9.2) e da Lei (Dn 9.11,13). Apesar da mensagem de Jeremias ter sido rejeitada por grande parte da sua geração, o remanescente deve ter aceitado e espalhado rapidamente sua obra. Paulo encorajou as igrejas a fazer circular suas epístolas inspiradas (v. Cl 4.16). Pedro possuía uma coleção das obras de Paulo, igualando-as ao Antigo Testamento como "Escritura" (2 Pd 3.15,16).

Havia várias maneiras de contemporâneos confirmarem se alguém era profeta de Deus. Alguns foram confirmados de forma sobrenatural (v. Êx 3.4; At 2.22; 2 Co 12.12; Hb 2.3,4). Às vezes isso acontecia por meio da confirmação imediata da autoridade sobre a natureza ou da precisão da profecia preditiva. Na verdade, falsos profetas eram eliminados se suas previsões não se realizassem (Dt 18.20-22). Supostas revelações que contradiziam verdades reveladas anteriormente também eram rejeitadas (cf. Dt 13.1-3).Evidências de que os contemporâneos de cada profeta autenticaram e acrescentaram seus livros ao cânon crescente vêm das citações de obras posteriores. As obras de Moisés são citadas em todo o AT, começando com seu sucessor imediato Josué (Js 1.7; 1 Rs 2.3; 2 Rs 14.6; 2 Cr 17.9; Ed 6.18; Ne 13.3; Jr 8.8; Ml 4.4). Profetas posteriores citam os anteriores (e.g., Jr 26.18; Ez 14.14,20; Dn 9.2; Jn 2.2-9; Mq 4.1-3). No NT, Paulo cita Lucas (1 Tm 5.18); Pedro reconhece as epístolas de Paulo (2 Pd 3.15,16), e Judas (4-12) cita 2 Pedro. O Apocalipse está cheio de imagens e idéias de Escrituras anteriores, especialmente Daniel (v., e.g., Ap 13).

Todo o AT judaico/protestante foi considerado profético. Moisés, que escreveu os cinco primeiros livros, foi um profeta (Dt 18.15). O restante dos livros do AT foi conhecido durante séculos pela designação de "Profetas"(Mt 5.17; Lc 24.27). Posteriormente esses livros foram divididos em "Profetas" e "Escritos". Alguns acreditam que essa divisão foi baseada no fato do autor ser um profeta por ofício ou por dom. Outros acreditam que a separação foi estabelecida para uso tópico em festivais judaicos, ou que os livros foram colocados em seqüência cronológica, por ordem de tamanho decrescente ( Introdução bíblica , cap. 7). Seja qual for a razão, é evidente que a maneira original (cf. 7.12) e contínua de referir-se ao AT como um todo até a época de Cristo era a divisão dupla: "a Lei e os Profetas". Os "apóstolos e profetas"(Ef 3.5) compunham o NT. Então, toda a Bíblia é um livro profético, incluindo o último livro (e.g., Ap 20); isso não se aplica aos apócrifos.

b) Profecia não-autenticada. Há forte evidência de que os livros apócrifos não são proféticos, e já que a profecia é o teste da canonicidade, só esse fato os elimina do cânon. Nenhum livro apócrifo afirma ser escrito por um profeta. Na verdade, o livro de Macabeus afirma não ser profético (1 Macabeus 9.27). E não há confirmação sobrenatural de qualquer um dos escritores dos livros apócrifos, como há para os profetas que escreveram livros canônicos. Não há profecia que preveja o futuro nos apócrifos, como há em alguns livros canônicos (e.g., Is 53; Dn 9; Mq 5.2). Não há nova verdade messiânica nos apócrifos. Até a comunidade judaica, a quem os livros pertenciam, reconheceu que os dons proféticos haviam cessado em Israel antes de os apócrifos serem escritos (v. citações anteriores). Os livros apócrifos jamais foram alistados na Bíblia judaica com os profetas ou qualquer outra seção. Os livros apócrifos não são citados nenhuma vez com autoridade por nenhum livro profético escrito depois deles. Levando em conta tudo isso, temos evidências mais que suficientes de que os apócrifos não eram proféticos e, portanto, não deveriam ser parte do cânon das Escrituras.

c) Rejeição judaica. Além das evidências da característica profética apontarem apenas para os livros do AT judaico e protestante, há uma rejeição contínua dos apócrifos como cânon por mestres judeus e cristãos.

Filo, um mestre judeu alexandrino (20 a.C.- 40 d.C.), citava o AT prolificamente, utilizando quase todos os livros canônicos, mas nunca citou os apócrifos como inspirados.

Josefo (30-100 d.C.), um historiador judeu, exclui explicitamente os apócrifos, numerando os livros do AT em 22 (= 39 livros no Antigo Testamento protestante). Ele também nunca citou um livro apócrifo como Escritura, apesar de conhecê-los bem. Em Contra Ápion (1.8), ele escreveu:

"Pois não temos uma multidão incontável de livros entre nós, discordando dos outros e contradizendo uns aos outros [como os gregos têm], mas apenas 22 livros, cinco pertencem a Moisés, contêm sua lei e as tradições da origem da humanidade até a morte dele. Esse intervalo de tempo foi pouco menor que três mil anos; mas quanto ao tempo da morte de Moisés até o reinado de Artaxerxes, rei da Pérsia, que reinou em Xerxes, os profetas , que vieram depois de Moisés, escreveram o que foi feito nas respectivas épocas em treze livros . Os outros quatro livros contêm hinos a Deus e preceitos para a conduta humana" (Josefo, 1.8, grifo do autor).

Esses correspondem exatamente ao AT judaico e protestante, que exclui os apócrifos.

Os mestres judeus reconheceram que sua linhagem profética terminou no séc.VI a.C. Mas, como até os católicos [romanos] reconhecem, todos os livros apócrifos foram escritos depois dessa época. Josefo escreveu: "De Artaxerxes até nossa época tudo foi registrado, mas não foi considerado digno do mesmo reconhecimento do que o que o precedeu, porque a sucessão exata dos profetas cessou" (Josefo). Outras afirmações rabínicas sobre o término da profecia apóiam esse argumento (v. Becwith, p. 370). O Seder olam rabbah 30 declara: "Até então [a vinda de Alexandre, o Grande] os profetas profetizavam por meio do Espírito Santo. Daí em diante: 'Incline seu ouvido e ouça as palavras dos sábios'". Baba batra 12 b declara: "Desde a época em que o templo foi destruído, a profecia foi tirada dos profetas e dada aos sábios". O rabino Samuel bar Inia disse: "O segundo Templo não tinha cinco coisas que o primeiro Templo possuía: a saber, o fogo, a arca, o Urim e o Tumim, o óleo da unção e o Espírito Santo [da profecia]". Então, os mestres judeus (rabinos) reconheceram que o período de tempo durante o qual os apócrifos foram escritos não foi um período em que Deus estava transmitindo escrituras inspiradas.

Jesus e os autores do Novo Testamento nunca citaram os apócrifos como Escritura, apesar de estarem cientes dessas obras e fazerem alusão a elas ocasionalmente (e.g., Hb 11.35 pode fazer alusão a 2 Macabeus 7,12, ou pode fazer uma referência a 1 Rs 17.22). Mas centenas de citações no NT mencionam o cânon do Antigo Testamento. A autoridade com que foram citadas indica que os autores do NT as consideravam parte da "Lei e dos Profetas"[i.e, o AT inteiro], que era considerada Palavra de Deus inspirada e infalível (Mt 5.17,18; cf. Jo 10.35). Jesus citou partes de todas as divisões da "Lei" e do "Profetas" do AT, que ele denominava de "todas as Escrituras"(Lc 24.27).

Os eruditos judeus em Jâmia (c. 90 d.C.) não aceitaram os apócrifos como parte do cânon judaico divinamente inspirado (v. Beckwith, p. 276-7). Já que o NT afirma explicitamente que a Israel foram confiadas as "palavras de Deus" e que a nação fora destinatária das alianças e da Lei (Rm 3.2), os judeus foram considerados guardiões dos limites do próprio cânon. Como tal, sempre rejeitavam os apócrifos.

d) A rejeição dos concílios da igreja primitiva. Nenhuma lista canônica ou concílio da igreja cristã considerou os apócrifos inspirados durante os quase quatro primeiros séculos. Isso é importante, já que todas as listas disponíveis e a maioria dos mestres desse período omitem os apócrifos. Os primeiros concílios a aceitar os apócrifos eram apenas locais, sem força ecumênica. A alegação católica de que o Concílio de Roma (392), apesar de não ser um concílio ecumênico, tinha força ecumênica porque o papa Dâmaso (304-394) o ratificou é sem fundamento. É uma alegação forçada, que supõe que Dâmaso era um papa com autoridade infalível. E até mesmo os católicos reconhecem que esse concílio não era um grupo ecumênico. Nem todos os teólogos católicos concordam que tais afirmações dos papas são infalíveis. Não há listas infalíveis de afirmações infalíveis dos Papas. Nem há um critério universalmente aprovado para desenvolver tais listas. No máximo, apelar ao papa para tornar infalível a afirmação de um concílio local é uma faca de dois gumes. Mesmo teólogos católicos admitem que alguns papas ensinaram erros e foram até heréticos.

e) Rejeição por parte dos primeiros pais da igreja. Alguns dos primeiros pais da igreja declararam-se contrários aos [livros] apócrifos. Entre esses figuravam Orígenes, Cirilo de Jerusalém, Atanásio e o grande tradutor católico das Escrituras, Jerônimo.

f) Rejeição por Jerônimo. Jerônimo (340-420), o grande teólogo bíblico do período medieval e tradutor da Vulgatalatina, rejeitou explicitamente os apócrifos como parte do cânon. Ele disse que a igreja os lê "para exemplo e instrução de costumes", mas não "os aplica para estabelecer nenhuma doutrina"(Prefácio do Livro de Salomão daVulgata , citado em Beckwith, p. 343). Na verdade, ele criticou a aceitação injustificada desses livros por Agostinho. A princípio, Jerônimo até recusou-se a traduzir os apócrifos para o latim, mas depois fez uma tradução rápida de alguns livros. Depois de descrever os livros exatos do AT judaico [e protestante], Jerônimo conclui:

"E então no total há 22 livros da Lei antiga [conforme as letras do alfabeto judaico], isto é, 5 de Moisés, 8 dos Profetas e 9 hagiógrafos. Apesar de alguns incluírem [...] Rute e Lamentações no hagiógrafo, e acharem que esses livros devem ser contados (separadamente) e que há então 24 livros da antiga Lei, aos quais Apocalipse de João representa por meio do número de 24 anciâos [...] Esse prólogo pode servir perfeitamente como elmo (i.e., equipado com elmo, contra atacantes) de introdução a todos os livros bíblicos que traduzimos do hebraico para o latim, para que saibamos que os que não estão incluídos nesses devem ser incluídos nos apócrifos " (ibid., grifo do autor)

No prefácio de Daniel, Jerônimo rejeitou claramente as adições apócrifas a Daniel ( Bel e o Dragão e Susana ) e defendeu apenas a canonicidade dos livros encontrados na Bíblia hebraica, escrevendo:

“As histórias de Susana e de Bel e o Dragão não estão contidas no hebraico [...] Por isso, quando traduzia Daniel muitos anos atrás, anotei essas visões com um símbolo crítico, demonstrando que não estavam incluídas no hebraico [...] Afinal, Orígenes, Eusébio e Apolinário e outros clérigos e mestres distintos da Grécia reconhecem que, como eu disse, essas visões não se encontram no hebraico, e portanto não são obrigados a refutar Porfírio quanto a essas porções que não exibem autoridade de Escrituras Sagradas” (ibid., grifo do autor).

A sugestão de que Jerônimo realmente favorecia os apócrifos, mas só estava argumentando o que os judeus os rejeitavam, é infundada. Ele disse claramente na citação acima que: " não exibem autoridade de Escrituras Sagradas ", e jamais retirou sua rejeição dos apócrifos. Ele afirmou na obra Contra Rufino , 33, que havia " seguido o julgamento das igrejas " nesse assunto. E sua afirmação: " Não estava seguindo minhas convicções " parece referir-se às " afirmações que eles [os inimigos do Cristianismo] estão acostumados a fazer contra nós ". De qualquer forma, ele não retirou em lugar algum suas afirmações contra os apócrifos. Finalmente, o fato de que Jerônimo tenha citado os livros apócrifos não é prova de que os aceitava. Ele afirmou que a igreja os lê "para exemplo e instrução de costumes" mas não " os aplica para estabelecer qualquer doutrina ".

g) A Rejeição dos teólogos. Até teólogos católicos romanos notáveis durante o período da Reforma rejeitaram os apócrifos, tal como o cardeal Cajetano, que se opôs a Lutero. Como já foi citado, ele escreveu o livro "Comentário sobre todos os livros históricos autênticos do Antigo Testamento" (1532), que excluía os apócrifos. Luteranos e anglicanos usam-nos apenas para assuntos éticos e devocionais, mas não os consideram oficiais em questões de fé. Igrejas Reformadas seguiram A Confissão de Fé de Westminster (1647), que afirma:

“Os livros geralmente chamados Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do Cânon da Escritura; não são, portanto, de autoridade na Igreja de Deus, nem de modo algum podem ser aprovados ou empregados senão como escritos humanos” (Da Sagrada Escritura, 1.III)

Em resumo, a igreja cristã (incluindo anglicanos, luteranos e reformados) rejeitou os livros deuterocanônicos como parte do cãnon. Eles fazem isto porque lhes falta o fator determinante primário da canonicidade: os livros apócrifos não têm evidência de que foram escritos por profetas credenciados por Deus. Outra evidência é encontrada no fato de que os livros apócrifos jamais foram citados como autoridade nas Escrituras do NT, nem foram parte do cânon judaico, e a igreja primitiva nunca os aceitou como inspirados.

h) O erro de Trento. O pronunciamento infalível de que os livros apócrifos são parte da Palavra inspirada de Deus revela quão falível uma afirmação supostamente infalível pode ser. Esse artigo demonstrou que a afirmação é historicamente infundada. Foi um exagero polêmico e uma decisão arbitrária envolvendo uma exclusão dogmática.

O pronunciamento [do Concílio] de Trento sobre os apócrifos foi parte de uma ação polêmica contra Lutero. Seus defensores consideravam que a aceitação dos apócrifos como inspirados era necessária para justificar ensinamentos que Lutero havia atacado, principalmente as orações pelos mortos. O texto de 2 Macabeus 12.46 diz: "... mandou fazer o sacrifício expiatório pelos falecidos, a fim de que fossem absolvidos do seu pecado"(CNBB). Já que havia uma obrigação de aceitar certos livros, as decisões foram um tanto arbitrárias. Trento aceitou 2 Macabeus, que apontava as orações pelos mortos e rejeitou 2 Esdras (4 Esdras pela avaliação católica), que tinha uma afirmação que não apoiava a prática (cf. 7.105).

A própria história dessa seção de 2 (4) Esdras revela a arbitrariedade da decisão de Trento. Ele foi escrito em aramaico por um judeu desconhecido (c. 100 d.C.) e circulou nas antigas versões latinas (c. 200). A Vulgata o incluiu como apêndice do NT (c.400). Desapareceu da Bíblia até que protestantes, começando por Johann Haug (1726-1752), começaram a imprimi-lo nos apócrifos com base nos textos aramaicos, já que não constava nos manuscritos em latim da época. Mas, em 1874 uma longa seção em latim (70 versículos do capítulo 7) foi encontrada por Robert Bently numa biblioteca em Amiens, França. Bruce Metzger comentou:

“É provável que a seção perdida tenha sido deliberadamente arrancada por um ancestral da maioria dos manuscritos latinos sobreviventes, por razões dogmáticas, pois a passagem contém uma negação enfática do valor das orações pelos mortos”.

Alguns católicos argumentam que essa exclusão não é arbitrária porque essa obra não fazia parte das listas deuterocanônicas antigas, foi escrita depois da época de Jesus Cristo, foi relegada a uma posição inferior naVulgata e só foi incluída nos apócrifos por protestantes no século XVII. Por outro lado, 2 (4) Esdras fez parte de listas antigas de livros não considerados completamente canônicos. Segundo o critério católico, a data da obra não diz respeito à possibilidade de ter ela constado dos apócrifos judaicos, mas com o fato de ter sito usada por cristãos primitivos; ela foi usada, juntamente com outros livros apócrifos. Não deveria ter sido rejeitada porque tinha posição inferior na Vulgata . Jerônimo relegou todas essas obras a uma posição inferior. Ela não reapareceu no latim até o século XVIII porque aparentemente algum monge católico arrancou a seção de orações pelos mortos.

Orações pelos mortos eram preocupação constante dos clérigos de Trento, que convocaram seu concílio apenas 29 anos depois de Lutero ter publicado suas teses contra a venda de indulgências. As doutrinas de indulgências, purgatório e orações pelos mortos permanecem ou caem juntas.

2. Argumentos doutrinários.

a) Canonicidade. As posições falsas e verdadeiras que determinam a canonicidade podem ser comparadas da seguinte forma ( Introdução bíblica, p. 62).

Posição incorreta sobre o cânon 
Posição correta sobre o cânon
A igreja determina o cânon A igreja descobre o cânon
A igreja é a mãe do cânon A igreja é filha do cânon
A igreja é magistrada do cânon A igreja é ministra do cânon
A igreja regula o cânon A igreja reconhece o cânon
A igreja é juíza do cânon A igreja é testemunha do cânon
A igreja é mestra do cânon A igreja é serva do cânon

Fontes católicas podem ser citadas para apoiar a doutrina de canonicidade que se parece muito com a “posição correta”. O problema é que apologistas católicos geralmente se equivocam nesse assunto. Peter Kreeft, por exemplo, argumentou que a igreja deve ser infalível se a Bíblia é, já que o efeito não pode ser maior que a causa e a igreja causou o cânon. Mas se a igreja é regulada pelo cânon, em vez de governá-los, então a igreja não é a causa do cânon. Outros defensores do catolicismo cometem o mesmo erro, afirmando que faz a igreja definidora do cânon. Eles negligenciam o fato de que foi Deus (por inspiração) quem causou as Escrituras canônicas, não a igreja .

Essa má interpretação às vezes é evidente no uso equivocado da palavra testemunha . Quando falamos sobre a igreja como "testemunha" do cânon depois da época em que foi escrito não queremos dizer no sentido de ser uma testemunha ocular (i.e., relatando evidência de primeira mão). O papel adequado da igreja cristã no descobrimento de quais livros pertencem ao cânon pode ser reduzido a vários preceitos.

Somente o povo de Deus contemporâneo à autoria dos livros bíblicos foi verdadeira testemunha da evidência. Só eles foram testemunhas do cânon durante seu desenvolvimento. Só eles poderiam atestar a evidência da característica profética dos livros bíblicos, que é o fator determinante da canonicidade.

A igreja posterior não é testemunha da evidência do cânon . Ela não cria nem constitui evidência para o cânon. É apenas descobridora e observadora da evidência que resta para a confirmação original da qualidade profética dos livros canônicos. A suposição da igreja de que a evidência subsiste em si mesma é o erro por trás da posição católica.

Nem a igreja primitiva nem a recente é juíza do cânon . A igreja não é o árbitro final quanto aos critérios do que será admitido como evidência. Somente Deus pode determinar os critérios para nosso descobrimento do que seja sua Palavra. O que é de Deus terá suas "impressões digitais"; só Deus o determina como são suas "impressões digitais".

Tanto a igreja primitiva quanto a recente são mais juradas que juízas . Os jurados ouvem as evidências, avaliam as evidências e apresentam um veredicto de acordo com as evidências . A igreja contemporânea (século I) testemunhou evidências de primeira mão da atividade profética (tais como milagres), e a igreja posterior examinou as evidências da autenticidade desses livros proféticos, que foram confirmados diretamente por Deus quando foram escritos.

De certa forma, a igreja “julga” o cânon. Ela é chamada, como todos os jurados são, a realizar a seleção e a avaliação das evidências para chegar ao veredicto. Mas não é isso que a igreja romana praticou no seu papel magisterial de determinação do cânon. Afinal, é isso que se quer dizer com o “magistério” da igreja. A hierarquia católica não é apenas ministerial; tem papel judicial, não apenas administrativo. Não é apenas o júri observando a evidência, mas é o juiz determinando o que se classifica como evidência.

Aí está o problema. Ao exercer o papel magisterial, a Igreja Católica escolheu o curso errado para apresentar sua decisão sobre os apócrifos. Inicialmente, decidiu seguir o critério errado, uso cristão em vez de qualidade profética . Em segundo lugar, uso evidência de segunda mão de escritores posteriores em vez de apenas evidência de primeira mão para a canonicidade (confirmação divina da atuação profética do autor). Em terceiro lugar, não usou confirmação imediata dos contemporâneos, mas afirmações posteriores de pessoas nascidas séculos depois dos eventos. Todos esses erros surgiram da interpretação incorreta do papel da igreja como juíza em vez de jurada, como magistrada em vez de ministra, soberana em vez de serva do cânon. Por outro lado, a rejeição protestante dos apócrifos foi baseada na compreensão do papel das primeiras testemunhas para as características proféticas e da igreja como guardiã dessa evidência da autenticidade.

Conclusão

As disputas sobre os apócrifos do AT têm um papel importante nas disputas católicas e protestantes sobre ensinamentos como purgatório e oração pelos mortos. Não há evidências de que os livros apócrifos sejam inspirados e, portanto, devam fazer parte do cânon das Escrituras inspiradas. Eles não afirmam ser inspirados, e a inspiração não lhes é atribuída pela comunidade judaica que os produziu. Não são citados nenhuma vez como Escritura no NT. Muitos pais da igreja primitiva, incluindo Jerônimo, os rejeitavam categoricamente. Acrescentá-los à Bíblia pelo decreto “infalível” no Concílio de Trento evidencia um pronunciamento dogmático e polêmico criado para sustentar doutrinas que não são apoiadas claramente em nenhum dos livros canônicos.


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