quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Richard A. Horsley, John P. Meier, e a figura histórica de Jesus


Numa incrível viagem à Palestina do século 1, historiadores e arqueólogos reconstituem com era a vida do homem comum que se tornou o filho de Deus para os mais de 2 bilhões de cristãos.

Cristo está em toda parte: nas obras mais importantes da história da arte, nos roteiros de Hollywood, nos letreiros luminosos de novas igrejas, nas canções evangélicas em rádios gospel, nos best-sellers de auto-ajuda, nos canais de televisão a cabo, nos adesivos de carro, nos presépios de Natal. Onde você estiver, do interior da floresta amazônica às montanhas geladas do Tibete, sempre será possível deparar com o símbolo de uma cruz, pena de morte comum no Império Romano à qual um homem foi condenado há quase 2 mil anos. Para mais de 2 bilhões de pessoas esse homem era o próprio messias ("Cristo", do grego, o ungido) que ressuscitara para redimir a humanidade.

Embora o mundo inteiro (inclusive os não-cristãos) esteja familiarizado com a imagem de Cristo, até há bem pouco tempo os pesquisadores eram céticos quanto à possibilidade de descobrir detalhes sobre a vida do judeu Yesua (Jesus, em hebraico), o homem de carne e osso que inspirou o cristianismo. "Isso está começando a mudar", diz o historiador André Chevitarese, professor de História Antiga da Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos especialistas no Brasil sobre o "Jesus histórico" - o estudo da figura de Jesus na história sem os constrangimentos da teologia ou da fé no relato dos evangelhos. Embora tragam detalhes do que teria sido a vida de Jesus, os evangelhos são considerados uma obra de reverência e não um documento histórico. Chevitarese e outros pesquisadores acreditam que, apesar de não existirem indícios materiais diretos sobre o homem Jesus, arqueólogos e historiadores podem ao menos reconstruir um quadro surpreendente sobre o que teria sido a vida de um líder religioso judeu naquele tempo, respondendo questões intrigantes sobre o ambiente e o cotidiano na Palestina onde ele vivera por volta do século I.

NAZARÉ, ENTRE 6 E 4 A.c.

Uma aldeia agrícola com menos de 500 habitantes, cuja paisagem é pontuada por casas pobres de chão de terra batida, teto de estrados de madeira cobertos com palha, muros de pedras coladas com uma argamassa de barro, lama ou até de uma mistura de esterco para proteger os moradores da variação da temperatura no local. Segundo os arqueólogos, essa é a cidade de Nazaré na época em que Jesus nasceu, provavelmente entre os anos 6 e 4 a.c., no fim do reinado de Herodes. Isso mesmo: segundo os historiadores, Jesus deve ter nascido alguns anos antes do ano 1 do calendário cristão. "As pessoas naquele tempo não contavam a passagem do tempo como hoje, por meio da indicação do ano", explica o historiador da Unicamp Pedro Paulo Funari. "O cabeçalho dos documentos oficiais da época trazia apenas como indicação do tempo o nome do regente do período, o que leva os pesquisadores a crer que Jesus teria nascido anos antes do que foi convencionado."

Estudos históricos sobre a vida dos judeus da Palestina no século 1 a.C.
indicam que Jesus nasceu em Nazaré e que tinha irmãos

Se você também está se perguntando por que os historiadores buscam evidências do nascimento de Jesus na cidade de Nazaré - e não em Belém, cidade natal de Jesus, de acordo com os evangelhos de Mateus e Lucas -, é bom saber que, para a maioria dos pesquisadores, a referência a Belém não passa de uma alegoria da Bíblia. Na época, essa alegoria teria sido escrita para ligar Jesus ao rei Davi, que teria nascido em Belém e era considerado um dos messias do povo judeu. Ou seja: a alcunha "Jesus de Nazaré" ou "nazareno" não teria derivado apenas do fato de sua família ser oriunda de lá, como costuma ser justificado.

Mesmo que os historiadores estejam certos ao afirmarem que o nascimento em Belém seja apenas uma alegoria bíblica, o entorno de uma casa pobre na cidade de Nazaré daquele tempo não deve ter sido muito diferente do de um estábulo improvisado como manjedoura. Como a residência de qualquer camponês pobre da região, as moradias eram ladeadas por animais usados na agricultura ou para a alimentação de subsistência.

Jesus deve ter tido uma infância comum, dividida entre brincadeiras com os
irmãos e ajuda nas tarefas profissionais da família

A dieta de um morador local era frugal: além do pão de cada dia (no formato conhecido no Brasil hoje como pão árabe), era possível contar com azeitonas (e seu óleo, o azeite, usado também para iluminar as casas), lentilhas, feijão e alguns incrementos como nozes, frutas, queijo e iogurte. De acordo com os arqueólogos, o consumo de carne vermelha era raro, reservado apenas para datas especiais. O peixe era o animal consumido com mais freqüência pela população, seco sob o sol, para durar. A maioria dos esqueletos encontrados na região mostra deficiência de ferro e proteínas. Essa parca alimentação é coerente com relatos como o da multiplicação dos pães, no Evangelho de Mateus, no qual os discípulos, preocupados com a fome de uma multidão que seguia Jesus, mostram ao mestre cinco pães e dois peixes, todo o alimento de que dispunham.

Se alguém presenciasse o nascimento de Jesus, provavelmente iria deparar com um bebê de feições bem diferentes da criança de pele clara que costuma aparecer nas representações dos presépios. Baseados no estudo de crânios de judeus da época, pesquisadores dizem que a aparência de Jesus seria mais próxima da de um árabe (de cabelos negros e pele morena) que da dos modelos louros dos quadros renascentistas. Seu nome, Jesus, uma abreviação do nome do herói bíblico Josué, era bastante comum em sua época. Ainda na infância, deve ter brincado com pequenos animais de madeira entalhada ou se divertido com rudimentares jogos de tabuleiro incrustados em pedras.

Nossa Senhora de ísis. De onde pode ter se originado uma das mais belas imagens cristãs. O Cristianismo sofreu influências de diversas religiões da época de Jesus. Se você acha que conhece a imagem ao lado, é bom dar uma olhada com um pouco mais de atenção. À primeira vista, ela parece, de fato, representar a Nossa Senhora embalando o menino Jesus. Mas não é. A imagem da estátua é uma representação da deusa egípcia ísis oferecendo o peito a seu filho Hórus. Apesar de não haver como provar que as imagens de Nossa Senhora tenham sido inspiradas diretamente em representações como essa, os pesquisadores sabem que o cristianismo sofreu, em seus primórdios, a influência de diversos cultos que faziam parte dos mundos egípcio e greco-romano. "Desde seu início, o cristianismo tinha uma diversidade assombrosa", diz o professor de Teologia Gabriele Cornelli, da Universidade de Brasília. Na região do Egito, por exemplo, prevalecera o chamado cristianismo gnóstico, cujos textos revelam um Jesus bem mais parecido com um monge oriental. Alguns historiadores acreditam até que alguns cristãos gnósticos possam ter sido influenciados por missionários budistas vindos da índia.

Quanto à família de Jesus, os pesquisadores não acreditam que ele tenha sido filho único. Afinal, era comum que famílias de camponeses tivessem mais de um filho para ajudarem na subsistência da família. Isso poderia explicar o fato de os próprios evangelhos falarem em irmãos de Jesus, como Tiago, José, Simão e Judas. "As igrejas Ortodoxa e Católica preferiram entender que o termo grego adelphos, que significa irmão, queria dizer algo próximo de discípulo, primo", diz Chevirarese.

Assim como outros jovens da Galiléia, é provável que ele não tenha tido uma educação formal ou mesmo a chance de aprender a ler e escrever, privilégio de poucos nobres. Ainda assim, nada o impediria de conhecer profundamente os textos religiosos de sua época transmitidos oralmente por gerações.

POLÍTICA, RELIGIÃO, SEXO

Desde aquele tempo, a região em que Jesus vivia já era, digamos, um tanto explosiva. O confronto não se dava, é claro, entre judeus e muçulmanos (o profeta Maomé só iria receber sua revelação mais de cinco séculos depois). A disputa envolvia grupos judaicos e os interesses de Roma, cujo império era o equivalente, na época, ao que os Estados Unidos são hoje. E, assim como grupos religiosos do Oriente Médio resistem atualmente à ocidentalização dos seus costumes, diversos grupos judaicos da época se opunham à influência romana sobre suas tradições.

O LUXO QUE VEM DE ROMA Diferentemente de Jesus, nobres judeus viviam muito bem obrigado. Para a elite judaica que vivia na Palestina do século I, levar uma vida com requinte e elegância era sinônimo de viver como os romanos. Escavações arqueológicas em Jerusalém e outras cidades indicam uma clara influência da arquitetura e da decoração de Roma no interior das mansões. Para criar uma atmosfera palaciana, era comum, no interior das casas, a reprodução de afrescos e desenhos decorativos com motivos florais e geométricos. Em ambientes maiores, as colunas no estilo romano eram indispensáveis, assim como o uso de mármore para o acabamento dos detalhes - quem não podia pagar pelo mármore usava uma tinta de cor parecida para manter a aura palaciana. Fontes, vasos vitrificados e pisos de mosaico colorido também faziam parte do sonho de consumo dos novos ricos de Jerusalém, que costumavam receber os amigos influentes recostados confortavelmente no TRICLINIUM, espécie de divã usado na hora das refeições. Resquícios da importação de vinhos e outros ingredientes nobres da cozinha mediterrânea, como o garum, um molho especial de peixe típico da cidade de Pompéia, também foram encontrados no interior das mansões. Algumas delas deviam ter uma vista privilegiada para o Templo de Jerusalém, de onde os nobres podiam assistir confortavelmente à movimentação dos peregrinos ou mesmo à condenação à morte de rebeldes judeus.

Na verdade, fazia séculos que os judeus lutavam contra o domínio de povos estrangeiros. Antes de os romanos chegarem, no ano 63 a.c., eles haviam sido subjugados por assírios, babilônios, persas, macedônios, selêucidas e ptolomeus. Os judeus sonhavam com a ascensão de um monarca forte como fora o rei Davi, que por volta do século 10 a.c. inaugurara um tempo de relativa estabilidade. Não é à toa, Davi ficaria lembrado como o messias (ungido por Javé) e, assim como ele, outros messias eram aguardados para libertar o povo judeu.

A resistência aos romanos se dava de maneiras variadas. A primeira delas, e mais feroz, era identificada como simples banditismo. Nessa categoria estavam bandos de criminosos formados por camponeses miseráveis que atacavam comerciantes, membros da elite romana ou qualquer desavisado que viajasse levando uma carga valiosa.

O peixe, pescado no mar da Galileia, fazia parte do cardápio fundamental
das famílias de Nazaré da época. Para conservar o alimento, ele era seco sob o sol.

Além do banditismo, havia a resistência inspirada pela religião, principalmente a dos chamados movimentos apocalípticos. De acordo com os seguidores desses movimentos, Israel estava prestes a ser libertado por uma intervenção direta de Deus que traria prosperidade, justiça e paz à região. A questão era saber como se preparar para esse dia.

Alguns grupos, como os zelotes, acreditavam que o melhor a fazer era se armar e partir para a guerra contra os romanos na crença de que Deus apareceria para lutar ao lado dos hebreus. Para outros grupos, como os essênios, a violência era desnecessária e o melhor mesmo a fazer era se retirar para viver em comunidades monásticas distantes das impurezas dos grandes centros. E Jesus, de que lado estava?

É quase certo que Jesus tenha tido contato com ao menos um líder apocalíptico de sua época, que preparava seus seguidores por meio de um ritual de imersão nas águas do rio Jordão. Se você apostou em João Batista, acertou.

O curioso é que, para a maioria dos pesquisadores, incluindo aí o padre católico John P. Meier, autor da série sobre o Jesus histórico chamada 'Um Judeu Marginal', o movimento apocalíptico de João Batista deve ter sido mais popular, em seu tempo, do que a própria pregação de Jesus. Os historiadores acreditam que é bem provável que Jesus, de fato, tenha sido batizado por João Batista nas margens do rio Jordão, e que o encontro deve ter moldado sua missão religiosa dali em diante.

Os relatos escritos sobre o tempo de Jesus têm, em sua maioria caráter religioso, como os chamados Manuscritos do Mar Morto, encontrados em cavernas próximas a Qumram em Israel

Apesar de não haver nenhuma restrição para que um líder religioso judeu tivesse relações com mulheres em seu tempo, ninguém sabe ainda se entre as práticas espirituais de Jesus estaria o celibato. Da mesma forma, afirmar que ele teve relações com Maria Madalena, como no enredo de livros como 'O Código Da Vinci', também não passaria de uma grande especulação.

UMA MORTE MARGINAL

O pesquisador Richard Horsley, professor de Ciências da Religião da Universidade de Massachusetts, em Boston, é categórico: a morte de Jesus na cruz em seu tempo foi muito menos perturbadora para o Império Romano do que se costuma imaginar. Horsley e outros pesquisadores desapontam os cristãos que imaginam a crucificação como um evento que causara, em seu tempo, uma comoção generalizada, como naquela cena do filme 'O Manto Sagrado' em que nuvens negras escurecem Jerusalém e o mundo parece prestes a acabar. Apesar de ter sido uma tragédia para seus seguidores e familiares, a morte do judeu Yesua deve ter passado praticamente despercebida para quem vivia, por exemplo, no Império Romano. Ou seja: se existisse uma rede de televisão como a CNN, naquele tempo, é bem possível que a morte de Jesus sequer fosse noticiada. E, caso fosse, dificilmente algum estrangeiro entenderia bem qual a diferença da mensagem dele em meio a tantas correntes do judaísmo do período - assim como poucas pessoas no Ocidente compreendem as diferenças entre as diversas correntes dentro do Islã ou do budismo.

Os pesquisadores sabem, no entanto, que Jesus não deve ter escolhido por acaso uma festa como a Páscoa para fazer sua pregação em Jerusalém. A data costumava reunir milhares de pessoas para a comemoração da libertação do povo hebreu do Egito. No período que antecedia a festa, o ar tornava-se carregado de uma forte energia política. Era quando os judeus pobres sonhavam com o dia em que conseguiriam ser libertados dos romanos."

Para a elite judaica que vivia em Jerusalém, contudo, as manifestações anti-Roma não eram nada bem-vindas. Afinal, como ela se beneficiava da arrecadação de impostos da população de baixa renda, boa parte dela tinha mais a perder que a ganhar com revoltas populares que desafiassem os dirigentes romanos, cujos estilos de vida eram copiados por meio da construção de suntuosas vilas (espécie de chácaras luxuosas) nas cercanias de Jerusalém.

OS OUTROS MESSIAS: Os lideres religiosos judeus que não emplacaram na história. Na época de Jesus, a figura do messias esperado para libertar o povo judeu era muito diferente da nossa atual concepção do messias cristão. Para início de conversa, o messias do povo hebreu não precisava ser nenhum santo. Podia ter várias mulheres (como tivera o rei Davi) e devia empregar a violência, caso fosse necessário, para garantir a autonomia do povo hebreu frente a seus inimigos. Não é à toa que, décadas antes e depois da morte de Jesus, diversos outros homens identificados como messias lideraram movimentos religiosos na região. Por volta do ano 4 a.c., por exemplo, um homem conhecido como Judas, filho de Ezequias, liderou uma revolta contra Herodes na cidade de Séforis, na Galiléia. Judas e seus seguidores chegaram a invadir um palacete na cidade para roubar armas para seu exército de oposição aos romanos. No mesmo ano, outras revoltas foram desencadeadas pelos líderes messiânicos Simão e Astronges. O principal objetivo desses movimentos era derrubar a dominação romana e restaurar os ideais tradicionais do povo hebreu. Na década de 60 do século I, o líder Simão Bar Giora organizou um exército de camponeses que chegou a assumir o controle de diversas regiões da Palestina daquele século. De acordo com os historiadores, o último e mais famoso líder messiânico a comandar uma revolta contra os romanos na região foi o judeu Bar Kokeba. Entre os anos 132 e 135, Kokeba teria liderado uma batalha sem precedentes contra os romanos, conquistando territórios por meio de uma tática de guerrilha que incluía esconderijos em cavernas e construção de fortalezas em montanhas. A rebelião somente foi aniquilada depois que o poderoso Exército romano mobilizou uma força maciça para pôr fim à guerra que se arrastava pelo terceiro ano. Não deixa de ser emblemático o fato de que o pacifico Jesus de Nazaré tenha ficado para a história como o "verdadeiro messias" - logo ele, que nunca liderara um exército.

A própria opulência do Templo do Monte de Jerusalém, reconstruído por Herodes, o Grande, parecia uma evidência de que a aliança entre os romanos e os judeus seria eterna. A construção era impressionante até mesmo para os padrões romanos, o que fazia de Jerusalém um importante centro regional em sua época.

Em meio às festas religiosas, o comércio da cidade florescia cada vez mais. Vendia-se de tudo por lá, incluindo animais para serem sacrificados no templo. Os mais ricos podiam comprar um cordeiro para ser sacrificado e quem tivesse menos dinheiro conseguia comprar uma pomba no mercado logo em frente. A cura de todos os problemas do corpo e da alma (na época, as doenças eram relacionadas à impureza do espírito) passava pela mediação dos rituais dos sacerdotes do templo.

Não é difícil imaginar a afronta que devia ser para esses líderes religiosos ouvir que um judeu rude da Galiléia curava e livrava as pessoas de seus pecados com um simples toque, sem a necessidade dos sacerdotes. A maioria dos pesquisadores concorda que atos subversivos como esses seriam suficientes para levar alguém à crucificação.

Quase tudo o que os pesquisadores conhecem sobre a crucificação deve-se à descoberta, em 1968, do único esqueleto encontrado de um homem crucificado em Giv'at há-Mivtar, no nordeste de Jerusalém. Após uma análise dos ossos, eles concluíram que os calcanhares do condenado foram pregados na base vertical da cruz, enquanto os braços haviam sido apenas amarrados na travessa. A raridade da descoberta, deve-se a um motivo perturbador: a pena da crucificação previa a extinção do cadáver do condenado, já que o corpo do crucificado deveria ser exposto aos abutres e aos cães comedores de carniça. A idéia era evitar que o túmulo do condenado pudesse servir de ponto de peregrinação de manifestantes. De qualquer forma, a descoberta desse único esqueleto preservado prova que, em alguns casos, o corpo poderia ser reivindicado pelos parentes do morto, o que talvez tenha acontecido com Jesus.

O que aconteceu após sua morte?

Para os pesquisadores, a vida do Jesus histórico encerra-se com a crucificação. "A ressurreição é uma questão de fé, não de história", diz Richard Horsley.

Tudo o que os historiadores sabem é que, apesar de pequeno, o grupo de seguidores de Jesus logo conseguiria atrair adeptos de diversas partes do mundo. E foi um dos novos convertidos, um ex-soldado que havia perseguido cristãos e ganhara o nome de Paulo, que se tornaria uma das pedras fundamentais para a transformação de Jesus em um símbolo de fé para todo o mundo. Com sua formação cosmopolita, Paulo lutou para que os seguidores de Jesus trilhassem um caminho independente do judaísmo, sem necessidade de obrigar os convertidos a seguirem regras alimentares rígidas ou, no caso dos homens, ser obrigados a fazer a circuncisão. A influência de Paulo na nova fé é tão grande que há quem diga que a mensagem de Jesus jamais chegaria aonde chegou caso ele não houvesse trabalhado com tanto afinco para sua difusão.

O templo de Jerusalém era o centro político, econômico, social e religioso do mundo em que viveu Jesus. Para lá convergiam mercadores, bandidos, profetas e revolucionários.

Mesmo para quem não acredita em milagres, não há como negar que Paulo e os outros seguidores de Jesus conseguiram uma proeza e tanto: apenas três séculos após sua morte, transformaram a crença de uns poucos judeus da Palestina do século I na religião oficial do Império Romano. Por essa época, a vida do judeu Yesua já havia sido encoberta pela poderosa simbologia do Cristo: assim como os judeus sacrificavam cordeiros para Javé, o Cristo se tornaria símbolo do cordeiro enviado por Deus para tirar os pecados do mundo. Desde então, a história de boa parte do mundo está dividida entre antes e depois de sua existência.

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SAIBA MAIS

LIVROS:

Excavating Jesus - Beneath the Stones, Behind the Texts, John Dominic Crossan e Jonathan l. Reed, Harper San Francisco, 2002

O diferencial do livro está no fato de ele trazer as descobertas arqueológicas mais importantes para que se possa entender como era a vida no tempo de Jesus.

Bandidos, Profetas e Messias, Richard A. Horsley e John S. Hansom. Paulus, 1995

O melhor guia para quem quer compreender os diversos movimentos religiosos e políticos no tempo de Jesus.

Jesus, uma Biografia Revolucionária, John Dominic Crossan, Imago, 1995

Um retrato fascinante sobre o que podemos saber sobre a figura histórica de Jesus escrito por um dos maiores especialistas sobre o tema.

Um Judeu Marginal- Repensando o Jesus Histórico, John P. Meier, Imago, 1992

Uma obra corajosa sobre a vida marginal de Jesus em seu tempo escrita com rigor, erudição e clareza

Jesus de Nazaré, uma Outra História, André Chevitarese, Gabriele Cornelli, Mônica Selvatici (or95.), Annablume Editora, 2006

Coletânea de artigos dos maiores especialistas brasileiros sobre o Jesus histórico

Jesus, Coleção Para Saber Mais, Rodrigo Cavalcante e André Chevitarese, Editora Abril, 2003

Introdução rápida sobre a figura do Jesus na história escrita pelo autor desta reportagem em parceria com o historiador André Chevitarese

Revista Aventuras na História

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O Misoginismo: Dos apóstolos ao Catolicismo

Delinear o espaço de poder ocupado pelas mulheres e precisar a influência exercida por elas, se apresenta como algo mais complexo do que se imagina num primeiro instante. Mesmo porque o espaço arduamente conquistado pelas mulheres ao longo dos anos, nas religiões e na sociedade em geral, não possui o alcance de altos postos na hierarquia religiosa, especificamente na Igreja Católica. Ao que parece, a Igreja Católica estabelece uma hierarquia entre sexualidade, poder sacral e gênero.

É na tentativa de vislumbrar essa relação de dominação, existente no seio da religião que possui maior número de adeptos no Brasil e em boa parte do mundo, que esse artigo se apresenta. Através da análise da teoria existente será possível observar que as conquistas femininas em vários setores da sociedade não encontram reflexo na hierarquia católica. Poder-se-á observar que a reconfiguração da figura de Maria Madalena se deu, concomitantemente, a construção da ideologia do Marianismo, como forma de inibir a liderança feminina e masculinizar definitivamente o exercício do poder eclesial. A dominação masculina, tal qual concebida por Pierre Bourdieu, será aqui evocada, bem como o conceito de poder simbólico.

Na prática contemporânea, devemos nos questionar do por que dessas mulheres, embora dirigentes de grupos, movimentos e pastorais católicos, legitimamente aceitas por outros fiéis – que, majoritariamente também são mulheres – não conseguiram ainda romper com os valores mais conservadores e tradicionais dessa modalidade religiosa. Essa confirmação só poderá ser feita através da observação da conduta feminina no catolicismo. Sendo o indivíduo uma construção de valores e crenças, adquiridos a partir dos processos de socialização, a religião assume um papel relevante na construção de papéis de gênero, bem como de todo comportamento social dos indivíduos, e na desconstrução da ideologia de gênero na sociedade, que mantém as mulheres num patamar de inferioridade.

1. Uma breve digressão

A história da humanidade possui uma característica em comum, que liga os fatos e épocas mais distintas: ela sempre foi contada sob a égide do poder. Seja com a formação e o declínio dos poderosos impérios, como o Macedônio e o Romano, seja com a expansão ultramarina e a colonização das Américas, o relato historiográfico é produzido sob a perspectiva dos dominadores. Diante desse fato, percebe-se um significativo crescimento no debate travado sobre a invisibilidade da mulher na historiografia oficial, ao lado de tantas outras minorias dominadas e excluídas do exercício do poder. O relato sócio-historiográfico tem, no entanto, buscado diagnosticar os motivos dessa invisibilidade, reescrevendo a história e criando uma sociologia também a partir da ótica de quem fora sujeito à dominação.

É durante a Revolução Científica que a dicotomia homem versus mulher se acentua e se explicita: a tímida ciência constituída até então passa a ser vista como eminentemente feminina, pois fraca e passiva, enquanto que a nova ciência moderna era tida como masculina, por ter uma potência latente e viril, não conhecida até aquela revolução. Segundo Bidegain, ao domínio da ciência e, portanto, do homem, rende-se à natureza, a mulher e o mundo não-ocidental (Bidegain, 1996: 17). Desse modo, justifica-se a invisibilidade feminina, já que a ideologia da ciência legitima a necessidade da mulher estar sob a tutela do sexo forte e se coaduna à discriminação sexual.

Não obstante, é durante a Revolução Científica que ocorre a aniquilação da ciência feminina, com a “caça as bruxas”, ocorrida nos séculos XIV a XVIII. Ela se constitui um processo de repressão sistemática do feminino. Estima-se que, durante esse extermínio, o número de mulheres executadas chega aos milhões, perfazendo 85% de todos os executados durante a Inquisição (Delumeau, 1990). Em grande maioria esse número se explica pela correlação, durante esses quatro séculos de perseguição, entre transgressão sexual e transgressão de fé, sendo as mulheres culpadas desde o berço.

Com a Revolução Industrial, a domesticidade feminina se consolida: aos homens, cabe a produção de bens e serviços, ao passo que a mulher cabe a reprodução e o cuidado da preciosa mão-de-obra, que serviria ao novo sistema. Concomitantemente a isso, elas começam a participar da vida econômica da sociedade, por ser agora assalariada em seu emprego (ainda que ganhem menos que os homens, desempenhando as mesmas tarefas). No entanto, o trabalho doméstico, desenvolvido pela mulher, é considerado não-trabalho: é sua obrigação. A dupla jornada de trabalho feminino – fora e dentro de casa – não é reconhecida, já que do lar e da família ela cuida por amor e abnegação.

“A análise do gênero como forma primária das relações significantes de poder, nos forneceria elementos para a compreensão da formação do imaginário do patriarcado” (Bidegain, 1996: 25). É na família que se encontrava (e, em grande medida, ainda se encontra) o núcleo central das relações de poder. A categoria gênero e sua contraposição binária, segundo Joan Scott, é o campo primário onde fecunda e é formulado o poder (Scott, 1991). A ordem masculina dispensa justificações, por ser o masculino à medida de todas as coisas. Tal ordem permeia a construção do cotidiano, com imposições explícitas e implícitas nas relações sociais, decorrentes da divisão do trabalho sexual e/ou sexual do trabalho.

Para perpetuação desse ordenamento contribuem rituais privados e/ou públicos, que sacralizam a separação. Um exemplo dado por Bourdieu são os ritos de instituição, que destinam a mulher à exclusão definitiva da dignidade social de receber uma marca distintiva e indelével (como no caso do sacerdócio católico). A ordem masculina, portanto, “legitima uma relação de dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada” (Bourdieu, 1999: 33).

No decorrer da história há uma constância na representação feminina na sociedade, seja através de mitos, seja através de fatos. Simone de Beauvoir (1980) nos ajuda a realizar uma desconstrução do que foi dito e feito sobre a mulher, numa sociedade tão masculina como a nossa. O mais universal dos mitos femininos é o da mulher como feiticeira e como origem de todos os males da Terra. Na mitologia grega, é Pandora quem dissemina todos os males possíveis, ao abrir a caixa. E na tradição judaico-cristã é Eva (ou Lilith, no Talmud) quem arrasta Adão ao pecado original e aprisiona a ambos e a toda sua descendência ao sofrimento e ao mal. Observa-se, portanto, que, seja a Pandora grega, seja a Eva judaico-cristã, é a mulher a responsável pela introdução do sofrimento no mundo e, conseqüentemente, do fim do paraíso terrestre. A feitiçaria é constantemente atribuída à mulher, por emanar de uma passividade e ser operada a margem da sociedade; ao passo que o sacerdócio, atribuído aos homens, domina as forças etéreas para o bem da comunidade e sob a égide do todo.

2. A representação feminina no catolicismo

O cristianismo, através de seus padres, ao perseverar em afirmar a culpabilidade de Eva pelo pecado original, torna a atribuir à mulher certo prestígio (embora assustador): é ela a culpada pela separação do ser individual em alma e corpo, fazendo deste último inimigo do primeiro e, dessa forma reavivando a noção de pecado, sustentáculo da religião cristã. Partindo desse princípio, os grandes tabus e represálias sexuais que norteiam e aprisionam a sociedade e que acometem, de sobremaneira, a mulher – embora tenham diminuído consideravelmente – deve-se ao pensamento e a lógica judaico-cristã. A forte distinção entre a moral feminina e a masculina serve a esse fim ao tornar obrigatório, mediante forte coação, uma claustrofóbica disciplina à mulher, que se estende a todas as partes do corpo, enclausurando-as num confinamento simbólico. O uso do corpo feminino ainda continua subordinado à visão masculina.

Posteriormente, o dogma da virgindade de Maria, mãe de Jesus, pode ser visto como uma maneira de não manchar o Deus-homem, pois “a repugnância do cristianismo pelo corpo feminino é tal que ele consente em destinar seu Deus a uma morte ignominiosa, mas poupa-lhe a mácula do sofrimento”. (Beauvoir, 1980 a: 211). Santo Agostinho declara que o ser humano se divide entre uma alma assexuada e um corpo sexuado. No homem, o corpo reflete a alma, sendo a imagem plena de Deus. Na mulher, por sua vez, ao corpo não reflete a alma, e aquele se constitui um empecilho à realização de sua razão. E é por causa dessa deficiência que a mulher é inferior ao homem devendo, por conseguinte, ser-lhe submissa.

Mesmo acentuando as diferenças de gênero, é o cristianismo que, paradoxalmente, ao espiritualizar a mulher, afirma enfaticamente a igualdade dos sexos, tornando ambos assexuados servidores do Deus uno. O próprio Cristo possuía uma atitude inovadora com relação à mulher ao permitir que elas também o seguissem e ao vê-las como seres inteiros. Contrariando os ensinamentos do seu Deus, a Igreja Católica desde seu início, apoiada especialmente em São Paulo, vivencia a dificuldade de convergir à teoria dos evangelhos com sua prática cotidiana.

Longe de parecer essa figura assexuada, criada pelo cristianismo alguns séculos após seu nascimento, Maria Madalena talvez seja a personagem feminina mais injustiçada pela Igreja. É a mulher mais citada no Segundo Testamento (Sebastiani, 1995: 37), e isso nos revela sua enorme importância para a história do cristianismo. Longe de ser a prostituta do evangelho de João (Jo 8, 3-12), na realidade Maria Madalena ocupou um lugar de destaque entre os primeiros cristãos, sendo uma mulher independente, que buscou o seguimento ao Cristo e lutou pela liderança da Igreja nascente.

Madalena não é a mulher que unge os pés de Jesus (Lc 7, 36-38), nem a que derrama óleo perfumado em sua cabeça (Mt 26, 6-7), ou ainda a adúltera prestes a ser apedrejada (Jo 8, 3-12), passagem que se tornou emblemática a essa mulher. É, na realidade, a mulher que aparece no evangelho de Marcos, da qual Jesus expulsa os sete demônios (Mc 16, 9). Além dessa passagem, Maria Madalena – ou melhor, Miriam de Mágdala – aparece nos textos canônicos nos instantes mais marcantes da vida de Cristo, como a crucificação e a ressurreição (Sebastiani, 1995; Freitas, 2004).

Ainda segundo Sebastiani, a distorção ocorrida em sua imagem, que fora amplamente difundida pela tradição católica, não está literalmente expressa na Bíblia, mas advém de conexões errôneas entre trechos distintos e da ausência de certas informações, tais como:

1. A ausência de associação com nomes masculinos – Maria não é identificada por sua relação com alguma figura masculina, seja pai ou marido, sejam filhos ou irmãos. É a sua cidade natal que a identifica, a cidade de Mágdala, na Galiléia. Essa identificação denota a independência dessa mulher, possuidora, portanto, de uma condição privilegiada para sua época. Na cultura judaica, no início da Era Comum (E.C.), as mulheres eram sempre mantidas sob a tutela de algum ente masculino. Como Maria vivia sozinha, era vista como alguém que não seguia a Tora, os preceitos religiosos, que até então norteavam toda a vida das pessoas.

  1. O significado atribuído aos sete demônios – A palavra demônio, do latim “diábolos” ou do grego “daimon”, não possuía, a época de Jesus, o significado que possui na atualidade. Para alguns teólogos, quando o evangelista fala que Jesus expulsou sete demônios quer dizer, na realidade, que Madalena possuía problemas sociais. No entanto, a explicação predominante no período foi o da associação dos sete demônios aos sete pecados capitais, a saber: a soberba, a avareza, a luxúria (de onde vem à ligação imediata de Madalena a prostituição), a ira, a gula, a inveja e a preguiça.

3. A fusão de várias mulheres retratadas no Segundo Testamento como uma só: Madalena – A partir do século três, a tradição católica unifica as histórias de Maria de Betânia, a irmã de Lázaro e que é aquela que ungiu os pés de Jesus, e a da pecadora salva de apedrejamento com a história de Madalena, ocasionando um decréscimo em sua popularidade. Madalena passou, então, a ser taxada de prostituta redimida. Tanto é verdade que a grande maioria dos católicos faz uma associação instantânea de Madalena com a pecadora redimida e não com a primeira pessoa a anunciar a ressurreição do Salvador, fato emblemático para a criação do cristianismo, sem o qual nem haveria essa religião. Foi no final da Idade Média que, de fato, se estabeleceu à visão vigente entre a maioria dos leigos católicos: a de Maria Madalena como uma prostituta arrependida.

Embora já existam obras de exegese bíblica no seio da Igreja que coadunam com a construção aqui explicitada, ela ainda não se reflete no dia-a-dia das celebrações e demais atividades pastorais, onde permanece a versão pejorativa de Maria Madalena. Mas é importante frisar que não há uma verdade absoluta e irrefutável, uma vez que os evangelhos apócrifos, principal fonte para a reconfiguração da imagem de Maria Madalena, não são reconhecidos pela Cúria Romana. Ambas as visões sobre essa importante personagem do cristianismo são construções e narrativas, a partir de textos considerados sagrados pelos cristãos. Segundo o Frei Jacir de Freitas,

“Mais do que revelar uma oposição e repulsa entre dois personagens importantíssimos do cristianismo emergente, seus atos, verdadeiros ou não, revelam a disputa política do poder eclesial das comunidades que ‘criaram’ esses textos e os atribuíram a eles. A atribuição misógina de alguns apócrifos a Pedro deve ser entendida em seu contexto. [...] Esses modelos de mulher, baseados no corpo e sua anulação, não são os mais felizes para os nossos dias, embora a tradição insista em perpetuá-los.[...] A libertação de nossos corpos é beneficiada com o resgate da outra Madalena”. (Freitas, 2004: 157)

Independentemente das questões levantadas pela alta hierarquia da Igreja Romana, os textos apócrifos nos oferecem amplo material para reconstrução da identidade de Maria Madalena, nos revelando-a como discípula predileta de Jesus. O relacionamento especialmente afetuoso entre ambos levanta a suspeita de um envolvimento maior do que apenas mestre-discípula. E por possuir conhecimentos não revelados a mais ninguém, Madalena torna-se alvo dos apóstolos e, no início do cristianismo, disputa a liderança das primeiras comunidades com Pedro, o protagonista da Igreja nascente. Embora não haja dados históricos que comprovem isso, com base nos apócrifos pode-se afirmar a participação ativa de Madalena na difusão e propagação dos ensinamentos de Jesus, chegando possivelmente a ter liderado uma das comunidades cristãs.

“Toda essa carga pejorativa não foi arremessada gratuitamente sobre Madalena. Ao colar o rótulo de prostituta e pecadora em das primeiras referências cristãs até então, a Igreja nascente desestimula a liderança feminina” (Motomura, 2004: 26). A decrescente importância de Madalena se deu concomitantemente à idealização de Maria, mãe de Jesus, como exemplo de mulher a ser seguido, representando a dissociação entre o carnal e o espiritual.

Maria é uma jovem judia, obediente e humilde que, segundo a Bíblia, foi escolhida para ser a mãe do Salvador. Após o anúncio, feito pelo anjo Gabriel, esta concebe e, posteriormente, dá a luz a Jesus, o Cristo. Da mesma forma que ocorre com Madalena e com outras personagens bíblicas, há inúmeras lacunas na história de Nossa Senhora. Vários dogmas envolvem-na. O primeiro que data de 431, do Concílio de Éfeso, afirma ser Maria mãe do filho de Deus feito homem: Jesus Cristo. Em 553, no Concílio de Constantinopla, estipula-se o dogma da virgindade de Maria, tendo ela concebido pela ação do Espírito Santo. Não há consenso entre os cristãos acerca disso. Em 1854, surge o dogma da Imaculada Conceição, que afirma que Maria nasceu sem a mácula do pecado original. Já no século 20, um outro dogma bastante importante é aprovado: o da Assunção.

Embora tenha sido uma mulher decidida e corajosa, a imagem mais freqüente e mais disseminada é a de mãe virginal e serva obediente do Senhor. Após a morte de seu filho, aparece em um dos livros bíblicos, os Atos dos Apóstolos, atribuído a Lucas, no meio das discípulas e dos discípulos de Jesus. Esteve, inclusive, presente em Pentecostes – momento em que os doze apóstolos recebem o Espírito Santo em forma de línguas de fogo (At 2, 1), e considerado o marco da fundação do catolicismo. Alguns pesquisadores afirmam que ela seguiu João a Éfeso e com ele atuou na comunidade nascente, porém não há certeza. É em Maria que a Igreja procura realizar o arquétipo do gênio feminino e da dignidade pessoal da mulher, nas palavras do papa João Paulo II (1988). Justificam-se, dessa forma, as antigas maneiras de conceituar a categoria gênero, como legitimadora do poder masculino, cabendo a mulher, apenas, desempenhar sua função reprodutora. Essa idéia está presente, por exemplo, no discurso de muitos sacerdotes, em suas exaltadas pregações, ainda hoje.

As mulheres teriam, portanto, duas possibilidades na Igreja: a de ser mãe exemplar – como Nossa Senhora – ou celibatária – como a Maria Madalena forjada, a pecadora arrependida – demonstrando a comunidade que a religião controla a sexualidade. Nas palavras do Papa João Paulo II, “a virgindade, como vocação da mulher, é sempre a vocação de uma pessoa, de uma pessoa concreta e única. Portanto, é também profundamente pessoal a maternidade espiritual que se faz sentir nesta vocação” (1988). Verificamos, com isso, a centralidade da maternidade como elemento diferenciador da mulher, uma vez que até mesmo a mulher virgem pode exercer a maternidade, mesmo que num plano simbólico.

Esse controle é demonstrado, dentre outras formas, em analogias criadas e internalizadas inconscientemente. Segundo Bourdieu (1999), a cintura feminina, por exemplo, é signo de proteção para a vagina, sendo vista como uma trincheira sagrada que protege a genitália feminina. Esse órgão, símbolo e objeto sacralizado, só pode ser acessado mediante a observância de regras estritas, que determinam quais são as condições, os agentes e os atos legítimos de violação. A não observação de tais regras torna o acesso profano, passível de punição. Cria-se, portanto, uma forte separação, perpetuada em nosso tempo, ainda que com menor intensidade, entre o espírito e o sexo. O ato sexual continua a ser tratado, principalmente pela Igreja, sob o primado da masculinidade, constituindo-se uma relação de dominação. A questão celibatária, no entanto, perpassa a questão feminina, se estendendo aos homens, em certa medida.

A visão negativa que se tem da honra feminina (que pode apenas ser defendida ou perdida, nunca simplesmente mantida) se encerra na lógica de sua virtude, que se apresenta de maneira sucessória: primeiro, a virgindade; depois, a fidelidade total e irrestrita. Já o homem, cuja honra é um dado irrevogável e ascendente, é o ser dominante e, por isso mesmo, privilegiado. Acaba, no entanto, por encontrar-se encurralado: vive incessantemente numa contraposição entre tensão e contensão, que o impõe a obrigação de afirmar, constantemente, sua virilidade. O problema é que essa glorificação dos valores masculinos vê-se ameaçada pela inglória que a feminilidade proporciona, usando-se de armas próprias à sua “fraqueza”, como a astúcia, a mentira e a magia. Isso torna a virilidade vulnerável, ao invés de permanecer como absoluta (Ibidem).

A mulher-mãe é personificada em Maria, de sobremaneira na recusa em atribuir a ela o papel de esposa. A virgindade mariana assume um forte teor negativo: a carne foi salva por aquela que não é carnal, que é imaculada e que possui na integridade inviolada a feminilidade. Na subserviência é glorificada, como canta no Magnificat, e a dominação masculina absorve do culto a Maria um importante alicerce, pois “não é somente para possuí-lo que o homem sonhe com o outro, é também para ser confirmado por ele.” (Beauvoir, 1980 a: 227). As mulheres nada mais são do que objetos simbólicos, um ser-percebido. É por isso que se observa a ditadura masculina também no modo de ser feminino, por haver uma dependência simbólica, onde a mulher existe pelo e para o outro. Essa dominação masculina, um paradoxo da doxa, resulta de uma violência simbólica que é exercida de forma invisível e silenciosa, através de um princípio percebido pelo dominante e pela dominada.

No entanto, falar em violência simbólica não significa negligenciar a violência física. Ao denominá-la simbólica, Bourdieu não a concebe como espiritual ou irreal; busca apenas realçar o caráter objetivo de uma experiência de dominação como subjetiva. Esse tipo de violência é considerado comum justamente por ser naturalizada. Talvez por isso haja certa complacência para com o homem diante da desobediência dos preceitos divinos e as leis da comunidade. A mulher, ao contrário, retorna ao estado de natureza, ao pecado.

“A Igreja exprime e serve uma civilização patriarcal na qual é conveniente que a mulher permaneça anexada ao homem. É fazendo escrava dócil que ela se torna também uma santa abençoada. Assim, no coração da Idade Média, ergue-se a imagem mais acabada da mulher propícia aos homens: a figura da virgem Maria cerca-se de glória. É a imagem invertida de Eva, a pecadora; esmaga a serpente sob o pé; é a mediadora da salvação como Eva o foi da danação” (Ibidem: 214).

E o marianismo congrega as crenças acerca da posição das mulheres na sociedade, sendo o culto à superioridade espiritual feminina, tornando-se tão presente quanto o machismo em nossa sociedade – até complementando-o. O culto mariano é amplamente difundido pela Igreja Católica. Maria é vista como o protótipo ideal da mulher, por ser despojada de sua sexualidade e “todo o seu valor reside no fato de ser santa, modesta, silenciosa, humilde e, fundamentalmente, de ser mãe sem ter tido o gozo de seu corpo: a mãe ideal” (Concha apud Ary, 2000: 74). É urgente que se faça a distinção entre o eterno feminino, envolto em misticismo e encarado de forma sacralizada, com o lugar ocupado pelas mulheres e o valor real que deve ser atribuído a elas pela Igreja romana. O fato de a mulher ser considerada um ser maculado em sua essência foi determinante, desde o início da Igreja, para que a participação em certos cultos e seu afastamento das funções sacerdotais ocorressem.

A desvalorização feminina na Igreja Católica decorre de algumas interpretações errôneas e propositalmente deturpadas da Bíblia, como por exemplo:

1. A difusão do relato da criação do mundo contido em Gn 2, 4-25, onde Eva é feita da costela de Adão. Daí se dissemina a mentalidade vigente da mulher como um ser secundário, criado para satisfazer o homem.

  1. A culpa atribuída a Eva pela perda do paraíso, ao se deixar seduzir pela serpente (demônio) e incitar o homem a cometer o pecado original. A partir daí os males passam a habitar na terra e a afligi-los – os “castigos” dados por Deus, a saber: o parto doloroso e o trabalho árduo.
  2. O fato de ser considerado o “sexo frágil” pela sociedade justifica a sua vulnerabilidade diante da sedução da serpente, levando as mulheres a tornarem-se “sexualmente perigosas” aos homens, que não deveriam deixar se prejudicar por elas.

A manutenção da virgindade de Maria, mesmo após o parto, levou a Igreja a assemelhar as mulheres, cada vez mais, a seres assexuados que, devendo exercer o papel de esposa-mãe, perdem a virgindade física, mas mantém a castidade espiritual. Isso aprisiona a mulher a um ato sexual sem prazer, pois “no novo espaço de apreensão das ambigüidades cristãs, referentes ao masculino e ao feminino, pode-se perceber que os homens são considerados como sendo uma natureza superior, contudo, maligna (por que sexuada?) e que as mulheres são consideradas como sendo uma natureza inferior, contudo, benigna (por que assexuada?)” (Ary, 2000: 79).

Nos primeiros séculos da colonização portuguesa no Brasil, por exemplo, as mulheres foram constantemente adestradas a serem mães, seguindo a atenta imposição da Igreja Católica de contraírem matrimônio. Por isso, essas mulheres-mães só deveriam gerar após o casamento, legitimado pela autoridade religiosa, devendo abominar o concubinato (prática comum entre as índias). A mulher deveria viver numa espécie de via-crucis doméstica, onde a maternidade era sua tarefa central. A igreja via na mulher a possibilidade de reaver velhas tradições, que estavam sendo menosprezadas nessa “terra de ninguém”. Passa a existir, então, um sincretismo existencial entre religião e sociedade, onde “a vida social e familiar das mulheres traduzia as aspirações do catolicismo tradicional [e] a Igreja ia lentamente tentando impor um padrão, um papel social para a mulher, para a mãe” (Del Priore, 1995: 106-107).

3. O exercício do poder simbólico e a hierarquia católica

A vocação específica natural da mulher, exortada pelo papa João Paulo II em algumas de suas encíclicas (1988; 1994), resume-se no cumprimento de determinados papéis, principalmente a vocação de ser mãe. O posicionamento contrário do Vaticano a mecanismos de controle da natalidade expõe a prioridade, ainda segundo o papa, das leis biológicas da natureza sobre o desenvolvimento da liberdade humana e deixam transparecer, com isso, o temor a uma subversão do que a cúria romana acredita ser “a ordem natural”. A emancipação feminina, ainda hoje, é vista com receio, pois há o temor da “masculinização” da mulher.

O patriarcalismo dominante, no entanto, reprimiu a liderança feminina. Não é exagero dizer que os apóstolos disputaram arduamente a posse da autoridade na comunidade cristã. E nessa disputa as mulheres foram prejudicadas, inclusive pelo momento histórico em que viviam, sendo alijadas do poder – era considerado heresia concedê-lo as mulheres. E a atitude misógina de Pedro, afirmada pelos apócrifos, só fomentou ainda mais essa disputa política pelo poder eclesial.

Ainda segundo Bourdieu, é possível ver o poder em toda parte e que, onde ele é menos perceptível ou totalmente ignorado, é por isso mesmo mais reconhecido. E a esse poder invisível e eficaz, justamente por possuir a cumplicidade de todos e de todas, que não querem ter ciência de que estão sujeitos a ele, que este autor denominou de poder simbólico. O campo religioso possui um sistema simbólico rico e arraigado no consciente coletivo dos indivíduos, em parte devido a sua função integradora (dos seres com o transcendente), mas também devido ao exercício amplo desse poder simbólico. Por ser, simultaneamente, um instrumento estruturado e estruturante, a religião, bem como outros sistemas simbólicos, contribui largamente para a imposição e legitimação da dominação.

Dessa forma, a clara predominância masculina sobre a feminina no seio católico, com a divisão do trabalho religioso, pode ser associada a essa lógica. Com esse poder quase mágico é possível fazer ver e crer, corroborar a visão de mundo que se possui, ou modificá-la. Ele não habita no sistema simbólico propriamente dito, mas na dialética criada entre os que o exercem e os que se submetem a ele, permitindo a reprodução de uma crença através do reconhecimento alcançado, e não da imposição arbitrária.

Numa visão estreita e unilateral do ministério sacerdotal, cabe ao sacerdote fazer as oferendas a Deus, servindo de intermediário entre o Criador e a criatura humana. Acontece que, seguindo essa mesma visão, quando da criação do mundo, Deus alocou o homem num patamar superior ao da mulher. Por isso, apenas o ser masculino possui a capacidade de intermediar os seres humanos com o transcendente, contrariamente a mulher que, devido a sua posição inferior na escala da criação, não pode nem sabe desempenhar qualquer tarefa de mediação.

Já houve um período, no início da história da Igreja, de elaboração da doutrina cristã, denominado de Patrística, onde as mulheres desempenharam funções sacramentais litúrgicas e pastorais, ou seja, tinham a possibilidade de exercer o ministério eclesiástico, como diaconisas, fazendo parte da hierarquia católica (Soberal, 1989: 265-267). É interessante notar que esse ministério feminino não só desapareceu como é pouco falado (para não dizer omitido) nos manuais de história. Após esse período, a participação feminina no ministério eclesial entra em acentuado declínio, culminando num grave distanciamento das mulheres do direcionamento e do pastoreio da Igreja.

Biblicamente, a mulher é habilitada para o exercício pleno e irrestrito do serviço a Deus, no cristianismo, pelo sacramento do Batismo – tanto é verdade que muitas denominações evangélicas reconhecem esse ato de fé. No entanto, “homens de fé”, como D. Estevão Tavares Bittencourt chegam a afirmar tacitamente, segundo citação extraída da Revista Época por Gomes, que as mulheres “não têm habilidade para esse sacramento [o da Ordem]. Elas nasceram para ser esposas, mães e não sacerdotes”. Cabem, diante desse desencontro de percepções, dois questionamentos: “É mesmo vontade de Deus que a mulher participe de tudo ao lado do homem, menos do pastoreio da Igreja de Jesus? [...] A história não provou, em todos os setores, que o poder só foi mal gerenciado devido à exclusão da mulher em participar do seu gerenciamento?” (GOMES, 1998: 17-18).

Alguns teóricos já tiveram a preocupação de observar em que medida os elementos da subjetividade feminina – como a submissão e a abnegação, por exemplo – reforçam e/ou questionam os diversos grupos religiosos. Machado e Mariz, por exemplo, expressaram essa preocupação ao tratar dos pentecostais e dos católicos (carismáticos e das CEB’s): em todos esses grupos é latente a maior presença feminina e, de forma não-intencional, esses grupos produzem uma auto-estima nas mulheres, pois apregoam que, através da conversão, elas tornam-se mais autônomas. Ao assimilar a proposta religiosa dos direitos sociais (considerados incontestáveis) a que cada indivíduo tem direito, as mulheres, especialmente às das CEB’s, adicionam os direitos da mulher as reinvidicações, evocando uma individualidade até então negada. Basta ver o surgimento de movimentos que lutam pela causa feminista no seio religioso, como a ONG ecumênica Católicas pelo direito de decidir.

Para Maria Rosado Nunes, há dois elementos intrínsecos às sociedades modernas que não foram, até o momento, internalizados pela Igreja Católica, a saber, as liberdades democráticas e a autonomia individual. Essa ainda embrionária autonomia de ação põe em xeque o abrangente conceito da natureza feminina ao questionar a existência de uma essência feminina, presente em toda mulher, sem exceção. Isso destrói a idéia da construção social de gênero, nos remetendo a uma lei natural. Lei esta que é o fundamento da reprodução da estratificação de gênero, ao colocar as mulheres num patamar religioso e social de subordinação.

Isso decorre, talvez, da maior visibilidade adquirida perante a comunidade e da legítima liderança exercida. Mas a liderança feminina não existe para dar prestígio e status às mulheres, e sim ocorre pela contingência da falta de homens para ocupar tais lugares. O que nos remete a Max Weber, ao tratar dos três tipos puros de dominação legítima e, em especial, da liderança carismática, “baseada na veneração extracotidiana da santidade, do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas” (Weber, v. 1, 2000: 141), ou seja, na crença no sobrenatural, daquilo que é proveniente do divino.

É a presença de carisma que legitima a liderança religiosa, conferindo também as mulheres numa esfera micro, um mandato divino. No entanto, a violência simbólica é mais uma vez evocada, pois seus efeitos tão largamente absorvidos se enraízam no íntimo dos indivíduos, sob a forma de predisposição, fazendo crer numa auto-exclusão e numa espécie de “vocação”, que substitui a tácita exclusão expressa.

É exatamente isso que ocorre no seio da Igreja Católica: mesmo tendo vencido inúmeras formas de preconceito e discriminação, através de sua emancipação, chegando a alcançar, gradativamente, altos postos de trabalho, num lento processo de equiparação de salários e posições, até então masculinas, as mulheres permanecem alijadas do poder na Cúria Romana. É a mulher, detentora de toda carga pejorativa que a instituição do pecado acarretou, responsabilizada por sua própria opressão. E é exatamente por isso que, muitas vezes, elas próprias vêem como herética a ascensão feminina na Igreja Romana e continuam a reproduzir o discurso moralizante dessa instituição. A responsabilidade por essa reprodução é a eficaz violência simbólica, que coloca limites às possibilidades de ação e reflexão do agente dominado por esse tipo de preponderância. Transformar essa realidade de dominação, secular e religiosa depende de mudanças nas estruturas primárias, das quais todas as outras disposições resultam.

O princípio de igualdade cristã camufla, na verdade, a realidade dos grupos religiosos cristãos, pois estes endossam as inúmeras realidades sociais onde a maioria feminina não é sinônimo de eqüidade de gênero, além de esconder um questionamento do papel da mulher na sociedade. O poder, sendo definido por Weber como a probabilidade de fazer valer a vontade particular, em uma dada relação social, ainda que essa imposição encontre resistências, independente de qualquer fator que alicerce essa probabilidade (Weber, v. 1, 2000: 33), nos leva a questionar se a liderança carismática, que porventura possa existir no seio das organizações religiosas e que se baseia na idéia já exposta de mandato divino, sub-existe diante do claro poder hierárquico e sacramental desempenhado exclusivamente por homens, no Catolicismo. “Será que existe de fato uma ação revestida de poder, na prática de ‘comando’ dessas mulheres ou se na verdade isso não passaria de um engodo, uma dissimulação, onde as mulheres seriam agentes de reprodução dos valores tradicionais da Igreja, principalmente no tangente ao universo feminino?” (Nascimento, 2001: 18).

As autoridades eclesiásticas freqüentemente norteiam a construção de teorias e disposições nos documentos oficiais da cúria romana ou nos pronunciamentos papais através de uma estruturação hierárquica, tanto do mundo, quanto do ser humano. Em tal estruturação se fixa a distinção entre os seres, atribuindo ao homem o estrato superior e a mulher o estrato inferior. Esse pensamento hierárquico habita não apenas no meio religioso católico, mas também em diversos setores da sociedade. A costumeira comparação do Estado a um organismo vivo e por este primeiro também ser dotado de uma única cabeça e diversos membros (em tese), é um bom exemplo da ampla influência desse pensamento na humanidade.

No meio religioso cristão, a auto-afirmação de Cristo como sendo a cabeça cujo corpo é a Igreja, expressa no Segundo Testamento, especialmente nas cartas paulinas (Ef 5, 23 e I Cor 11, 3; 7-9) é usado como justificativa para manutenção de uma rígida hierarquia, muito embora poderia ter se tornado um pouco mais fluída e relativa após o Concílio Vaticano II. Eyden chama a atenção para o princípio da intervenção hierárquica, onde

“uma categoria superior só entra em contato com uma inferior através da intervenção das intermediárias e vice-versa(...) Esse princípio de intervenção, que vigora em todo cosmos, rege também a ordem social (...) Também na relação dos homens frente a Deus a intervenção tinha papel importante. Era costume recorrer aos intercessores” (Eyden, 2001).

São Tomás de Aquino, fazendo uso da teoria sobre o homem de Aristóteles, norteou durante séculos a antropologia cristã, afirmando categoricamente à proximidade da mulher com a matéria (em seu sentido mais negativo). Com isso, fez com que o gênero feminino, quando comparado ao masculino, fosse (e quem sabe ainda seja) visto como menos valioso qualitativamente e só capaz de desempenhar funções menos importantes – sem falar, é claro, da debilidade biológica feminina.

Para ele, embora a mulher também seja imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 27), principalmente no tocante a salvação de Cristo, ela encontra-se num estado de sujeição ao homem – status subjectionis – onde necessita de sua liderança. A passividade feminina era explicada pelo fato dela ser um homem fracassado – mas occasionalus (Eyden, 2001: 18-19). Prova disso são os papéis distintos que homens e mulheres assumem na procriação: o homem de modo ativo, ao passo que a mulher é apenas um passivo receptáculo. Crescia, então, a ideologia do ser masculino como o único e verdadeiro indivíduo e do ser feminino como algo diferente.

4. Alguns questionamentos para concluir

Sendo um processo histórico, a construção de gêneros bem como a sua análise, remete a relação hierarquizada que existe entre eles e possibilita a compreensão não só da estruturação do poder político-econômico e histórico-social, mas também do religioso, presente nas sociedades. A exaltação da família divina, fundamentada na imagem do Pater familias, é amplamente propagada como um sinal às famílias terrenas que o alicerce de suas vidas deve ser esse ideal religioso.

É justamente essa hierarquia familiar divinizada que é transposta para estrutura clerical católica, envolvendo o imaginário dos indivíduos e legitimando o organismo da Igreja, onde os sacerdotes são pais, e os fiéis (leigos) são os filhinhos. Quanto a participação feminina nessa homo-estrutura eclesial, ela se restringe aos conventos, em posições subalternas, sob a égide de um bispo, para o qual devem buscar alcançar reconhecimento social e político.

A posição secundária ocupada pela mulher na sociedade – possuidora de um forte patriarcalismo – sempre buscou enquadrá-la num projeto de submissão e passividade, cujos únicos papéis possíveis são os de esposa-mãe/virgem, tem a sua perpetuação originada na doutrina e na prática da Igreja cristã em geral, e da Igreja Católica em particular. Isso porque a forte concepção hierárquica dessa instituição social impediu o rompimento com a ideologia da supremacia masculina. Enquanto a dominação masculina não se impõe mais de forma inquestionável e perde terreno em todas as áreas da sociedade, ela parece permanecer de forma absoluta na Igreja Católica. É verdade também que essa mudança na sociedade ainda oculta à permanência da mulher nas posições relativas, pois a tão falada igualdade de oportunidades mascara tanto a desigualdade doméstica quanto às carreiras possíveis.

É perceptível, em todo esse discurso religioso e na sua confrontação com a realidade, um paradoxo: “de certa forma as mulheres estão excluídas dos lugares de poder e são, portanto, aí desvalorizadas como pessoas; por outro lado, elas constituem o público mais fiel, mais assíduo e, portanto, numericamente superior em presença aos acontecimentos eclesiásticos” (Ary, 2000: 76). Tanto em sua doutrina, através da ética sexual, quanto na sua composição hierarquizada e masculinizante, na qual a mulher não está inserida na instituição eclesial, a Igreja Católica não contou nos últimos anos com modificações reais e abrangentes, seja em seu discurso, seja em sua prática. Não terá chegado o momento das mulheres estenderem suas conquistas políticas, sociais e trabalhistas também a esfera religiosa, com o rompimento de barreiras e a transposição dos ambientes até hoje tidos como exclusividade masculina?


Santo Epifânio, o caçador e inventor de heresias

Evangelhos Gnósticos de Nag Hammadi

No princípio de seu volumoso livro contra as heresias, Santo Epifânio (morto em 403) transcreve uma lista impressionante – e, no entanto, incompleta, como ele próprio esclarece – de seitas temíveis que ameaçam a unidade da Igreja: os simonianos, os menandrianos, os saturnilitas, os basilidianos, os nicolaítas, os estratióticos, os fibionitas, os zaqueos, os borboritas, os barbelitas, os carpocracianos, os cerintianos, os nazarenos, os valentinianos, os ptolomeanos, os marcosianos, os ofitas, os cainitas, os setianos, os arcônticos, os cerdonianos, os marcionitas, os apelianos, os encratitas, os adamitas, os melquisedecianos.... (e não reproduzimos de forma completa esta enumeração interminável). Em todos os Padres da Igreja que combateram aos gnósticos (gnostikói), falsos cristãos que pretendiam possuir um conhecimento (gnose) maravilhoso, encontramos o mesmo quadro: o de movimentos heréticos que se diversificam, ramificando-se ao infinito como fungos venenosos, em inumeráveis seitas e subseitas. Santo Ireneu (bispo de Lion a partir de 177) observa, referindo-se aos valentinianos, que é até "impossível encontrar dois ou três que digam o mesmo a respeito do mesmo tema; contradizem-se de maneira absoluta, tanto no que se refere às palavras como no referente às coisas".

Muitos historiadores consideram também o gnosticismo como um monumento de fantasias extravagantes, de incoerências, de mitos estranhos, de fantasmagorias desprovidas de todo interesse filosófico e que, em definitivo, não constituem mais que um ramo particularmente degenerado do inquietante sincretismo religioso dos séculos primeiro e segundo de nossa era.

Mesmo que o ponto de vista dos Padres da Igreja seja ainda bem amplo, o gnosticismo adquire um caráter completamente diferente nos "ocultistas" e "teólogos" contemporâneos. Em lugar de hereges perversos e delirantes, encontramos homens possuidores de iniciações prestigiosas, iniciados nos mistérios orientais, donos de conhecimentos ocultos ignorados pelo comum dos mortais e transmitidos secretamente a um número limitado de "mestres". A gnose é o conhecimento total, incomensuravelmente superior à fé e à razão. O gnosticismo estará unido então à sabedoria primordial original, fonte das diversas religiões particulares.

O historiador das religiões mantém-se cuidadosamente afastado dos pressupostos dogmáticos ou racionais. Sua ambição não é refutar - ou provar - o gnosticismo, mas estudar a origem e o desenvolvimento das diversas formas históricas da gnose.

Os Gnósticos

A extrema diversidade das especulações gnósticas é inegável: "Seria mais exato falar de gnosticismos que do gnosticismo". A mesma diversidade existe no domínio do culto e dos ritos, onde as tendências mais ascéticas se opõem às práticas mais secretas: nos "mistérios" e nas iniciações dos gnósticos voltam a se encontrar os dois pólos extremos do misticismo.

É fácil descobrir, no entanto, um inegável "ar de família" entre os diversos gnosticismos, apesar das múltiplas divergências e oposições que eles manifestam.

Seja qual for o grau de dispersão de seitas e escolas (menos desmedido, entretanto, do que afirmam os heresiólogos, os quais parecem ter separado artificialmente ramos de um mesmo grupo e até graus de iniciação sucessivos), e ainda considerando que na maioria dos casos o epíteto gnostikói não é usado pelos próprios hereges, não é de nenhum modo arbitrário qualificar de gnósticas as idéias ou sistemas que apresentam as mesmas tendências características. Os historiadores modernos –indo mais longe que os heresiólogos – não duvidaram em generalizar o conceito de gnose fora do âmbito do cristianismo.

O estudo científico do gnosticismo cristão teve seus pioneiros: Chifflet, no século XVII; de Beausobre e Mosheim no século XVIII. Mas foi a princípios do século passado que se desenvolveu, com trabalhos de Horn, Neander, Lewald, Baur, etc. A importante Histoire critique du gnosticisme,de Jacques Matter (Paris, 1828; reeditada em Estrasburgo em 1843) constituiu durante muito tempo uma obra clássica. O autor define a gnose como "a introdução no seio do cristianismo de todas as especulações cosmológicas e teosóficas que tinham formado a parte mais considerável das antigas religiões do Oriente e que os novos platônicos tinham também adotado no Ocidente". Inumeráveis historiadores das religiões esforçaram-se depois em vincular as origens do gnosticismo cristão – este conjunto de doutrinas e de ritos que se nutrem de um fundo comum de especulações, imagens e mitos – com uma fonte anterior ao cristianismo. Assim, a gnose foi vinculada com o Egito, com a Babilônia, com o Irã, com as religiões de mistérios do mundo contemporâneo, com a filosofia grega, com o esoterismo judaico e até com a Índia. Longe de ser o resultado de uma reflexão espúria de certos espíritos sobre aspectos do cristianismo, o gnosticismo aparecerá finalmente, aos olhos do orientalista, como um fenômeno de "sincretismo", mais ou menos casual, entre o cristianismo e outras crenças profundamente alheias a este último. Os trabalhos dos especialistas alemães (Kessler, W. Brandt, Anz, Reitzenstein, Bousset ) se libertaram assim da perspectiva heresiológica no estudo das gnoses cristãs: "Falando com rigor, não são heresias imanentes ao cristianismo, mas os resultados de um encontro e de uma união entre a nova religião e uma corrente de idéias e de sentimentos que existia antes dela, ou que lhe eram primitivamente alheia e seguirá sendo em sua essência".Ouroboros

De umas três décadas para cá tende-se a dar o nome de "gnósticas" a outras correntes diferentes posteriores (maniqueísmo, catarismo): gnosticismos exteriores ao cristianismo (como o mandeísmo e o hermetismo stricto sensu); a alquimia; a Cabala judia; o ismaelismo e as heresias muçulmanas derivadas: algumas doutrinas "esotéricas" modernas.

Reagindo contra o "comparativismo", sem deixar de aproveitar suas descobertas, diversos especialistas na ciência das religiões (Hans Jonas, Karl Kerényi, Simone Pétrement, Henri-Charles Puech, G. Quispel...) abordaram o estudo do gnosticismo valendo-se do método fenomenológico: em lugar de insistir no detalhe das doutrinas, dos mitos e dos ritos, trata de pôr em destaque a atitude específica, as orientações espirituais características que os condicionam e destacam os grandes temas (expressados ou implícitos) que em última análise se acham por trás das idéias, das imagens e dos símbolos gnósticos.

Apesar dos gnosticismos serem muito diversos, o gnosticismo é uma atitude existencial completamente característica, um tipo especial de religiosidade. Não é arbitrário formular um conceito geral da gnose,"conhecimento" salvador que se traduz em determinadas reações humanas e sempre as mesmas. Se o gnosticismo não fosse mais que uma série de aberrações doutrinárias próprias de certos hereges cristãos dos três primeiros séculos, seu interesse seria puramente arqueológico. Mas é muito mais que isso: a atitude gnóstica reaparecerá espontaneamente, além de qualquer transmissão direta. Este tipo especial de religiosidade apresenta, inclusive, perturbadoras afinidades com algumas aspirações completamente "modernas".

O "gnosticismo" dos heresiólogos constitui o exemplo característico de uma ideologia religiosa que tende a reaparecer incessantemente na Europa e no mundo mediterrâneo, em épocas de grandes crises políticas e sociais.

A unidade da gnose postulada pelos "fenomenólogos" contemporâneos não é de modo algum a unidade que postulam os adeptos da teosofia e do esoterismo: nesta perspectiva especial, a gnose seria a fonte de todas as religiões e seu fundamento último. Para o grande "tradicionalista" francês André René Guénon (1886-1951) e seus discípulos, em todas as religiões se encontra a idéia de uma libertação metafísica do homem por meio da gnose, ou seja, por meio do conhecimento integral. Existe uma assombrosa universalidade de certos símbolos e de certos mitos: daí o postulado lógica de uma origem comum dos diferentes esoterismos religiosos que se expressam necessariamente através das grandes religiões "exotéricas" cujo núcleo constituem.

Do ponto de vista do historiador das religiões, a teoria de Guénon não pode, evidentemente, ser provada (nem, por outro lado, invalidada). É certo que as doutrinas esotéricas se parecem; mas para explicar estas convergências não há necessidade alguma de postular uma tradição primordial intemporal conservada por um ou vários "centros" de iniciação. Basta recordar esta lei redescoberta pelos "fenomenólogos": como o espírito humano reage da mesma maneira em condições semelhantes, não é estranho encontrar em diversas partes as mesmas aspirações. Também não há que passar por alto as filiações históricas, às vezes inesperadas.

"...Possui-se a gnose, conhecimento beatificador – diz-nos Paul Masson-Oursel – quando se distingue o absoluto, em suas profundidades, daquilo que o relativiza. Esta definição, que coincide com a dos "tradicionalistas", é demasiado geral: a salvação pelo conhecimento é uma aspiração que caracteriza numerosos movimentos religiosos – o budismo, por exemplo – que não se incluem usualmente no gnosticismo. Este último é um tipo muito especial de religiosidade que efetua algo assim como a síntese das aspirações "orientais" e "ocidentais". É comum que se estabeleça uma oposição, bem longe de corresponder sempre à verdade, entre o Oriente "metafísico" que aspira à libertação e o Ocidente "religioso" que aspira à salvação. O gnosticismo estabelece precisamente uma espécie de vinculação, de ponte entre as religiões, de forma "sentimental" e pessoal, e as religiões impessoais chamadas "metafísicas". O gnóstico parte – e isto é o que as importantes investigações de Henri-Charles Puech, membro do Instituto, professor do Collège de France, põem em evidência– de uma experiência totalmente subjetiva, para elevar-se através dela ao encontro de uma iluminação salvadora.Filósofo em meditação

A primeira parte deste livro determinará precisamente as características gerais de tal atitude (ou melhor, de toda uma série de atitudes): por meio de muitas citações (tomadas sobretudo do gnosticismo cristão, mas completadas mediante outros "testemunhos"), poremos em relevo tendências, aspirações e doutrinas completamente características. Na segunda parte, estudaremos a história das aspirações gnósticas, desde suas remotas origens pré-cristãs até suas assombrosas "reaparições" contemporâneas.

A modesta extensão desta obra nos impede de tratar certos problemas particulares; mas cremos ter mostrado todo o interesse histórico e filosófico das investigações relativas a um domínio que alguns autores ainda consideram como pitorescas extravagâncias. Ainda que muitos gnósticos falem uma linguagem desconcertante para o homem contemporâneo e parecem constituir, ao menos à primeira vista, um conjunto heterogêneo de grupos inumeráveis, sua atitude é no fundo muito moderna: apresentam-se como homens angustiados por sua condição de seres lançados no mundo e que, na fuga do mundo, crêem haver achado o modo de vencer esta angústia insuportável.