segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Christopher D. Stanley, Catherine Hezser, e o letramento das sociedades nos estudos históricos do judaísmo de Jesus

O baixo nível de letramento das sociedades mediterrâneas dos primeiros séculos, em geral, e das comunidades rurais, em particular, não era levado em consideração nos estudos históricos do judaísmo de Jesus e sua continuação, o cristianismo primitivo. O estudo antropológico comparado de culturas, antigas e modernas, em que a comunicação é marcadamente oral trouxe novas luzes para a compreensão da transmissão primitiva das tradições de e sobre Jesus.

Não se encontra em parte alguma do material cristão, intra ou extracanônico, qualquer recomendação por parte do Jesus histórico (ou que a ele tenha sido atribuído) para que seus seguidores registrassem por escrito seus ditos e feitos para a posteridade. Antes, o que se observa, em vários ditos de diferentes seções do cristianismo, são menções explícitas a um programa de disseminação de uma mensagem, atrelada à interiorização e à exemplificação de um estilo de vida cujo meio primordial de transmissão seria a palavra falada. Implica dizer, a comunicação face a face, coletivamente repartida.

É inegável, porém, que os homens e mulheres que aderiram ao programa político-religioso do Reino de Deus, no espaço de algumas décadas, legaram substancial corpo de textos das mais variadas espécies e gêneros. Como declara Harry Gamble, “nenhum grupo religioso greco-romano produziu, usou ou deu valor a textos em escala comparável ao Judaísmo e ao Cristianismo, de tal modo que, excetuando a literatura judaica, não há um corpo apreciável de escritos religiosos com que a literatura cristã primitiva possa ser proveitosamente comparada.”

Com efeito, houve um espaço de tempo, aqui considerado como a transição do Jesus histórico ao cristianismo mais primitivo, em que as memórias dos feitos e ditos do milagreiro de Nazaré, mais ou menos afetadas por fatores emocionais, foram recordadas, criadas, desenvolvidas, alteradas, melhoradas, expandidas, abreviadas, contestadas e também esquecidas.

Essas memórias, não obstante esses fatores, circulavam e eram transportadas pelos seguidores que permaneceram ligados ao grupo de Jesus, ainda que não exclusivamente, mas essencialmente, tal qual projetada e vivenciada pelo próprio Jesus durante seu ministério público: por peregrinos em movimento no curso de pregações comunitárias.

Esse estágio intermediário, portanto, requer uma abordagem que leve em conta o mundo social das primeiras comunidades de judeus e gentios que se cristianizaram, ou seja, considerando: (a) o não-letramento massivo da população e (b) o papel desempenhado pela comunicação oral em todas as camadas sociais que caracterizam a época em que as tradições primitivas de e sobre Jesus eram transmitidas.

Nesse sentido, Christopher D. Stanley pondera que, virtualmente, todos os pesquisadores do Novo Testamento parecem divisar um mundo em que os autores cristãos escreviam para congregações letradas que cultivavam o hábito de ler, estudar e discutir entre si acerca das escrituras judaicas e os escritos das lideranças cristãs. Com efeito, embora vários estudiosos reconheçam que os baixos níveis de letramento estavam entre um dos fatores que contribuíram para a transmissão oral das tradições de e sobre Jesus antes de sua composição na forma de evangelhos, eles têm pouco a dizer sobre como esse baixo letramento poderia ter afetado o uso dos evangelhos nas comunidades primitivas após eles terem sido escritos. Ou seja, a maioria dos estudiosos contemporâneos trabalha com um modelo social que pressupõe níveis de letramento no interior das primeiras comunidades cristãs que variam de médio a alto.

Entretanto, quão realista é esse modelo? É evidente que estimar a extensão do letramento dentro das comunidades judaico-cristãs do primeiro século constitui-se num empreendimento incerto, embora alguns estudiosos concordem que pelo simples fato de que os evangelhos foram escritos e preservados implica um substancial conhecimento da escrita à medida que não faria sentido para seus autores compor textos para pessoas que não os pudessem ler. O problema dessa posição é que ela admite aquilo que precisa provar, ou seja, que os textos eram escritos para ser lidos e estudados por judeus cristãos comuns.

Outros acadêmicos argumentam que o aparecimento freqüente de citações e alusões bíblicas nos escritos cristãos indicaria um substancial grau de letramento nas comunidades primitivas. Por trás desse argumento jaz a crença de que os autores neo-testamentários esperavam que suas audiências fossem capazes de identificar todas as referências explícitas e muitas de suas alusões implícitas às escrituras judaicas. O que os pesquisadores não provam é como os primeiros seguidores obtiveram tão alto nível de letramento bíblico.

Segundo Stanley, uma porção de estudos recentes questionou se o letramento entre os judeus da antiguidade era, de fato, tão alto quanto anteriormente se pensava. Uma inspeção mais detida das evidências persuadiu muitos pesquisadores de que os textos utilizados como argumentos a favor de um letramento judaico amplamente disseminado estavam, em verdade, falando acerca de subgrupos especiais situados no interior da comunidade judaica. Catherine Hezser concluiu, após exaustivo levantamento de evidências literárias e epigráficas na Palestina romana, que pouquíssimos judeus eram capazes de ler textos simples e assinar seus próprios nomes durante a era imperial.

A autora descreve o letramento entre os judeus por meio da imagem de círculos concêntricos no qual o círculo central seria ocupado por um número muito pequeno de pessoas altamente letradas que podia ler textos em hebraico/aramaico e em grego. O círculo seguinte seria composto por pessoas que podiam ler textos em hebraico/aramaico ou em grego. Em torno desses dois círculos, haveria um terceiro, formado por pessoas que não conseguiriam ler textos literários, mas seriam capazes de ler somente listas ou cartas. Uma proporção bem mais ampla da população conseguiria identificar letras, nomes e rótulos e, finalmente, a vasta maioria da população que tinha acesso a textos apenas por meio de intermediários.

Ao mesmo tempo, vem crescendo uma consciência, como assegura Richard Horsley , que as comunicações na Galileia, assim “como em outras partes do império romano, eram em grande parte orais, mesmo entre os letrados. A escrita tinha pouca importância, a não ser para certas funções da elite”. Percepção bastante similar à oferecida por Eric Havelock, segundo a qual, “dos egípcios e sumérios aos fenícios e hebreus (para não mencionar os indianos e os chineses), a escrita nas sociedades onde era praticada restringiu-se às elites clericais ou comerciais, que se davam ao trabalho de aprendê-la”.

Por conseguinte, Horsley sugere que três fatores sejam reconhecidos: (1) no mundo antigo, pouquíssimas pessoas tinham as habilidades mínimas para ler; (2) a escrita estava a serviço, principalmente, da comunicação oral e (3) dadas as disponibilidades limitadas e a utilização proibitiva de rolos escritos tais como os das Escrituras Judaicas, o cultivo das tradições culturais israelitas se dava através da memória e da comunicação oral.

WERNER KELBER E AS LIMITAÇÕES DA CRÍTICA DAS FORMAS

Nos anos recentes, o campo dos estudos bíblicos histórico-críticos deparou-se com inovações em três áreas inter-relacionadas que apresentaram desafios fundamentais às suposições padrão até então predominantes: (a) na década de 70, alguns intérpretes começaram a ler os evangelhos intracanônicos como narrativas globais e não com o olhar centrado sobre alguns ditos e passagens; (b) na década de 80, começaram a despontar explorações sobre a comunicação oral que era predominante no mundo antigo e suas conseqüências para os materiais evangélicos e (c) nos anos 90, a memória cultural chamou a atenção de pelo menos alguns intérpretes como um fator central na composição e apropriação da literatura bíblica, em especial no que tange aos evangelhos.

Nessas três áreas inter-relacionadas, Werner Kelber foi um dos pioneiros em todas. Ele foi um dos primeiros a explorar o evangelho de Marcos como uma narrativa com um enredo central e não como uma espécie de “rosário”, no sentido de uma série de pequenos episódios e situações interligados por acidentes geográficos. Ele foi um dos primeiros a reconhecer que os evangelhos foram compostos e recebidos em um mundo dominado pela comunicação oral. Em conseqüência desses insights, Kelber demonstrou que as narrativas evangélicas foram produzidas por e a partir da memória cultural. Suas incisivas investigações nessas áreas conduziram a mudanças decisivas na abordagem e no entendimento do evangelho de Marcos. No entanto, como pondera Richard Horsley, nos estudos bíblicos “a inovação nem sempre é bem-vinda e é, às vezes, suspeita”.

Assim, uma das principais premissas que fundamentam toda a pesquisa de Kelber consiste na percepção de que a “consciência humana é estruturada em pensamentos pelas formas de comunicação disponíveis”. Por conseguinte, “o meio oral, em que as palavras são dirigidas da boca para o ouvido, manuseia a informação diferentemente do meio escrito, que liga os olhos a visíveis, porém silenciosas, letras sobre páginas e páginas”.

Porém, ele prossegue, a atual pesquisa bíblica acadêmica é, num grau elevado, um produto das forças interdependentes da lógica e da cultura impressa. A lógica, como é sabido, foi formalizada com a ajuda da escrita.

O surgimento do alfabeto converteu a linguagem falada em artefatos que facilitaram a indexação de sons em um número limitado de símbolos. Um triunfo da lógica em si mesmo, a alfabetização da linguagem veio a servir, de maneira crescente, como um catalisador na formação e implementação do pensamento abstrato. Mais tarde, a impressão despersonalizou as palavras e transformou a cultura manuscrita, fortalecendo a linguagem com um senso de objetivação desconhecido até então.

No entanto, fora dos estudos bíblicos observa-se uma ampliação da consciência que os padrões de regularidade linguística e as noções de propriedade verbal fixa não são empregáveis em culturas quirográficas e inaplicáveis para o discurso oral. Nesse sentido, reitera Kelber, “a reificação e neutralização de textos, embora altamente análogo ao processamento tipográfico da linguagem, fez-nos esquecer que as quirografias antigas nasceram, tanto pelo ângulo da composição quanto do ângulo da recepção, em um meio saturado por sensibilidades orais”.

Precisamente porque documentos escritos a mão não eram percebidos como sendo entidades estritamente autônomas com fronteiras impermeáveis, eles interagiam, em parte e no todo, com o discurso oral. Isso é excessivamente difícil para nós entendermos porque os métodos que empregamos nos estudos bíblicos instilaram em nós a idéia de entidades textuais autônomas, que cresceram de textos, ligaram-se diretamente a outros textos e, por sua vez, geraram outros textos.

Kelber assinala que os cristãos primitivos viviam em um mundo que não era estranho ao letramento, mas um sentido de dominação por textos e da primazia das palavras escritas é uma experiência do mundo que ocorre somente depois de Johannes Gutenberg. Por toda a antiguidade, ele prossegue, a escrita estava nas mãos de uma elite de especialistas treinados e a leitura exigia uma educação avançada disponível somente para poucos. Em função da vasta maioria das pessoas estarem habituadas à palavra falada, muito do que era escrito destinava-se à recitação e à escuta. A prática da escrita, ele considera, não transformou o letramento num novo modelo de comportamento linguístico, nem foram as formas e hábitos do discurso oral sumariamente extintos pela literatura.

Em seu ponto de vista, a escrita era, na antiguidade, essencialmente, um produto da urbanização e de povoados compactos, enquanto nas áreas rurais a linguagem era quase inteiramente confinada a comunicação face a face. À medida que o movimento liderado pelo Jesus histórico nasceu em e disseminou-se por ambientes rurais, Kelber considera que a fala era a norma das comunicações mais do que a circulação de textos.

Não sobram dúvidas que todos os evangelhos canônicos sustentam um retrato geral de Jesus como um proclamador de autorizadas e freqüentemente perturbadoras palavras, mas jamais como um leitor, escritor ou líder de uma escola. À proporção que ele é caracterizado como um orador profético e um mestre escatológico, deslocando-se de um lugar para outro, rodeado de ouvintes e envolvido em uma série de debates, os evangelhos terão retido um aspecto genuíno de um pregador oral. Consoante Kelber, “sua mensagem e sua pessoa estão ligadas, inextricavelmente, à palavra falada, não a textos”.

Por conseguinte, ele declara, “diferente de Sócrates, Jesus não tinha um herdeiro letrado que colecionasse e interpretasse sua mensagem. Ele pregou e recrutou mais entre a população rural da Galileia do que entre a classe média urbana”. Convém ressaltar que as palavras de Jesus, segundo Kelber, não estavam destinadas a serem memorizadas pelas autoridades, mas para serem lembradas pelas pessoas comuns e seus seguidores mais próximos. Mais que isso, Kelber também lança dúvidas se o Jesus histórico, “narrador de parábolas e proclamador de aforismos”, e os primitivos “escribas e recitadores” que mais adiante aderiram ao movimento, estavam comprometidos, como nós estamos, com um “ethos de pura formalidade, linearização do pensamento, compartimentação da linguagem, causalidade estratigráfica”.

Nesse sentido, o historiador moderno, persuadido da natureza literário-teológica dos evangelhos e resolvido a lidar com a mensagem de Jesus vê-se confrontado com a questão da fala. Por conseguinte, o primeiro evangelho canônico – Marcos – traria em si sua dívida para com a vida oral e a consciência não-letrada. Se primeiro veio à fala e se ela ajustou os padrões linguísticos para a tradição sinótica, uma importação de aspectos orais para esse evangelho deve ser admitida. Consoante seus argumentos, “a menos que se veja o texto [o texto de Marcos] como um corpo errante caído do céu, é razoável esperar conexões com o que precedeu sua existência”.

Em suma, Kelber destaca a formação de um paradigma que resultou das análises da Crítica das Formas inteiramente inconsistente com as realidades sociais da época e do meio em que a tradição sinótica entrou em circulação. De fato, ele sublinha, o letramento está tão profundamente implantado em todos os acadêmicos que estudam os textos bíblicos que é imensamente difícil evitar tomá-lo como o meio de comunicação normal e como a única medida da linguagem.

OUVINDO MARCOS E Q COMO PERFORMANCES ORAIS

Rompendo com o paradigma constituído pela Crítica das Formas, Kelber também chamou a atenção que qualquer investigação das dinâmicas da tradição e da cultura deve iniciar com uma abordagem sobre o papel da linguagem nas comunidades.

De acordo com Jonathan Draper, a linguagem é moldada pela interação humana, mas também molda essa interação, tanto pela ampliação quanto pela limitação, das possibilidades de comunicação. A linguagem, ele prossegue, também nos socializa dentro de hierarquias e classes sociais e marca nosso status social em termos da linguagem que falamos. Por conseguinte, a comunicação é uma interação entre sistema linguístico, cultura e estrutura/classe social.

Entre esses fatores, a estrutura/classe social afeta a comunicação de duas maneiras fundamentais. Em primeiro lugar, o dialeto é um aspecto importante de estrutura e classe. Apesar de diferentes dialetos se desenvolverem, normalmente, em diferentes espaços geográficos, eles tornam-se implicados na manutenção do status social. Assim, o dialeto de uma região dominante passa a ser a linguagem falada e escrita padrão do centro de poder em uma dada sociedade. Em segundo lugar, a comunicação também é afetada por um código socialmente determinado. Pesquisas empíricas nessa área mostram que crianças, originárias da classe média e da classe operária, são socializadas diferentemente por seus pais no que tange ao uso da linguagem, de modo que, pela linguagem empregada, pode-se presumir a classe social da criança.

Assim, à medida que as teorias linguísticas modernas têm enfatizado o quão importante é reconhecer o papel que a classe/estrutura social exerce sobre a comunicação, convém atentar para dois aspectos: (a) Jesus e seus companheiros provinham das classes menos favorecidas da sociedade de Israel. Como as narrativas intracanônicas fornecem indicações claras, eles eram pescadores, camponeses, pequenos agricultores; (b) embora só apareça em Mateus (26:73), encontra-se uma referência ao fato de os companheiros de Jesus possuírem um dialeto ou sotaque distintivo: “Pouco depois, os que lá estavam disseram a Pedro: „De fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia.”

Portanto, à luz das teorias sócio-linguísticas, a origem social dos missionários judeus cristãos pode ter afetado mais do que simplesmente o conteúdo de seu ensino; deve ter determinado e canalizado o processo comunicativo como um todo.

Implica dizer, o iletramento, a estrutura/classe social e o dialeto dos primeiros seguidores de Jesus que se dedicaram à disseminação do “evangelho” afetaram, substancialmente, a performance da mensagem. Não no sentido de empobrecimento, mas no de distingui-lo das performances executadas por sujeitos letrados.

Ademais, John Milles Foley defende o argumento que o contexto oral de uma performance oral fixada em um texto escrito pode ser reconstruído, visto que ela sobrevive em forma retórica. Essa reconstrução foca sua atenção sobre os indicadores chaves da performance oral na literatura que são aliterações, assonâncias, rimas, repetições, paralelismos e ritmos. Com efeito, todos esses indicadores são auxiliares da memória e artifícios para a fluência da declamação das histórias orais diante de audiências. Cumpre ressaltar que linguagem arcaica, fórmulas, imagens e linguagem simbólica são todas também encontradas em “textos” orais, como aspectos metonímicos. Outras ajudas à composição oral, a maior parte das quais são perdidas na transmissão escrita, são as canções, entonações da voz, acompanhamento por instrumentos musicais, diálogos e resposta da audiência.

Com efeito, se for possível deduzir que várias dessas características da comunicação oral se mostram presentes em Marcos e/ou Q, ficará evidenciada a natureza oral daqueles escritos. Assim, mais do que mapear textos da antiguidade, sublinhando indicadores chaves de performances orais, cabe, tal como buscado em relação à memória, atentar para uma teoria, com base empírica, que fundamente a suposição de que Marcos e/ou Q são transcrições de comunicações orais.

Conforme o antropólogo Dell Hymes, que propõe a teoria dos versos rítmicos, as narrativas do povo Chinookan – índios norte-americanos nativos do Óregon – estão organizadas em termos de linhas, versos, estrofes, cenas e no que se poderia chamar de atos. Um conjunto de aspectos dos discursos diferenciam as narrativas dentro de versos. No interior desses versos, é possível observar a diferenciação de linhas por meio de verbos. Os versos, por sua vez, são comumente reunidos em grupos de três e cinco. Esses versos agrupados constituem estrofes e, onde a elaboração das estrofes é tal que exige algum tipo de distinção, elas viram cenas. E, em narrativas mais longas, as próprias cenas são organizadas em termos de uma série de atos.

Essas conclusões, Hymes obteve após analisar “textos” orais de quatro povos Chinookan, coletados por diversos antropólogos e por ele mesmo, desde o fim do século XIX até os primeiros anos da década de 70. Ele admite, porém, que, em seu primeiro paper sobre as narrativas daqueles povos nativos dos EUA, vários detalhes passaram despercebidos, mas, após acompanhar outros pesquisadores e suas hipóteses e teorias, resolveu reescrever seu trabalho com o objetivo de comentar a relevância desse tipo de análise para outras abordagens da literatura oral.

Enfim, Hymes constata que a descoberta de tal organização nas narrativas americanas nativas parecem de importância fundamental à proporção que podem fornecer os rudimentos de, ao menos, uma teoria da estrutura do discurso literário na cultura em questão.

Portanto, consoante essa teoria, cabe afirmar: (1) uma estrutura consistente existe na literatura oral que pode ser identificada por uma análise cuidadosa e (2) a estrutura pode ser vista em co-variações de forma e significado. É certo que essa teoria, admitidamente, consiste de dificuldades e incertezas, pois infere uma padronização extremamente genérica para todos os exemplares de comunicação oral do mundo.

As performances orais da Boa Nova, por carismáticos itinerantes, foram, em algum momento, registradas por escrito. Isso parece ser uma conclusão óbvia. Igualmente, parece evidenciado, que o registro escrito das performances, relevando as possíveis interferências dos escribas, assumiu contornos específicos e peculiares a cada um dos presumidos profetas, ou grupos deles, que disseminavam as tradições de e sobre Jesus.

Não obstante, há uma categoria de ditos de Jesus que, embora os discursos não sejam paralelos em Marcos e em Q, podem ser analisados comparativamente. Kelber os denomina estórias didáticas e cobrem uma variedade de diálogos de controvérsias e contos biográficos cujo cume é sempre um dito de Jesus aparentemente exarado para ficar retido na memória do orador e sua audiência. Definido dessa maneira há seis exemplos que fornecem evidências claras de uma formulação pré-textual: Jesus à mesa de Levi (2:15-17), Debate sobre o jejum (2:18-19), Arrancar espigas de milho no sábado (2:23-28), Discussão sobre o divórcio (10:2-9), Questão sobre as posses (10:17-22) e Pagamento de impostos a César (12:13-17). Segundo Kelber, todas assumem a mesma forma padrão, com uma variação ou outra.


segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Bruce J. Malina e o “grupo do Jesus Messias”



Antes de tudo, é importante dizer que neste artigo procuraremos discutir a origem do movimento de Jesus, e não da religião cristã, que surgiu nas décadas que se seguiram à crucificação de Jesus. Essa distinção é importante, pois ao longo das próximas páginas tentaremos demonstrar que o movimento de Jesus pode ser entendido como um fenômeno popular de reação contra a pressão sofrida pelos camponeses da Galiléia do século I por parte do império romano. Embora a religiosidade não possa ser separada de qualquer outra área da vida dos antigos judeus, nós o faremos aqui, simplesmente para que os aspectos políticos e econômicos daquela sociedade que foram preponderantes para a ação de Jesus, não sejam obscurecidos pelos supostos planos divinos como tantas vezes tem acontecido ao longo da história.


Começaremos tratando do império romano e sua forma de governo; do choque cultural e econômico que sua chegara trouxe para a Palestina; e do papel das cidades no sistema administrativo deste império. Deixaremos para a segunda metade do trabalho o movimento de Jesus, quando nos voltaremos para a tradição cristã descrevendo alguns dos eventos que nos conduzirão a uma compreensão do projeto de Jesus e do significado do “Reino de Deus”.


É preciso, dizer que esta pesquisa não traz alguma descoberta revolucionária sobre Jesus. Na verdade, praticamente todos os tópicos aqui abordados estão bem desenvolvidos pela pesquisa de diversos outros pesquisadores. Todavia, esses resultados alcançados após séculos de pesquisa ainda são desconhecidos da maior parte dos interessados no tema, aos quais gostaría de dirigir o presente esforço; e além disso, não se pode dizer que o problema do Jesus Histórico seja um caso esgotado, o que torna necessário a contínua revisão e o aperfeiçoamento dos resultados através de novas tentativas como essa à qual nos propusemos, a fim de que vez ou outra, novos e importantes passos sejam dados.


PALÁCIOS ENTRE FAZENDAS


Sabe-se a princípio, que a agricultura era a base da economia dos povos da antiguidade, o que pode-se tranquilamente aplicar aos moradores da Galiléia, região norte da Palestina, que no primeiro século foi o palco do nascimento do cristianismo. Naturalmente, quando falamos dos galileus dentre os quais nasceu o cristianismo, geralmente nos referimos a camponeses que viviam em aldeias do norte da Palestina de modo bastante tradicional, envolvidos especialmente com a produção de grãos. Porém, esse simplório cenário agrícola não é capaz de explicar a vida das pessoas que escreveram o Novo Testamento. Décadas antes do nascimento de Jesus, toda a Palestina viu-se diante de uma drástica mudança de caráter político que mudaria significativamente a vida de todos daquele lugar, e também determinaria as condições de vida das gerações subseqüentes. Estamos nos referindo ao início da dominação do império romano sobre a Palestina na segunda metade de século I a.C., que impôs à região uma agressiva transformação.


Antes de Roma, a Palestina já conhecera a vida sob a dominação de impérios estrangeiros que usufruíam do trabalho dos seus habitantes principalmente através da extorsão de excedentes agrícolas. Todavia, a comercialização romana era bem mais agressiva. A unidade política do império era mantida pelo controle militar em centros urbanos espalhados pelas províncias (ainda que nas extremidades desse império a fragilidade dessa dominação forçada se deixasse ver por meio de províncias revoltosas), e destes pontos estrategicamente controlados Roma apropriava-se dos camponeses tirando deles não apenas os excedentes agrícolas, mas também a terra e a dignidade.


Ao tratar da antropologia de classe aplicada aos estudos do cristianismo primitivo, John Dominic Crossan aproveita o trabalho do antropólogo John Kautsky para definir o império romano como umimpério agrário mercantil, que se diferencia dos impérios agrários tradicionais que dominaram a Palestina antes de Roma, e ressalta o que temos dito com as seguintes palavras:


“... no império agrário tradicional, a aristocracia toma o produto excedente da classe camponesa; no império agrário mercantil, a aristocracia toma a terra da classe camponesa. O primeiro devora o esforço e o produto dos camponeses, o segundo a própria identidade e dignidade deles [...] No império agrário tradicional, a terra é herança familiar a ser conservada pela classe camponesa. No império agrário mercantil, a terra é mercadoria empresarial a ser explorada pela aristocracia”.


A dominação romana só poderia, portanto, ser recebida pela classe camponesa da Palestina como uma força opressora e “demoníaca”. Forçava-os pela superioridade militar a aceitar um sistema de troca nada recíproco, onde no fim das contas até mesmo o direito a terra, que com base na Lei de Deus era propriedade exclusiva de Javé e herança intransferível dos camponeses, era-lhes negado.


Essa primeira aproximação em relação ao problema da violenta transição pela qual passou a Palestina entre os séculos I a.C. e I d.C. pede que aprofundemos o tema, a fim de que compreendamos melhor como exatamente se dava essa expropriação do fruto do trabalho da classe camponesa, e como tudo isso relaciona-se com o surgimento do cristianismo. A tarefa é extensa, e não temos espaço para tratar dela com todos os detalhes possíveis, motivo pelo qual tentaremos restringir nossas observações sempre à Galiléia, terreno que deu origem aos textos que neste trabalho abordaremos, e às épocas que envolvem suas origens.


Durante a vida de Jesus o domínio romano na Galiléia foi exercido através do tetrarca Herodes Antipas (4 a.C. a 39 d.C.), que tratava de cuidar na região dos interesses próprios e do império. Tão logo assumiu o poder, Antipas investiu na reconstrução da cidade de Séforis (atacada após a morte de seu pai, Herodes Magno) para que servisse como capital da Galiléia, posto de administração e arrecadação tributária, e praça de comando militar. De Séforis eram enviados os cobradores de impostos e os soldados que mantinham por meio da violência a “ordem pública”.


Embora a principal função de cidades como Séforis fosse facilitar o controle sobre os excedentes produzidos nos campos, estas cidades também eram focos da disseminação gradual da cultura helenista, tendo o grego como idioma, cunhando moedas, construindo ginásios e teatros etc. A corte durante os governos de Herodes Magno (rei-cliente de Roma que governou toda a Palestina de 37-4 a.C.) e Herodes Antipas era, culturalmente, um retrato da dominação internacional. O primeiro Herodes era um idumeu que vivera e estudara em Roma por alguns anos, cuja esposa era uma mulher samaritana. Antipas deu seguimento ao caráter gentílico e cosmopolita da elite casando-se primeiro com a filha do rei Aretas da Nabatéia, e depois com uma mulher asmonéia.6 Além de Séforis, também foi Antipas quem também deu início à construção de outra cidade de grandes proporções a trinta quilômetros de Séforis, à beira do lado da Galiléia, para fazê-la sua nova capital. Esta cidade foi concluída entre os anos 18 e 20 d.C. e chamada Tiberíades, em homenagem ao imperador Tibério (14-37 d.C.). O historiador judeu Flávio Josefo escreveu sobre a população original de Tiberíades com evidente desprezo pela gente que Antipas implantou ali, vinda de todas as partes (Ant. 18.36-38).


Deveras, durante a revolta dos judeus contra os romanos em 66-70 d.C., provavelmente era grande o número de gregos que habitavam Tiberíades, e em Séforis Richard Horsley acredita que a maior parte dos habitantes eram não-judeus. Ainda que isso não seja prova da predominância gentílica de Séforis durante a revolta, sabemos que naqueles dias de crise os aristocratas citadinos adotaram uma posição pró-romana, buscando a proteção de Vespasiano contra as ameaças dos revoltosos camponeses galileus, destruindo as próprias defesas para demonstrar que não resistiam à invasão romana. Não por acaso, diferentemente de Jerusalém, a cidade de Séforis sobreviveu à guerra e continuou a ser uma cidade de influência na região por séculos.


Mesmo que as poucas informações compartilhadas acima não sejam suficientes para nos fornecer um retrato completo (se é que isso é possível) da presença citadina na Palestina durante o primeiro século, podemos concluir com certa segurança que as cidades eram edificadas para receber as elites e os sistemas de manutenção do seu poder. Eram núcleos de onde uma minoria controlava e explorava os arredores e a maioria da população. Mas lá também se reunia um grande número de pessoas não tão “nobres” que viviam para satisfazer das mais diferentes maneiras as necessidades da elite. Ekkehard e Wolfgang Stegemann nos dão uma relação breve dos vários tipos de profissionais que constituíam as populações citadinas da seguinte forma:


“Na população da cidade há, entre outros, “funcionários públicos”, sacerdotes, eruditos, escrivães, comerciantes, servos, soldados, artífices, trabalhadores e mendigos. Ao lado destes, existe uma pequena elite que obtém o seu sustento da posse da terra e/ou de cargos políticos”.


Dentre os trabalhadores mencionados, podemos incluir ainda os que trabalhavam com o transporte, alguns professores, artistas, os ocupados com a construção, as prostitutas etc.


Apesar disso tudo, há quem prefira referir-se ao cosmopolitismo das cidades galiléias com maior cautela. Este é o caso de Gerd Theissen, que vê o helenismo das cidades da Galiléia mais como uma expressão de uma forma “moderna” de judaísmo do que como uma invasão generalizada da cultura greco-romana na Palestina. Aqui podemos dizer que além das autoridades nomeadas pelo império para administrar a província, eram moradores das cidades sacerdotes e outros judeus que conseguiram algum poder e status social a partir de suas funções e posses em relação à aristocracia estrangeira. Mark Chancey, a partir de pesquisas arqueológicas, tem demonstrado que mesmo nesses ambientes urbanos ainda havia predominância da cultura judaica. Isso é algo valioso para nós, já que depois da revolta de 66-70 d.C. e da destruição do Templo de Jerusalém, foi nos ambientes citadinos da Galiléia que se deu início a uma coalizão de judeus em busca de unidade religiosa, criando um movimento que hoje muitos chamam de judaísmo formativo. O evangelho citadino de Mateus mostrar-se-á uma evidência disso.


Fiquemos, em relação às cidades de Séforis e Tiberíades, com a imagem de que eram pólos da opressão da elite sobre o campo, e que embora essa elite sirva a Roma e possua um caráter cosmopolita inquestionável, também fazia parte desse grupo opressor a aristocracia judaica. Tentando atender às pesadas exigências tributárias do violento governo herodiano e também às cobranças dos impostos religiosos, os camponeses galileus enredavam-se em empréstimos oferecidos principalmente por funcionários da administração herodiana e aristocratas sacerdotais, dando a própria terra, sua fonte de sobrevivência que devia ser inegociável, como garantia de pagamento. A pesada extorsão de excedentes unida à desonesta comercialização agrária gerou um previsível e gradativo processo de endividamento que conduziu grande parte da classe camponesa à completa miséria. Enquanto a aristocracia vivia luxuosamente e poucos proprietários enriqueciam acumulando posses, entre os camponeses o empobrecimento era desesperador. Em determinados momentos, quem conseguia ao menos uma ocupação arrendando a terra de algum fazendeiro tinha que dar-se por satisfeito, posto que tantos outros camponeses menos afortunados vendiam-se como escravos ou tornavam-se marginais, vendo-se obrigados a recorrer à mendicância ou mesmo ao banditismo, fenômeno que alcançou proporções epidêmicas em certos períodos da dominação romana na região.


Essa exposição sucinta sobre o impacto da dominação romana e de suas cidades administrativas sobre a classe camponesa da Palestina, não foi e nem poderia ser completa. Mas ainda não a concluímos; a partir daqui, continuaremos tratando desse tema juntamente com nossa investigação a respeito da origem do Movimento de Jesus e do primeiro cristianismo, o que ilustrará com um exemplo historicamente marcante o que até então pudemos dizer.


Imposições Urbanas num Cenário Agrícola: o Movimento de Jesus


Diante do que já vimos, imaginamos sob que condições adversas nasceu entre os camponeses da Galiléia o homem Jesus de Nazaré. Uma particularidade a seu respeito que merece consideração é que Jesus desempenhava alguma atividade profissional como artesão, o que não o põe à parte da classe camponesa. No evangelho de Marcos 6.3 ele é descrito pelo termo grego tekton, e em Mateus 13.55 como filho de um tekton. Embora o termo na maioria das vezes seja traduzido por “carpinteiro”, também pode ser uma designação mais genérica para um artífice do setor da construção, que podia trabalhar não só com madeira, mas também com metais ou como pedreiro.


Como camponês/artesão da aldeia de Nazaré (que ficava a aproximadamente uma hora de caminhada de Séforis), não é difícil imaginar que Jesus pudesse estar por algum tempo ligado profissionalmente a Séforis, a primeira capital do governo de Antipas.21 Deveras, boa parte da mão-de-obra para a edificação e manutenção das grandes cidades era fornecida por pessoas como Jesus, saídas das pequenas aldeias ou cidades satélites. Mas, para que não façamos confusões imaginando Jesus como um trabalhador privilegiado, citemos outra vez John D. Crossan, que a partir do trabalho de G. Lenski sobre sociedades agrárias como a do império romano, disse que “Quanto à classe social, os artesãos eram inferiores, não superiores, aos agricultores camponeses”. Em geral, cada família camponesa produzia suas próprias cerâmicas e instrumentos em vez de comprá-las, o que torna o comércio destes produtos nem sempre uma opção lucrativa. Além disso, para um artesão o acesso à comida era indireto, e conseqüentemente passível às imposições de mediadores que podiam encarecer o produto.


A conclusão de Crossan é que o artesanato como meio de sobrevivência só era, em geral, uma opção daqueles aldeões cuja terra não era suficiente, seja pela má qualidade ou pelo crescimento populacional. Exceção a esta regra podem ser os casos em que através da participação de alguém com capital para investir na produção de artesanato transformasse a produção numa verdadeira indústria, o que da mesma forma não implicava em qualquer benefício para a classe camponesa.


Não há motivos para supor que Jesus fosse um camponês privilegiado por sua atividade profissional bem sucedida. Aliás, há um dado histórico que habitualmente não é relacionado à vida de Jesus, mas que pode ser bastante relevante para compreender sua trajetória, principalmente se imaginamos que Jesus manteve alguma relação profissional com Séforis: Herodes Antipas decidiu aumentar seu controle sobre a região da Peréia e mudar sua capital administrativa para Tiberíades, fato que já mencionamos brevemente. Embora Séforis não tenha se mudado ou esvaziado, pode ter acontecido de profissionais como Jesus sofrerem com a queda no volume de negócios, regredindo à marginalidade dos camponeses pauperizados. Este dado histórico pode não ter nenhuma relação com a direção tomada por Jesus, mas coincidentemente, foi nalgum momento após este período de mudança, durante os anos 20, que Jesus deixou a Galiléia em direção à Judéia e aderiu ao movimento do profeta João Batista (Mc 1.9).


Não é possível precisar quanto tempo Jesus esteve na Judéia, mas como se não bastasse tanta desventura, outra vez Herodes Antipas interfere na sua trajetória prendendo João Batista. Lemos nos evangelhos que João foi preso por criticar o casamento de Antipas com Herodíades, que fora sua cunhada (Mc 6.17-18; Mt 14.3-4; Lc 3.19), mas Crossan tem ressaltado o sentido político da crítica do profeta como o fator principal de sua prisão. Ao ver que Antipas pretendia aumentar a popularidade do seu governo por meio do governo com uma rainha de descendências asmonéia como Herodíades, Crossan astutamente vê João Batista interferindo no âmbito político, e não apenas preocupado com o incesto de Antipas. De fato, a ação do tetrarca cala João Batista definitivamente e dispersa seus seguidores, o que leva Jesus a voltar para a sua terra, a Galiléia.


Desta vez Jesus se estabelece em Cafarnaum, aldeia alguns quilômetros acima de Tiberíades, também às margens do lago (Mt 4.12-13). Ali, nas aldeias da região, Jesus dá início ao seu movimento recrutando pessoas que provavelmente eram como ele, vítimas pauperizadas da política agressiva do império romano e da desonestidade da classe sacerdotal judaica. Jesus começa pregando exatamente o que aprendera de João Batista, mas não ficou isolado no deserto na expectativa de uma intervenção apocalíptica de Deus nem chegou ao extremo de organizar um grupo guerrilheiro para tomar à força o controle da situação. Jesus propôs o retorno à Torá, a restauração da dignidade da classe camponesa por meio da solidariedade entre famílias; não se trata aqui de obras de caridade auto-satisfatórias, mas da reestruturação da sociedade igualitária, de redistribuição justa de riquezas.


Jesus aproveitou a desestrutura patente da classe rural para arregimentar pregadores viandantes. Fazendo profetas de camponeses expropriados, ele formou um movimento que dedicava-se às curas, exorcismos, e à proclamação do Reino de Deus, que tinha uma perspectiva escatológica e também presente. Eles diziam que chegavam novos tempos, em que não haveria imperadores, tetrarcas ou centuriões, mas uma grande irmandade aldeã guiada pelo próprio Deus, e onde as injustiças seriam extintas através da perfeita prática da Lei. Também diziam que esse tempo já se aproximou (Lc 11.20), que o tempo já estava cumprido (Mc 1.15), dando sinais disso por meio de curas milagrosas. Quem cresse, deveria começar a experimentar o Reino de Deus imediatamente, fazendo ao próximo o que gostariam que também lhes fizessem (Mt 7.12), e não sujeitando-se a homens que no momento eram os primeiros, mas que logo seriam os últimos (Mc 10.31).


Apenas para ilustrar isso noutras palavras, vamos citar mais algumas linhas de Horsley e Silberman:


“Sob a pressão dos tributos e da expropriação de terras por parte de Herodes, eles haviam se afastado do espírito aldeão tradicional de cooperação mútua: a dissensão e a recriminação mútua precisavam ser apaziguadas [...] Portanto, as curas e os ensinamentos de Jesus precisam ser vistos nesse contexto, não como verdades espirituais abstratas, ditas entre um milagre extraordinário e outro, mas como programa de ação comunitária e resistência prática a um sistema que conseguiu transformar aldeias fechadas em comunidades muito fragmentadas de indivíduos alienados e amedrontados”.


Aproximadamente dois anos após dar vida a um movimento que adaptara a expectativa do Reino de Deus ao cotidiano dos camponeses, Jesus também é condenado como subversivo e assassinado. Independente das interpretações salvíficas ou cristológicas dadas à sua morte, não podemos nos esquecer que ela foi, assim como a do seu predecessor João Batista, um ato de contenção de uma ameaça política real. A igreja cristã nem sempre entende o que o império romano viu de pronto: que o Reino de Deus não era outra coisa senão a proposta de uma teocracia cujo estabelecimento exigia a destruição do império. Mesmo que talvez exagerem a importância da ameaça de Jesus ao poder imperial, Horsley e Silberman deixam claro que esta morte deve ser lida como sugerimos, como ato de importância política: “... o fato de Jesus de Nazaré ter sido crucificado é testemunho tão eloqüente quanto qualquer outro da profundidade e clareza da ameaça que ele representava [...] estavam em jogo o poder da administração romana e a ordem pública de Jerusalém”.


Felizmente, mais uma vez o extermínio violento do líder popular não foi capaz de dar cabo do seu projeto. Tem-se conhecimento de que em diferentes lugares homens e mulheres que haviam sido impactados pela proposta de Jesus dão sequência ao movimento trilhando caminhos diferentes. Na Judéia, parece que desde cedo surgiu a fé em torno do Jesus ressuscitado, formando o que Bruce J. Malina chama de “grupos do Jesus Messias”, que aos poucos transformaram o projeto social de Jesus numa busca pela salvação, ou pelo “... resgate cósmico das pessoas coletivistas do primeiro século do mundo mediterrâneo”. Na Galiléia, os camponeses que ouviram Jesus talvez só souberam de sua morte por ouvir falar, e mantiveram com maior fidelidade as características originais do programa de renovação social da comunidade camponesa por meio da Lei interpretada através do amor ao próximo.


É na Galiléia que o primeiro cristianismo parece mais ligado à atividade dos discípulos itinerantes. Estes itinerantes, porém, “ministros de Jesus” e proclamadores do Reino de Deus entre aldeias, foram aos poucos transformados em “missionários profissionais” arregimentados para a propagação do cristianismo. Estes “profissionais” eram itinerantes que não nasceram da despossessão material como os primeiros seguidores de Jesus, mas de uma vocação que os impulsionava a uma vida sem lar e bens, conforme a distinção que faz Rodney Stark nas palavras que citamos a seguir:


“Nos vinte anos depois da crucificação, o cristianismo foi transformado de uma fé da Galiléia rural em um movimento urbano que ultrapassou os limites da Palestina. No começo ele esteve a cargo de pregadores itinerantes e pelas bases cristãs que dividiam sua fé com seus parente e amigos. Logo eles foram alistados por missionários profissionais como Paulo e seus associados. Assim, enquanto os ministros de Jesus foram primariamente às áreas rurais e arredores das cidades, o movimento de Jesus rapidamente se alastrou para as cidades Greco-romanas”.


Muçulmanos: Allah, Trindade, e Cristianismo e Judaísmo

Alguns dos maiores equívocos que muitos não-muçulmanos cometem sobre o Islã têm a ver com a palavra “Allah.” Por várias razões, muitas pessoas passaram a acreditar que os muçulmanos adoram um Deus diferente dos cristãos e judeus. Isso é totalmente falso, uma vez que “Allah” é simplesmente a palavra árabe para “Deus” – e só existe Um Deus. Para que não haja dúvidas, os muçulmanos adoram o Deus de Noé, Abraão, Moisés, Davi e Jesus – que a paz esteja sobre todos eles. Entretanto, é certamente verdade que os judeus, cristãos e muçulmanos têm conceitos diferentes de Deus Todo-Poderoso. Por exemplo, os muçulmanos – como os judeus - rejeitam as crenças cristãs da Trindade e da Encarnação Divina. Isso, entretanto, não significa que cada uma dessas três religiões adore um Deus diferente - porque, como já dissemos, existe apenas Um Verdadeiro Deus. O Judaísmo, o Cristianismo e o Islã reivindicam ser “Fés Abrâmicas”, e todas elas são classificadas como “monoteístas.” Entretanto, o Islã ensina que outras religiões têm, de um jeito ou de outro, distorcido e anulado uma crença pura e correta em Deus Todo-Poderoso ao negligenciar Seus ensinamentos verdadeiros e misturá-los com idéias feitas pelo homem.

Primeiro, é importante notar que “Allah” é a mesma palavra que os cristãos e judeus que falam árabe usam para Deus. Se você pegar uma Bíblia árabe, você verá a palavra “Allah” sendo usada onde “Deus” é usado em português. Isso é porque “Allah” é a palavra em língua árabe equivalente a palavra em português “Deus” com “D” maiúsculo. Adicionalmente, a palavra “Allah” não pode ter plural, um fato que anda de mãos dadas com o conceito islâmico de Deus.

É interessante notar que a palavra aramaica “El”, que é a palavra para Deus na língua que Jesus falava, é certamente mais semelhante em som à palavra “Allah” do que a palavra em português “Deus.” Isso também é verdadeiro para as várias palavras hebraicas para Deus, que são “El” e “Elah”, e a forma plural ou glorificada “Elohim.” A razão para essas similaridades é que o aramaico, o hebraico e o árabe são todas línguas semitas com origens comuns. Também deve ser notado que ao traduzir a Bíblia para outros idiomas, o palavra hebraica “El” é traduzida de várias formas como “Deus”, “deus” e “anjo”! Essa linguagem imprecisa permite que tradutores diferentes, baseados em suas noções pré-concebidas, traduzam a palavra para adequá-la às suas próprias opiniões. A palavra árabe “Allah” não apresenta essa dificuldade ou ambigüidade, uma vez que é usada somente para Deus Todo-Poderoso. Adicionalmente, em português, a única diferença entre “deus”, significando um deus falso, e “Deus”, significando o Único Verdadeiro Deus, é o “D” maiúsculo. Devido aos fatos mencionados acima, uma tradução mais precisa da palavra “Allah” em português seria “O Único Deus” ou “O Único Verdadeiro Deus.”

O que é mais importante, deve também ser notado que a palavra árabe “Allah” contém uma mensagem religiosa profunda devido à raiz de seu significado e origem. É porque ela deriva do verbo árabe ta’allaha (ou alaha), que significa “ser adorado.” Portanto, em árabe, a palavra “Allah” significa “O Único merecedor de toda adoração.” Isso, em poucas palavras, é a mensagem de Monoteísmo Puro do Islã.

É suficiente dizer que apenas porque alguém clama ser um judeu, cristão ou muçulmano “monoteísta” não o impede de incorrer em crenças corruptas ou práticas idólatras. Muitas pessoas, incluindo alguns muçulmanos, reivindicam crença em “Um Deus” mesmo incorrendo em atos de idolatria. Certamente, muitos protestantes acusam os católicos romanos de práticas idólatras em relação aos santos e à Virgem Maria. Da mesma forma, a Igreja Ortodoxa Grega é considerada “idólatra” por muitos outros cristãos porque em muitas das suas adorações eles usam ícones. Entretanto, se você perguntar a um católico romano ou a um grego ortodoxo se Deus é “Um”, eles invariavelmente responderão: “Sim!.” Essa afirmação, entretanto, não os impede de serem idólatras “adoradores de criaturas”. O mesmo serve para os hindus, que apenas consideram seus deuses como “manifestações” ou “encarnações” do Único Deus Supremo.

Antes de concluir...existem algumas pessoas, que obviamente não estão do lado da verdade, que querem que as pessoas acreditem que “Allah” é algum “deus” árabe, e que o Islã é completamente “outro” – significando que não tem raízes comuns com outras religiões abrâmicas (ou seja, Cristianismo e Judaísmo). Dizer que os muçulmanos adoram um “Deus” diferente porque eles dizem “Allah” é tão ilógico quanto dizer que os franceses adoram outro Deus porque eles usam a palavra “Dieu”, que os que falam espanhol adoram um Deus diferente porque dizem “Dios” ou que os hebreus adoravam um Deus diferente porque às vezes O chamavam “Javé.” Certamente, esse tipo de raciocínio é muito ridículo! Também deve ser mencionado que reivindicar que qualquer idioma usa a única palavra correta para Deus é equivalente a negar a universalidade da mensagem de Deus para a humanidade, que foi para todas as nações, tribos e povos através de vários profetas que falavam línguas diferentes.

A razão é que a Verdade Suprema do Islã se baseia em solo firme e sua crença inabalável na Unicidade de Deus está acima de repreensão. Por essa razão os cristãos não podem criticar suas doutrinas diretamente, e ao invés disso fabricam coisas sobre o Islã que não são verdadeiras para que as pessoas percam o desejo de aprender mais. Se o Islã fosse apresentado da maneira correta para o mundo, certamente poderia fazer muitas pessoas reconsiderarem e reavaliarem suas próprias crenças. É muito provável que quando descobrirem que existe uma religião universal no mundo que ensina às pessoas a adorarem e amarem Deus, enquanto praticam o Monoteísmo Puro, sintam que devam ao menos reexaminar as bases de suas próprias crenças e doutrinas.

É um fato conhecido que todo idioma tem um ou mais termos que são usados para se referir a Deus e às vezes a divindades menores ao mesmo tempo. Esse não é o caso com Deus. Deus é o nome pessoal do Deus Único. Ninguém mais pode ser chamado Deus. O termo não tem plural ou gênero. Isso mostra a sua singularidade quando comparado com a palavra "deus," que pode ser usada no plural, como em "deuses", ou no feminino, como em "deusas." É interessante notar que Allah é o nome pessoal de Deus em aramaico, a língua de Jesus e uma língua irmã do árabe.

O Deus Único é uma reflexão do conceito singular que o Islã associa a Deus. Para um muçulmano, Deus é o Criador Todo-Poderoso e Sustentador do universo, Que não é semelhante a nada e nada é comparável a Ele. O Profeta Muhammad foi perguntado por seus contemporâneos sobre Deus; a resposta veio diretamente do próprio Deus na forma de um capítulo curto do Alcorão, que é considerado a essência da unicidade ou lema do monoteísmo. Esse é o capítulo 112, que diz:

“Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.”

“Dize [Ó Muhammad], Ele é Deus, o Único Deus, o Refúgio Eterno, que não gerou e não foi gerado, e não há ninguém igual a Ele.”

Alguns não-muçulmanos alegam que Deus no Islã é um Deus severo e cruel que exige ser obedecido completamente e, conseqüentemente, não é amoroso ou gentil. Nada poderia ser mais distante da verdade do que essa alegação. É suficiente saber que, com a exceção de um, cada um dos 114 capítulos do Alcorão começa com o versículo, “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso.” Em um dos ditos do Profeta Muhammad, que Deus o exalte, nos é dito que:

“Deus é mais amoroso e gentil do que uma mãe para com o seu filho.”

Por outro lado, Deus também é Justo. Portanto, os malfeitores e pecadores devem ter sua parcela de punição, e os virtuosos devem ter a generosidade e favores de Deus. Na verdade, o atributo da Misericórdia de Deus tem manifestação plena em Seu atributo de Justiça. Pessoas que sofrem ao longo de todas as suas vidas em Seu nome não devem receber de seu Senhor o mesmo tratamento que as pessoas que oprimem e exploram outras as suas vidas inteiras. Esperar tratamento semelhante para elas seria equivalente a negar a crença na prestação de contas do homem na Vida Futura e, portanto, negar todos os incentivos para uma vida moral e virtuosa nesse mundo. Os versículos corânicos seguintes são muito claros e diretos a esse respeito.

“Verdadeiramente, para os Virtuosos haverá os jardins de Deleites, na Presença de seu Senhor. Então Nós devemos tratar as pessoas de Fé como as pessoas do Pecado? Que há convosco? Como julgais?” (Alcorão 68:34-36)

O Islã rejeita caracterizar Deus em qualquer forma humana ou descrevê-Lo como favorecendo certos indivíduos ou nações com base em fortuna, poder ou raça. Ele criou os seres humanos como iguais. Eles podem se distingüir e obter Seu favor somente através de virtude e devoção.

Os conceitos, como o de Deus descansar no sétimo dia da criação, Deus lutar com um de Seus soldados, Deus ser um conspirador invejoso contra a humanidade, ou Deus encarnar em qualquer ser humano, são considerados blasfêmia do ponto de vista islâmico.

O uso singular de Deus como um nome pessoal de Deus é uma reflexão da ênfase do Islã na pureza da crença em Deus, que é a essência da mensagem de todos os mensageiros de Deus. Por causa disso, o Islã considera a associação de qualquer deidade ou personalidade com Deus como um pecado mortal que Deus nunca perdoará, apesar do fato de que Ele pode perdoar todos os outros pecados.

O Criador deve ser de uma natureza diferente das coisas criadas porque, se Ele é da mesma natureza que elas, Ele será temporal e, portanto, precisará de um criador. Disso se segue que nada é como Ele. Além disso, se o Criador não é temporal, então Ele deve ser eterno. Se Ele é eterno, entretanto, Ele não pode ser causado, e se nada O trouxe à existência, nada fora Dele faz com que Ele continue a existir, o que significa que Ele é auto-suficiente. E se Ele não depende de nada para a continuação de Sua própria existência, então essa existência não pode ter fim e, portanto, o Criador é eterno e perene. Sendo assim, nós sabemos que Ele é Auto-suficiente ou Auto-subsistente e Eterno ou, para usar um termo corânico, Al-Qayyum: “Ele é o Primeiro e o Último.”

O Criador não cria apenas no sentido de trazer coisas à existência, Ele também as preserva e as tira da existência e é a causa suprema do que quer que lhes aconteça.

“Deus é o Criador de tudo. Ele é o guardião de tudo. A Ele pertencem as chaves dos céus e da terra." (Alcorão 39:62-63)

E Deus diz:

“Nenhuma criatura caminha sobre a terra sem que a sua provisão venha de Deus. Ele conhece a sua morada e seu repositório.” (Alcorão 11:16)

Atributos de Deus

Se o Criador é Eterno e Perene, então Seus atributos também devem ser eternos e perenes. Se for assim, então Seus atributos são absolutos. Pode haver mais de um Criador com tais atributos absolutos? Pode haver, por exemplo, dois Criadores absolutamente poderosos? Uma rápida reflexão mostra que isso não é viável.

O Alcorão resume esse argumento nos seguintes versículos:

“Deus não tomou para Si nenhum filho, nem existe com Ele qualquer deus: porque cada deus teria tomado o que criara e alguns deles teriam sido arrogantes em relação aos outros.” (Alcorão 23:91)

Também,

“E porque, se existissem deuses na terra e no céu além de Deus, eles [céu e terra] certamente se arruinariam.” (Alcorão 21:22)

A Unicidade de Deus

O Alcorão nos relembra da falsidade de todos os alegados deuses. Aos adoradores de objetos feitos pelo homem ele pergunta:

“Adorais o que esculpis?” (Alcorão 37:95)

Também,

“Ou tomais, além Dele, protetores que não trazem, para si mesmos, benefício nem prejuízo?” (Alcorão 13:16)

Aos adoradores de corpos celestiais ele cita a estória de Abraão:

“Quando a noite o envolveu, ele viu uma estrela e disse, ‘Esse é o meu Senhor.’ Mas quando ele se pôs, ele disse, ‘Eu não amo os que se põem.’ Quando ele viu a lua surgindo, ele disse, ‘Esse é meu Senhor.’ Mas quando ela se pôs, ele disse, ‘Se meu Senhor não me orienta, em verdade, estarei entre o povo desencaminhado.’ Quando ele viu o sol surgindo, ele disse, ‘Esse é meu Senhor; esse é maior.’ Mas quando ele se pôs, ele disse, ‘Ó meu povo, certamente eu rompi com o que idolatrais, eu volto a minha face Àquele que originou os céus e a terra; um homem de pura fé, eu não sou um dos idólatras.'" (Alcorão 6:76-79)

A Atitude do Crente

De modo a ser um muçulmano, isto é, se submeter a Deus, é necessário acreditar na unicidade de Deus, no sentido de Ele ser o único Criador, Preservador, Provedor, etc. Mas essa crença não é suficiente. Muitos dos idólatras sabiam e acreditavam que somente o Deus Supremo podia fazer tudo isso. Mas isso não era suficiente para torná-los muçulmanos. Além dessa crença, deve-se reconhecer o fato de que apenas Deus merece ser adorado e, portanto, abster-se da adoração de qualquer outra coisa ou ser.

Ao ter alcançado esse conhecimento do único verdadeiro Deus, o homem deve constantemente ter fé Nele, e não deve permitir que nada o induza a negar a verdade.

Isso significa que se alguém se submete conscientemente a Deus sem reservas, e admite que Ele é o único merecedor de sua adoração, esse alguém conseqüentemente deve adorá-Lo. Isto é, saber que devemos a Ele obediência significa colocar em prática o que nós reconhecemos em nossos corações. Deus pergunta, retoricamente:

“E supusestes que vos criamos sem propósito, e que não seríeis retornados a Nós?” (Alcorão 23:115)

Ele também afirma categoricamente:

“Eu não criei a Humanidade e os Jinns exceto para Me adorarem.” (Alcorão 51:56)

Portanto, quando a fé entra no coração de uma pessoa, ela provoca certos estados mentais que resultam em certas ações. Reunidos, esses estados mentais e ações são a prova de uma fé verdadeira. O Profeta, que Deus o exalte, disse:

“Fé é o que reside firmemente no coração e que é provado pelos atos.”

O mais importante desses estados mentais é o sentimento de gratidão a Deus, que se pode dizer que é a essência da adoração.

O sentimento de gratidão é tão importante que um não-crente é chamado de ‘kafir’, que significa ‘aquele que nega a verdade’ e também ‘aquele que é ingrato.’

Um crente ama, e é grato a Deus pelas graças que recebeu, mas por estar ciente do fato de que seus bons atos, sejam mentais ou físicos, estão longe de se equiparar aos favores Divinos, ele está sempre ansioso pela possibilidade de Deus o punir, aqui ou na Vida Futura. Ele portanto O teme, se submete a Ele e O serve com grande humildade. Não se pode estar em tal estado mental sem estar consciente de Deus praticamente o tempo todo. Relembrar Deus é, portanto, a força vital da fé, sem a qual ela perde o vigor e se esvai.

O Alcorão tenta promover esse sentimento de gratidão pela repetição dos atributos de Deus com muita freqüência. Nós encontramos a maioria desses atributos reunidos nos seguintes versículos do Alcorão:

“Ele é Deus; não existe deus exceto Ele. Ele é o Conhecedor do oculto e do visível; Ele é o Clemente, o Misericordioso. Ele é Deus; não existe deus exceto Ele. Ele é o Rei, O Puro, A Paz, O Confortador, O Preservador, o Todo-Poderoso, o Transcendente, o Sublime. Glorificado seja Deus, acima do que idolatram! Ele é Deus, o Criador, o Iniciador da Criação, o Configurador. A Ele pertencem os Mais Belos Nomes. Tudo que está nos céus e na terra O glorifica; Ele é O Todo-Poderoso, O Sábio.” (Alcorão 59:22-24)

Também,

“Não existe deus exceto Ele, o Vivente, o Eterno. Não O tomam nem sonolência nem sono. A Ele pertence tudo que está nos céus e na terra. Quem intercederá junto a Ele exceto com Sua permissão? Ele sabe o que o seu passado e o seu futuro, e não compreendem nada do Seu conhecimento exceto o que Ele quer. Seu Trono se estende sobre os céus e a terra. Preservá-los não O fadiga; Ele é o Altíssimo, o Glorioso.” (Alcorão 2:255)

Também,

“Povo do Livro, não vos excedais nos limites de vossa religião, e não digais acerca de Deus exceto a verdade. O Messias, Jesus, filho de Maria, era apenas o Mensageiro de Deus, e Seu Verbo que Ele colocou sobre Maria, e um Espírito vindo Dele. Então acredite em Deus e Seus Mensageiros, e não digam “Três”. Abstende-vos; é melhor para vós. Deus é um único Deus. Glorificado seja Ele – [Ele está] acima de ter um filho.” (Alcorão 4:171)

Portanto, nós temos três etapas em nosso reconhecimento de Deus como o Único Verdadeiro Deus. Nós devemos acreditar que Ele é o Criador, Controlador e Juiz supremo do universo e de tudo que ele contém; nós devemos nos abster de adorar qualquer coisa exceto Ele, e então direcionar a nossa adoração a Ele, de fato; e devemos saber que apenas Ele tem todos os atributos e nomes divinos, e não podemos aplicá-los a qualquer outro ser, não importa quem eles sejam. Alguém simplesmente reconhecer verbalmente essas condições, mesmo que se abstenha de aplicá-las a outros deuses, não é suficiente. Elas devem ser sinceramente direcionadas Àquele que as merece.




sábado, 24 de setembro de 2011

Emil Brunner e Karl Barth e suas diferenças sobre a “neo-ortodoxia”.

Karl Barth havia desencadeado uma tremenda revolução com seu comentário aos Romanos, e nos anos que se seguiram, a revolução se ampliou consideravelmente, se avolumando sob a égide de um novo movimento teológico denominado “neo-ortodoxia”. Emil Brunner talvez tenha sido um dos nomes mais conhecidos dessa nova escola, depois, é claro, de Barth.

Brunner foi um teólogo suíço residente nos Estados Unidos que também teve participação importante no desenvolvimento da teologia neo-ortodoxa. Nascido em 1889, estudou em Zurich, Berlim e também no Union Theological Seminary, em Nova Iorque. Tornou-se professor de teologia em Zurich em 1924, e em 1953 deixou a Suíça para tornar-se professor na Universidade Cristã do Japão.

Desde os primeiros anos do comentário aos Romanos, a neo-ortodoxia – às vezes chamada de barthianismo – cruzou muitas fronteiras, tendo exercido influência no oriente. No Japão, por exemplo, apesar da influencia de Brunner, foi Barth quem foi apelidado de “o papa teológico”. Enquanto nos Estados Unidos ele era recebido como um dos mais importantes teólogos, no Japão ele era conhecido como o único teólogo. Essa influência de Barth no Japão, deve-se principalmente aos escritos de Tokutaro Takahura, por volta de 1925. Na verdade, o mundo inteiro sentiu o abalo da teologia barthiana, tanto que ao final da década de cinqüenta, as três principais correntes teológicas já eram mencionadas como sendo a conservadora ou ortodoxa, liberal e neo-ortodoxa.

Temos que reconhecer que existe muita rivalidade no movimento. A ferrenha diferença de opiniões entre Barth e Brunner quanto à realidade do nascimento virginal e da revelação geral, as criticas de Barth à Bultmann e as críticas que Bultmann devolveu à Barth, a discordância de Pannenberg acerca do conceito barthiano de história, são indicativos de que as vozes dentro do movimento neo-ortodoxo nem sempre foram unânimes. Emil Brunner aceita a revelação geral, e a mesma é negada por Barth. Barth aceita o nascimento virginal, conceito que é negado por Brunner. Ele foi duramente criticado por Barth por afirmar que a imagem de Deus se encontra ainda no homem pecador e que Deus se revela na natureza, mas se defendeu argumentando que se o homem pecador não é mais a imagem de Deus e se não há nenhuma revelação de Deus na natureza, então o homem não pode ser responsabilizado pelo pecado que comete.

A teologia de Brunner, assim como a de Barth, é extremamente subjetiva. Buscando inspiração nos escritos dos filósofos Martin Bubber e Soren Kierkgaard, ele define o cristianismo e a teologia em termos mais relacionais que racionais. Ele argumenta que Deus não pode ser tratado como um objeto de estudo, ou um “isso”, mas devemos nos relacionar com ele apenas como um “Tu”. Essa insistência em que Deus é sempre sujeito e nunca objeto será um tema bastante recorrente na teologia contemporânea.

Em um capítulo anterior, indicamos alguns dos pressupostos, bem como a metodologia da estrutura teológica neo-ortodoxa. Agora, cabe a nós destacarmos os temas comuns. O esboço que demonstraremos a seguir está baseado principalmente na obra Dogmática da Igreja, de Barth.

O tema mais debatido pela neo-ortodoxia é o conceito de revelação.

A revelação, segundo Barth, é uma perpendicular que vem de cima, e que por isso não pode se comparar com as melhores intuições humanas. A revelação é um evento no qual Deus toma a iniciativa. Também é dito que a revelação não pode comparar-se com a Bíblia, pois é superior a ela. A Bíblia e suas afirmações são testemunhas, são sinais indicadores da revelação, mas não é a revelação em si. A Escritura não é a Palavra de Deus, e nem as afirmações da Escritura são revelação. Segundo Barth, comparar a Bíblia com a Palavra de Deus é objetivar e materializar a revelação.

Nesse mesmo terreno, Brunner definiu a revelação como sendo uma ocasião de diálogo em que Deus se encontra com o homem. Não se pode dizer que a revelação tenha acontecido, à não ser que ambos os participantes do encontro – a saber, Deus e o homem – se encontrem.

O coração da revelação da Palavra de Deus, segundo a perspectiva neo-ortodoxa, é Jesus Cristo.

De fato, Barth insiste tanto nessa idéia que chega ao ponto de negar a existência de qualquer outra revelação, à parte de Cristo. Para ele, a história da revelação e a história da salvação vêm a ser a mesma coisa. No Cristo de Barth, Deus revelou que não queria deixar o homem existir em pecado. Por isso, Barth insiste em que nunca deveríamos mencionar o pecado, a não ser que agreguemos imediatamente que o pecado foi derrotado, esquecido e vencido por Jesus. A reconciliação entre Deus e o homem se efetua por meio de Cristo. Jesus Cristo é o próprio Deus, isto é, é Deus que se humilha a si mesmo. Em sua liberdade, Deus cruza o abismo aberto e mostra que ele é verdadeiramente Senhor.

Na encarnação, Deus se humilha a si mesmo. Barth não quer admitir a humilhação do homem Jesus. Segundo ele, dizer que a humilhação se refere ao homem é uma mera tautologia. Que sentido haveria em falar de um homem humilhado? A humilhação é algo natural no homem. Porém, dizer que Deus se humilhou a si mesmo, segundo Barth, é entender o verdadeiro significado de Jesus Cristo como Deus. Ele é o Deus que se humilha, que se revela, e é também a própria essência da revelação.

Barth afirma que Cristo, embora haja se humilhado como Deus, foi exaltado como homem.

Ele se nega a admitir a idéia tradicional dos dois estados de Cristo, humilhação e exaltação, referindo-se à totalidade do Deus-homem em ordem cronológica. Para Barth, Deus se humilhou a si mesmo e o homem (a humanidade de Jesus) foi exaltada. Dizer que o estado de exaltação se refere a Deus também é mera tautologia. Que sentido haveria em falar em um Deus exaltado? A exaltação é algo natural em Deus. Segundo Barth, “em Cristo, a humanidade é humanidade exaltada, assim como a divindade é divindade humilhada. E a humanidade é exaltada com a humilhação da Divindade”.

A doutrina de Barth traz implícito o universalismo.

Outro problema bastante polêmico dentro da neo-ortodoxia é a ambigüidade de seus proponentes no que concerne à possibilidade de salvação universal. Barth desde o início repudiou o conceito supralapsariano – que é a dupla predestinação – afirmando que a eleição não diz respeito a pessoas, e sim à Cristo. Ele afirma que a tarefa da igreja é proclamar que os homens já foram eleitos em Cristo, e que portanto, devem viver como escolhidos. Para Barth, a eleição não é um estado que adquirimos em Cristo, e sim uma vida de ação e serviço a Deus.

Esse conceito barthiano implica em universalismo? Barth não afirmou, mas também jamais negou essa hipótese. Em uma de suas últimas conferências sobre a humanidade de Deus, ele disse que “não temos o direito teológico de estabelecer quaisquer limites à misericórdia de Deus que se manifesta em Jesus Cristo”.

Objeções à neo-ortodoxia.

Como se pode observar, muitos pressupostos da neo-ortodoxia são resultantes da influência do liberalismo, o que torna algumas de suas propostas inaceitáveis para os teólogos ortodoxos. Há ainda muita polêmica dentro da neo-ortodoxia, não sendo difícil levantar objeções a essa corrente teológica. O que apresentamos a seguir são algumas objeções mais freqüentes que são levantadas contra a neo-ortodoxia.

Primeiramente, a neo-ortodoxia coloca a experiência subjetiva acima da revelação objetiva. Para a neo-ortodoxia, a revelação não é simplesmente uma declaração de Deus ao homem, e sim um encontro divino-humano, uma confrontação e um diálogo existencial. De acordo com essa premissa, a Bíblia não pode ser a Palavra de Deus. Ela se transforma em Palavra de Deus à medida que Deus fala conosco por meio dela. Reconhece-se nessa premissa a dívida que a neo-ortodoxia tem com a escola de filosofia existencialista.

A neo-ortodoxia conserva a linguagem teológica ortodoxa, porém a reinterpreta, e muitas vezes o resultado desta reinterpretação é tão nocivo quanto veneno no leite. As doutrinas do pecado original, da queda de Adão, da redenção, da ressurreição e da segunda vinda de Cristo são chamadas de mitos por Brunner e de saga por Barth. A interpretação que a neo-ortodoxia dá a essas passagens é acima de tudo existencial, quase nunca literal, sob alegação de que essas doutrinas não descrevem eventos na história, e sim condições históricas sob as quais todos os homens vivem. Gênesis 3, por exemplo, não deve ser tomado como história literal, sendo apenas uma forma simbólica de explicar a realidade do pecado e do orgulho na vida humana. Esse conceito de teologia não deixa nenhuma porta pela qual possa entrar a pregação da vinda do Filho de Deus como evento a ocorrer na história, por exemplo.

A insistência de Barth em Jesus Cristo como o coração da revelação é tão forte que o leva a negar a existência de qualquer outra revelação de Deus. Essa idéia é contrária a Bíblia, pois esta afirma que Deus se revela através da sua criação (Atos 14.17 e Romanos 1.19-20). O conceito barthiano e neo-ortodoxo de revelação também é contrário à doutrina bíblica da inspiração, e acaba por destruir o caráter bíblico de revelação canônica.

Alguns acusam Barth de fazer uma interpretação dualista da encarnação de Cristo, pois ele parece fazer distinção entre as duas naturezas, repudiando por completo o credo da Calcedônia. Ora, Cristo não nos salvou apenas por meio da sua divindade, mas também por meio da sua humanidade. Nós temos paz por meio do sangue da cruz (Colossenses 1.20, Efésios 2.16) e não há nada mais humano que o sangue de uma pessoa.

Ainda que Barth diz que nem afirma e nem nega a teoria da salvação universal, sua idéia de “eleição universal em Cristo” parece uma espécie de neo-universalismo. Além disso, seu repúdio pelas descrições do céu e do inferno parecem um conceito de salvação bem diferente do que é apresentado nas Escrituras. O resultado dessa postura “neo-universalista” é a destruição da gravidade da incredulidade, e deste modo a neo-ortodoxia destrói as advertências bíblicas contra a apostasia, bem como o chamado ao arrependimento e à fé.

Por várias razões, muitos teólogos têm entendido mal a neo-ortodoxia. Essa corrente teológica pretende, entre outras coisas, ser um retorno ao ensino dos reformadores. A razão de ser da neo-ortodoxia é atacar o otimismo do liberalismo clássico e as corrupções da teologia católica romana. É sua intenção por em evidência a centralidade absoluta da pessoa de Cristo, a transcendência de Deus e a necessidade de revelação. Naturalmente, todos esses pontos básicos estão em harmonia com o conceito evangélico. Apesar disso, como se pode observar, a neo-ortodoxia se separa da fé cristã histórica não somente em algumas esferas pouco relevantes, mas também em seus conceitos básicos. Recomendamos as obras de Barth, Bultmann e Brunner – bem como de outros teólogos neo-ortodoxos – por sua influência e contribuição para o cenário teológico contemporâneo, mas a apreciação dessas obras deve ser feita com cautela e com espírito crítico.