terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Enoch o guardador de segredos: Qumran e os fragmentos do “Livro dos Gigantes".

Nefilin:
Bene ha’ Elohim e a geração dos Nefilin:

Os Filhos de Deus (em hebraico bene ha’ Elohim) — entre os quais figuram Satã/Samael e Lilith — são conhecidos de vários textos da Bíblia Hebraica. Como já vimos, em Jó 1:6 e 2:1 os Filhos de Deus se apresentam a Iahweh na divina assembléia celestial; mais adiante, em Jó 38:7, vemos que os Filhos de Deus estiveram ao lado de Iahweh na criação do mundo: quando vêem a obra de Deus “rejubilavam os filhos de Deus”.

Uma cena semelhante ocorre no Salmo 29:1, onde os Filhos de Deus (bene ’elim) tributam glória ao senhor.[1]

Talvez a mais curiosa referência aos Filhos de Deus seja a do famoso Cântico de Moisés, no Deuteronômio 32, justamente antes dele subir ao monte Nebo, para morrer sem ter entrado na Terra Prometida. O Deuteronômio 32,8 contém o que aparentemente é uma velha referência mitológica à primitiva história da humanidade. – Descobriu-se que um texto fragmentário entre os Manuscritos do Mar Morto continha o Deuteronômio 32:8. composto em escrita do final do período herodiano (fim do século I a.C. ao início do século 1 d.C.). Esse fragmento é hoje o mais antigo texto hebraico do Deuteronômio 32:8 conhecido. Nesse fragmento, as últimas palavras do versículo são claramente bene ha’ Elohim (Filhos de Elohin). Essa redação foi preservada na Septuaginta Grega, que traduziu como “aggelon theou[2]:

“Quando o Altíssimo repartia as nações,
quando espalhava os filhos de Adão
ele fixou fronteiras para os povos,
conforme o número dos filhos de Deus”
(Deuteronômio 32,8)

Aqui são os anjos que guardam ou governam as nações. Porém Deus reservou cuidar pessoalmente de Israel, seu povo eleito: “Mas a parte de Iahweh foi o seu povo, o lote da sua herança foi Jacó”. (Deuteronômio 32,9). Foi uma sábia decisão, já que outros textos indicam que os anjos não fizeram exatamente o que deveriam, ou melhor, fizeram coisas além do que deveriam. Como, por exemplo, ensinar aos homens ciências divinas, casar-se e ter filhos.

O livro da Gênese assinala a união fecunda dos Benei-ha-Elohim com as filhas dos homens. Misterioso casamento do qual nasceu a grande raça dos gibborim, ou dos nephilim:

«Quando os homens começaram a se multiplicar sobre a face da terra e lhes nasceram filhas, os bene ha’ Elohim viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulher todas as que lhes agradaram. E então disse o Senhor: “Meu espírito não terá força (yadon) indefinidamente sobre o homem, pois este na verdade é só carne. E os seus dias serão cento e vinte anos”.[3] Ora, naqueles tempos, os Nefilim habitavam sobre a terra, e também depois, quando os bene ha’ Elohim se uniam às filhas dos homens e estas lhes davam filhos: estes foram os heróis dos tempos antigos, os homens de renome.» (Gênesis 6:1-4)

O episódio dos “filhos de Deus”, que se casaram com as “filhas dos homens”, é de tradição javista. O capítulo 6 é provavelmente um fragmento de uma antiga versão hebraica do Livro de Enoch que se adicionou ao Gênesis para fornecer uma motivação moral à história do dilúvio, derivada de versões mesopotâmicas, como a epopéia de Gilgamesh, nas quais essa motivação inexiste.

O termo Nefilin significa literalmente “os caídos”, sendo um eufemismo comum para “os mortos”, (por exemplo, Jeremias 6:15 diz: “eles cairão entre os que caem [em hebraico nopelim]”). Em Ezequiel 32:27, temos os Nefilim como guerreiros que caíram:

«Eles jazem com os guerreiros,
Os nefilin dos tempos antigos,
Que desceram ao Xeol [sepulcro]
com suas armas de guerra.» (Ezequiel 32:27)

Muitos textos sugerem que o dilúvio teria como função acabar com os Nefelin, entretanto, a presença de textos narrando a aparição de nefelins após esta data sugere que pelo menos alguns sobreviveram (ou ouve uma Segunda queda dos anjos após aquela data…)

O livro de Números fala da presença de Nefelins em Canaã — em época bem posterior ao dilúvio. No relato, depois de vagar 40 anos no deserto os Israelitas fizeram uma breve parada em Cades, o principal oásis do norte do Sinai, 75 km a sudoeste de Bersabéia. Então Moisés enviou um príncipe de cada tribo presente ao deserto de Farã para explorar a terra prometida: “Subi ao Negueb, e em seguida escalai a montanha. Vede como é a terra; como é o povo que a habita (…) Sede corajosos. Trazei produtos da terra.” (Números 13:17-20) Então eles subiram desde o deserto de Sin até Roob, a Entrada de Emat no extremo norte da terra prometida. Subiram pelo Negueb e chegaram a Hebrom, onde se achavam Aimã, Sesai e Tolmai, os enacim; e chegaram ao vale de Escol. Lá cortaram um ramo de videiras com um cacho de uvas que levaram sobre uma vara, transportada por dois homens; levaram também romãs e figos. (Números 13:21-24) Após 40 dias voltaram da exploração do lugar trazendo os produtos da terra e relatando o seguinte: “Fomos à terra à qual nos enviaste. Na verdade é terra onde mana leite e mel; eis os seus produtos. Contudo, o povo que a habita é poderoso; as cidades são fortificadas, muito grandes; também vimos ali os filhos de Enac. Os amalecitas ocupam a região do Negueb; os heteus, os amorreus e os jebuseus, a montanha; os caneneus, a orla marítima e ao longo do Jordão.” (Números 13:25-29) Então Caleb, príncipe da tribo de Judá, animou-se e disse ao povo reunido diante de Moisés: “Devemos marchar e conquistar essa terra: realmente podemos fazer isso.” Mas os outros príncipes que o haviam acompanhado se opuseram: “Não podemos marchar contra esse povo, visto que é mais forte do que nós (…) A terra que fomos explorar é terra que devora os seus habitantes. Todos aqueles que lá vimos são homens de grande estatura. Lá também vimos Nefelins –os filhos de Enac são descendência de Nefilim –. Tínhamos a impressão de sermos gafanhotos diante deles e assim também lhes parecíamos.” (Números 13:31-33) Mas os príncipes Josué e Caleb reanimaram a comunidade: “Não tenhais medo do povo daquela terra, pois os devoraremos como um bocado de pão. A sua sombra protetora[4] lhes foi retirada, ao passo que Iahweh está conosco” (Números 14:9)

No Deuteronômio 2:11, os gigantes enacim – descendentes dos nefilim – também são chamados de rafaim, um termo mais geral para os habitantes de Canãa, citados em Números:

«Cruzamos o território de nossos irmãos, os filhos de Esaú que habitam em Seir (Édom), e passamos pelo caminho da Arabá, de Elat e de Asiongaber. Depois viramo-nos, tomando o caminho do deserto de Moab. Disse-me então Iahweh: “Não ataques Moab e não o provoques à luta, pois nada te darei da sua região. Eu dei Ar como propriedade aos filhos de Ló. – Outrora os emim aí habitavam; eram considerados como rafaim, assim como os enacim; os moabitas, porém, chamam-nos de emim. Em Seir habitavam outrora os horreus; os filhos de Esaú, porém, os desalojados e exterminaram, habitação no seu lugar, assim como Israel fez para se apossar da terra que Iahweh lhe dera. – E agora, levantai acampamento e atravessai o ribeiro de Zared!”» (Deuteronômio 2:8-13)

Mais adiante, a narração continua: «Ouve, ó Israel: hoje estás atravessando o Jordão para ires conquistar nações mais numerosas e poderosas do que tu, cidades grandes e fortificadas até o céu. Os enacim são um povo grande e de alta estatura. Tu os conheces, pois ouviste dizer: “Quem poderia resistir aos filhos de Enac?” Portanto, saberás hoje que Iahweh teu Deus vai atravessar à tua frente, como um fogo devorador; é ele quem os exterminará e é ele quem os submeterá a ti. Tu, então, os desalojarás e, rapidamente, os farás perecer (…) é por causa da perversidade dessas nações que Iahweh irá expulsa-las da tua frente (…) e também para cumprir a palavra que ele jurou a teus pais, Abraão, Isaac e Jacó.» (Deuteronômio 9:1-5)

Dois dos mais conhecidos entre os rafaim são o rei Og, de Basã, e o gigante Golias, descrito como descendente de Rafá em Gate (2 Samuel 21,19ss[5]. Segundo o Deuteronômio, o imenso leito de ferro de Og ainda podia ser visto em Rabá: «Pois somente Og, rei de Basã, sobreviverá dos remanescentes dos rafaim; seu leito é o leito de ferro que está em Rabá dos filhos de Amon: tem nove côvados de comprimento e quatro côvados de largura, em côvado comum.» (Deuteronômio 3:11[6] Note que os gigantescos habitantes nativos de Édom-Seir, Amon e Gaza também são totalmente aniquilados em geral por Iahweh (ver Deuteronômio 20:2-3):

«Mas eu destruírei diante deles o amorreu,
cuja altura era como a altura dos cedros,
e que era forte como os carvalhos!
Destruí seu fruto por cima,
E suas raízes por baixo!» (Amós 2-3)

Os nefilin, portanto, parecem ter sido uma raça de heróis que viveu antes do Dilúvio e também em Canãa, quando os israelitas ainda não haviam conquistado a Terra Prometida. Por esse tempo, os nefilim acabam, como o nome sugere, como “os mortos”. Diz-se que os refaim e enacim foram exterminados por Josué (Josué 11:21-22), Moisés (Josué 12,4-6) e Caleb (Josué 15:14; Juizes 1:20), embora restassem alguns desgarrados, que seriam mortos por Davi e seus homens (2 Samuel 21, 18-22; 1 Crônicas 20:4-8). Josué 11,22 nos diz que: “Nenhum dos enacim sobreviveu na terra de Israel, somente em Gaza, em Gate e em Asdode alguns sobreviveram”.

Segundo Ronal S. Hendel, «a função dos nefilim-rafaim-enacim, (…) é constante em todas essas tradições. Eles existem para serem aniquilados: pelo Dilúvio, por Moisés, por Davi e outros. Na tradição israelita, os nefilim tem uma função: morrer.[7] Contudo, sempre acaba sobrando algum para ter filhos e continuar a histórias…

A Queda dos Anjos:

Os nefilins foram considerados nos livros apócrifos da época do Segundo Templo. Entre os achados arqueológicos mais importantes nesta área, encontra-se um texto em aramaico, descoberto no inverno de 1896-97 numa genizah de uma comunidade hebraica do Cairo e publicada, pela primeira vez, sob o título de Documento de Damasco, em 1910. Diz o seguinte:

«III – E, agora, ouvi-me, meus filhos, que eu descerrarei os vossos olhos para que possais escolher aquilo que Ele ama e desprezar tudo aquilo que odeia, para poderdes caminhar perfeitamente em todos os Seus caminhos e não errardes seguindo impulsos culposos ou deitando olhares de fornicação. Porque muitos foram os que se desviaram e homens fortes e valorosos aí escorregaram, tanto outrora como hoje. Caminhando com a rebelião nos corações, caíram os próprios guardas dos céus, a tal chegados porque não observavam os mandamentos de Deus, tendo caído também os seus filhos, cuja estatura atingia também a altura dos cedros e cujos corpos se assemelhavam a montanhas. Todo o ser vivo que se encontrava em terra firme, caiu, sim, e morreu, e foram como se não tivessem sido, porque procediam conforme a sua vontade e não observavam os mandamentos do seu Criador, de maneira que a cólera de Deus se inflamou contra eles.»[8]

Vários fragmentos do Livro de Enoch, escritos em aramaico, foram descobertos nas célebres grutas de Qumra[9], no Mar Morto. Contudo, mesmo depois dos textos terem sido comparados e executado um árduo trabalho de reconstituição, ainda faltaram diversas lacunas. Tentei amenizar este problema tapando os buracos com passagens de uma tradução livre para o etíope quase idêntica ao original aramaico, encontrada na Abissínia (conhecida como Enoch Etíope ou I Enoch)[10]:

VI – 1 «Sucedeu que quando se multiplicaram naqueles dias os filhos dos homens, nasceram-lhe filhas formosas e belas. Os Vigilantes, filhos do céu, viram-nas, desejaram-nas e disseram uns aos outros: Vamos e escolhamos mulheres dentre as filhas dos homens e engendremos filhos. Porém Semihaza, que era o seu chefe, lhes disse: Temo que não queiras realizar esta obra, e seja eu sozinho culpável de um grande pecado. Responderam e lhe disseram todos:[11] «Juremo-nos todos e comprometamo-nos todos sob anátema. Uns com os outros, a não voltarmos atrás neste projeto até que tenhamos realizado esta obra. Então se juramentaram todos em uníssono e se comprometeram uns com os outros. Eram duzentos todos os que desceram no tempo de Jared sobre o cimo do monte Hermon. Chamaram o monte “Hermon”, porque juram e se comprometeram sob anátema uns com os outros nele. Estes são os nomes de seus chefes: Semihazah, que era seu chefe; ’Ar‘teqof, o segundo com relação a ele; Ramt’el, o terceiro com relação a ele; Kokab’el, o quarto com relação a ele; ???’el, o quinto com relação a ele; Ra’ma’el, sexto com relação a ele; Dani’el, sétimo com relação a ele; Zeq’el, oitavo com relação a ele; Baraq’el, nono com relação a ele; ‘Asa’el, décimo com relação a ele; Hermoni, undécimo com relação a ele; Matar’el, duodécimo com relação a ele; ’Anan’el, décimo terceiro com relação a ele; Sato’el, décimo quarto com relação a ele; Shamsi’el, décimo quinto com relação a ele; Sahari’el, décimo sexto com relação a ele; Tumi’el, décimo sétimo com relação a ele; Turi’el, décimo oitavo com relação a ele; Yomi’el décimo nono com relação a ele; Yehadi’el, vigésimo com relação a ele. Estes são os chefes dos chefes de dezena.»[12]

VI – 1 «Eles e seus chefes, todos tomaram para si mulheres, escolhendo entre todas, e começaram a ir a elas e a contaminar-se com elas, a ensinar-lhes bruxarias, encantos e o corte de raízes, e a revelar-lhes as plantas. Elas ficaram grávidas deles e pariram gigantes, altos uns três mil côvados, que nasceram sobre a terra conforme a sua infância, e cresceram de acordo com seu crescimento, e que devoravam o trabalho de todos os filhos dos homens, sem que os homens pudessem abastecê-los. Os gigantes conspiravam para matar os homens e para devora-los. Começaram a pecar [...] contra todos os pássaros e animais da terra e contra os répteis que se movem sobre a terra e nas águas e no céu, e os peixes do mar, e a devorar uns a carne dos outros, e bebiam o sangue. Então a terra acusou os ímpios por tudo o que se havia feito nela.»[13]

«‘Asa’el ensinou os homens a fabricar espadas de ferro e couraças de cobre e lhes mostrou o que se escava e como poderiam trabalhar o ouro para deixa-lo preparado; e quanto à prata, a lavrá-la para braceletes e outros adornos para as mulheres. Às mulheres revelou acerca do antimônio e acerca do sombreado dos olhos e de todas as pedras preciosas e sobre as tinturas [E assim grassava uma grande impiedade; eles promoviam a prostituição, conduziam aos excessos e eram corruptos em todos os sentidos.][14] «Semihazah ensinou encantamentos e a cortar raízes; Hermoni ensinou a desencantar, a bruxaria, a magia e habilidades; Baraq’el ensinou os sinais dos raios; Kokab’el ensinou os sinais das estrelas; Zeq’el ensinou os sinais dos relâmpagos; ???’el ensinou os sinais de [...]; ’Ar‘teqof ensinou os sinais da terra; Shamsi’el ensinou os sinais do sol; Sahari’el ensinou os sinais da lua. E todos começaram a descobrir segredos à suas mulheres.»[15] «Como estava perecendo uma parte dos homens da terra, seu grito subia até o céu.»[16]

IX -1 «Então Miguel, Sariel, Rafael, e Gabriel olharam para a terra do santuário dos céus e viram muito sangue derramado sobre a terra; e toda a terra estava cheia da maldade e da violência que se pecava sobre ela. Ouvindo isto, os quatro foram e disseram que o grito e o lamento pela destruição dos filhos da terra subia até as portas do céu. E disseram aos santos do céu: É agora a vós, santos do céu, a quem suplicam as almas dos filhos dos homens dizendo: “Levai nosso caso diante do Altíssimo e nossa destruição diante da majestade!” Foram Rafael, Miguel, Sariel e Gabriel, e disseram diante do Senhor do mundo: “Tu és nosso grande Senhor, tu és o Senhor do mundo; Tu és o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores e o Rei dos reis. Os céus são o trono de tua glória por todas as gerações que existem desde sempre, e toda a terra é o escabelo ante ti por toda a eternidade, e teu nome é grande e santo e bendito para sempre. [Tudo foi por Ti criado e conservas o domínio sobre todas as coisas. Tudo é claro e manifestado diante dos teus olhos. Tu vês tudo e nada pode ocultar-se na tua presença. Tu vês o que foi perpetrado por Azazel, como ele ensinou sobre a terra toda espécie de transgreções.]»[17] «pois (eles) ensinaram os mistérios eternos que há no céu para que os praticassem os conhecedores dentre os homens. E (olha) Shemihaza, a quem deste autoridade para reinar sobre todos os seus companheiros. Foram às filhas dos homens da terra e dormiram com aquelas mulheres, contaminando-se com elas [e familiarizaram-nas com toda sorte de pecados. As mulheres pariram gigantes e, em conseqüência, toda a terra encheu-se de sangue e de calamidades. 6. Agora clamam as almas dos que morreram, e o seu lamento chega às portas do céu. Os seus clamores se levantam ao alto, e em face de toda a impiedade que se espalhou sobre a terra não podem cessar os seus queixumes. 7. E Tu sabes de tudo, antes mesmo que aconteça. Tu vês tudo isso e consentes. Não nos dizes o que devemos fazer.]”»[18]

X – 1 «[Então o Altíssimo, o Santo, o Grande, tomou a palavra e enviou Uriel (= Sariel) ao filho de Lamech (Noé), com a ordem seguinte: “Diz-lhe, em meu nome: ‘Esconde-te’, e anuncia-lhe o fim próximo! Pois o mundo inteiro será destruído; um dilúvio cobrirá toda a terra e aniquilará tudo o que sobre ela existe.] Ensina ao justo o que deve fazer, e ao filho de Lamec a preservar sua alma para a vida e a escapar para sempre. E por ele será plantada uma planta e serão estabelecidas todas as gerações do mundo.»[19] «[O Senhor] disse a Rafael: “Vai, pois, Rafael, e ata Azael de pés e mãos e arremessa-o nas trevas! [Cava um buraco no deserto de Dudael e atira-o ao fundo! Deposita pedras ásperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o permanecer lá para sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz! 4. No dia do grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremendal de fogo! Purifica a terra, corrompida pelos Anjos, e anuncia-lhe a Salvação, para que terminem seus sofrimentos e não se percam todos os filhos dos homens, em virtude das coisas secretas que os Guardiões revelaram e ensinaram aos seus filhos! Toda a terra está corrompida por causa das obras transmitidas por Azazel. A ele atribui todos os pecados!”]»[20]; «E a Gabriel disse o Senhor: “Vai aos bastardos e aos filhos da fornicação e destrói os filhos dos Vigilantes dentre os filhos dos homens; mete-os em uma guerra de destruição, pois não haverá para eles longos dias. Nenhuma petição a seu favor será concedida a seus pais; pois esperam viver uma vida eterna, ou que cada um deles viverá quinhentos anos”. E a Miguel disse o Senhor: “Vai, Miguel, e anuncia a Shemihaza e a todos os seus amigos que se uniram com mulheres para contaminar-se com elas em sua impureza, que seus filhos perecerão e eles verão a destruição de seus queridos; acorrenta-os durante setenta gerações nos vales da terra até o dia grande de seu juízo. [Nesse dia, eles serão]»[21] (condenados a) «tortura e ao fechamento na prisão eterna. Tudo o que seja condenado estará perdido desde agora; será acorrentado com eles até a destruição de sua geração. E no tempo do juízo com que eu julgarei, perecerão por todas as gerações. Destrói todos os espíritos dos bastardos e dos filhos dos Vigilantes, porque fizeram operar o mal aos homens. Destrói a iniqüidade da face da terra, faz perecer toda obra de impiedade e faz que apareça a planta da justiça; ela será uma bênção e as obras dos justos serão plantadas no gozo para sempre. Naquele tempo todos os justos escaparão e viverão até que engendrem milhares. Todos os dias de vossa juventude e de vossa velhice se completarão em paz.”»[22]

VII – 1. [Enoch havia desaparecido, e nenhum dos filhos dos homens sabia onde ele se encontrava, onde se ocultava e o que era feito dele. O que ocorrera é que ele havia estado junto dos Guardiões e transcorreu os seus dias na companhia dos Santos. 2. Eu, Enoch, ergui-me e louvei o Senhor da Majestade e Rei do mundo. Então os Guardiões (santos) me chamaram, a mim Enoch, o Escriba, e disseram-me: “Enoch, tu, o Escriba da Justiça, vai e anuncia aos Guardiões do céu que perderam as alturas do paraíso e os lugares santos e eternos, que se corromperam com mulheres à moda dos homens, que se casaram com elas, produzindo assim grande desgraça sobre a terra; anuncia-lhes: ‘Não encontrareis nem paz nem perdão’. Da mesma forma como se alegram com seus filhos, presenciarão também o massacre dos seus queridos, e suspirarão com a desgraça. Eles suplicarão sem cessar, mas não obterão nem clemência nem paz!”]

XIII – 1. [Então Enoch encaminhou-se até eles e assim falou a Azazel: “Tu não terás a paz. Uma sentença severa recaiu sobre ti: deverás ser acorrentado. Não alcançarás indulgência nem será aceita a intercessão, por causa dos atos violadores que ensinaste a praticar, e por causa de todas as obras blasfemas, da violência e dos pecados que mostraste aos homens.” Então eu redigi a palavra a todos eles. Todos encheram-se de grande medo e foram tomados de pavor e tremor. Suplicaram-me que lhes escrevesse um rogo intercessório, para que pudessem obter o perdão, e que eu lesse o seu pedido na presença do Senhor dos céus. Pois a partir de então não lhes era mais permitido falar com ele nem levantar seus olhos para o céu, de vergonha pelos seus delitos, pelos quais foram castigados. Assim eu redigi o seu rogo] «com todas as suas petições, por suas almas, por todas e cada uma de suas obras e por todos o que pediam: que houvesse para eles perdão e longevidade. Fui e me sentei junto às águas de Dã, na terra de Dã, que está ao sul do Hermonim, ao seu lado oeste, e estive lendo o livro de anotações de suas petições até que dormi. Eis que me vieram sonhos e caíram sobre mim visões até que levantei minhas pálpebras às portas do palácio do céu [...] E vi uma visão do rigor do castigo. E uma voz veio e me disse: Fala aos filhos do céu para repreendê-los. Quando despertei, fui a eles. Todos eles estavam reunidos juntos e sentados e chorando em Abel-Maya (a Fonte do Pranto) que está entre o Líbano e Senir, com os rostos cobertos.»[23]; «Eu contei diante deles todas as visões que havia visto em sonhos e comecei a falar com palavras de justiça e de visão e a repreender os Vigilantes celestes.»[24]

XIV 1. [Este é o] «livro das palavras da verdade e da repreensão dos Vigilantes que eram desde sempre, segundo o que ordenou o Grande Santo no sono que sonhei. Nesta visão eu vi em meu sonho o que agora digo com a língua carnal, com o alento de minha boca, que o Grande deu aos filhos dos homens para que falem com ela e para que compreendam no coração. Assim como Deus destinou e criou os filhos dos homens para que compreendam as palavras do conhecimento, assim me destinou e fez e criou a mim para que repreenda os Vigilantes, os filhos do céu. Eu escrevi vossa petição, Vigilantes, e numa visão me foi revelado que vossa petição não vos será concedida por todos os dias da eternidade, e que haverá juízo por decisão e por decreto contra vós; que a partir de agora não voltareis ao céu e não subireis por todas as idades; e que foi decretada a sentença para acorrentar-vos nas prisões da terra por todos os dias da eternidade; porém que antes vereis que todos os vossos queridos irão à destruição com todos os seus filhos; e as propriedades de vossos queridos e de seus filhos não as desfrutareis; cairão ante vós pela espada de destruição, pois vossa petição por eles não vos será concedida, como não vos é concedida por vós mesmos. Vós continuareis pedindo e suplicando. [...] Não pronunciareis nem uma palavra do escrito que eu escrevi.»[25]

Esses Vigilantes que “mudaram suas obras” e resolveram ensinar aos humanos ciências divinas foram responsabilizados não só pelas guerras (que naquele tempo nem sempre eram vistas como algo ruim) mas também por terem iniciado ou aperfeiçoado a própria civilização: Semihazah ensinou “bruxarias, encantos e o corte de raízes, e a revelar-lhes as plantas”. Nisso se incluía a antiga homeopatia (fabricação de remédios naturais), já conhecida e rigorosamente aperfeiçoada pelos egípcios desde tempos remotos; E também a fabricação de venenos – retirados das plantas – que era uma especialidade daquele período, herdada da dominação romana.

Menos eficazes, mas nem por isso menos populares, deveriam ser as “bruxarias” e “encantos”, aos quais alegava-se que serviam para praticamente tudo que se pudesse desejar, principalmente ganhar fama, fortuna e atrair o sexo oposto. Geralmente nessas práticas se ensina que quando o feitiço da errado é 1) porque o praticante não executou como devia ou 2) porque seu inimigo fez um contra feitiço anulando o primeiro. Assim Hermoni (et. Armaros) “ensinou a desencantar, a bruxaria, a magia e habilidades”… Uma segunda versão em etíope fala sobre outros Vigilantes que, juntamente com Semihazah, teriam ensinado magia: Kasdeja “ensinou aos filhos dos homens toda espécie de sortilégios dos espíritos e dos demônios, bem como os malefícios contra o fruto do ventre materno, para sua expulsão, e os contra a alma, feitiços contra a picada de cobra, contra a insolação e contra o filho da serpente, chamado Tabaet. – E esta foi a tarefa de Kasbeel, que desvelara aos Santos o Juramento supremo, quando habitava no alto da Glória e se chamava Bika. Este pedira a Michael para transmitir-lhe o Nome secreto, a fim de que pudesse ser conhecido e empregado nos juramentos, conquanto aqueles que ensinaram as coisas ocultas aos filhos dos homens tremessem em face desse Nome e desse Juramento.” (I Enoch LXIX)

Sobre culinária, alfabetização e leis, é dito que Penemue “ensinou aos filhos dos homens o doce e o amargo, bem como todos os segredos da sua sabedoria. Ele também instruiu os homens na escrita com tinta e sobre papel, e com isso muitos se corromperam, desde os tempos antigos por todas as épocas, até os dias de hoje. Pois os homens não foram criados para fortalecer sua honestidade dessa maneira, por meio de pena e tinta”. (I Enoxh LXIX)

Kokab’el “ensinou os sinais das estrelas. (et. Ciência das constelações)”. Isso sem dúvida é antiga Astrologia, que incorporava elementos da astronomia. Esta “ciência” era muito valorizada pois, na antigüidade, eram os astrólogos que ficavam encarregados de informar sobre a mudança das estações, da configuração de calendários e outras coisas de grande utilidade para a vida rural e economia dos reinos. Ainda no campo da astrologia, parece que Zeq’el, que “ensinou os sinais dos relâmpagos (Et. Observação das nuvens)” e Baraq’el que “ensinou os sinais dos raios” ficaram responsáveis pala previsão do tempo… Para completar o quadro astronômico/astrológico, Shamsi’el “ensinou os sinais do sol” e Sahari’el “ensinou os sinais da lua. (et. Fazes da lua)”.

Em auxílio da agricultura, ’Ar‘teqof “ensinou os sinais da terra”, se era boa ou ruim para o plantio, etc. Tudo isso gerava grandes facilidades na vida humana que, tendo menos trabalho e mais tempo livre podia se dedicar a cuidados pessoais, iniciar uma vida urbana e até mesmo pensar numa expansão através da guerra. É aqui que entra aquele que apesar de não ser o líder parece ter provocado o maior dano de todos: ‘Asa’el (hebr. et. e árabe Azazel) “Ensinou os homens a fabricar espadas de ferro e couraças de cobre e lhes mostrou o que se escava e como poderiam trabalhar o ouro para deixa-lo preparado; e quanto à prata, a lavrá-la para braceletes e outros adornos para as mulheres. Às mulheres revelou acerca do antimônio e acerca do sombreado dos olhos (Kohol) e de todas as pedras preciosas e sobre as tinturas”.

Aparentemente, se não fosse pelos insaciáveis filhos vampiros, parece que os ensinamentos dos Vigilantes não seriam tão condenáveis assim, já que trouxeram para a humanidade mais bem do que mal… Tanto que um dos chefes de dezena, Dani’el (et. Danjal) foi adotado posteriormente como anjo da misericórdia pela tradição cristã, ficando mundialmente conhecido. Outro mencionado em versões posteriores, Uzza, tornou-se anjo benéfico para os árabes.

De fato, «o livro apocalíptico dos Jubileus afirma que os Sentinelas (= Vigilantes) vieram para a Terra e depois pecaram, mas que seu príncipe, Samael, teria tido a permissão de Yaveh para atormentar a humanidade».[26]

Entretanto, o judaísmo posterior e quase todos os primeiros escritores eclesiásticos viram nesses “filhos de Deus” anjos culpados.

Sobre a posterior condenação, a Segunda versão de I Enoch limita-se a dizer que «em conseqüência desse Julgamento, eles serão submetidos à angústia e ao estremecimento por terem desvelado aquelas coisas aos habitantes da terra.» (I Enoch LXIX).

Na verdade nenhuma das sete cópias fragmentadas do Livro de Enoch (nem das cinco do Livro dos Gigantes) encontrados nas cavernas de Qumran continha menção ao “abismo de fogo” descrito no Enoch Etíope, o que é significativo pois se trata de textos particularmente grandes.
É possível que estes textos sejam acréscimos posteriores de escribas ou tradutores Coptas – mesmo porque eles se assemelham mais à doutrina cristã dos primeiros séculos d.C. do que à mitologia judaica/essênia da época em que foram escritos os Manuscritos do Mar Morto. Uma descrição mais detalhada deste local de condenação aparece no Livro das “Similitudes de Enoch” (II Enoch). [Diz o texto: «VII – E aqueles homens (dois anjos) me tomaram e me conduziram ao segundo céu, e me mostraram as trevas, mais escuras que as da terra, e eu vi prisioneiros atados, vigiados, que aguardavam o grande e infinito julgamento, e esses anjos eram escuros, mais escuros que a escuridão da terra, e os faziam chorar incessantemente, o tempo todo. – E eu disse aos homens que estavam comigo: “Por que motivo estão eles sendo torturados sem parar?” Eles me responderam: “Estes são os infiéis a Deus, que não obedeceram aos mandamentos de Deus, mas que se aconselharam segundo sua própria vontade, e se foram com seu príncipe que também está acorrentado no quinto céu”». ‡ «VVIII – Os homens levaram-me ao quinto céu e lá me puseram, e vi muitos e incontáveis soldados, chamados Grigori, de aparência humana, e eram maiores que os maiores gigantes e suas faces eram sem viço e o silêncio de suas bocas, perpétuo, e não havia qualquer serviço no quinto céu, e eu disse aos homens que estavam comigo: “Por que eles são tão sem viço e suas faces melancólicas, suas bocas silenciosas, e por que não há serviço neste céu?” Eles me disseram: “Estes são os Grigori, que com seu príncipe Satanail rejeitaram o Senhor da Luz, e atrás deles estão os que são mantidos nas grandes trevas do segundo céu, e três deles foram para a terra vindos do trono do Senhor, para o Ermon, e quebraram seus votos nas encostas da colina do Ermon e viram como eram bonitas as filhas dos homens e tomaram-nas por esposas e sujaram o mundo com suas obras, e durante todo o tempo de sua estada cometeram ilegalidade e promiscuidade, e nasceram gigantes e impressionantes homens grandes e grandes inimizades. E por isso Deus jogou-os com um grande julgamento, e eles choraram por seus irmãos e serão punidos no grande dia do Senhor.” – E eu disse aos Grigori: “Eu vi vossos irmãos e suas obras e seus grandes tormentos, e rezei por eles, mas o Senhor condenou-os a estar embaixo da terra até o céu e a terra se acabarem”. E eu disse: “Por que razão esperais, irmãos, e não servis diante da face do Senhor e por que não pusestes vossos serviços diante da face do Senhor, para que o Senhor não se enraivecesse tanto?” E eles ouviram minhas admoestações e falaram para as quatro ordens do céu, e vede: Enquanto eu estava com esses dois homens, quatro trombetas soaram juntas bem alto, e os Grigori irromperam em um cântico uníssono, e suas vozes foram até o Senhor cheias de piedade e afeição.»] Esta versão, descoberta na Rússia em um texto eslavo, foi provavelmente escrita no Egito no princípio da era cristã e fala da viagem de Enoch através das diferentes coortes do Paraíso.

O Livro dos Gigantes:

Entre os pergaminhos de Qumran foram encontrados fragmentos de uma obra conhecida como “Livro dos Gigantes”, que seria uma espécie de comentário ou complemento ao Livro de Henoc[27]. O Livro dos Gigantes conta que Semihazah, o líder dos Vigilantes, teve dois filhos de sua esposa humana chamados ’Ohyah e Hahyah. Também Baraq’el, o nono vigilante chefe de dezena, foi pai de Mahawai. — Além destes, entre os nomes de gigantes citados entre os fragmentos do mar morto constam os “amigos” «Hobabes e ADK»[28]

A Segunda versão Etíope narra que Asbeel «deu um conselho aos filhos dos Anjos, fazendo com que corrompessem os seus corpos com as filhas dos homens.» (I Enoch LXIX). Assim, seguindo o exemplo dos pais, também “se contaminaram, os Gigantes e os Nefilim”, tomando esposas para “engendraram filhos” mas logo não havia alimento suficiente para todos, o que causou um grande problema entre seus súditos: «Os gigantes (diziam) que não lhes bastava a eles e a seus filhos (o alimento oferecido) [...] e pediam muito para comer»[29]

«Hobabes e ADK (perguntavam…): Que me dará para matar?»[30]

Por fim, desesperados de fome, e não podendo ser satisfeitos com o trabalho humano, os Gigantes começaram a destruir praticamente tudo que encontraram pela frente: «A impiedade foi grande, e eles erravam em todos os seus caminhos.»[31] Um curioso fragmento, menciona esta passagem do ponto de vista do próprio ’Ohyah: «E com o vigor de meu braço e com a força de meu poder [...] (abati) toda carne, e fiz guerra com eles. Porem não [...] encontrei apoio para fortalecer-me, pois meus acusadores [...] habitam nos céus e vivem com os santos, e não (posso
vencê-los) [...] pois eles são mais poderosos que eu.»[32]. — Mais tarde, ’Ohyah e Hahyah tiveram pesadelos, “e o sonho fugiu de seus olhos”: «Chegou o frêmito das feras selvagens, e gritaram um bramido selvagem [...] Assim lhe falou ’Ohyah: “Meu sonho me abateu. [...] fugiu o sonho de meus olhos ao ver a visão”»[33]. Os irmãos levantaram-se e foram a Shemihaza, seu pai, e lhe contaram seus sonhos. Hahyah relatou:

«Vi em meu sonho desta noite [...] jardineiros; estavam regando (uma árvore…) numerosas raízes saíam de seu tronco [...] olhei até que se fecharam as fontes (… e esgotaram-se) todas as águas e o fogo ardeu em todo (o tronco…) Aqui se acaba o sonho.»; «Então ’Ohyah, seu irmão, reconheceu e disse ante os gigantes: Também eu vi em meu sonho esta noite algo extraordinário: O Poder dos céus descia à terra [...] aqui acaba o sonho. Então se assustaram todos os Gigantes, e os Nefilim e chamaram Mahawai e ele veio a eles.»

Os gigantes buscavam quem lhes explicasse o sonho. Por isso suplicaram a Mahawai e lhe enviaram até Henoc, o escriba distinto, e lhe disseram: “Escuta sua voz e diz-lhe que te explique e interprete o sonho”[34] Entretanto, a explicação de Henoc anunciava-lhes punição e morte pela “violência feita aos homens”: «Então castigou e não a nós, (os justos), mas a Azazel», e também aprisionou e capturou «aos filhos dos Vigilantes, os Gigantes; e não serão perdoados nenhum de seus queridos.»[35] Então eles «se prostraram e choraram ante Henoc»[36] — Procurando manter a calma, ’Ohyah disse a Mahawai: «E não trema. Quem te mostrou tudo?»; Disse Mahawai: «Baraq’el, meu pai, estava comigo.»; «Apenas havia acabado Mahawai de contar o que (… Henoc) lhe disse: “Eu ouvi maravilhas. Se uma estéril pode dar à luz (ainda havia uma chance deles serem perdoados)…”»[37] Mahawai deixou «a terra e cruzou a Desolação, o grande deserto», Então viu Henoc, chamou-o e lhe disse: «“Pela Segunda vez eu te peço um oráculo [...] a tuas palavras, junto com todos os Nefilim da terra”»; «“Que saibamos de ti sua explicação”.» — Henoc, o escriba distinto, fez cópias em duas pequenas tábuas das epístulas escrevendo «em uma o testemunho dos gigantes (a Semihaza e a todos os seus companheiros) e na outra [o testemunho dos santos]». Então levou as tábuas «com todas as suas petições, por suas almas, por todas e cada uma de suas obras e por todos o que pediam: que houvesse para eles perdão e longevidade.» [38] Mas o perdão lhes foi negado. Disse Henoc:

«Sabei que não (serão perdoadas …) vossas obras e as de vossas mulheres»; «(Serão castigadas) elas e seus filhos e as mulheres de seus filhos (…) por vossa prostituição na terra.»; «E vos acusa a vós, pelas obras de vossos filhos (…) a corrupção com a qual tendes corrompido (…) até a vinda de Rafael. Eis que haverá destruição (…) Agora, pois, desligai vossas correntes (…) e rezai.»[39] «Que não haja paz para voz.»

Depois de repreender os Vigilantes e seus filhos, Henoc falou aos justos: «Palavras de bênção com as quais abençoou Henoc, varão justo a quem foi revelada uma visão do Santo e do céu, pronunciou seus oráculos dizendo: A visão do Santo do céu me foi revelada e ouvi todas as palavras dos Vigilantes e dos Santos e, porque o escutei deles, eu soube e compreendi tudo. Não falarei para esta geração mas para uma geração futura. Agora falo acerca dos eleitos, sobre eles pronuncio meu oráculo dizendo: Sairá o grande Santo de sua morada, e o Deus eterno descerá sobre a terra e irá ao monte Sinai e aparecerá com seu grande exército, e surgirá na força de seu poder do alto dos céus. Todos os Vigilantes tremerão e serão castigados em lugares secretos em todas as extremidades da terra; todas as extremidades da terra se fenderão e eles serão possuídos de tremor e medo até os confins da terra. Fender-se-ão e cairão e se dissolverão os altos e as altas montanhas serão rebaixadas…»[40]

A queda dos anjos vista pelos cristãos:

A tradição da queda dos anjos estava espalhada e existia na época do nascimento do cristianismo no Egito. Ainda hoje persiste na Síria, no Egito e na Etiópia, onde existem igrejas cristãs muito diferentes das nossas. Atualmente, a Igreja Cristã da Etiópia, ou Igreja Copta, mantém o Livro de Enoque em sua Bíblia, como documento oficial. Entre demais cristãos atuais é considerado apócrifo, o que não é de estranhar. Os primeiros padres da Igreja, e os principais pensadores cristãos dos três primeiros séculos conheciam Enoch. Também a Bíblia não era a que conhecemos.

De acordo com Luther Link, «até o século IV, Enoch fazia parte do ainda mal definido cânone[41]»; «Familiar para os judeus e primeiros cristãos, Enoch foi um texto sagrado autêntico para Judas, Clemente, Barnabé, Tertuliano e outros primeiros padres (embora Jerônimo e Orígenes fizessem ressalvas). A influência desse livro foi tamanha que ele chegou citado até mesmo por críticos pagãos, como Celso, que estudou as Escrituras. Muitos conceitos cristãos tem sua primeira ocorrência em Enoch.»[42]; «Essa interpretação influente apresentada por muitos dos primeiros padres da Igreja é uma razão para Enoch ter sido excluído do cânone. Eis o que os primeiros padres escreveram: Justino, martirizado em Roma em 165 d.C., explicou que alguns anjos violaram a ordem apropriada das coisas, cederam a impulsos sexuais e tiveram relações com mulheres, cujos filhos agora chamamos de demônios (Justino, Apologia, II, 2-6).

Esses demônios são a causa de assassinatos, adultérios e todos os outros males. Atenágoras, outro apologista cristão grego, escreveu (em 177) que o Diabo foi criado por Deus exatamente como Ele criara os demais anjos. O homem possui o livre-arbítrio para escolher entre bem e mal, e o mesmo vale para os anjos. O homem possui o livre-arbítrio para escolher entre bem e mal, e o mesmo vale para os anjos. Mas no passado alguns anjos sentiram desejo por virgens, tornaram-se escravos da carne, tiveram relações sexuais com elas e nasceram-lhes filhos que eram gigantes. Junto com as almas desses gigantes, os anjos que caíram do Céu assombram o ar e a terra; são os demônios que vagam pelo mundo (Antenágoras. Plea, 24).

Clemente de Alexandria, outro apologista importante, foi um pensador flexível e sutil na virada do século II. Condenado no século IX como herege pelo patriarca ilegalmente consagrado Fócio, Clemente foi eliminado do martirológio romano. Ele supôs que as verdades da filosofia grega haviam sido roubadas pelos gregos dos hebreus. Tanto os textos gregos como os hebreus misturam verdade e erro, sendo o Diabo a origem da confusão (Clemente. Stromateis, V, I, 10, 1-3).

Em última análise, argumentou Clemente, todas as verdades da filosofia provêm dos anjos caídos; essa idéia deriva de Enoch.»; «Tertuliano[43], como Clemente, acreditava que os anjos celestes que tinham mantido relações sexuais com as filhas dos homens, tal como descrito em Enoch, revelaram muitas artes secretas, inclusive o mistério do kohl. Em prosa evocativa, Tertuliano serve-se de uma sentença de Enoch (cap. e a expande para explicar que os anjos caídos ensinaram às mulheres:

«A radiância de pedras preciosas que com que se ornam colares em cores várias, os braceletes de ouro que envolvem seus braços, as preparações coloridas que se usam para tingir lã, e o pó negro [...] para realçar a beleza de seus olhos.» (Tertuliano. The apparel of women, 2,1.)

Tertuliano fez inúmeras referências a Enoque. Em sua célebre Apologia, por exemplo, ele interpreta o Gênesis à luz de Enoch quando escreve que as Escrituras nos dizem que “alguns anjos perverteram-se e originaram uma raça ainda mais corrompida de Diabos”. Ele e outros primeiros padres aceitaram a idéia dos anjos pervertidos porque interpretaram o capítulo 6 do Gênesis à luz de Enoch.»[44]

Entretanto, nem todos estavam satisfeitos com isso: «Anjos, “os Filhos de Deus”, mantendo relações sexuais com mulheres, as filhas dos homens, era algo que requeria comentário. Os autores judeus interpretaram “filhos de Deus” como filhos de príncipes e nobres. Alguns cristãos, entre eles santo Agostinho, julgaram que a expressão significava homens piedosos que são espiritualmente os filhos de Deus. Tanto os autores judeus como os cristãos evitaram o significado óbvio: que alguma barreira entre os filhos de Deus e os filhos dos homens foi rompida, não por vontade divina mas por desejo sexual.»[45]

Nessa época, até mesmo aqueles anjos que não “caíram” estavam causando prejuízos para a igreja cristã… Santo Agostinho, em seu tempo de pregação, enfrentou um problema causado pela grande popularidade dos anjos: As pessoas estavam fazendo-lhes sacrifícios, orando, etc. e isto estava meio que fora de controle. Por isso ele tentou reduzir os anjos à forma mais abstrata possível e pregava ao público: «Sejam quais forem, por conseguinte, os bem aventurados imortais habitantes das mansões celestes, se não tem amor por nós, se não desejam nossa felicidade, não merecem nossa homenagem. Se nos amam, se querem nossa felicidade, querem sem dúvida que a recebamos da mesma fonte que eles»; «Legítimos habitantes das moradas celestes, os espíritos imortais, felizes pela posse do Criador, eternos por sua eternidade, fortes de sua verdade e santos por sua graça, tocados de compulsivo amor por nós, infelizes e mortais, e desejosos de partilhar conosco sua imortalidade e beatitude, não, querem que sacrifiquemos a eles, mas Àquele que sabem ser, como nós, o sacrifício [ou seja, Jesus Cristo]. Porque somos com eles uma só Cidade de Deus.»; «Quanto aos milagres, sejam quais forem, operados pelos anjos ou por qualquer outro modo, se se destinam a glorificar o culto da religião do verdadeiro Deus, princípio único da vida bem aventurada, devem ser atribuídos aos espíritos que nos amam com verdadeira, é preciso acreditar ser o próprio Deus quem neles e por eles opera.»; «… Aquele cuja palavra é espírito, inteligência, eternidade, palavra sem começo e sem fim, palavra ouvida em toda a pureza, não pelos ouvidos do corpo, mas do espírito, por intermédio de seus ministros, enviados que gozam de sua verdade imutável, no seio de eterna beatitude, palavra que lhes comunica de maneira inefável as ordens que devem transmitir à ordem aparente e sensível, ordens que executam sem demora e facilmente.»; «Assim, mostram-nos os anjos fiéis com que sincero amor nos amam; com efeito, não é à sua própria dominação que querem submeter-nos, mas ao poderio daquele que são felizes de contemplar, soberana beatitude a que desejam cheguemos também e de que não se apartam.» (De civitate Dei, X).

Os anjos eram tão populares que, apesar das Escrituras não darem uma descrição precisa a respeito da “hierarquia celeste”, estudiosos cristãos esforçaram-se para descrever um quadro bem definido. (Podemos ver que estas descrições de autores cristãos foram bastante influenciadas pela filosofia platônica, aristotélica e textos gregos em geral, se afastando em muito do sentido original dos “bene ha’ Elohim”, principalmente nos comentários referentes aos demônios). A fonte mais abalizada para a obtenção de uma angelologia cristã é Pseudo-Dionísio, o Areopagita. Seus tratados Gerarchia celeste, Gererchia ecclesiastica, Nomi divini e suas Epistole formaram um corpo que granjeou a estima de muitos, inclusive Gregório Magno, são Tomé, a Escolástica, Dante, Meister Eckhart e são João da Cruz. Seu texto Gerarchia celeste é o mais conhecido e apreciado da angelologia cristã. Dionísio estabeleceu que existem nove ordens celestes, subdividas em três ordens principais: A primeira é aquela que está sempre na presença de Deus e inclui os Tronos e suas legiões ‘com muitos olhos e muitas asas’ (os Querubins e os Serafins) A Segunda ordem inclui os Poderes, as Dominações e as Virtudes; a terceira os Anjos, os Arcanjos e as Potestades. Foi só com Dionísio e Tomás de Aquino que o número das hierarquias foi estabelecido e tornou-se praticamente definitiva nas obras posteriores de autores cristãos. — Seguindo a linha de Dionísio, Tomás de Aquino faz uma longa descrição das hierarquias celestes na Suma contra os gêntios[46]:

«Como as coisas corporais estão governadas pelas espirituais, segundo consta, e entre as corporais existe uma certa ordem, é mister que os corpos superiores sejam governados pelas substâncias intelectuais superiores, e os inferiores pelas inferiores. Além disso, porque quanto mais superior é uma substância, tanto mais universal é sua virtude. Logo, a virtude da substância intelectual é mais universal que a virtude corpórea; e por conseguinte, as substâncias intelectuais superiores possuem virtudes que não podem ser desempenhadas por virtude corporal alguma, e por isso não estão unidas a corpos; já que as inferiores possuem virtudes parciais e que podem ser desempenhadas por alguns instrumentos corporais, dessa forma, é preciso que estejam unidas aos corpos.

E como as substâncias intelectuais superiores tem uma virtude mais universal, por isso também estão mais perfeitamente dispostas por Deus, de maneira que conhecem com detalhe a finalidade da ordem que Deus lhes comunica. E esta manifestação da ordenação divida, realizada por Deus, chega inclusive às substâncias intelectuais mais inferiores, como confirma [a palavra] de Jó: “Inumeráveis são Seus servidores, e sobre qual deles não resplandece Sua luz?” (Jó 25:3). Não obstante, as inteligências inferiores não a recebem de maneira tão perfeita que possam conhecer com detalhe quanto hão de executar em vista do ordenado pela providência, mas somente em geral; pois, quanto mais inferiores são, menos conhecimento detalhado da ordem divina recebem ao serem iluminadas pela primeira vez; entretanto, o entendimento humano, que possui o último grau do conhecimento natural, só tem notícia de algumas coisas universalíssimas.

Assim, pois, as substâncias intelectuais superiores recebem imediatamente de Deus um conhecimento perfeito da ordem divina e, em conseqüência, o hão de comunicar às inferiores, tal como, segundo dissemos, o conhecimento universal do discípulo é aperfeiçoado pelo mestre, que conhece com detalhe. Por isso, Dionísio, falando das supremas substâncias intelectuais, que chama primeiras hierarquias, em outras palavras, sagrados principados, disse que não são santificadas por outras, mas que alcançam imediatamente e plenamente de Deus a santidade, e, enquanto cabe, são transportadas à contemplação da beleza imaterial e invisível e ao conhecimento dos motivos das obras divinas; e disse que por elas são doutrinadas as ordens subalternas de espíritos celestes. Segundo ele, as inteligências mais elevadas recebem do princípio mais alto a perfeição de seu conhecimento. [...]»

«Assim, pois, aquelas inteligências que percebem imediatamente em Deus o conhecimento perfeito da ordem da divina providência estão dispostas numa certa hierarquia, porque os superiores e primeiros vêem a razão da ordem da providência — em si mesma – o último fim, que é a bondade divina; porém uns com maior clareza que outros. E estes se chamam Seraphim, i. e., ardentes ou incandescentes, porque o incêndio designa a intensidade do amor ou do desejo, que são duas tendências em relação ao fim. Por isso disse Dionísio que com este nome se designa sua rapidez ou eterno movimento em torno da divindade, fervente e flexível, e sua capacidade de influenciar os seres inferiores excitando-os a um sublime fervor à divindade[47].

Os segundos conhecem perfeitamente a razão da ordem da providência na imagem mesma de Deus. E se chamam Cherubim, que quer dizer plenitude da ciência, já que a ciência se aperfeiçoa pela forma cognoscível. Por isso disse Dionísio, que tal nome significa que são contempladores da primeira virtude operante da divina beleza[48].

Dessa forma, os terceiros contemplam a disposição das ordens divinas nelas mesmas. E se chamam Throni, porque trono significa o poder de julgar, segundo o dito: “Te sentas no trono e distribui justiça” (Salmos 9:5). Conforme isso, disse Dionísio que com este nome se declara que são portadores divinos e tomam parte familiarmente em todas as determinações divinas[49]. [...]

Por outra parte, entre os espíritos inferiores que para executar a ordem divina recebem das superiores um conhecimento perfeito é preciso estabelecer uma ordem. Pois os mais altos deles tem uma virtude mais universal do conhecimento; por isso conhecem a ordem da providência nos princípios e causas mais universais enquanto os inferiores o obtêm em causas mais particulares. [...]

Também estas substâncias intelectuais (i. e. os anjos da Segunda hierarquia) hão de ter certa ordem. Porque, efetivamente a disposição universal da providência se distribui, em primeiro lugar, entre muitos executores. E isso se realiza pela ordem das Dominationum, pois é próprio dos senhores mandar o que hão de executar os outros. Por isso disse Dionísio que este nome (de) dominação designa certo senhorio que rejeita toda servidão e que é superior a toda submissão.

Em segundo lugar, a providência é distribuída e aplicada a vários efeitos pelo que age e executa. E isso se faz mediante a ordem das Virtutum [virtudes], cujo nome, segundo Dionísio, significa certo augusto poder aplicado à todas as obras divinas, que não abandona a nenhum movimento a sua própria debilidade. E isso demonstra que o princípio universal da atividade pertence à esta ordem. Segundo isso, parece que movimento dos corpos celestes, dos quais procedem, como de certas causas universais, os efeitos particulares da natureza, pertence à esta ordem. Por este motivo se chamam virtudes celestes no cap. 21 de S. Lucas, onde diz: “Se moveram as virtudes celestes”. Parece também que a execução das obras divinas que se realizam à margem da ordem natural pertence à esta classe de espíritos, porque tais obras são o que há de mais sublime nos mistérios divinos. Por esta razão diz S. Gregório que “se chamam virtudes aqueles espíritos que freqüentemente fazem coisas milagrosas” (Homil. 34). Por fim, se no cumprimento das ordens divinas há algo principal e universal, é conveniente que pertença à esta ordem.

Em terceiro lugar, a ordem universal da providência, estabelecida já nos efeitos, é preservada de toda confusão pela coerção exercida sobre aquilo que poderia perturbá-la. Coisa que corresponde à ordem das Potestatum [potestades]. Por isso disse Dionísio que o nome de potestade implica certa ordenação, bem disposta e sem confusão alguma acerca do estabelecimento por Deus. E por isso disse S. Gregório que corresponde a esta ordem o conter das forças opostas.

As últimas das substâncias intelectuais superiores são aquelas que conhecem divinamente a ordem da providência através das causas particulares, e são as imediatamente superiores às coisas humanas. Sobre elas Dionísio disse que esta terceira ordem de espíritos manda, por conseguinte, nas hierarquias humanas. E por coisas humanas se há de entender todas as naturezas inferiores e causas particulares que estão ordenadas ao homem e sujeitas a seu serviço.

Aqui também existe uma ordem. Pois nas coisas humanas existe certo bem comum, que é o bem da cidade ou dos cidadãos, e que, ao parecer, pertence a ordem dos Principatuum [principados]. Por isso, disse Dionísio que o nome de principados significa certa categoria de caráter sagrado. Conforme isso, Daniel fez menção de Miguel, príncipe dos judeus e príncipe dos persas e gregos (Dan. 10, 13-20). Segundo isso, a disposição dos reinos, a transmissão de poder de um povo a outro, deve pertencer ao ministério desta ordem. Inclusive a inspiração daqueles que são príncipes entre os homens com respeito a como hão de administrar seu governo, parece que corresponde à esta ordem.

Há, porém, outro bem humano que não é comum, mas individual, ainda que não se utilize em benefício próprio, mas em benefício de muitos: Como as coisas de fé, que todos e cada um hão de crer e observar; o culto divino, etc. E isto corresponde aos Archangelos [arcanjos], de quem disse S. Gregório que anunciam o maior; razão porque chamamos arcanjo a Gabriel, que anunciou a encarnação do Verbo à Virgem.

Há, também, certo bem humano que pertence a cada um em particular. E os bens desta classe correspondem à ordem dos Angelorum [anjos], que, segundo S. Gregório, anunciam as coisas pequenas; e por isso se chamam custódios dos homens, segundo o dizer do salmo: “Te encomendará a seus anjos para que te guardem em teus caminhos” (Sl. 90;11). Por isso, disse Dionísio que os arcanjos são intermediários entre os principados e os anjos, e tem como ambos algo em comum; dessa forma, com os principados, enquanto que são chefes dos anjos inferiores, (…) e com os anjos, porque anunciam aos anjos e, mediante estes — cujo ofício é manifestarem-se aos homens —, a nós o que lhes corresponde segundo a categoria. Por este motivo a última ordem se apropria do nome comum como especialmente seu, porque desempenha o ofício de anunciar aos homens sem intermediários. Daí que os arcanjos tem um nome composto pelos dois, pois se chamam arcanjos, i. e., príncipe dos anjos. (…)

Por último, em todas as virtudes ordenadas é comum que todas as inferiores obrem em virtude da superior. Segundo isso, o que dissemos que pertence à ordem dos serafins o executam as inferiores na virtude dos mesmos. E isso se aplica também às ordens seguintes.»

São Tomás de Aquino fala sobre os anjos em outras partes de sua vasta obra, como por exemplo, nos seguintes trechos da Suma Teológica: «Nos anjos (lat. angelis) não pode haver outra virtude senão a intelectiva e a vontade, conseqüente ao intelecto, porque nisso consiste toda a virtude do mesmo. A alma [humana], porém, tem muitas outras potências; assim, as sensitivas e as nutritivas. E portanto, não há símile.»; «o intelecto angélico está sempre em ato em relação aos seus inteligíveis, por causa da proximidade com o intelecto primeiro, que é ato puro como antes se disse.»; «Há, porém, outra virtude cognoscitiva que nem é ato de órgão corpóreo, nem está, de qualquer modo, conjunta com a matéria corpórea, como o intelecto dos anjos. Por onde, o objeto desta virtude é a forma subsistente sem a matéria. Pois, embora conheçam os anjos as coisas materiais, só as vêem no imaterial a saber, em si mesmos ou em Deus»; «inversamente [aos homens], os anjos conhecem as coisas materiais pelos seres imateriais»; etc.

Com isso, misturando um bom bocado de filosofia grega nos farrapos que restavam da tradição judaica dentro do cristianismo, negou-se que os anjos tivessem corpos e, portanto, não poderiam ter tido relações sexuais com ninguém. — Luther Link continua: «No século V santo Agostinho afirmou, confiante: “Não há dúvida quanto ao fato de esses ‘anjos’ serem homens, e não, como crêem alguns, criaturas diferentes de homens”. Em nossa época, assim como na de santo Agostinho, quando as pessoas dizem “não há dúvida”, geralmente há… Santo Agostinho argumenta que os “filhos de Deus” eram anjos apenas no espírito, por isso se permitiram a perda da graça. Antes da queda, essas pessoas potencialmente superiores tiveram filhos não em conseqüência de seu arrebatamento sexual, mas com o intuito de “povoar de cidadãos a cidade de Deus”:

«Seja como for, eu nem sonharia em crer que foram os santos anjos de Deus a sofrer tal queda no presente caso [...] e não é preciso apelar para os textos que se apresentam sob o nome de Henoch e contêm as fábulas sobre gigantes [nem] a alguns textos sob os nomes de vários profetas e apóstolos que são divulgados por hereges.»

Enoch tornou-se um instrumento de hereges. Mas o que santo Agostinho não nos diz – e que de fato apenas estudos recentes revelaram – é que algumas seções desse livro, nos quais se mencionam gigantes, haviam sido “apropriadas” ou “tomadas antecipadamente” pelos mesmos maniqueístas que haviam ensinado santo Agostinho e a quem este depois repudiou. Bastou que santo Agostinho estigmatizasse esse livro como herético para que ele ficasse eficazmente enterrado por um milênio.»[50] — Essa tática de substituição de uma mitologia por outra foi tão bem sucedida que até no princípio do século XX havia quem se escandalizasse com aqueles que defendiam as idéias do livro de Enoch:

«Mas e estes “filhos de Deus”? Dando crédito aos exegetas autorizados da Bíblia, os anjos teriam descido do céu de Deus para fazer amor as mulheres e engravida-las! Uns soldados salafrários, estes anjos! Honestamente, não podemos, a não ser que pensemos que o céu é um covil de bandidos, aceitar esta explicação sacrílega, visto que é difícil conceber anjos não apenas “levados pelo namoro”, mas capazes de fisicamente satisfazerem os seus desejos. Seriam os anjos seres materiais? Sexuados como nós, mais do que nós, invadidos pelo demônio da concupiscência?»[51]

Mas nem assim o problema estava inteiramente resolvido. Havia ainda um fragmento da queda dos anjos no Gênese que desde então passou a ser considerado pelos exegetas, como de difícil compreenção. — Evidentemente, dizer que os “filhos de Deus” não fizeram o que diz em Enoch seria também negar o próprio livro da Gênese, que conta resumidamente a mesma história… O remédio seria então mudar a identidade dos “filhos de Deus”. (Que grandes atrativos poderia ter o serviço divino se um expressivo grupo de 200 anjos preferiu deixa-lo – conscientes de que sofreriam uma horrível punição futura – só para fazer sexo com fêmeas humanas?) Era necessário dar uma explicação simples e compreensível, adequada ao povo. Por isso, a partir do século IV, em função de uma noção mais abstrata da natureza angélica, a literatura patrística começou a ver os “filhos de Deus” como a linhagem piedosa de Set, (que são espiritualmente os filhos de Deus) e as “filhas dos homens” como a descendência depravada de Caim.

Livros apócrifos, como o Combate de Adão e Eva, traduzido do etíope, insurgiram-se contra a natureza divina dos pais dos Nenfelin:

«E os antigos sábios escreveram sobre eles, dizendo que os anjos desceram dos céus e se ligaram com as filhas de Caim e que delas nasceram gigantes.

Mas enganam-se quanto a isto; não é verdade que os anjos, que são espíritos, se misturem pecando com os homens… Mas, de acordo com a sua essência e natureza, eles não são nem macho nem fêmea, mas puros espíritos, os quais, a partir da sua queda, se tornaram negros.»[52]

Apesar de tudo, talvez a associação da descendência de Caim com Semijazah e seus anjos tenha sido uma boa escolha pois, como já vimos, Caim e seus descendentes também foram “responsabilizados” pela construção das primeiras cidades: Assim como os anjos, eles teríam criado a vida urbana, a civilização e a guerra. Tubalcaim foi “o pai de todos os laminadores”; Outros formaram as castas dos criadores de gado, dos músicos, dos ferreiros, das meretrizes, etc. O próprio nome “Caim” vem de uma raiz que significa “produzir; adquirir; comprar”. Eles estavam destinados ao comércio. — No entanto, a parte mais lembrada da história de Caim era sem dúvida o episódio do assassinato de Abel.

Na verdade, se levarmos em conta o fato da tradição nomear personagens bíblicos de acordo com a personalidade dos mesmos, parece que para os primeiros judeus, Abel não foi uma vítima tão desmerecida quanto pretende o texto da “Sabedoria de Salomão” e o “Novo Testamento” cristão, pois a exegese e a etimologia das palavras revelam um Abel muito diferente do que costumamos ter em mente: Abel (Hêbel, em Hebraico) significa vapor ou vaidade. Hêbel (Abel) é uma palavra que expressa em hebreu tudo aquilo que é fugaz, passageiro, rápido. A imagem do vento é usada para retratar a ilusão, a frustração, o sonho, o nada, o vazio. Segundo o Dicionário Thesarus, de Genesius — Abel (Hêbel) é um nome baseado em diversos sons: Hab-Hav-Av-Bal-Habál. Estes sons formam uma série de conceitos, inspirados na imagem do vento e do sopro. O plural hebráico de Hêbel é Habelím. Os profetas israelitas chamam os ídolos pagãos de Habelím, nome depreciativo e irônico que quer dizer: os ídolos são vento, sopro, fumaça, futilidade, ilusão, estupidez, inutilidade, nada. Hêbl significa também luto. Não qualquer luto, mas as dramáticas demonstrações de pesar e dor próprias dos orientais, luto cheio de gritos e lamentos. José fez luto por seu pai Jacó durante setenta dias, chorando com todo o Egito. O último Cap. do Gênesis descreve o episódio. Foi tão impressionante que os povos cananeus deram ao lugar o nome de Êbel Mitsráim, ou seja, o luto dos egípcios.

O Eclesiastes, nos fornece mais detalhes sobre a significação de Hêbel. Querendo sintetizar todas as suas frustrações, o rei exclamou: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.” Em hebreu, a frase soa assim: Habél Habalim Ha.Kol Habel. As traduções dizem: Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, mas podemos multiplicar as variantes: ilusão das ilusões, fumaça e mais fumaça, nada sobre nada, mentira e mais mentiras, vento e apenas vento, frustração em cima de frustração, sopro que some no ar, luto e nada mais que luto, aborto de ilusões. Todas essas idéias estão contidas no texto e no contexto do Eclesiastes, além de muitas outras, sugeridas pela etimologia de Hêbel, ou seja, pela imagem do sopro e do vento. Repare que Salomão repete três vezes a palavra: Habél – Habalim – Habel. O grito de Salomão no Eclesiástes, é o grito da tragédia humana, sintetizando toda a dor do homem em todos os tempos. O nome de Abel (Hêbel) como sinônimo de frustração e desgraça, aparece ainda em diversos outros lugares da Bíblia. Para ninguém por em dúvida o sentido da palavra, ela vem acompanhada de vários sinônimos paralelos:

TÔHU : deserto, vazio, nada, devastação, ruínas. “Por nada e por vento consumi minhas forças.” (Isaías 49, 4) “Le.thôhu ve.hêbel kohí kilêti.”

SHAV : caos, nada, vazio, ruínas, deserto, inutilidade, desagraça, tempestade, calamidade, mal, tragédia, fraude, engano, mentira, falsidade. “Odeio os que cultuam ídolos falsos.” (Salmo 31,7) “Çanêti ha.shomrím habelêi shav.”

RE’ÚT : tentativa, busca, esforço inútil, frustração. “Frustração e esforço inútil do espírito.” (Ecl 4,4) “Hêbel u.re’út rúah.”

‘INIÂN : preocupação, cuidado, esforço sem resultados, frustração. “Ilusão e preocupações aflitivas.” (Ecl 4,8) “Hêbel ve.’iniân rá’ hu.”

RA’ÓN : plano fracassado, sonho, expectativa inútil. “Decepção e expectativa inútil do espírito.” (Ecl 4, 16) “Hêbel ve.ra’ôn rúah.”

DEBARÍM MARBÍM : palavrório, tagaralice, palavras e mais palavras. “Palavreado inútil” (Ecl 6, 11) “Debarín marbím Hêbel.”

O termo “hebêl”, na Bíblia, está sempre em “má companhia”. Jeremias, os Salmos e principalmente o Eclesiástes, como também Jó e Isaías, dão-nos o pior dos retratos de seu significado… E é esse o Abel que Caim eliminou da face da terra: O símbolo das frustrações e desilusões da humanidade.

Possivelmente, na mais antiga tradição, o irmão de Caim devia ser visto como uma espécie de idólatra. Podemos dizer que ele era uma espécie de mestre das mentiras e dissimulações. Em conseqüência, Caim pode ter agido como uma espécie de go∙’él had-dám (hebr. Vingador de sangue)[53]. Entretanto, bem antes do conjunto das escrituras ficar estabelecido, o ato de Caim já era visto como homicídio culposo: «[Da sabedoria] se afastou, em sua cólera, um injusto [Caim], arruinou-se em sua senha fraticiada. Por sua culpa a terra foi submersa, e outra vez a Sabedoria a salvou, pilotando o justo [Noé] numa frágil embarcação.» (Sabedoria 10:1-4)

De qualquer forma, o papel de construtor, inventor, gerreiro e comerciante de Caim e seus filhos foi preservado. O pesquisador francês Alberto Cousté fez um levantamento de antigas lendas sobre os descendentes de Caim até o tempo do Rei Salomão e descobriu que o então “herdeiro” da maldição seria o arquiteto Hiram Abi.[54]
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NOTAS:
[1] Como acontece com muitos outros elementos das tradições religiosas de Israel, a origem do conceito dos bene ha’ Elohim pode ser buscada nas tradições canaanitas do século XIV a.C., que ficou gravada em placas de argila em escrita cuneiforme. Nos escritos, epopéias e textos rituais da antiga cidade de Ugarit, no litoral sírio, a expressão banu ili ou banu ili-mi ocorre com freqüência. No panteão caanita, o deus principal é El, cujo nome significa literalmente “Deus”. Ele e sua esposa Acherá são o pai e a mãe dos deuses. A expressão banu ili-mi pode ser traduzida literalmente como “Os Filhos – ou descendentes – de El”. (Além dos textos de Ugarit, já foram encontradas inscrições fenícias dos séculos VIII e VII a.C. mencionando os Filhos de Deus e uma inscrição amonita do século IX a.C. descoberta em Amã, Jordânia; O que prova que o conceito de Filhos de Deus esteve presente nas tradições canaanitas durante um tempo bastante extenso).
[2] Aqui o texto massorético (texto hebraico aceito), substituiu a expressão original “filhos de Elohin” por “Filhos de Israel”. Em muitos pontos, a versão grega das escrituras, conhecida como Septuaginta, traduziu a expressão hebraica “bene ha’ Elohim” por “aggelon theu”, o que acabou por dar no latim “Angelorum”. A palavra grega “ággelos” significa mensageiro, por isso a palavra “Anjo” passou do latim para as línguas deste derivadas trazendo muito mais acentuada a idéia de mensageiro do que qualquer outro aspecto da personalidade ‘angélica’. De fato, há referência de anjos que executaram o papel de mensageiros (hebr. “Malachim”) tanto nas escrituras hebraicas e árabes quanto nas cristãs; mas a atividade dos ‘anjos’ nunca se resumiu apenas a isso. Nos antigos escritos hebraicos, midraxes, etc. haviam “bene ha’ Elohim” para tudo. Por exemplo, haviam anjos para dirigir nações, cuidar do movimento dos astros, transmitir conhecimento aos profetas, guiar os estudantes da Mercabá através dos sete Hehalot, testar os homens através do ciúme, enviar pragas e morte aos infiéis, etc. Por isso, ao invés de interpletar bene ha’ Elohim como “mensageiro de Deus”, seria muito mais apropriado traduzir a expressão em sua forma literal: “Filhos de Elohim”.
[3] Duração máxima a que Deus reduziu a vida humana, segundo esta fonte javista.
[4] Designação das divindades às quais é contraposto o ardor temível do sol. — Em lugar de “sombra protetora”, o grego tem “época (favorável)”.
[5] Em 2 Samuel 21, é um guerreiro de nome Elanã que derrota Golias. Essa história nos soa mais familiar em 1 Samuel 17, onde Davi luta contra Golias. Segundo Ronald S. Hendel (Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto), esse é um exemplo de história que na tradição oral “deriva” de um herói menor para um maior.
[6] Uma nota de pé de página da Bíblia de Jerusalém acrescenta que «Este “leito de ferro” (ou de basalto ferruginoso) era talvez um dos dólmens que se podem ver na região de Amã. — Nove côvados eqüivalem a cerca de 4m.»
[7] Hershel Shanks (org). Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto. Imago.
[8] O texto completo, em português, aparece no apêndice de “Os Documentos do Mar Morto”, de Burrows.
[9] Os rolos e fragmentos do Mar Morto constituem uma coleção de manuscritos, descobertos em 1947, e formam uma valiosa biblioteca conservada da comunidade dos Essênios, em Qumran. Eles estavam escondidos, por segurança, em cavernas próximas, quando o povoado de Qumran foi destruído pelos romanos em 70 d.C., já no fim da revolta judaica contra o domínio romano na Palestina. Os textos foram preservados pelo clima seco da região, e alguns deles remontam ao século II a.C. Muitas das obras encontradas, escritos sectários, eram antes desconhecidas. Todos os livros do Tanach, exceto o de Ester, foram representados no todo ou em parte, nos Manuscritos do Mar morto, sendo que encontram quatro rolos completos de Isaías[9][9]. Parece que a popularidade de Isaías era grande em Qumran, assim como outras obras de natureza apocalíptica sobre o Fim dos Dias.
[10] O estudo filológico mostrou que os originais deste foram escritos por volta do ano 400 d.C. em grego, e a passagem do aramaico para grego e posteriormente para etíope sacrificou primeiro o antigo estilo hebreu detalhista para uma forma abreviada grega e depois o nome dos anjos que ninguém mais sabia direito como pronunciar. Mas quase tudo pode ser corrigido com os dados dos textos de Qumran. ‡ O Enoque Etíope é conhecido de forma completa na Europa desde 1773, quando o explorador inglês James Bruce trouxe três cópias, que foram rapidamente difundidas; mas a primeira publicação de excertos do texto etíope de Enoque, o qual, é o único integral remanescente, só ocorreu em 1800. A primeira tradução completa foi publicada por Richard Laurence em Oxford no ano de 1821, gerando novos debates em torno da velha questão: Se os “filhos de Deus” que tiveram relações sexual com mulheres eram de fato anjos.
[11] [4QHenoc b. (4Q201 [4QEn b.]), Col. II (= 1 Henoc 5,9-6,4 + 6,7-8,1)]
[12] [4QHenocª (4Q201 [4QEnª]), Col. III (= 1 Henoc 6,4-8,1)]
[13] [4QHenocª (4Q201 [4QEnª]), Col. III (= 1 Henoc 6,4-8,1)]
[14] [4QHenoc b. (4Q201 [4QEn b.]), Col. II (= 1 Henoc 5,9-6,4 + 6,7-8,1)]
[15] [4QHenoc b. (4Q201 [4QEn b.]), Col. III (= 1 Henoc 8,2-9,4)]
[16] [4QHenoc b. (4Q201 [4QEn b.]), Col. III (= 1 Henoc 8,2-9,4)]
[17] [4QHenoc b. (4Q201 [4QEn b.]), Col. III (= 1 Henoc 8,2-9,4)]
[18] [4QHenocª (4Q201 [4QEnª]), Col. IV (= 1 Henoc 8,3-9,3.6-8)]
[19] [4QHenocª (4Q201 [4QEnª]), Col. V (= 1 Henoc 10,3-4)]
[20] [4QHenocª (4Q201 [4QEnª]), Col. V (= 1 Henoc 10,3-4)]
[21] [4QHenoc b. (4Q201 [4QEn b.]), Col. IV (= 1 Henoc 10,8-12)] ‡ O Texto etíope apresenta a versão: “Nesse dia, eles serão atirados ao abismo de fogo, na reclusão e no tormento, onde ficarão encerrados para todo o sempre. E todo aquele que for sentenciado à condenação eterna seja juntado a eles, e seja com eles mantido em correntes, até o fim de todas as gerações. Extermina os espíritos de todos os monstros, juntamente com todos os filhos dos Guardiões, porque eles maltrataram os homens! Purga a terra de todo ato de violência! Toda obra má deve ser eliminada!”
[22] [4QHenoc c. (4Q204 [4QEn c.]), Col. V (= 1 Henoc 10,13-19 + 12,3)]
[23] [4QHenoc c. (4Q204 [4QEn c.]), Col. VI (= 1 Henoc 13,6-14,16)]
[24] [4QHenoc c. (4Q204 [4QEn c.]), Col. VI (= 1 Henoc 13,6-14,16)]
[25] [4QHenoc c. (4Q204 [4QEn c.]), Col. VI (= 1 Henoc 13,6-14,16)]
[26] Joan O’ Grady. Satã o Príncipe das Trevas. Editora Mercuryo Ltda. 1991.
[27] Todas as cópias conhecidas desse texto estão muito fragmentadas sendo impossível reconstitui-lo integralmente. Entretanto, tentei pelo menos reunir o pouco que sobrou da história emendando passagens importantes com fragmentos de Enoch para preencher parte das lacunas mais importantes.
[28] 4QGigantesª (4Q203 [4QGiantsª]) Frag. 3
[29] 4QGigantes c (4Q531 [4QGiants c.]) Frag.1
[30] 4QGigantesª (4Q203 [4QGiantsª]) Frag. 3
[31] [4QHenoc b. (4Q201 [4QEn b.]), Col. III (= 1 Henoc 8,2-9,4)]
[32] 4QGigantes c (4Q531 [4QGiants c.]) Frag.2
[33] 4QGigantes c (4Q531 [4QGiants c.]) Frag.2
[34] 4QGigantes b (4Q530 [4QGiants b.]) - Col. II
[35] 4QGigantesª (4Q203 [4QGiantsª]) Frag.7 col. I
[36] 4QGigantesª (4Q203 [4QGiantsª]) Frag.4
[37] 6QGigantes (6Q8 [6QGiants])
[38] [4QHenoc c. (4Q204 [4QEn c.]), Col. VI (= 1 Henoc 13,6-14,16)]
[39] 4QGigantes c (4Q531 [4QGiants c.]) Frag.8
[40] [4QHenocª (4Q201 [4QEnª]), Col. I (= 1 Henoc 1,1-6)]
[41] Luther Link. O Diabo – A Máscara sem Rosto. Companhia das Letras. (Cf. Charlesworth, J.H. (org.). The Old Testament pseudepigrapha: Enoch. Trad. E. Isaac. Nova York, 1983; The apocripha and pseudepigrapha of the Old Testament in english. Trad. R.H. Charles. Oxford 1913, vol. II.)
[42] Luther Link. O Diabo – A Máscara sem Rosto. Companhia das Letras. 1995.
[43] Um dos mais extraordinários apologistas cristãos foi o grande polemista Tertuliano (155-220 d.C.) Como a maioria dos criativos primeiros padres, Tertuliano converteu-se na meia-idade. “Pode alguém ser mais douto, mais perspicaz do que Tertuliano?”, perguntou Jerônimo. Muitos termos “técnicos” cristãos usados hoje em latim foram cunhados por Tertuliano; pecado original, vitium originis, é um exemplo. Esse vigoroso líder da Igreja norte-africana juntou-se aos montanistas, um rígido grupo de ascetas que acreditava na revelação progressiva, ensinamento condenado pela Igreja.
[44] Luther Link. O Diabo – A Máscara sem Rosto. Companhia das Letras. 1995.
[45] Luther Link. O Diabo – A Máscara sem Rosto. Companhia das Letras. 1995.
[46] As anotações entre parênteses e colchetes são minhas.
[47] Serafim (Lat. Seraphim) significa “o abrasador” (de Saraf). Isaías é o primeiro a mencionar anjos com este nome: «Acima dele, em pé, estavam serafins, cada um com seis asas: Com duas cobriam a face (para não verem Deus diretamente), com duas cobriam os pés e com duas voavam. Estes clamavam uns para os outros e diziam: “Santo, santo, santo é Jeová dos Exércitos, a sua glória enche toda a terra...” Nisto, um dos serafins voou para junto de mim, trazendo na mão uma brasa que havia tirado, com uma tenaz, do altar. Com ela tocou-meos lábios, e disse: “Vê, isto tocou os teus lábios, a tua iniqüidade está removida, o teu pecado está perdoado”» (Isa. 6, 2-3; 6-8) — Dionísio, o Areopagita, forneceu essa significação de serafim: "A santa designação de serafins significa para quem sabe hebraico "os que queimam", quer dizer, os que se inflamam... O movimento perpétuo em torno dos segredos divinos, o calor, a profundidade, o ardor fervilhante de uma revolução constante que não conhece descanso ou declínio, o poder de elevar eficazmente à sua semelhança os seus inferiores, animando-os com o mesmo ardor, o mesmo fogo e o mesmo calor, o poder de purificar pelo raio e pelo fogo, a evidente e indestrutível aptidão para conservar idênticas tanto a sua própria luz quanto o seu poder de iluminação, a faculdade de rejeitar e abolir toda treva obscurecedora, tais são as propriedades dos serafins, dedutíveis do seu próprio nome" (PSEO, 206-207).
[48] O nome hebraico de querubim (kerubi) corresponde ao babilônico Karibu (seres de aparência híbrida humanos-animais destinados a velar à porta dos templos e dos palácios, como guardiães de tesouros)... No momento da construção da Arca da aliança, Jeová prescreveu a Moisés: «Farás dois querubins de ouro, de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório; faz-me um dos querubins numa extremidade e o outro na outra: Farás os querubins formando um só corpo com o propiciatório, nas duas extremidades. Os querubins terão as asas estendidas para cima e protegerão o propiciatório com suas asas, um voltado para o outro. As faces dos querubins estarão voltadas para o propiciatório. Porás o propiciatória em cima da arca; e dentro dela porás o Testemunho que te darei» (Êxodo 25, 18-21); No Templo de Salomão, querubins rodeiam a arca, em Ezequiel, eles puxam o carro de Deus; e são a montaria de Deus no Salmo 18: «Cavalgou um querubim e voou, planando sobre as asas do vento».
[49] Os tronos (lat. Throni) são o nome dado aos anjos da primeira hierarquia por Dionísio o Aeropagita: «Os nomes atribuídos às inteligências celestes significam suas respectivas aptidões de conceber a forma divina... Quanto ao nome de tronos muito sublimes e muito luminosos, este indica a ausência total neles de qualquer concessão aos bens inferiores, essa tendência contínua em direção às alturas que indica claramente que eles não são daqui de baixo, a sua indefectível aversão a toda baixeza, a tensão de todas as suas forças para se manterem com firmeza a constância junto Àquele que é, verdadeiramente, o Altíssimo, a sua capacidade de receber com total impassibilidade, longe de qualquer mácula material, todas as visitações da Tearquia, o privilégio que tem de servir de assento a Deus e o seu zelo vigilante em se abrirem aos dons divinos.» (207-208)
[50] Luther Link. O Diabo – A Máscara sem Rosto. Companhia das Letras. 1995.
[51] Robert Charroux. O Livro dos Segredos Traídos. Livraria Bertrand.
[52] Robert Charroux. O Livro dos Segredos Traídos. Livraria Bertrand.
[53] A palavra hebraica go∙’él, que tem sido aplicada ao vingador de sangue, é um particípio de ga∙’ál, que significa, “reivindicar”, “recuperar”, etc. Na lei dos hebreus, o termo aplicava-se ao parente masculino mais próximo, que tinha a obrigação de vingar o sangue daquele que fora morto. (Núm 35:19) O termo go∙’él designava também um parente com o direito de comprar de volta (ou remir). Vingar o sangue tinha por base o mandado a respeito da santidade do sangue e da vida humana, declarado a Noé, em que Deus disse: “Exigirei de volta vosso sangue das vossas almas... da mão de cada um que é seu irmão exigirei de volta a alma do homem. Quem derramar o sangue do homem, pelo homem será derramado o seu próprio sangue.” (Gên 9:5) O homicida deliberado devia ser morto pelo “vingador do sangue”, e não se devia aceitar nenhum resgate por tal assassinato (Núm 35:19-21, 31). É claro que falta aqui um dado importante: Abel apenas ofereceu uma ovelha como sacrifício, entretanto ele foi punido pelo irmão como se houvesse matado um humano, a não ser que “ovelha” seja uma metáfora indicando seu filho primogênito, como aparece no Êxodo: «19. Todo o que nascer macho que sair por primeiro do seio materno é meu: todo macho, todo primogênito das tuas ovelhas e do teu gado. 20. O jumento, porém, que sair por primeiro do seio materno, tu o resgatarás como um cordeiro; se não o resgatares, quebrar-lhe-ás a nuca. Resgatarás todos os primogênitos dos teus filhos. Não comparecerás diante de mim de mãos vazias.» (Êxodo 34: 19-20)
[54] Alberto Cousté. Biografia do Diabo. Editora Rosa dos Tempos

domingo, 16 de janeiro de 2011

Os aspirantes a Rei-Messias

O PODER DO REI-MESSIAS
NO IMPÉRIO ROMANO

Introdução

A presente reflexão quer ser uma contribuição ao estudo, sobretudo, do messias-rei em Israel, no contexto do império romano. Jesus será analisado no conjunto dos movimentos e lideranças messiânicas. Primeiro, procura-se conceituar a terminologia messias na história de Israel e povos circunvizinhos. Em seguida, é apresentado o contexto do império romano. Por fim, grupos religiosos, movimentos e lideranças messiânicas que atuaram no interior do império romano, são analisados detalhadamente. A conclusão parece inevitável: o sonho rei-messias continua vivo, alimentando a esperança de tempos melhores.

1 - O messias na história de Israel tem poder de rei, sacerdote e profeta

Hammasiah é o termo hebraico usado para designar o Messias, isto é, o “ungido”, aquele que, por ter recibo a unção com óleo, está revestido de poder divino. Mitologias extrabíblicas falam de um rei do início do mundo que voltaria no fim dos tempos. No entanto, não se pode afirmar com certeza que textos do Egito ou Mesopotâmia tratem de rei salvador escatológico. Os persas acreditavam que um salvador vira para purificar o mundo, destruir o mal e ressuscitar os mortos. Davi foi um rei justo, piedoso, iluminado por Deus e, por isso, vitorioso. Com ele Israel expandiu os seus territórios. Sua realeza devia permanecer para sempre, o que foi justificado pela promessa da perpetuação da dinastia davídica. O messias esperado devia ser um rei, descendente da casa de Davi. E essa foi a idéia predominante na época de Jesus.

Profetas

Isaías apresenta o messias na linha real davídica. Ficou famoso o texto: “Eis que uma jovem concebeu e dará à luz um filho e por-lhe-á o nome de Emanuel” (Is 7,14). Miquéias segue a reflexão da comunidade de Isaías e acrescenta: “Mas tu (Belém), Éfrata, embora a menor dos clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será o dominador de Israel. Suas origens são de tempos antigos, de dias imemoráveis... Ele se erguerá e apascentará o rebanho pela força de Javé, pela glória do nome de Deus” (Miq 5,1-3). Jeremias diz que o Messias será da casa de Davi (Jr 23,5; 33,15-27). Ezequiel fala de um Messias apocalíptico e escatológico que apascentará Judá e Israel, novamente unificados, e será príncipe para sempre (34,23; 17,22-24).

Salmos

Nos Salmos reais, Davi aparece como rei messias que vai concretizar as esperanças dos pobres. Ele o protótipo do Messias. A oração nos Salmos projeta o rei ideal: descendente de Davi (Sl 45); escolhido e ungido por Deus (Sl 2; Sl 45); representante de Deus (Sl 72); protegido de Deus (Sl 18); tem a função de governar e defender o povo (Sl 18; 72); a sua vitória nas guerras é mérito de Deus (Sl 18); é presença visível da santidade de Deus perante os súditos (Sl 101); sinal e penhor do reino que todos esperam (Sl 2; 72); rei e sacerdote (Sl 101); vencedor de guerras e do mal (Sl 2); seu aniversário e casamento são sagrados e fontes de fecundidade para todo o país e povo (Sl 45). Os Salmos rezam a esperança messiânica de modo a criar uma estrutura de oração baseada na teologia da corte, ou seja, a ideologia da corte vem justificada com o poder libertador e divino do rei. Cria-se com isso a ideologia da corte baseada no tripé: Trono: ordem sagrada da sociedade; Estado: instituição sagrada; Rei: encarnação sagrada da instituição e detentor dos poderes social, militar e econômico. A autoridade do rei, rezada nos salmos, dá a certeza ao povo que ele participa do governo de Deus. Os salmos reais justificam a ação do Estado. Eles não são, portanto, críticos ao poder dos reis. Quando rezam, pedem a proteção do reinado de Davi como garantia da permanência da monarquia. As festas reais funcionam como elementos legitimadores da ação do rei. Ao celebrar a vida do rei, celebra-se a presença de Deus. Desse modo, o culto passa a ser expressão da realeza de Deus e do poder divino dos reis. E a chegada do Messias é a garantia da realização plena do reino. O Sl 72 é um bom exemplo para podermos compreender a libertação dos pobres, sonhada e depositada na pessoa de um rei que tem uma plataforma de governo justo, benéfico, forte, salvador e abençoado por Deus. Na releitura do Sl 72, os cristãos identificaram Jesus como rei-messias, esperança dos pobres, aquele que está sentado à direita de Deus e que recebe o reino universal. Basta vermos alguns exemplos para entender a afirmação anterior. Lc 1,33: ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim. Mt 2,2: “onde está o rei dos judeus recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no seu surgir e viemos homenageá-lo”. Ap 15,4: “todas as nações virão se prostrar diante de ti, porque tuas justas sentenças foram promulgadas”. Fl 2, 10: “ao nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e no abismo, e toda boca proclame que Jesus, o messias, é Senhor” .

Exílio da Babilônia

Os exilados judeus na Babilônia, alimentaram a esperança em um messias, nascido no cativeiro da Babilônia ou depois dele, traria a salvação para o mundo, o que coincidia com pensamento persa a respeito do messias. Os exilados judeus alimentaram a esperança de um “Salvador da pátria”. Chegaram até mesmo a identificá-lo com Ciro, rei da Pérsia, que permitiu a volta do exílio.

Rabinismo

Os rabinos consideravam o messias como “rei ungido” e “filho de Davi”, agiria com poder para defender Israel e fazê-lo grande, submetendo-lhe todos os povos. Menahem (o ‘consolador’ em hebraico) é o nome citado pelos rabinos como o messias que nasceria em Belém durante uma noite em que Jerusalém estivesse sendo destruída (TJ Ber. 5 a). O messias seria da descendência de Ezequias (TB Sanh, 98b). O período que antecede a vinda do Messias seria marcado por “miséria material e moral”. Elias, acompanhado de Moisés, viriam dois anos antes para anunciar a sua chegada e ungi-lo (Midraxe Rabbot Ex 10,1; Targ Jon. Ex 12,42). O Messias virá como profeta. Ele será um segundo Moisés (Midraxe Qon 1,9; Midraxe Ruth 56). O “Servo de Javé” de Zc 12,10 e Sl 22 é visto pelos por alguns rabinos como Messias davídico e, por outros, como Messias “filho de José” ou “filho de Efraim”. Sendo o último um Messias de menor valor, o qual precederia o verdadeiro Messias. O monte das Oliveiras seria o lugar da manifestação do Messias (Targum de Jônatas e Talmud). Rabbi Akiba, a quem é devedor o judaísmo a sua continuidade no mundo pós-guerra de 70 E.C., reconheceu o líder revolucionário nacionalista Simão Bar Kokhba como o rei messias que Israel tanto esperava.

Apócrifos

No escritos apócrifos, o messias tem um caráter transcendental. Oráculos sibilinos 3,46-62 fala de um Messias que reinaria sobre o mundo todo, depois da submissão do Egito a Roma. Ele traria felicidade para Jerusalém. 4 Esdras apresenta o messias como leão de Judá que destrói, com a sua palavra, a águia, símbolo do império romano. Depois trazer a bênção para a terra nos seus 400 anos de reinado, o messias morre e um mundo novo e imperecível surge (11,37-12.1.31-34; 7,28). Testamento dos doze Patriarcas diz que de Judá nascerá um rebento, pelo qual o seu tronco recuperará a realeza, fará justiça para todos que invocam o Senhor. Outros textos apócrifos falam de um messias sacerdote e “filho de Levi” (Testamento de Levi 18,5 e de Judá 24). No apocalipse de Baruc o messias virá para a consumação dos tempos, passará pelas “dores do messias” e voltará uma segunda vez. Os mortos ressuscitarão para participar de um mundo novo.

Qumran

A comunidade de Qumran fala de dois messias, um ungido de Aarão e outro de Israel (1Qs 9,11; CDC 12,23ss;14,19;19,10s;20,1). O primeiro tem o poder sacerdotal e segundo, régio. O Messias sacerdotal tem primazia sobre o régio, embora o Messias tenha um papel político e guerreiro. O Messias virá para colocar um fim ao “tempo da impiedade” e vencerá Magog. Um profeta virá para anunciar a vinda do Messias.

A vasta utilização do termo Messias para designar o rei, o sumo sacerdote e sacerdotes judeus, bem como os patriarcas israelitas e o salvador prometido por Deus e esperado pelos judeus , deixa claro que o messianismo foi e é a esperança de um messias dotado de poderes divinos para trazer a salvação para toda a humanidade e o cosmo. Esperar o messias é um ato de fé, que alimentou e alimenta o povo judeu na sua caminhada com Deus. A vinda do messias é esperada num tempo futuro, escatológico, na pessoa de um messias rei, profeta e filho do homem. Deus, ao revelar a Torá no Sinai e feito uma aliança com Israel, deixou previsto uma intervenção futura sua na pessoa de um Messias, ao qual o povo obedeceria. E foi essa esperança que impulsionou o surgimento de várias lideranças messiânicas no período da dominação romana na Palestina do tempo de Jesus.

2 – Império romano: a opressão gera esperança messiânica

A dominação romana na Palestina deu seqüência à grega, iniciada por Alexandre Magno, homem de rara inteligência, que criou, nos poucos anos de seu reinado, um grande império. Ele morreu com apenas 33 anos de idade. Três de seus generais disputaram entre si o poder, o que resultou na divisão do império em três territórios políticos: África e Palestina, governada pelos Lágidas, Síria e Ásia Menor, pelos Selêucidas e Macedônia e Europa, pelos gregos. No entanto, a cultura grega se manteve. O governo lágida na Palestina entrou em decadência em 221. Antíoco III assumiu o poder na Síria em 225 e venceu os egípcios. Mais tarde, os judeus facilitaram o domínio sírio na Palestina. No entanto, quando Antíoco IV (175-164) reinava na Palestina, os romanos exigiram mais impostos dos sírios. Antioco IV saqueou os templos, proibiu a observância da Torá, dedicou o templo de Jerusalém ao deus grego Olimpus. Tudo isso provocou uma luta armada, desencadeada pela família de Matatias e continuada por Judas Macabeus. Daí o nome: “Revolta dos Macabeus”. Esse movimento libertário acabou vitorioso. Em 164 a.E.C., o culto a Javé foi restabelecido no templo. Como nos tempos áureos de Davi, a Terra prometida voltou a viver um período de independência. No entanto, a dinastia asmoneia, criada após vitória dos macabeus, não durou muito. Altas taxas de impostos, brigas internas, corrupção, dentre outros fatos, propiciaram a chegada, no ano 63 a.E.C, de um outro dominador na terra de Jesus, os romanos. A chegada deles foi um alívio para o povo sofrido e explorado na guerra civil iniciada no ano 104 a.E.C. Muitos camponeses tinham sido expulsos de suas terras. Os piedosos queriam observar a Torá, mas piratas estrangeiros haviam invadido o país. Roma logo percebeu que ocupar a Palestina seria ideal para fortalecer o oriente do império. E além disso, ela estaria criando uma nova fonte abastecimento agrário. Galiléia transformou em grande produtor agrícola. Os romanos exigiam ¼ da produção como imposto. Os judeus estavam isentos de impostos desde o ano 142 a.E.C.

Os romanos ocuparam a Palestina. Algumas décadas se passaram e o povo percebeu que eles não eram os salvadores da pátria. Em 57 E.C. explodiu na Palestina uma revolta popular contra Roma. Lideranças e grupos religiosos se organizaram nessa luta. A Galiléia, onde se concentravam a melhores terras, tornou-se um barril de pólvora. O sonho da retomada da dinastia davídica foi interrompido pela dominação, também cruel, dos romanos.

Jesus nasceu nesse contexto de revolta contra Roma. Sua pregação incluiu a resistência a Roma. Na parábola do semeador, Jesus denuncia: “tem gente sem terra”. Não teria sido Jesus um dos revoltosos? A sua pregação não teria sido também anti-romana? Os textos canônicos não foram remodelados para amenizar essas questões e defender o império romano? São questões que permanecem no rol das discussões.

2.1 – Situação político-econômica do império romano

O modo de produção no império romano era o tributário-escravagista. Havia escravos por toda parte. Dois terços da população de Corinto era formada por escravos, cerca de 400 mil pessoas. Por não conseguir pagar uma dívida, alguém poderia tornar-se escravo. Ademais, a corte romana obrigava a população a pagar impostos.

A sociedade romana estava organizada de forma piramidal:

No ápice, estavam os senhores da terra, os senadores, os homens livres e os cidadãos ricos.
No meio, se encontravam o exército, os governadores e os sacerdotes.
Na base, sustentando a situação econômica de dominação, se encontravam os agricultores, carpinteiros, pastores, escravos e mulheres.

No período anterior e posterior ao nascimento e vida pública de Jesus, destacaram-se a atuação de imperadores e governadores romanos, tais como:

• Herodes, o Grande. Chamado assim por sua astúcia e grandes obras. Ele acabou com a dinastia dos asmoneus e reinou como tetrarca da Judéia (37 a.E.C - 4 E.C). Foi o responsável pela perseguição aos inocentes, na época do nascimento de Jesus.

• Herodes Arquelau, filhos de Herodes, o grande. Reinou como etnarca (governador) da Judéia, Samaria e Iduméia (4 E.C - 6 E.C.). Cruel como o pai, foi deposto e exilado pelo imperador Augusto.

• Herodes Antipas, filho mais novo de Herodes, o grande. Foi tetrarca da Galiléia e Peréia (4 E.C- 39 E.C.). Mandou executar João Batista. Pretendia ser Imperador, mas antes foi exilado em Lyon pelo Imperador Galígula.

• Herodes Agripa (41-44 E.C.). Neto de Herodes, o Grande. Agraciado com os favores de Roma, teve um vasto território para reinar.

• Augusto (30 a.E.C - 14 E.C), foi o primeiro imperador do império romano. O seu nome era Otávio César. Augusto era um título honorífico, que significa “abençoado, sublime”. Jesus nasceu no seu governo.

• Tibério (14 – 37 E.C.). Filho adotivo e sucessor de Augusto, Tibério foi imperador na época da vida pública de Jesus.

• Pilatos, procurador romano na Palestina (26 E.C - 36 E.C), na época de Tibério. Criou inimizade com os samaritanos e judeus. Tem papel decisivo na crucifixão de Jesus. A literatura apócrifa alternativa mostra-o como cristão penitente. Uma tradição diz que ele morreu executado pelo imperador Nero e outra, que ele cometeu suicídio.

• Caio Calígula (37-41 E.C.).
• Cláudio (41-54 E.C.)
• Nero (54-68 E.C). Perseguiu as comunidades cristãs em Roma .
• Vespasiano (69 -79 E.C). Ainda como general, iniciou a guerra judaica.
• Domiciniano (79 - 96 E.C) Pregava a reencarnação de Nero.

O império romano e suas atrocidades com o povo judeu possibilitaram o surgimento de vários messias, dentre os quais encontramos Jesus. E não foram poucas as lideranças populares que se apresentaram como tal. É o que veremos a seguir.

2.2 – Messianismo e profetismo, apoio e resistência ao império romano

O período que vai do governo de Herodes (37 a.E.C. a 4 E.C.) ao início do segundo século da nossa era é marcado por movimentos, grupos políticos de inspiração messiânica ou profética que resistem ao império romano. Houve também grupos pró Roma, nos quais o messianismo é menos evidente. O projeto político-religioso desses movimentos e sua ralação com o messianismo no império romano é que veremos a seguir. Vamos considerar no nosso estudo não somente os movimentos messiânicos de libertação da Palestina em prol de novo reino davídico, mas também os grupos religiosos tradicionais, como saduceus, fariseus, etc., os quais também conviviam a situação de dominação romana.

1) SADUCEUS

a) Origem

A origem dos saduceus remonta a Sadoc, chefe dos sacerdotes de Jerusalém, no tempo de Davi (1010-970 a.E.C.) e Salomão. Saduceus deriva de Saddiq, justiça. Como partido, os saduceus aparecem com mais força quando o asmoneu Jônatas (163 a.E.C.) uniu os poderes religioso e político, declarando-se sumo sacerdote e passando a ter o controle do templo e do sacerdócio.

b) Membros

Faziam parte do grupo dos saduceus, a elite sacerdotal de Jerusalém, os proprietários de terras, os anciãos (burocratas) e os ricos em geral.

c) Projeto e messianismo

Apoiar o império romano, com o qual deve-se procurar viver em harmonia, evitando conflito com o povo. Não acreditar na ressurreição e nem esperar pelo messias. Não valorizar a tradição oral judaica (tradição dos antepassados). O que vale é Lei e não a sua interpretação. O sacerdote deve pautar a sua vida segundo a Lei de Moisés, sentir defensor da ortodoxia judaica e ser rigoroso na liturgia.

d) Área de influência

Os saduceus formavam um grupo poderoso na condução do Sinédrio. Em questões litúrgicas tinham a palavra final. O poder religioso fazia com eles se mantivessem longe do povo.

2) HERODIANOS

a) Origem

Entre os estudiosos, a opinião se divide em torno à origem dos herodianos. Uns dizem que eles eram cortesãos de Herodes Antipas. Alguns Santos Padres falam de um grupo que consideravam Herodes Magno (4 a.E.C - 39 E.C.) como Messias. Seriam esses os herodianos?Herodes Magno.

b) Membros

Funcionários e soldados da corte herodiana, proprietários de terra e “grandes” comerciantes.

c) Projeto e messianismo

Defender o império romano na pessoa de Herodes Antipas (ou Magno?). Os herodianos eram chamados de “os amigos de Roma”. Como os Saduceus, não acreditavam na ressurreição e nem se preocupavam com a libertação de Israel.
d) Área de influência
Os herodianos tinham o poder civil na Galiléia e não eram populares.

3) FARISEUS

a) Origem

Os fariseus nasceram no período do governo asmoneu de João Hircano (135-104 a.E.C.).

b) Membros

O grupo dos fariseus era composto por doutores leigos, mas também faziam parte do partido, os escribas, sacerdotes do terceiro escalão, pequenos comerciantes e artesãos.

c) Projeto e messianismo

Fortalecer a Torá oral, a tradição. Negar o monopólio dos sacerdotes na interpretação da Torá. Combater a política profana dos sacerdotes-príncipes hasmoneus. Interpretar de forma popular a Torá para o povo. Fariseu significa “separado” dos impuros, portanto, eles pretendiam fazer de Israel um povo santo, isto é, puro, na observância radical da Lei. Esperar do Messias, filho de Davi, não subordinado ao filho de Aarão. Ele viria para restaurar o poder político e levar Israel ao cumprimento da Torá. O Messias chegaria no momento definido por Deus. Até que isso acontecesse, o povo devia se preparar, não seguindo o caminho indicado pelos asmoneus. Em relação ao império romano, os fariseus faziam uma aparente oposição, embora acreditasse na libertação do domínio dos estrangeiros. Os fariseus também acreditavam na ressurreição dos mortos.

d) Área de influência

Com pouca influência no campo da política, os fariseus, por outro lado, controlavam as sinagogas, lugares de estudo, oração e reunião do povo. Durante o período de Alexandra no poder asmoneu, os fariseus ocuparam cargos políticos importantes. Por serem fieis observadores da Lei mosaica, os fariseus eram respeitados e amados pelo povo. No entanto, foi esse mesmo rigorismo que os distanciou das classes populares, fazendo com que eles não percebessem as necessidades e sofrimentos do povo diante do império romano. Os pobres não eram capazes de seguir o rigorismo proposto por eles e, por isso, foram deixados de lado.

O famoso texto de Mt 24 que coloca negativamente os fariseus, parece não ter sua origem na fala de Jesus, mas em brigas posteriores entre judeus e cristãos. Jesus tinha amigos fariseus.

Com a guerra judaica (67-70 E.C.), o farisaísmo foi o único grupo judaico que permaneceu.

4) ZELOTAS

a) Origem

Os Zelotas têm origem no grupo dos fariseus e macabeus. A facção político-religiosa que leva esse nome se organizou como entre 66-70 da E. C. e atuou em Jerusalém.

b) Membros

Revolucionários e zelosos pelos dos costumes judaicos. É discutível se Simão, um dos seguidores de Jesus, era zelota. A terminologia zelota, na época de Jesus, tinha somente a conotação religiosa.

c) Projeto e messianismo

Zelo pelas coisas de Deus, daí o nome zelota. Combater o sacrifício em prol do imperador que era feito no templo de Jerusalém, o que configurou em uma afronta ao império romano. O messianismo dos zelotas pode ser visto no modo como eles agiam para purificar o país da ação dos pagãos romanos. Essa atitude zelota garantiria a vinda o messias. Nesse sentido, o grupo configurado como Zelota agiu na época da guerra judaica como verdadeiros revolucionários. O messias para eles era um guerrilheiro.

d) Área de influência

Os seguidores de Judas Galileu e João de Giscala receberam influência ou influenciaram os Zelotas. Lideranças messiânicas de inspiração zelota surgiram no período da guerra judaica.

5) ESSÊNIOS

a) Origem

A briga com o sacerdócio de Jerusalém, no que se refere à interpretação de textos bíblicos sobre a pureza cultual no templo, tempo das festas religiosas, resultou na criação desse grupo religioso, fundado por um tal “Mestre da Justiça”, sacerdote iluminado por Deus. Eles foram viver no deserto, em Qumran, perto do mar morto. A atuação dos essênios foi forte marcante na época de Jesus. No entanto, podemos falar também um outro tipo de essênios, diferente do ramo de Qumran, que teve sua origem por volta do ano 200 a.E.C., em meio ao movimento apocalíptico .

b) Membros

Levitas, sacerdotes dissidentes e leigos.

c) Projeto e messianismo

Levar uma vida monástica austera e separada, preparando-se para a consumação dos tempos, a luta entre o bem e o mal. Considerar-se povo da Nova Aliança. Interpretar de modo próprio a Lei. Ter o seu próprio calendário litúrgico. Praticar a purificação, conversão dos pecados, oração matinal ao sol, observar o Sábado. Não freqüentar os cultos em Jerusalém e nem sacrificar animais. Todas essas práticas apressariam a vinda do Messias. Eles acreditavam em dois Messias, um sacerdotal e outro davídico, subordinado ao primeiro .

Segundo Flávio Josefo , eles tinham uma visão fatalista da providência, e pregavam, sobre a alma, uma doutrina alheia ao judaísmo. Além disso possuíam uma doutrina secreta, reservada aos iniciados.

d) Área de influência

Viviam separados do povo, mas eram respeitados como monges ascéticos. Os essênios se uniram aos outros grupos judeus na luta contra Roma (67-70 E.C.).

6) JUDAS GALILEU

a) Época

Líder de um grupo revolucionário e originário de Gâmala, na Gaulanítide, Judas Galileu conseguiu iniciar uma revolução popular contra Roma, nos anos 4 a.E.C. e 6 E.C., a qual foi retomada nos anos da guerra judaica e resistiu até o ano 73 da E.C. O movimento de Judas teve sua inspiração em uma outra liderança popular que o antecedeu na luta contra Roma, o seu pai Ezequias, assassinado por Herodes.

b) Membros

Lideranças populares rebeldes.

c) Projeto e messianismo

Insurreição política contra Roma, visto que o povo estava caminhando para uma submissão total ao império. Como atesta Flávio Josefo, Judas pregava que eles, os judeus, não podiam aceitar mortais como mestres, depois de ter Deus como Senhor (Ant. XVII, 271-2). Lutar contra a decisão romana de fazer um o senso demográfico, o que era proibido pela lei judaica. Reagir contra as altas taxas do impostas pelo império romano. Garantir a terra como dom e promessa de Deus. Pagar impostos da terra significava perder esse direito sagrado. Nesse sentido, é que podemos falar de messianismo no projeto de Judas Galileu. Ele resgata o ideal messiânico davídico. Deus seria o único rei do povo de Israel.

d) Área de influência

Judas Galileu era muito respeitado no meio do povo. Os camponeses da Galiléia aderiram em massa a sua proposta. Os romanos conseguiram destruir o movimento de Judas, mas ele renasceu mais tarde no grupo dos Zelotas.

7) ATRONGES

a) Ëpoca

Camponês de notória estatura e força, Atronges liderou o movimento nacionalista contra Roma, no período do reinado a Arquelau, propriamente nos anos 4 a.E.C. a 6 E.C. Astronges tinha quatro irmãos, os quais, sob sua liderança, dirigiam grupos rebeldes.

b) Membros

Rebeldes armados, camponeses e pastores.

c) Projeto e messianismo

Retomar o reino de Israel. Matar as milícias romanas. Atronges chegou a ser designado rei e, portanto, usava um diadema real, o que configura o seu movimento como o messiânico, isto é, esperança de um rei-messias (ungido) que libertaria Israel do domínio romano.

d) Área de influência

O povo, com Atronges, viu fortalecida a esperança escatológica de um rei que restauraria Israel. O diadema usado por ele simbolizava a resistência aos romanos. Arquelau perseguiu Atronges e pôs fim ao seu movimento.

8) JOÀO BATISTA

a) Época

O movimento batista surgiu por volta do ano 20 E.C., no deserto da Judéia e à beira do rio Jordão. João Batista era filho do sacerdote Zacarias.

b) Membros

Populares que se empolgavam com a sua pregação.

c) Projeto e messianismo

Anunciar o batismo e a conversão dos pecados para obter o perdão. O batismo na água colocava as pessoas em relação direta com Deus. Não eram mais necessárias as práticas rituais do templo de Jerusalém. Assim, os batistas se tornaram perigosos para ordem judaica estabelecida a partir do templo, bem como para o império romano. João conclamava o povo a ir ao deserto, o que, simbolicamente retomava a figura de Moisés e o êxodo. E do deserto, de novo, o povo entraria na terra da promessa. Para tanto, era necessária a preparação prévia com o batismo na água e de conversão dos pecados. Os evangelhos sinóticos apresentam a pregação escatológica de João sobre o juízo e a vinda do reino de Deus e do messias.

d) Área de influência

Povo simples que não tinha como oferecer sacrifícios no templo de Jerusalém. Herodes Antipas, prevendo uma rebelião de João contra Roma, mandou decapitá-lo.

9) JESUS

a) Época

A vida pública de Jesus durou apenas três anos, entre 30 a 33 da Era Comum.

b) Membros

Pescadores, mulheres, doentes. Povo pobre, mais também gente influente na sociedade, como os fariseus e publicanos.

c) Projeto e messianismo

Por meio de uma pregação objetiva e popular, contando parábolas e fazendo denúncias, Jesus tinha como projeto despertar a consciência do povo em relação à opressão romana. Anunciando o Reino de Deus, ele priorizava o contato com o povo nas suas casas. Não são poucas as passagens dos evangelhos que falam de Jesus na casa de Zaqueu, de Marta e Maria, de Pedro, de um Fariseu, dos discípulos de Emaús, etc. No seu projeto missionário, a cruz não foi prevista, mas acabou sendo conseqüência de sua atuação missionária. A história conservou a memória da cruz vazia como anuncio de certeza de que Jesus continua vivo, ele ressuscitou, o que configurava como afronta e negação do império romano, o qual não foi capaz de impedir a eficácia da pregação missionária de Jesus. O nascimento de Jesus em Belém, terra de Davi, atestado nos evangelhos, mesmo que seja somente um dado de fé, provou que ele era o messias esperado pelos profetas.

d) Área de influência

Multidões seguiram os ensinamentos de Jesus. Jerusalém o acolheu como messias. O império romano, tendo percebido a força de sua atuação político-revolucionária, mandou crucificá-lo e iniciou um processo de perseguição aos seus seguidores. Três séculos depois, o império romano acabou assimilando o cristianismo no “seu projeto”. A romanização do cristianismo possibilitou a sua expansão no mundo ocidental. Hoje, um terço da população é cristã.

10) TEÚDAS

a) Época

Teúdas surgiu no cenário político revolucionário da Palestina por volta do ano 44 da Era Comum.

b) Membros

Pessoas simples do povo. At 5,36 fala de 400 homens que o seguiram.

c) Projeto messiânico

O povo devia ajuntar seus pertences e acompanhar Teúdas até o rio Jordão, onde se cumpriria a sua proposta profética escatológica, de inspiração messiânica. O historiador Flávio Josefo assim escreve sobre Teúdas: “Ele se dizia profeta, e que à sua ordem o ri o Jordão se separaria em dois abrindo fácil passagem para eles, de modo que o povo aí reunido poderia cruzá-lo a pé enxuto” . Esse gesto proposto por Téudas relembra a mesma atitude em relação às águas realizadas pelos profetas Moisés e Elias. A abertura do rio Jordão simbolizava o desejo de retomada da Palestina como terra da promessa. Teúdas seria o líder messiânico que levaria o povo a um novo tempo. Ele mesmo teria se proclamado como messias ou profeta . Ademais, entre o povo circulava a idéia da volta de Moisés como precursor da figura do messias . E Teúdas seria o “novo Moisés”.

d) Área de influência

Os judeus, que sofriam com a exploração político-econômico de Roma, aderiram ao projeto de Teúdas. Por outro lado, o império romano logo também intuiu o perigo que Teúdas representava para ele. Assim, Fado mandou uma cavalaria que perseguiu, matou a muitos, e dispersou o movimento. Teúdas foi preso e levado decapitado a Jerusalém.

11) O EGÍPICIO

a) Época

Nunca saberemos o nome desse egípcio que nos anos 52-54 E.C. organizou uma revolta contra Roma.

b) Membros

O historiador Josefo fala que cerca de trinta mil pessoas seguiram o Egípcio. Já Atos dos Apóstolos mencionam quatro mil ‘bandidos’ (Sicários?) adeptos.

c) Projeto e messianismo

Com voz profética e escatológica, o Egípcio convocou os seus seguidores a passarem pelo deserto e ir até o monte das Oliveiras, onde sob suas ordens os muros de Jerusalém cairiam e a cidade seria tomada por eles. Inspirado nas figuras históricas de Moisés e Josué (deserto e tomada de Jericó), o movimento do Egípcio acreditava numa redenção messiânica de Israel. A entrada (tomada) de Jerusalém teria uma conotação messiânica. Entre o povo havia a idéia que o messias se revelaria no monte das Oliveiras.

d) Área de influência

Roma, no comando de Félix, conseguiu atacar o Egípcio e seus seguidores, matando a uns, prendendo outros. O egípcio conseguiu fugir. O povo e até mesmo os romanos acreditavam que ele voltaria (At 21,38).

12) SIMÀO BAR GIORA

e) Época

Natural de Gerasa, zona rural da Iduméia, pastor e líder carismático, Simão bar Giora iniciou um movimento revolucionário contra Roma, no ano 66 da Era Comum.

f) Membros

Populares revoltosos, pessoas influentes da sociedade, escravos e salteadores.

d) Projeto e messianismo

Justiça para os pobres. Organizar uma revolta popular em vista da libertação da Palestina do poderio romano. Josefo informa, com desdenho, que Simão bar Giora saqueava as casas dos ricos, maltratava as pessoas (Guerras II, 652-3). Nas cavernas e depositava tesouros e pilhagens de guerra. Seus seguidores o consideravam rei (Guerras IV, 507-13). O movimento de Simão bar Giora esperava um libertador da casa real de Davi que viria para libertar o povo da dominação estrangeira, libertar os escravos e melhorar as condições de vida da população. Como Davi, Simão também era um simples pastor.

e) Área de influência

Os camponeses miseráveis e a população de Jerusalém aderiram ao movimento de Simão, por acreditarem que a independência nacional teria chegado. Quando entrou em Jerusalém, na páscoa de 69 E.C., ele foi aclamado pelo povo como rei-messias. Ele esteve unido na luta de libertação ao movimento de João de Giscala e Zelotas. Capturado pelos romanos, em 70 E.C., Simão foi levado para a Roma como trunfo de vitória e morto pelo General Tito.

13) JOÃO DE GISCALA

a) Época

João de Giscala, filho de Levi, atuou na Galiléia nos anos 66 a 70 da E.C., época da guerra judaica contra Roma. João de Giscala era um pobre camponês que ‘usava uma foice para ceifar’, mas que se tornou, mais tarde, um revolucionário. Na sua época, a situação de revolta popular contra Roma tinha tomado proporções sem precedentes. No início de seu movimento, João de Giscala defendia um acordo pacífico com os romanos.

b) Membros

Habitantes da cidade de Giscala e agricultores.

c) Projeto e messianismo

Resistir contra os altos tributos impostos por Roma aos camponeses. Luta armada contra as milícias romanas instaladas na Galiléia. Josefo conta que “no momento da entrada de João de Giscala em Jerusalém, toda a população se lançou à sua frente e cada um dos fugitivos estava cercado por uma vasta multidão” (Guerra Judaica IV,121). Esse fato demonstra o caráter messiânico dado pelo povo de Jerusalém a João de Giscala, quem acabou liderando a guerra contra Roma. Um futuro promissor de redenção de Israel estava próximo.

d) Área de influência

A atuação de João de Giscala despertou no povo o ideal messiânico, adormecido no inconsciente coletivo . A sua presença em Jerusalém uniu as forças populares messiânicas contra Roma. O historiador Rapapport admite que o movimento de João recebeu influência dos Zelotas . Para liderar a revolução contra Roma, João de Giscala fez aliança com outros grupos revolucionários.

14) MENAHEM

a) Época

Filho de Judas Galileu, Menahem, nome que significa ‘o Consolador’, catalisava esperança messiânica judaica. Segundo a crença judaica, Menahem designava simbolicamente a esperança de um messias da linhagem de Davi que deveria nascer em Belém. Menahem atuou como líder revolucionário, nos anos da Guerra Judaica (66-70 E.C.).

b) Membros

Guerrilheiros e campesinos.

c) Projeto e messianismo

Revolução armada, de inspiração messiânica, contra Roma. Um futuro triunfante para a Palestina estava próximo. Para expressar o seu projeto de realeza, Menahem entrou na esplanada do templo trajando uma túnica real. Organizou sua entrada messiânica em Jerusalém, como rei de Israel (Guerras II, 434). Os ideais monárquicos de Menahem eram inspirados no seu pai Judas Galileu, Ezequias e Davi.

d) Área de influência

Menahem conseguiu mobilizar as massas para atacar o palácio de Herodes, em Masada, e organizou o cerco do palácio, em Jerusalém. Mehahem era um dos lideres dos ‘sicários’. Muitos do povo viram em Menahem o esperado ‘redentor’ da Palestina, embora a sua luta não obteve o esperado sucesso. Menahem foi assassinado, quando disputava com Eleazar ben Hananiah a liderança dos revoltosos de Jerusalém.

15) JÔNATAS

a) Época

Tecelão e comerciante, Jônatas atou na região de Cirene, onde havia se estabelecido, quando Vespasiano era o imperador romano (69-79 E.C.)

b) Membros

Pobres da região de Cirene.

c) Projeto e messianismo

Jônatas convocava o povo para ao deserto, onde ele realizaria sinais e prodígios. Um novo êxodo aconteceria com eles. O deserto era associado à expectativa profética messiânica.

d) Área de influência

Roma conseguiu minar o movimento de Jônatas, prendendo-o em 72 E.C.

16) ANDREAS LUKAS

a) Época

Judeu da diáspora, de Cirene, Andreas Lukas organizou os judeus da diáspora para lutar contra Roma, nos anos 114-117 E.C., quando Trajano era o imperador romano.

b) Membros

Judeus da diáspora.

c) Projeto e messianismo

Luta armada contra Roma. Fortalecer o ideal messiânico dos judeus da diáspora, levando-os a crer que seria possível retornar à pátria, reconquistando Jerusalém das mãos dos pa’gàso romanos. Implantar o reino do messias com uma grande guerra escatológica.
d) Área de influência

Andreas Lukuas liderou a guerra dos judeus contra Roma no Egito, em Chipre e Pentápolis. Multidões o seguiam nos campos de batalha. Roma, com muito custo, destruiu o movimento nacionalista messiânico de Andreas Lukuas.

17) SIMÀO BAR KOCKHBA

a) Época

Ultimo líder judeu de ideal messiânico na resistência contra Roma, Simão bar Kokhba liderou, nos 132-135 E.C., a segunda grande guerra judaica, quando Adriano era o imperador romano.

b) Membros

Populares e camponeses desejos de retomar o anseio de libertação nacional, destruído pelos romanos na rebelião de 114-117 liderada por Andreas Lukuas.

c) Projeto e messianismo

Redenção de Israel através de uma luta armada de caráter escatológico-messiânico-revolucionária. O nome Kokhab significa estrela,o que levava o povo a se recordar de Nm 24,17: “Uma estrela de Jacó se torna rei, um cetro se levanta , procedente de Israel”. O reino messiânico seria instalado definitivamente com a sua luta.

d) Área de influência

Bar Kokhoba gozava de muita popularidade na Judéia. Restos arqueológicos encontrados nas cavernas da Judéia trazem inscrições que intitulam Bar Kokhoba como “Presidente de Israel”. Simão Bar Kokhoba foi vencido pelos romanos e com ele terminou o ciclo de movimentos messiânicos de libertação nacional, que começara no tempo dos Macabeus (167 a.E.C.). Simão bar Kokhoba foi reconhecido como messias pelo sábio e notável Rabbi Akiba ben Yosef, o qual o abençoou com as palavras “Este é o rei messias” (TJ Ta’anit IV.8). Já um dos Padres da Igreja, Eusébio, chamou Bar Kokhoba de “bandido sanguinário que sob a força e impacto de seu nome, como se ele tivesse escravos com que lidar, exibiu-se como uma luz cintilante que desceu dos céus a fim de iluminar seus miseráveis” (Eusébio, História Ecclesiastica,IV, 6).

3 – Conclusão: o rei-messias resgata o nacionalismo e a esperança

A análise do perfil dos movimentos acima apresentados e de suas respectivas lideranças nos leva, inevitavelmente, a concluir o seguinte:

- Em perspectiva política, podemos classificar os movimentos acima apresentados em grupos favoráveis à ordem social estabelecida (judaica e romana) e os de oposição às injustiças cometidas pelo império romano.
- Os romanos trataram com desdenho e humilhação as lideranças messiânicas da Palestina. Simão de bar Giaro foi humilhado publicamente até à morte.

- O sentimento nacionalista do povo judeu e a reconquista da terra prometida funcionaram como gasolina na condução da maioria dos movimentos messiânicos.

- Muitos movimentos de resistência tinham, na origem, um caráter meramente social, mas ganharam, depois, a dimensão religiosa messiânica, própria do período intertestamentário.

- Muitos líderes revoltosos eram sicário ou zelota. O historiador Flávio Josefo enquadra no termo zelota todos os revolucionários.

- Se o império romano foi duramente criticado pelos messias e profetas, há de se considerar que Jerusalém, o templo e o povo judeu não ficaram imunes às denuncias dessas lideranças. Nesse sentido, notória é a figura de um camponês chamado Jesus, filho de Ananias, que passou sete anos andando pelas ruas de Jerusalém gritando sem cessar: “uma voz do leste, uma voz do oeste, uma voz dos quatro ventos, uma voz sobre Jerusalém e o templo, uma voz sobre o noivo e a noiva, uma voz sobre todo o povo” (Josefo, Bell 6,300-306). O procurador romano, Albino, após açoitá-lo, o considerou louco, libertando-o.

- A maioria dos movimentos messiânicos atuava fora do espaço sagrado do templo, o que lhes garantiam a condição de movimentos alternativos de resistência ao pensamento oficial judeu e ao império romano.

- O deserto, o rio Jordão e mar Vermelho fizeram parte do imaginário coletivo messiânico de libertação do povo. Assim, muitas lideranças convidaram o povo para ir ao deserto, passar a pé enxuto pelo rio Jordão para retomar a Palestina, a terra prometida ocupando pelos pagãos e opressores romanos. Com João Batista, por exemplo, quem se deixava batizar estava assumindo o compromisso de reconquistar a terra.

- Embora múltipla no entendimento do termo messias, a tradição da fé judaica se encarregou de definir que Jesus não foi o messias esperado por eles. Vários motivos concorrem para essa afirmação, dentre eles: o messias não podia ser Deus, pois Deus é UM; Ele nasceria de uma mulher e homem normais; Poria fim ao sofrimento e guerra no mundo; Faria com que o povo judeu voltasse a viver em paz, em Israel; O messias jamais morreria pregado numa cruz. Como Jesus não preencheu esses e outros critérios de identificação do messias, ele não o foi o salvador enviado por Deus.

- Mesmo que afirmemos que os judeus não aceitaram Jesus como messias, vale lembrar que a questão não é essa. Jesus é o messias porque os seus seguidores creram nele e difundiram a fé na messianeidade.

- A fé em Jesus-messias alimentou a esperança de muitos judeu-cristãos e não judeus que se aderiram aos ideais libertários de Jesus. E tudo isso foi possível porque Jesus se reconheceu como presença de Deus. Ademais, o ambiente da exploração romana foi propício para o surgimento de messias.

- Após a famosa guerra de 70, o ideal messiânico continuou no imaginário coletivo dos judeus da diáspora. Roma destruiu a pátria, mas não o sonho de libertação. Outros líderes messiânicos continuaram a surgir, mesmo na diáspora. Andreas Lukuas, nos anos 114-117, foi um deles. Mais tarde, entre 132-135, Simão bar Kokhba, na Palestina, ressuscitou o movimento de Andreas. Ele foi proclamado messias pelo Rabino Akibba e derrotado pelos romanos. Encerrando, assim, um ciclo do período messiânico de Israel, mas a esperança do rei-messias não morreu nas terras do povo da Bíblia.