sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

UFC (Unidade da Fé Cristã) Crossan X Craig


O Credo niceno afirma:

Cremos em um só Deus, Pai, Todo-Poderoso,

Criador do céu e da terra, de todas as coisas, visíveis e invisíveis.

Cremos em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus,

gerado do Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da luz,

verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado, não criado,

de uma só substância com o Pai.

Por ele todas as coisas foram feitas [...]

pelo poder do Espírito Santo se encarnou,

no seio da Virgem Maria,

e se fez homem.

Por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos;

padeceu a morte e foi sepultado.

Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia, conforme as Escrituras;

e subiu aos céus, onde está assentado à direita do Pai.

Como devemos entender esse credo que, em si, é uma tentativa de expressar o cerne da fé cristã — o “cristianismo puro e simples”, como disse C. S. Lewis?

O nascimento virginal e a encarnação (“se encarnou, no seio da Virgem Maria”), a crucificação de Jesus (“Por nós foi crucificado”) e a ressurreição física (“Ressuscitou dos mortos ao terceiro dia”) devem todos ser considerados fatos realmente his­tóricos, ocorridos no espaço-tempo? Ou são de algum modo mitológicos ou metafóricos, por expressarem verdades mais profundas e supra-históricas?

Em sua obra Metaphor of God incarnate [A metáfora do Deus encarnado], John Hick, filósofo da religião, recomenda a segunda abordagem. Somente tal visão faz sentido à luz da nova consciência global, o que deve despertar em nós uma consciência sensível a outras crenças e culturas. Desse modo, devemos falar de encarnação somente no sentido de que Jesus, em sua acessibilidade e receptividade à vontade de Deus, encarnou o amor divino por meio de seu próprio amor altruísta.

Em contrapartida, cristãos de todos os séculos consideram o nascimento virginal, a encarnação, a expiação e a ressurreição fatos reais e históricos. O Credo Niceno serviu de padrão para a igreja defi­nir aquilo em que o cristão deve crer. Rejeitar suas declarações, fun­damentais para o cristianismo, era chamar anátema sobre si mesmo, ser rotulado de herege. Essa era uma das conseqüências de eliminar da história a fé cristã. De fato, se as doutrinas do credo são mitos ou metáforas, então a fé cristã, crida há séculos, fica enfraquecida: “E, se Cristo não ressuscitou, a vossa fé é inútil e ainda estais nos vossos pecados” (1Co 15.17).

Até uma época relativamente recente, os cristãos acreditavam não haver separação entre o Jesus da história e o Cristo da fé. Era tido como certo que o segundo dependia do primeiro. Contudo, no decorrer dos últimos duzentos anos ou mais, cristãos tradicionais tiveram de contender com um suposto desencontro entre o Jesus da história e o Cristo da fé. A íntima ligação entre o Jesus da história e o Cristo da fé resume o tema principal deste livro, ideia que toma a forma de uma discussão entre teólogos conservadores e liberais — entre os proponentes da posição evangélica ortodoxa e os parti­cipantes do Jesus Seminar [Seminário Jesus] — sobre a identidade do verdadeiro Jesus. Embora eu me sinta à vontade com o primeiro grupo, estou convencido da necessidade de interação entre pontos de vista opostos ou diversos. Normalmente precisamos dos opo­nentes intelectuais para ser levados a pensar mais claramente sobre nossa própria posição — e para nos afastarmos das caricaturas ou dos estereótipos.

O Cristo da fé e o Jesus da história

Antes de entrarmos em questões específicas, convém fornecer um breve panorama histórico. No decorrer dos últimos duzentos anos, três personagens moldaram significativamente o debate que cerca a distinção entre o Jesus da história e o Cristo da fé: David Friedrich Strauss, Martin Kähler e Rudolf Bultmann. Strauss (1808-1874) foi o primeiro a fazer distinção entre teologia e história, entre o Cristo da fé e o Jesus da história.

Strauss tentou enfraquecer a com­preensão sobrenatural dos Evangelhos em sua obra Das Leben Jesu, kritisch bearbeitet, publicada originalmente em 1835 e mais tarde traduzida para o inglês pelo romancista George Eliot. A visão tradi­cional de Jesus como o Deus-homem dos milagres dos Evangelhos pertencia à categoria do mito. Esses mitos, embora expressassem ideias importantes, não deveriam ser considerados fatos históricos no espaço-tempo. Se possível, deveriam ser esmiuçados com o obje­tivo de adequadamente remontar o Jesus histórico. Strauss sustentava que, se admitirmos o ponto de vista mítico, “desaparecem”, então, em um só golpe, “as inúmeras discrepâncias e contradições cronológicas das histórias do Evangelho, incapazes de jamais ser harmoni­zadas de outra forma”.

Na visão de Strauss, os Evangelhos “apresentam verdades religiosas, não históricas”. Ainda que essas verdades religiosas possam ter relação com a história, não devem ser avaliadas como história formal. Ao usar o termo mito, Strauss quis dizer que os fatos registrados não haviam acontecido de verdade, mas representavam as crenças da igreja primitiva projetadas retroativamente.

Naturalmente, o pensamento de Strauss não surgiu do nada. O racionalismo iluminista e a tese de G. W. F. Hegel sobre a revelação gradual da história influen­ciaram seu pensamento de maneira significativa. Anteriormente, Hermann Samuel Reimarus (falecido em 1768) lançara a busca pelo Jesus histórico, argumentando que Jesus tentou estabelecer um reino messiânico terreno, mas morreu desiludido e aban­donado por Deus. Temos aqui os primórdios de uma distinção entre o Cristo dos Evangelhos e o Jesus da história. Com Strauss, porém, essa demarcação se tornaria bastante clara.

Ou seja, a origem das verda­des teológicas sobre Cristo não deve ser encontrada na história, mas na construção feita pela igreja primitiva dos mitos a ele relacionados. De acordo com Strauss, “essas narrativas, como todas as outras lendas, foram montadas por estágios, por meio de passos cujos rastros não podem mais ser seguidos; gradualmente adquiriram coerência e, após muito tempo, receberam forma fixa nos Evangelhos escritos”.

No período entre a formação da primeira comunidade cristã e a criação dos Evangelhos ocorreu a “transferência para Jesus das lendas messiânicas, quase todas já formadas”.8 Dessa forma, pouquíssimos mitos dos Evangelhos eram “inteiramente novos”. Foram o resultado de uma “onda de entusiasmo religioso” que compensava a “conhecida carência religiosa do período [i.e., a Palestina do primeiro século]”. Strauss concluiu que a causa de tal entusiasmo não deve necessariamente ser atribuída aos milagres do Evangelho.

Em Strauss, portanto, vemos um enorme abismo entre fé e histó­ria. Para ele, no fundo, o Jesus da história e o Cristo da fé nem mesmo remotamente correspondem um ao outro, como era tradicionalmente aceito. Por sinal, Strauss considerava sua visão de que a Bíblia contém mitos “diretamente oposta às convicções do crente cristão”.

Depois de Strauss, essa bifurcação da história e da fé foi levada adiante basicamente por Martin Kähler (1835-1912). Em 1896, Kähler escreveu um pequeno livro intitulado The so-called historical Jesus and the historic, biblical Christ [O chamado Jesus histórico e o Cristo bíblico e histórico], que teve influência significativa sobre a cristologia do século XX.

Alarmado com o subjetivismo de alguns teólogos do século xix (Friedrich Schleiermacher, Albrecht Ritschl e Wilhelm Hermann), Kähler procurou oferecer uma abordagem mais frutífera com o objetivo de preservar a fé.

Entendia ter duas tarefas: “1) cri­ticar e rejeitar os aspectos errôneos da forma [histórica] de abordar a vida de Jesus e 2) estabelecer a validade de uma abordagem alter­nativa. A segunda sendo a mais importante”. Kähler denunciou a busca pelo Jesus da história com todos os métodos histórico-críticos, por considerá-la mal concebida, uma vez que “oculta de nós o Cristo vivo”. Depender da pesquisa histórica para lançar os fundamentos de nossa fé “não fornecerá apoio verdadeiro”. Para Kähler, o Jesus histórico era simplesmente uma invenção dos críticos acadêmicos. Em vez disso, Kähler concentrou-se no Cristo da Bíblia. Kähler presumiu que “não temos fontes para uma biografia de Jesus de Nazaré que se equipare aos padrões da ciência histórica contemporânea”. Isso não é o mesmo que dizer que os Evangelhos sejam insatisfatórios para os propósitos da fé. Afinal de contas, os Evangelhos foram escritos como testemunhos ou confissões a partir da perspectiva da fé: “Os apóstolos já acreditavam em Cristo quando escreveram sobre ele; portanto, o testemunho deles já era uma forma de teologia dogmática”.

Para Kähler, o verdadeiro Cristo é o Cristo pregado. O Cristo dos credos cristãos não é de forma alguma o Jesus histórico da erudição crítica. A distinção de Kähler (embora não faça separação) entre o Jesus da história e o Cristo da fé permitiu que ele pensasse na fé cristã baseada neste e não naquele: a fé cristã se baseia não em quem Cristo foi, mas no que atualmente faz pelos crentes. O método histó­rico tem pouca importância para a fé; não pode fazer nada para estabe­lecer ou negar a fé. De certo modo, a tentativa intelectual de recuperar o Jesus histórico é uma violação da justificação pela graça por meio da fé. Envolver-se nessa empreitada é adicionar obras à graça! No entanto, uma vez que uma pessoa entenda por fé que Deus, por meio de Cristo, estendeu sua graça a mim (pro me), então — supostamente — Jesus não precisa estar tão firmemente enraizado na história.

O que exatamente Kähler se propôs realizar não é tão perceptí­vel. O que está claro, porém, é que ele contribuiu significativamente para a dicotomia entre o Cristo da fé e o Jesus da história — dicotomia que desde esse momento moldou os estudos e a teologia siste­mática do Novo Testamento.

O foco de Kähler no Cristo pregado precedeu a obra de Rudolf Bultmann (1884-1976). Assim como Kähler, Bultmann via na busca pelo Jesus histórico um ataque à doutrina de Paulo sobre a justificação pela fé. Para ele, se alguém buscasse nas averiguações ou probabilidades históricas a segurança para a fé, isso significaria o fracasso da própria fé. A fé genuína não precisa de reforço por parte da história. Por conseguinte, Bultmann não queria conhecer Cristo “segundo os padrões humanos” (2Co 5.16). Em vez disso, afirmava que tudo o que podemos saber sobre Jesus a partir da his­tória é que (daβ) ele existiu. Ninguém pode se aventurar além disso.

Paul Tillich, que foi aluno de Kähler, assim escreve no prefácio de The so-called historical Jesus: “Kähler era um pensador absolutamente sistemático que desenvolveu suas ideias sob influência do princípio dos Reformadores — ‘jus­tificação pela graça por meio da fé’ — sem repetir as formulações tradicionais da ortodoxia protestante”. Tillich acrescenta que Kähler procurou aplicar esse princípio da Reforma ao “posicionamento do homem moderno entre a fé e a dúvida”. Até mesmo quem duvida do que a Escritura ou os credos afirmam ainda pode ser “aceito por Deus” e pode “combinar a certeza da aceitação com a realidade até mesmo de uma dúvida radical”.

Conseqüentemente, os Evangelhos precisam ser “demitizados”, ou seja, o núcleo fundamental precisa ser extraído da casca obsoleta do sobrenaturalismo primitivo, que inclui os milagres e exorcismos. De­clarando que a cosmologia do Novo Testamento é essencialmente mítica em caráter e que os milagres dos Evangelhos são pré-científi­cos e primitivos, Bultmann fez sua famosa afirmação: “É impossível usar a luz elétrica, o telégrafo, submeter-nos às descobertas médicas e cirúrgicas da atualidade e, ao mesmo tempo, crer no mundo do Novo Testamento, cheio de demônios e espíritos. Podemos achar possível lidar com eles em nossa vida, mas esperar que outros o façam é tornar a fé cristã ininteligível e inaceitável para o mundo moderno”.

O evangelho (ou kerygma), sustentava Bultmann, está envolto em mito, o que não apresenta “uma imagem objetiva do mundo como ele é”.

Conseqüentemente, não devemos objetivar Deus com a linguagem; não devemos transformá-lo em objeto. No entanto, assim que removermos a casca — os mitos — que cercam o Jesus divinizado e miraculoso se chegará ao núcleo fundamental da mensagem cristã: Deus agiu de maneira redentora em Jesus, e nós, percebendo nossa condição desesperadora, somos salvos ao aceitar pela fé o dom da graça de Deus. Bultmann também tentou trazer um componente existencial à fé: deparamos com Cristo pessoal­mente, no presente, quando atendemos à pregação do evangelho; logo, entramos numa existência verdadeiramente humana.

Somente ao demitizar é que a pregação cristã pode tornar-se aceitável aos ouvidos modernos. A mensagem cristã deve elimi­nar toda referência a espíritos (malignos ou benignos), à historici­dade dos milagres do Novo Testamento e à doutrina da expiação de pecados com sangue. Essa erradicação também não pode ser seletiva: “A visão mítica do mundo deve ser aceita ou rejeitada por inteiro”. Não há meio-termo.

Por conseguinte, a pesquisa histórica não pode ajudar a funda­mentar ou reforçar nossa fé. Em vez disso, devemos abraçar a mensa­gem salvadora do evangelho sem referência a tal pesquisa. Bultmann declarou que “precisamos descobrir se o Novo Testamento oferece ao homem uma compreensão de si mesmo que o desafie a uma decisão existencial genuína”. Portanto, a genuína fé salvadora não depende de fatos históricos sobre Jesus de Nazaré.

Embora as motivações de Bultmann e Kähler para separar a fé em relação à história fossem distintas das de Strauss, o resultado foi o mesmo: todos eliminaram “a teologia e a fé do domínio pú­blico da investigação e do debate”.

Isso até que uma importante mudança de rumo aconteceu, quando, em 1953, Ernst Käsemann fez sua palestra sobre “o problema do Jesus histórico”. Ele declarou que, sem uma sólida ligação entre o Jesus da história e o Cristo da fé, o cristianismo desmoronaria em direção ao docetismo — a fé em uma quimera. Desde essa época, a maré virou nas pesquisas sobre a vida de Jesus: passou a haver uma crença cada vez maior entre os especialistas do Novo Testamento de que os Evangelhos oferecem informações históricas úteis e, de modo geral, confiáveis. O que ne­les lemos sobre Jesus encaixa-se muito bem com o que conhecemos sobre o ambiente do judaísmo da Palestina do primeiro século. Em decorrência da reaproximação do Jesus da história ao Cristo da fé, a pesquisa sobre a vida de Jesus afastou-se dos pressupostos teológico-filosóficos e encaminhou-se para uma orientação mais histórica.

Strauss buscou fazer uma separação entre história e mito e, desse modo, quis destruir a fé cristã, ao passo que Kähler e Bultmann queriam abrir espaço para a fé cristã autêntica, resgatando-a das preocupações históricas.

Surge então o Jesus Seminar. Objeto de muita atenção da mídia, ele indiscutivelmente reviveu a distinção entre o Jesus da história e o Cristo da fé. John Dominic Crossan, cofundador e ex-diretor do Jesus Seminar e participante deste volume, declara, por exemplo, em sua obra Jesus: a revolutionary biography que os Evangelhos, quando lidos comparativamente, contradizem uns aos outros; ou seja, ofere­cem diferentes interpretações de Jesus. Para resolver essa situação, Crossan tenta, com a utilização de “teoria e método” corretos, apre­sentar um retrato imparcial de Jesus que não seja encoberto pelas interpretações que os credos fornecem sobre ele.

Outros participantes do Jesus Seminar têm argumentado que o Jesus histórico deve ser resgatado das camadas de incrustação teológica adicionadas por seus seguidores. Aquilo que os cristãos normalmente acreditam sobre Cristo está muito longe do Jesus da história. Marcus Borg, outro colaborador deste volume, escreve: “É simplesmente incrível a ideia de que o Filho unigênito tenha vindo a este planeta oferecer a vida em sacrifício pelos pecados do mundo, que Deus não poderia nos perdoar sem isso ter acontecido e que somos salvos ao crer nessa história”. Diga-se de passagem, pedir às pessoas que creiam nisso representa um obstáculo para que abracem a fé cristã. O destaque conferido a tais argumentos tem contribuído para voltar a atenção novamente à dicotomia entre história e fé.

O debate

Em outubro de 1994, Dick Staub, apresentador de um programa de rádio na região de Chicago, convidou Crossan para debater na Moody Memorial Church com o filósofo cristão de posicionamento evangélico ortodoxo William Lane Craig. Crossan e Craig decidiram qual abordagem seria a mais adequada para chegarem a um retrato preciso do Jesus histórico. O colunista e autor William F. Buckley Jr., cuja simpatia claramente pende mais para o lado de Craig que de Crossan (como fica evidente no debate), participou como moderador.

O debate, patrocinado pela Turner-Welninski & Associates, foi um animado intercâmbio entre perspectivas cristãs conservadoras e liberais sobre a identidade do verdadeiro Jesus. O título do debate, Will the real Jesus please stand up? [O verdadeiro Jesus pode, por favor, se pôr de pé?] teve como base o popular programa da televisão americana To tell the truth [Dizer a verdade]. Nesse programa, três pessoas, cada uma delas afirmando ser determinado indivíduo, eram questionadas por um grupo de celebridades. Então, com base nas respostas, os participantes escolhiam qual das três pessoas cada um considerava estar dizendo a verdade. O clímax acontecia quando o apresentador dizia com entonação dramática “O verdadeiro _____ pode, por favor, se pôr de pé?”, e o verdadeiro _____ se levantava. Este livro faz uma pergunta semelhante sobre Jesus: quem é o verdadeiro Jesus? O Jesus que os cristãos têm ado­rado através dos séculos é uma figura lendária ou mitológica sim­plesmente exagerada por seguidores bem-intencionados? Ou ele é “o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16)?

Dois defensores da posição evangélica ortodoxa e dois partici­pantes do Jesus Seminar foram convidados a oferecer uma resposta ao debate e, em particular, responder às seguintes perguntas:

1. Até que ponto podemos distinguir entre o Jesus da história e o Cristo da fé? Se essa é uma distinção legítima, quais linhas de demarcação devem ser usadas para substanciá-la?

2. O miraculoso (i.e., a intervenção divina sobrenatural) exerce, de algum modo, um papel legítimo na explicação dos dados históricos da primeira Páscoa?

O título do debate tornou-se também o título do livro em inglês.

3. Qual construção — a de Craig ou a de Crossan — melhor se encaixa nos fatos concernentes à ressurreição de Jesus? Da perspectiva do historiador, para qual lado pende a balança das probabilidades?

Além disso, todos os entrevistados levantaram questões signifi­cativas sobre a abordagem ou a metodologia correta na interpretação dos Evangelhos.

Falando com base em seu histórico católico e em suas intera­ções com partidários de outras religiões, Robert Miller, do Jesus Seminar, expressa suas dúvidas sobre a validade da apologética cristã, empreendimento no qual Craig regularmente se envolve. Ele apresenta o contra-exemplo da apologética muçulmana, que oferece a singularidade do Alcorão, a mensagem radical de Maomé e o notável crescimento do islã primitivo como provas de sua veraci­dade. Além disso, levanta questões sobre incongruências nas nar­rativas da ressurreição presentes nos Evangelhos e sobre a natureza apocalíptica de passagens como Mateus 27.51-53, dois pontos que colocam em questionamento a historicidade ou a natureza literal dos Evangelhos.

O ensaio de Craig Blomberg aborda indiretamente algumas das preocupações que Miller levanta, como, por exemplo, a confiabilidade geral dos Evangelhos e o papel da apologética cristã. Tam­bém argumenta que, ainda que a fé exija que caminhemos para além daquilo que a evidência histórica possa mostrar, não se trata de um salto absurdo: “A evidência histórica presta um grande serviço na direção de demonstrar nossa crença; por conseguinte, a fé necessária para preencher a lacuna restante é perfeitamente cabível”.

O terceiro participante, Marcus Borg, do Jesus Seminar, destaca que, embora Crossan e Craig confirmem a ressurreição, “cada um quer dizer algo diferente”. De acordo com Borg, metáforas como a história da Páscoa podem ser verdadeiras sem que se leve em conta o que aconteceu com o corpo de Jesus: “Se algo aconteceu ao corpo de Jesus, isso é irrelevante para a verdade da Páscoa”. O importante é que os seguidores de Jesus, tanto os do primeiro século como os de hoje, o experimentem como uma realidade viva após sua morte.

Os dois evangélicos ortodoxos foram incentivados a ler as respostas um do outro ao debate, o mesmo acontecendo com os dois membros do Jesus Seminar. O propósito era minimizar a superposição de conteúdo. Já Crossan e Craig não leram as reflexões finais um do outro antes da publicação do livro. O JESUS DOS EVANGELHOS: MITO OU REALIDADE?

O último participante é outro evangélico ortodoxo, Ben Witherington III. Ele dedica muita atenção a temas como a importância dos fatos históricos para a própria existência do cristianismo, a materialidade da ressurreição de Jesus e a importância teológica de sua ressurreição. Rejeitar a compreensão tradicional da ressurreição de Jesus a favor de uma compreensão metafórica é abraçar uma visão que Witherington chama de “ressurreição light”.

Depois de apresentar algumas explicações sobre seu debate com Craig, Crossan oferece uma breve reflexão final que esboça os pressupostos histórico-teológicos de ambos os lados do debate. Ele vê esses pressupostos como elemento crítico do debate e incen­tiva a existência de mais discussão entre os ramos conservador e liberal do cristianismo.

Além de defender a apologética cristã, a reflexão final de Craig defende uma cristologia indiscutível com base no consenso dos estu­diosos da atualidade. Ele destaca que o que fez no debate foi tomar quatro fatos bem estabelecidos sobre Jesus e depois inferir a melhor explicação: a ressurreição física de Jesus, que é um imprimátur divino da vida e do ministério de Jesus.

O que se espera é que o vigor e a franqueza deste debate, bem como as respostas, estimulem uma interação futura entre os dois gru­pos. Não há dúvida de que a maioria dos leitores desta obra estará ou no campo liberal, ou no conservador. É fácil fechar-se dentro de uma posição em particular, a ponto de não mais levar a sério os pontos de vista divergentes. Em seu tratado sobre o Espírito Santo, Basílio, o Grande, escreveu: “A verdade é sempre uma presa difícil e, portanto, devemos procurar suas pegadas em todo lugar”. Seja qual for o lado em que os leitores se encontrem, é minha oração que este livro ajude a esclarecer sua compreensão sobre quem é o verdadeiro Jesus — ainda que isso signifique colocar de lado certas ideias e pressupo­sições com o objetivo de buscar as pegadas da verdade.

Cumpre salientar que Crossan declinou da oportunidade de expandir sua reflexão final, que é consideravelmente menor que a de Craig, por considerar que a questão dos pressupostos histórico-teológicos era o aspecto mais importante a ser abordado no debate. Ele não acreditou que a discussão dos detalhes do debate seria frutífera.

SOBRE OS PARTICIPANTES William F. Buckley Jr. é colunista, fundador e editor da revista National Review, além de ser apresentador do programa televisivo de entrevistas chamado Firing Line. Obteve o grau de Bacharel em Humanidades com honra em Ciências Políticas, Economia e História na Universidade Yale. Buckley escreveu as obras God and man at Yale [Deus e o homem em Yale]; Right reason [Razão acertada]; Gratitude: reflections on what we owe to our country [Gratidão: reflexões sobre o que devemos a nosso país]; In search of anti-semitism [Em busca do antissemitismo] e Brothers no more [Nunca mais irmãos]. Reside na cidade de Nova York com a esposa, Patricia. William Lane Craig obteve o doutorado em Filosofia pela Univer­sidade de Birmingham, Inglaterra, e outro doutorado, em Teologia, pela Universidade de Munique, onde, como membro da Fundação Alexander von Humboldt, pesquisou amplamente a historicidade da ressurreição de Jesus. Craig tem atuado como professor visitante do Higher Institute of Philosophy na Universidade de Louvain, sen­do atualmente professor pesquisador da Talbot School of Theology. Escreveu mais de uma dezena de livros, dentre os quais Em guarda, Apologética para questões difíceis da vida, A veracidade da fé cristã, Filo­sofia e cosmovisão cristã (em coautoria com James P. Moreland) (todos publicados pela Vida Nova), Ensaios apologéticos (em coautoria com Moreland e Francis J. Beckwith, da Hagnos) e Assessing the New Testament evidence for the historicity of the resurrection of Jesus [Ava­liando as evidências neotestamentárias da historicidade da ressurreição de| O JESUS DOS EVANGELHOS: MITO OU REALIDADE? Jesus]. Vive em Marietta, na Geórgia (eua), com a esposa, Jan, seus dois filhos, Charity e John.John Dominic Crossan é um dos membros cofundadores do Jesus Seminar, além de ter sido um de seus diretores. É também presi­dente da Seção do Jesus Histórico da Sociedade de Literatura Bíbli­ca. Obteve doutorado em Teologia na Maynooth College, Irlanda. Seus estudos pós-doutorais concentraram-se na área de pesquisa bíblica do Instituto Bíblico Pontifício, em Roma, e em pesquisa arqueológica na École Biblique, em Jerusalém. Crossan tem lecio­nado em diversos seminários na região de Chicago e foi professor de Estudos Religiosos na Universidade DePaul por 26 anos. Es­creveu uma série de livros sobre o Jesus histórico — mais recen­temente, títulos de grande vendagem, como The historical Jesus: the life of a Mediterranean Jewish peasant [O Jesus histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo]; Who killed Jesus? Exposing the roots of anti-semitism in the gospel story of the death of Jesus [Quem matou Jesus? Desmascarando as raízes do antissemitismo no relato da morte de Jesus presente no evangelho] e Jesus, uma biografia revolucionária. Crossan e a esposa, Sarah, residem atualmente na Flórida.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

...O Início O Meio e O Fim...


...O Início o meio e o fim...

Dentro de cada um de nós há pelo menos uma vaga esperança de um mundo novo. Não importa se somos ignorantes ou letrados, pobres ou ricos, pagãos ou cristãos. O fenômeno é tão antigo quanto a mais antiga civilização. Até Karl Marx, que tentou destruir a religião, chamando-a de “o ópio do povo”, dizia que a história caminha para a remissão do homem de todas as injustiças, mazelas e desigualdades. Embora por vias totalmente opostas, o cristão também nutre essa visão escatológica, que termina com “novos céus e nova terra” (2 Pe 3.13).

Muito antes de Cristo, os chamados pagãos tinham uma coleção de mitos que anunciavam profundas mudanças escatológicas. Na mitologia romana, Anquises, aquele pastor de Tróia que se casou com a deusa Vênus, explicava ao filho Enéias: “A maioria das almas anseia, mais cedo ou mais tarde, pelo céu aberto, e vêm para beber o esquecimento e nascer outra vez”.

Segundo a mitologia escandinava, haverá primeiro uma catástrofe: “A terra será submergida pelo mar. O sol se tornará preto. As estrelas brilhantes cairão do céu. O próprio céu se queimará. A morte chegará aos deuses, aos gigantes, aos duendes e anões, aos homens e mulheres, aos filhos e filhas de Ask e Embla.” Mas, depois, “a terra se erguerá uma segunda vez, bela e verde. Balder e Hoder, filhos de Odin, voltarão a viver. Os rios se encherão de peixes e os campos de milho. E pelos campos da nova terra, admirados com o que foi e o que será, os filhos de Lif e Lifthrasil encontrarão na grama o tabuleiro de ouro onde os deuses jogavam seus jogos, e se lembrarão de Odin, o Mais Alto, o Pai de Tudo, e de seus filhos em sua glória, nos palácios dourados de Asgard.”

E na mitologia iraniana, “quando o tempo se aproximar do fim, Saoshyant, o sábio, virá para preparar o mundo para ser renovado e ajudar Ahura Mazda, aquele que sabe, a destruir o cruel Ahriman. Então o tempo chegará ao fim e haverá um novo começo para o mundo. Saoshyant levantará os mortos, Ahura Mazda unirá corpo e alma. O novo mundo será imortal. Aqueles que viveram até a idade adulta, serão trazidos de volta na idade de 40 anos; aqueles que morreram crianças serão trazidos com a idade de 15 anos; todos viverão felizes com suas famílias e amigos.”
Ontem, os indígenas brasileiros alimentavam a esperança de “uma terra sem males”. Hoje, os esotéricos alimentam a esperança de “uma era de ouro”, a era de Aquário, quando desaparecerão a fome global, a ameaça de guerra nuclear, a destruição do meio ambiente, a Aids, a criminalidade etc.

O animal não tem esperança, nem sabe o que é esperança. A esperança é um fantástico problema do ser humano, “o único animal que tem a curiosidade de querer saber de onde vem, para onde vai e o que é que é”. E, na vida, “só existe um homem perdido: aquele que perdeu a esperança”.
A revista Época em uma de suas edições fez a clássica pergunta “Para onde caminha a humanidade?” e obteve a seguinte resposta: “Para a utopia dos vales, onde corre o leite, o mel, ou para a barbárie, para a emancipação de todos os sentidos, ou para a destruição do homem pelo homem”. Mesmo que estejamos caminhando para “a destruição do homem pelo homem”, mesmo que experimentemos uma catástrofe mundial (de acordo com a mitologia escandinava), mesmo que o nosso planeta seja incendiado — “nós, porém, segundo a promessa de Deus, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita a justiça”. (2 Pe 3.13).

Na esperança cristã, a humanidade caminha para um mundo novo. Mas não será por meio da evolução, das reencarnações, das religiões, da globalização, da guerra, do terrorismo, do pacifismo, da falida ONU, do nirvana nem do esforço humano. Será por meio de uma intervenção direta de Deus, por ocasião da parúsia de Jesus Cristo.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução


Caros amigos e seguidores do blog: Em Busca do Jesus Histórico.
É com muito prazer que apresento a terceira obra da Editora Klíne: Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução, escrito pelos Profs. Drs. André Leonardo Chevitarese (UFRJ) e Pedro Paulo A. Funari (Unicamp).
embuscadojesushistorico@mls.com.br
Este livro procura mostrar como Jesus de Nazaré, o homem que viveu há dois mil anos, um personagem histórico, pode ser estudado e conhecido. Não se busca, aqui, abranger o cristianismo, a religião que se originou, de alguma forma, do homem de Nazaré, a não ser na medida em que a confissão cristã influi na pesquisa sobre o Jesus Histórico. Nossa meta é mostrar o que se sabe e quais as discussões, por parte dos estudiosos, sobre a vida de Jesus.
Alguns temas abordados:
I. Introdução: Jesus, um Homem
II. Como Conhecer O Jesus Histórico
III. A Vida De Jesus
IV. A Busca Do Jesus Histórico
V. As Dúvidas sobre A Possibilidade de Conhecer o Jesus Histórico
VI. A Renovação No Interesse Pelo Jesus Histórico
VII. O Seminário de Jesus
VIII. Tendências Atuais
IX. Conclusão: O Jesus Histórico e o Cristo Da Fé
Cronologia
Referências
Bibliografia



quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

A arte do oculto no Sagrado

Homens, de todas as épocas, com os seus conhecimentos proporcionais à capacidade de entendimento, conseguiram materializar artes fenomenais, causando inveja a muitos que freqüentam escola de Belas Artes. Mas, o mais extraordinário deste simbolismo é a realidade, nua e crua realidade que os nossos contemporâneos tentam demovê-la e denegri-la. Eis uma grande contribuição que reforça os fatos de hoje, principalmente para àqueles que tiveram um átimo de contato, não importa de qual maneira, com as esferas brilhantes, as naves espaciais. Tudo isso reforça o pensamento, de que, estes seres sempre estiveram presente.

Pintura de 20 mil anos, investigada pelos irmãos Leyland. É a representação de um ser vestindo roupa com zíper e capacete, saindo de um objeto esférico pousado sobre um tripé. A figura foi descoberta na Austrália




Nas cavernas de Altamira, em Santillana dei mar, em Santander, Espanha, foram encontradas pinturas de 20 mil anos de idade, mostrando objetos voadores de formatos lenticulares e até discoidais.

Ilustração do livro Prodigiorum Líber Império Romano

O livro Prodigiorum Líber, do historiador romano Julio Obsequens fala de um estranho fenômeno celeste ocorrido em Roma. A ilustração abaixo é uma representação do ocorrido.




A Crucificação, (1350)

Este afresco encontrado no monastério Visoki Decani, em Kosovo, mostra a crucificação de Jesus Cristo. Na pintura pode-se notar a existência de objetos voadores. Dentro dos objetos voadores pode-se notar a existência de pessoas que mexem em algum tipo de controles.


Tapeçarias do século XIV

Estas tapeçarias do século XIV retratam vidas de Maria. Nota-se que no fundo da imagem existe um objeto suspenso no céu. Este objeto é idêntico aos OVNI`s atuais. Esta tapeçaria encontra-se na Basílica Francesa Notre Dame de Beaune, em Burgandy, França.

Pintura medieval retratando Moisés e os Dez Mandamentos. Note a existência de estranhos objetos no céu.

Pintura do séc. XV, autor desconhecido


A Anunciação (1486), de Antônio Crivelli

Crivelli não foi um dos maiores pintores do Renascimento. Suas obras sempre retrataram fatos religiosos. O quadro abaixo representa a Virgem Maria sendo iluminada pelo Espírito Santo. Note que o raio de luz parte de um objeto de formato discoidal suspenso no céu e passa pela Pomba (que representa o Espírito Santo). A ampliação ao lado mostra mais detalhadamente o objeto.


Glorificação da Eucaristia (1600), de Bonaventura Salimbeni

Salimbeni foi o autor deste afresco, que se encontra na Igreja San Lorenzo, em San Pietro. A obra foi finalizada em 1600. Note a semelhança entre o objeto esférico situado entre Deus (à direita) e Jesus Cristo (à esquerda) com o Sputnik (primeiro satélite artificial terrestre).

A Assunção da Virgem (+ ou - 1490) Autor desconhecido

Este quadro foi pintado por volta de 1490. Note a presença no céu de objetos de formato lenticular no céu.

O Batismo de Cristo (1710) Aert de Gelder

No Fitzwillian Museun, em Cambridge, Inglaterra, encontra-se este quadro representando o batismo de Jesus Cristo. Note o objeto discoidal emitindo um facho de luz sobre Jesus Cristo.


A Madonna e o Menino (séc. XV)

Esta pintura encontra-se no Palazzo Vecchio, em Florença, Itália. A autoria deste quadro é atribuída à Fillippo Lippi. Note o estranho objeto acima do ombro de Nossa Senhora.

Na ampliação pode-se notar que o objeto faz parte do contexto da tela. Observe a luminosidade representada pelo autor. Note também que uma pessoa observa o objeto cobrindo o rosto com as mãos, devido à luminosidade do mesmo. Ao lado da testemunha existe um cachorro em posição de alerta.


Autores e Datas desconhecidos
Medalha Francesa, produzida por volta de 1680 para comemorar um fenômeno celeste visto por muitas pessoas da época. Note o objeto discoidal próximo às nuvens.


sábado, 10 de dezembro de 2011

John Collins e a pluralidade textual nos tempos de Jesus


Singularidade dos Manuscritos de Qumran.

Os manuscritos de Qumran introduziram novos elementos nos estudos sobre o cristianismo antigo. Antes de sua descoberta o conhecimento do universo religioso da Judéia do século I era muito limitado. Tanto os evangelhos canônicos quanto os apócrifos, por exemplo, eram pouco esclarecedores. Seu principal objetivo era a reafirmação das mensagens de Jesus – tais como diferentes tradições as entendiam - e não uma reflexão sobre as forças e tendências conceituais que as envolviam. Outros textos que continham elementos memorialistas, como o Talmude, igualmente eram obscuros ou omissos, como anteriormente apontamos.

A obra de Flávio Josefo foi, nesse sentido, bastante esclarecedora. Através dela tomamos conhecimento pormenorizado da primeira guerra judaica (66-73). A guerra pôs fim a séculos de criatividade teológica e confusão política, o “período do segundo templo” (516 a.e.c.- 70). Josefo nos apresentou um relato básico dos movimentos religiosos da época. E assim alguns processos e eventos retratados no Novo Testamento puderam ser parcialmente compreendidos e explicados. Mas Josefo sempre foi fonte única, limitada e não detalhada, e sua convergência com outros fontes, como Philo, por exemplo, nem sempre entendida por satisfatória.

Existia, portanto, uma área de sombra documental, bastante compreensível, aliás. A primeira guerra judaica varreu da história toda uma civilização, com suas cidades e monumentos, seus líderes religiosos, escribas e grupos políticos. Eliminou populações inteiras e seus relatos e incendiou, certamente, muitas bibliotecas. No final do século XIX, no entanto, foram realizados dois achados documentais importantes. O Livro de Henoc, em sua versão etíope, que estava guardado num mosteiro da Etiópia, e o Documento de Damasco, encontrado na genizá de uma sinagoga no Cairo.

Henoc e o Documento de Damasco introduziram perturbações significativas no entendimento do cristianismo antigo. Eram textos consistentes que retratavam realidades até então desconhecidas. O primeiro era uma construção teológica afirmativa que podia ser vista ecoando na literatura cristã, às vezes de forma subjetiva, às vezes literal. O segundo revelava a existência de um grupo de judeus enigmáticos, cuja plataforma teológica não coincidia com nada conhecido até aquele momento. Mas esses achados, embora importantes, não foram particularmente elucidativos. Eram cópias medievais de textos certamente antigos, mas muito distantes de seus contextos originais e sem elos claros com eles.

A importância dos achados de Kirbet Qumran, portanto, foi imensa. Primeiro, foi percebido que eram documentos originais, vindos diretamente do período anterior à primeira guerra judaica. As datações paleográficas dos manuscritos foram consolidadas por Frank M. Cross.

Cross postulou, em função de outras evidências, a existência de três tipos de escrita na documentação. O mais antigo denominou de arcaico (c. 250-150 a.e.c.), o intermediário de hasmoneu (c. 150- 50 a.e.c.) e o mais recente de herodiano (c. 50 a.e.c. – 70 e.c.). Os testes de Carbono 14 foram mais precisos, e apontaram a existência de documentos em Qumran elaborados entre remotos c.388 -353 a.e.c. e o mais próximo 21 a.e.c-61 e.c. Tratavam-se, portanto, de textos oriundos exatamente do período dentro do qual Jesus atuou.

Em segundo lugar os manuscritos, na sua variedade e quantidade, em torno de 900 documentos, permitiram a gradual percepção de elos conceituais e teológicos entre tradições e linhagens textuais diversas. Até aquele momento em sua maioria desconhecida e que permitiram uma compreensão significativa da gênese e desenvolvimento dos textos bíblicos da tradição masorética, grega e samaritana.

Mas, no que nos interessa, apresentaram um mosaico não apenas da rica tradição apocalíptica judaica da época, mas também da pluralidade textual que imperava nos tempos de Jesus – principalmente no tocante à literatura bíblica. No primeiro caso reforçou as teorias que viam em alguns elementos do Novo Testamento traços marcantes de literatura apocalíptica, permitindo correlações documentais. No segundo introduziu novas reflexões sobre a natureza e realidade dos textos sagrados na época e sua real importância e dinâmica na gênese dos primeiros movimentos cristãos.

Quem e porque depositou esses textos nas encostas do mar morto foi matéria de discussão desde o princípio. A “hipótese essênia”, fundada pelos primeiros editores dos textos, entre eles o Padre Roland de Vaux, é a mais consensual entre os estudiosos. Foi consolidada nos estudos de Geza Vermes, Josef T. Milik e Frank M. Cross e identifica nos essênios citados por Josefo os antigos habitantes de Kirbet Qumran, igualmente responsáveis pela ocultação dos textos nas cavernas próximas. A “hipótese Groningen”, sustentada por Florentino Garcia Martinez, nega a identidade entre a comunidade de Qumran com os essênios, entendendo-a como fruto de uma ruptura doutrinária, mas afirma a responsabilidade do grupo pelo material das cavernas.

A “hipótese Jerusalém”, defendida principalmente por Norman Golb, sustenta, acompanhando algumas opiniões anteriores, que o material das cavernas não veio dos essênios e da comunidade de Qumran, mas da biblioteca do Templo de Jerusalém e de acervos particulares. De qualquer forma, todos concordam que os textos de Qumran comprovam a existência de um debate teológico intenso no período final do segundo templo. Cujos problemas e desenvolvimentos conceituais não são alheios à literatura neotestamentária.

Krister Stendhal, segundo James Vanderkam, chamou a atenção para o fato de que: “os manuscritos contribuem para o entendimento dos antecedentes do cristianismo, mas essa contribuição é tanta, que chegamos a um ponto onde o significado das semelhanças definitivamente resgata o cristianismo de falsas pretensões de originalidade no sentido popular e nos remete a uma nova compreensão de sua verdadeira base, na pessoa e nos eventos da vida do seu Messias”.

Isto é, Qumran permite a compreensão da genealogia teológica do cristianismo e um entendimento do significado de elementos conceituais que sobreviveram na memória e foram trabalhados no pensamento dos evangelistas.

2. Luz e Trevas.

Desde a pioneira descoberta do Livro de Henoc, os estudiosos se deram conta da existência de antecedentes dualistas expressivos na tradição judaica prévia à emergência do cristianismo. As origens desse dualismo não parecem remontar à tradição sacerdotal do Templo, nem aos antigos legisladores e historiadores deuteronomistas, que estão na base da autoria do Pentateuco. A maior parte dos especialistas na área visualiza aqui evidentes influências do mazdeísmo persa, relacionados aos contatos estabelecidos durante o período de dominação arquemênida. Esse tema é obscuro, no entanto, pois, como anotou John Collins, “não consigamos traçar os canais através dos quais o zoroastrianismo foi realmente transmitido”. Mas foi de uma forma ou de outra, recebido por escribas e religiosos judeus.

O mito de origem do mal, expresso em I Henoc, o entende como oriundo de uma revolta dos anjos, os “guardiões”. Esse mito teve, como compreendemos a partir dos textos de Qumran, profunda influência sobre diferentes linhagens teológicas na época do segundo Templo. Alguns, como Margareth Baker, argumentaram que seu elemento judaico, o ciclo mítico de Henoc, mencionado em Gênesis 5, 21-24 tem raízes na época do primeiro Templo

O texto bíblico em si pertence ao chamado “Livro das Gerações”, que é provavelmente de origem sacerdotal e talvez evoque alguma antiga genealogia já conhecida. Independentemente desse registro, I Henoc, como proposição teológica, é entendido por muitos, no entanto, como uma afirmação opositora à teologia sacerdotal do perdão, entronizada no Pentateuco. Gabrielle Boccaccini propõe que suas origens estão no século IV a.e.c., no próprio momento da consolidação do texto sacerdotal, e não é impossível que reflita dissensões na esfera das lideranças sacerdotais com relação às iniciais disputas de poder pelo controle do segundo templo. De fato I Henoc se opõe ao Pentateuco.

A sua ética tende a liberar o ser de suas responsabilidades diante do mal, pois o atribui às ações de outros, isto é dos anjos rebeldes e os demônios. Afirma que a solução definitiva do problema pode ser unicamente alcançada em uma dimensão global e se posiciona na aceitação de algum tipo de predestinação.

Muito da literatura sectária de Qumran é relacionada a esse dualismo presente em I Henoc. Ele está presente, por exemplo, de alguma forma, na postura daqueles judeus que atuaram para instaurar um isolamento próprio absoluto diante dos outros, tidos por impuros. Tema de muitos textos qumranitas. Também é característico daqueles documentos que afirmam ser a história o cenário de um conflito entre a luz e as trevas e que culminará numa grande batalha escatológica. Esse é um motivo central do dualismo apocalíptico e é assim declinado na Regra da Comunidade (1QS): “Do manancial da luz provém as gerações da verdade, e das fontes das trevas as gerações da falsidade. Na mão do príncipe das luzes está o domínio sobre todos os filhos da justiça, eles andam por caminhos de luz. E na mão do anjo das trevas está todo domínio sobre os filhos da falsidade, eles andam por caminhos das trevas”.

O alcance de semelhantes concepções pode ser discernido na literatura neotestamentária. Como anotou David Flusser, elas são claras especialmente em Paulo, oão Evangelista e no autor da Epístola aos Hebreus. De fato, o caráter rarefeito desse dualismo em outros autores do Novo Testamento permite a identificação, naqueles, de um perfil teológico específico de natureza apocalíptica. Parece que esses elementos conceituais de aplicação geral no universo sectário se manifestam em determinada fase da constituição das comunidades cristãs, aparentemente após o desaparecimento de Jesus.

Paulo, explicitamente, assume tal plataforma teológica: “que comunhão pode haver entre a luz e as trevas? Que acordo entre Cristo e Belial?... Que há de comum entre o templo de Deus e os ídolos? Ora, nós é que somos o templo do Deus vivo...” (2Cor, 6:14-16). A identificação do mal com Belial, por exemplo, só ocorre uma única vez no Novo Testamento, mas é comum na literatura apocalíptica de Qumran. João, da mesma maneira, acompanha os elementos expostos na Regra da Comunidade: “se... andamos nas trevas mentimos e não praticamos a verdade. Mas se caminhamos na luz como ele está na luz, estamos em comunhão uns com os outros” (1Jo, 1:6-7) e mais adiante, concluindo: “Nós sabemos que somos de Deus e que o mundo inteiro está sob o poder do maligno” (1Jo 5:20). Isso também aparece na literatura cristã primitiva extra-canônica, como no Pastor de Hermas: “dois anjos existem em cada homem: um da justiça e outro da maldade” (M6, 2). Tais formulações aproximam-se de transcrições literais dos pressupostos dualistas de muitos documentos de Qumran. Comprovam a força e o alcance do pensamento apocalíptico sectário no desenvolvimento do cristianismo.

3. Anjos e Messias.

Um outro tema importante na aproximação entre os manuscritos de Qumran e o cristianismo antigo diz respeito às concepções judaicas do período do segundo templo sobre os anjos e seu papel. Como o próprio Novo Testamento afirma, não se tratava de crença geral (Atos, 23:8) e textos sectários importantes encontrados em Qumran, como o Rolo do Templo (11Q19), não os mencionam. No entanto, as tendências dualistas, em suas diversas variantes, colocaram em evidência um cenário de confrontação entre o bem e o mal que tem nos anjos os seus mais proeminentes protagonistas. Em I Henoc a rebeldia de Azazel e Semiaz é confrontada por um exército angelical, destinado a restaurar a ordem, chefiado pelo anjo Miguel.

Essa elevação de personalidades angelicais a um papel central no drama cósmico, o do “príncipe da luz”, por exemplo, corresponde a um padrão generalizado – que transborda na literatura cristã antiga. E não coincide muito, de fato, com o papel subordinado e de meros intermediários e mensageiros que os anjos costumam ter na literatura sacerdotal. John Crossan analisou especialmente a convergência de Henoc com Daniel, nesse sentido. Associação que parece delinear as tendências teológicas presentes na literatura neotestamentária. O tardio “Livro das Similitudes” de I Henoc, descreve uma criatura celestial de imenso poder:

“Vi Aquele a quem pertence o tempo antes do tempo. Sua cabeça era branca como a lã e com ele estava um outro indivíduo, cujo rosto era como o de um ser humano... perguntei... a um... dos anjos... „Quem é este?... e ele me respondeu: „este é o Filho do Homem a quem pertence a virtude, em quem vive a virtude... este filho do homem que viste é aquele que expulsará os reis e os poderosos de seus assentos confortáveis e arrancará os fortes de seus tronos”.

A denominação “como um filho do homem” aparece, como se sabe, em Daniel 7,13-14: “Eu continuava contemplando nas minhas visões noturnas quando notei, vindo sobre as nuvens do céu, um como Filho do Homem... a ele foi outorgados o poder, a honra e o reino, e todos os povos nações e línguas o serviram”.

Essa convergência de designação assinala um comum entendimento de que uma criatura celestial, provavelmente um anjo, talvez Miguel, viria a assumir um papel central na solução do drama cósmico. Segundo Collins as figuras do “príncipe da luz” e “do como um Filho do Homem” são correspondentes e afirmam a proposta, comprovada na literatura de Qumran, de entender um futuro messias como uma criatura mais que humana, angelical. Isso é fundado provavelmente na tradição mazdeísta, na qual o saoshyant, o messias escatológico, é uma emanação de Ahura Mazda. Mas se distancia claramente de uma outra tradição que entende o messias apenas como o detentor de um título geral, o “ungido”, isto é, um rei ou sacerdote, - que tanto podem ser os antigos reis e sacerdotes de Israel quanto os futuros -, ou um soberano estrangeiro, Ciro, por exemplo.

De certo que também existe um movimento no pensamento apocalíptico no sentido de elevar figuras humanas a uma dimensão celestial, e isso parece em parte conseqüente com elementos judaicos mais amplos. A literatura sacerdotal também admitia essa possibilidade, no caso de Henoc e no do profeta Elias, ambos tidos como tendo ascendido aos céus e passado a existir junto ao Eterno. O pensamento apocalíptico, no entanto, construirá toda uma teologia em torno desses personagens. Além desses incluirá Melquisedec, protagonista de um ciclo mítico específico. Essa personagem é de fato especialmente relevante na literatura apocalíptica, notavelmente nos manuscritos de Qumran. É mencionado de uma forma misteriosa no Gênesis. É ele, “rei de Salém”, que foi ao encontro de Abrão trazendo pão e vinho, “ele era sacerdote do Eterno” e pronunciou uma benção sobre o patriarca (Gen, 14: 18-20). Em mais de um texto de Qumran, Melchisedec é também equacionado ao “príncipe das luzes”, isto é, um anjo. Em 4Q374, o Apócrifo de Moisés, é entendido como um “guardião”, figura celestial que se defronta com Melchiresha, o mal. Em 11Qmelch, são aplicados a ele todos os atributos redentores do “filho do homem”: “Melquisedec executará a vingança dos juízos de Deus. Nesse dia eles serão liberados da mão de Belial e das mãos dos espíritos de seu lote. Em sua ajuda virão todos os elohim. Ele é quem prevalecerá nesse dia sobre todos os filhos de Deus, e ele presidirá a assembléia (...)”.

A sua importância ecoa na Epístola aos Hebreus 7, onde “se assemelha ao filho de Deus”, sendo “sem pai, sem mãe, sem genealogia”, ou seja, provavelmente, também uma criatura celestial. Donde se conclui pela dependência desse texto dos elementos literários a ele associados em Qumran.

Esses dois movimentos, o do anjo redentor e o do humano que ascende ao espaço da divindade, parecem assim apontar para certas noções presentes na literatura neotestamentária. De um lado a busca de um messias que não fosse humano, mas sim um integrante da corte celestial e, portanto, dotado de uma pureza exemplar e absoluta. De outro a crença num messias que, sendo originalmente humano, pelas suas virtudes foi capaz de ascender a um elevado estado de santidade. Passando então para um plano superior e mantendo-se então na convivência eterna de Deus. As dúvidas sobre a precisa natureza de Jesus provavelmente eram fundadas em semelhantes concepções - de conhecimento geral nos derradeiros momentos do segundo templo.

Por fim, em pelo menos um texto, o 4Q174, Florilegium, o messias é descrito como “filho de Deus”, numa interessante e direta correspondência com a literatura antiga cristã: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho. Isto se refere ao broto de Davi que se erguerá com o intérprete da Lei que surgirá em Sion nos últimos dias”. Os dois messias, aqui declinados, o “rebento de Davi” e o “intérprete da Lei”, não obscurecem a singular denominação que se tornará emblemática para os primeiros seguidores do cristianismo. Ela se repete num fragmento aramaico, o 4Q246, onde se trata do messias dizendo que “grande será chamado e será designado com o seu nome. Será denominado filho de Deus e lhe chamarão filho do Altíssimo”. Desde a descoberta desse texto foi anotado que há dele um muito provável eco em Lucas: 1,32: “Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai”. Todos esses elementos permitem-nos caracterizar parcelas substanciais da literatura cristã como dependentes, do ponto de vista da genealogia teológica e da história, de um corpo literário específico abundante no período do segundo templo.

4. Em Direção a Novos Problemas.

Podemos, portanto entender parcela substancial da teologia da literatura neotestamentária a partir dos manuscritos de Qumran. Mas certamente isso não esgota o assunto. Tanto em direção ao desenvolvimento posterior do cristianismo quanto no tocante ao Jesus histórico.

No posterior porque parece claro que nenhum dos elementos aqui expostos permite compreender os particulares desdobramentos que conduziram ao desenvolvimento do conceito da Santíssima Trindade e à crença na divindade de Jesus. De resto temas mapeáveis historicamente e relacionados à outras influências e desenvolvimentos particulares. No tocante ao Jesus histórico porque se é claro que a literatura paulina ou joanina está repleta de elementos apocalípticos e se remete textualmente a textos agora conhecidos do segundo templo, não é certo que ela expresse a realidade teológica da pregação de Jesus.

Esse tema é significativo, principalmente devido ao fato de algumas passagens neotestamentárias serem distantes dessa temática dualista ou não compartilharem dos elementos formais dos textos apocalípticos. Brad Young, por exemplo, estudou um problema específico dos evangelhos: as parábolas. Ao faze-lo procurou demonstrar a convergência teológica entre as parábolas de Jesus e as parábolas rabínicas. Ele considerou que a utilização de parábolas é um recurso específico da tradição rabínica. Os rabinos se entendem como herdeiros da tradição farisaica, principalmente de seus procedimentos de digressão teológica.

Como esse recurso, a parábola, não é próprio e nem encontrado na literatura apocalíptica, se entende que o mesmo possui origem farisaica. Assim sendo, a ampla utilização que Jesus faz das parábolas só pode ser entendida como indicação que ele compartilhava, ao menos eventualmente, do universo conceitual dos fariseus. Young, portanto, acompanhando Flusser, sugeriu inusitadas afinidades entre o Jesus histórico e as tradições farisaicas. Tanto em método de exposição quanto em conceitos.

Ele analisou diversas parábolas de forma pormenorizada. Entre elas a difícil “parábola do administrador infiel”, em Lucas. Nessa passagem Jesus utiliza literalmente a expressão “filhos da luz”. E é essa a única ocorrência da expressão nos evangelhos. Trata-se, como hoje sabemos, do termo com que alguns dos sectários de Qumran se designavam, especialmente na “guerra dos filhos da luz contra os filhos das trevas” (1QM). Segundo Young, essa parábola complexa conteria uma crítica aos dualistas, “uma paródia negativa”. Principalmente expressando reticências à forma como os sectários geriam seus bens, isto é, recolhendo-os do indivíduo, administrando-os coletivamente. “Pois os filhos deste mundo são mais prudentes com sua geração do que os filhos da luz”, asseverou Jesus (Lc 16:8).

Nesse sentido, pelo menos algumas partes das tradições relativas a Jesus poderiam bem afastá-lo do universo teológico apocalíptico, ou não inseri-lo dentro dele totalmente. Isso significaria que os fortes traços dualistas ou o insistente perfil sobrenatural do messias presentes no Novo Testamento não necessariamente seriam traços marcantes e originais do Jesus histórico, mas sim frutos de uma interpretação e vivência imediatamente posteriores. Pode ser também que o Jesus histórico gravitasse entre mundos diferentes, não se atendo a uma tradição específica. Isso coaduna com a pluralidade teológica do período do segundo templo, tão bem exemplificado pela biblioteca de Qumran, onde sequer algo conhecido como “um texto canônico bíblico” pode ser identificado. Assim, Jesus poderia ser um rabino singular – dessa forma é, aliás, denominado várias vezes – que reunisse em torno de si seguidores de diferentes origens. E que deixou tantos legados quantas fossem as concepções teológicas de seus seguidores. O que é possível, dado à pluralidade de visões, não apenas dualistas, mas gnósticas, por exemplo, que caracterizam as diferentes tradições cristalizadas nos evangelhos – tanto canônicos quanto apócrifos.

Os manuscritos de Qumran levantaram, portanto, importantes questões sobre a teologia do cristianismo antigo. Mas, principalmente, inseriram o desenvolvimento do pensamento cristão original no quadro mais amplo do judaísmo do período do segundo templo. Dimensionando, portanto, sua real inserção histórica.

A habilidade inquestionável dos curandeiros no Cristianismo Primitivo


As primeiras comunidades cristãs, ao comporem narrativas acerca das atividades religiosas de seu líder, lançaram mão de um vasto conjunto de práticas e conceitos relativos à cura de doenças e à ressurreição dos mortos. Noções judaicas de causa, tratamento e cura de doenças se modificam no interior desses grupos no debate com práticas presentes, por exemplo, nos cultos a Esculápio, Ísis e Serápis. Para além do mundo divino, cura e ressurreição foram associadas, tanto no judaísmo como para além dele, a mortais como Apolônio de Tiana, Hipócrates e Salomão, assim como a figuras públicas como Vespasiano e Pirro. Nos primeiros séculos da Era Comum, este diálogo toma forma através da atribuição do poder de curar exclusivamente a Cristo, o qual inclusive lança mão de outros personagens para exercer milagres. As comunidades cristãs sintetizam, neste único personagem, os papéis do sábio/médico à terapia e à cura.

No mundo antigo grego, conviviam distintas perspectivas sobre o adoecer, tanto no que diz respeito ao agente causador da moléstia quanto no que se refere ao comportamento e à responsabilidade do doente diante dela. No período clássico delineou-se a idéia de corpo físico como dimensão ética da pessoa de maneira que a corporeidade passou a ser objeto tanto de reflexão quanto de ação. O corpo doente ou saudável, como pensado pelos autores de tratados medicinais hipocráticos, é objeto de conhecimento e de controle. Para Brooke Holmes, esses dois aspectos fundamentam uma nova subjetividade e, mais ainda, uma ética do cuidado. A responsabilidade sobre o corpo reconfigura os sentidos sociais e éticos da doença. A documentação antiga grega explorou o tema de maneira extensa. No Hipólito de Eurípedes, encenado em 428 a.E.C. em Atenas, Fedra combate a aflição erótica à qual é submetida por Afrodite com argumentos fundamentados por preceitos políades centrados na fidelidade da esposa.

No século seguinte, Platão identificará, no Timeu, a necessidade da educação e de uma vida de equilíbrio a fim de evitar a calamidade natural que é a doença, a qual é provocada pelo desequilíbrio entre os quatro elementos que compõem o corpo humano. Mais tarde, na Ética a Nicômaco, Aristóteles argumenta sobre a necessidade do paciente de exercer o controle sobre si mesmo e submeter se à autoridade médica. Mais tarde, os estóicos desenvolverão a dimensão ética da doença ao identificarem-na como algo acima das causas naturais e dependente da vontade de uma providência que a tudo governa. A doença seria, assim, não uma calamidade, mas um pequeno incidente na ordem natural das coisas e, diante dela, o homem deve proceder com paciência e resistência. No terceiro século antes da Era Comum, Crisipo, postulava que fazer os homens vulneráveis à doença não é o principal propósito do criador. Contudo, com o objetivo de aquilo que é benéfico para a humanidade, há a necessidade de se permitir a existência da doença.

Enfermidade e saúde estão, assim, natural e intimamente correlacionadas e ambas fazem parte da ordem natural, e, portanto, não podem ser objeto de ansiedade e desespero. A doença deve ser, pelo contrário, tolerada e suportada pacientemente.

Na transcrição dos discursos de Epitecto, composta por seu pupilo Arriano em 108 de nossa era, a tolerância à doença é pensada como atitude indispensável ao tão esperado momento da separação da alma do corpo:

O que significa suportar bem uma febre? Não culpar nem os deuses nem os homens nem se afligir diante do que acontece, mas esperar a morte de maneira boa e elegante e fazer aquilo que deve ser feito. Quando o 76 médico chega, não recear o que ele tem a dizer nem ficar excepcionalmente alegre caso ele diga que você está se recuperando bem e, se ele disser que você está doente demais, não fique desanimado, pois o que significa estar doente demais senão estar próximo da separação do corpo da alma?

Em suas Meditações, compostas já no final do segundo século, Marco Aurélio identifica Zeus como o grande médico sob cuja autoridade nos submetemos quando doentes. É necessário, aceitar tudo que acontece, mesmo aquilo que é mais desagradável, pois leva a tais coisas: a saúde do universo e a prosperidade e felicidade de Zeus. Pois ele não daria a nenhum homem o que ele dá se isso não fosse útil para a totalidade. Nem mesmo a natureza de coisa alguma, qualquer que ela seja, causa o que não é adequado àquilo que é orientado por ela.

Portanto, por dois motivos é correto contentar-se com o que acontece consigo: primeiramente, porque foi feito para si e prescrito para si e, de certa maneira origina-se em si, desde as mais antigas causas que giram em torno de seu destino. Em segundo lugar, porque mesmo aquilo que de mais severo ocorre a todos os homens é, para o poder que governa o universo, motivo de felicidade e perfeição e mesmo o que lhe dá continuidade. Pois a integridade da totalidade é mutilada se tu excluis o que quer que seja da continuidade e da comunhão seja das partes, seja das causas.

No início da Era comum, portanto, a relação do homem com qualquer calamidade pessoal ou coletiva é pensada, por um lado, a partir de uma ética da fatalidade. O doente deve aceitar aquilo que a ordem do universo – identificada por Marco Aurélio como Zeus – lhe oferece de bom ou ruim, pois faz parte de seu funcionamento ótimo, o qual não deve jamais ser constrangido pelo desejo do homem de viver de maneira distinta daquela que a providência estabeleceu. Esse posicionamento foi visto com desdém por Plutarco, o qual escreve:

Para o supersticioso, toda enfermidade do corpo, toda perda de dinheiro ou de filhos... é chamada de praga dos deuses e o assédio de algum demônio. O indivíduo não se aventura a se ajudar, pois isso significaria lutar contra os deuses... se alguém está doente, afasta o médico e exclama: “deixe-me sozinho para sofrer minha punição, ímpio e desgraçado como sou, detestado por deuses e demônios”.

Apesar do posicionamento passivo e tolerante por parte de homens como Marco Aurélio, uma parcela considerável dos indivíduos via como impossível adotar tal postura. A doença era, nesse contexto, uma grande calamidade, não um evento normal e adequado no funcionamento da maquinaria do universo. Era, sim, uma característica perturbadora e aberrante desse mecanismo. Originada fora do homem, ela era resultado da fúria de uma divindade ou da possessão por um demônio. Diante da enfermidade, o homem tinha como único remédio o acesso direto ao seu agente causador: o apelo ao deus ou a expulsão do demônio. Súplica e eliminação figuravam, desta maneira, como ações alternativas diante dos agentes causadores da moléstia. Num mesmo universo religioso, para o qual a ordem do mundo é regida por uma inteligência de autoridade acima da humana, acima do indivíduo e da pólis, duas atitudes perante a desgraça se estabeleciam: tolerância, complacência e submissão, por um lado, e súplica, exigência e expulsão, por outro.

Tais atitudes dúbias perante a doença estão associadas à popularidade de santuários em honra a deuses como Ísis, Serápis e Esculápio e à figura do curandeiro, do mago como médico. Espaços devocionais e indivíduos que curam são desta maneira, elementos-chaves para o desenvolvimento, no interior de grupos cristãos, da personagem do devoto que cura imbuído do espírito divino.

O vínculo entre devoção, doença e cura presente no cristianismo desenvolve se a partir de concepções gregas como as anteriormente descritas e noções judaicas sobre as quais podemos ler no Pentateuco. Por um lado, a dor do parto será a punição conferida a Eva e ela e Adão serão expulsos do paraíso divino para que não comam da árvore da vida e vivam como imortais (Gênesis 3, 16; 22-24).

Em seguida, o limite de 120 anos para a vida humana – responderá à união ilícita entre as filhas dos homens e os filhos de Deus (Gênesis, 6, 1-3). Mas o deus do Pentateuco não é apenas aquele que se utiliza da doença como instrumento de punição do homem. Ele também tem o poder de distribuir saúde a quem lhe convém. No Êxodo, é dito que Iahweh livrará aqueles que o obedecerem de todas as pragas e doenças:

se ouvires atento a voz de Iahweh teu Deus e fizeres o que é reto diante dos seus olhos, se deres ouvidos aos seus mandamentos e guardares todas as leis, nenhuma enfermidade virá sobre ti, das que enviei sobre os egípcios. Pois eu sou Iahweh, aquele que te restaura. (Êxodo, 15, 16)

O judaísmo antigo associava, portanto, o distanciamento da divindade à dor, à doença e à morte e a submissão a ela como única garantia da vida e da saúde. O “Iahweh que restaura” o faz tão-somente quando obedecido, quando identificado como aquele que orienta o homem na melhor maneira de viver. No primeiro século da Era Comum, Fílon sintetiza essas concepções:

Essas coisas são a recompensa pela impiedade e a iniqüidade. Há doenças físicas que afligem e devoram cada membro e cada parte separadamente e que também atormentam e torturam o corpo com febres e calafrios e debilitações terríveis e também convulsões espasmódicas dos olhos e ferimentos e abscessos putrefatos.

As primeiras comunidades cristãs combinaram as concepções éticas sobre a doença e a saúde advindas do mundo grego e judaico ao interpretarem a doença como um sinal do desgosto divino. Diante da possibilidade de tornar-se doente, o devoto deve submeter-se à vontade de deus a fim de conservar a saúde e a vida.

Quando Jesus encontra-se diante do paralítico de Cafarnaum, seus pecados precisam ser perdoados antes da cura (Evangelho de Marcos 2, 5-12). Em outra ocasião, Jesus cura um doente que, como tantos outros, se encontrava prostrado diante do tanque de Betesda. Ao reencontrar o homem, tempos depois, Jesus exclama: Eis que estás curado; não peques mais para que não te suceda algo pior!

(Evangelho de João 5, 1-14). Decerto, em nenhum momento é explicitado se o pecado era a causa dessas doenças. Contudo, a julgar pela afirmação paulina de que a doença e a morte de certos membros da igreja de Corinto figuravam como castigo de deus por conta da inobservância da Ceia do Senhor (Primeira Epístola aos Coríntios 11, 30-32), é possível afirmar que as primeiras comunidades cristãs associavam transgressão e doença de maneira, senão causal, relacional. O mau funcionamento do homem como ser social compõe a dimensão física do mau funcionamento do corpo.

Como no mundo grego, comunidades cristãs também identificavam a ação demoníaca como causa das enfermidades. No Evangelho de Mateus (9, 32; 12, 22), mutismo e cegueira são atribuídos à ação demoníaca, a qual é neutralizada pelo exorcismo praticado por Jesus. Em outra ocasião, narrada no Evangelho de Marcos (9, 17), os discípulos tentam expulsar o demônio que possuía um menino epilético e mudo, mas não obtêm sucesso e ele é curado quando Jesus executa o exorcismo.

Além dessa compreensão da doença como resultado da ação de um demônio que possui o doente, outras enfermidades são concebidas numa relação diferente com o mundo demoníaco. Uma febre pode ser “conjurada”, “repreendida”, da mesma maneira que se “repreende um espírito”, como narrado no Evangelho de Lucas (4, 39). No mesmo documento, uma mulher encontra-se inválida devido à possessão por um espírito e, ao ser tocada por Jesus, este lhe informa: Mulher, estás livre de tua doença (Evangelho de Lucas 11, 13). O agente demoníaco, espiritual é, portanto, a própria doença. Ao dirigir-se a um, atinge-se o outro e, quando um é expulso, o outro simultaneamente desaparece.

O sintoma, para as primeiras comunidades cristãs, originado externamente, ocupava, contaminava o indivíduo e submetia-o a vontades próprias que alienavam o homem e retiravam-no do contexto social. Neste sentido, a concepção cristã da doença como a possessão por uma inteligência externa assemelha-se às idéias clássicas do interior do corpo como dimensão desconhecida, perigosa e de onde advêm impulsos, movimentos e dores que não são reconhecidos como originados na pessoa. Brooke Holmes denomina esse espaço de “cavidade”, a qual não se refere nem ao lugar em que o herói homérico oculta “palavras aladas” nem a um elemento da anatomia humana. A cavidade é, pelo contrário, um espaço em grande medida além daquilo que o médico pode ver e, crucialmente, abaixo do limiar da consciência. Esse espaço interior inacessível à pessoa é, no mundo cristão, um dos lugares da ação divina cujo objeto de interesse é o homem. Na Segunda Epístola aos Coríntios lemos a narrativa da doença de Paulo como sinal da ação divina por intermédio de Satanás: Para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne – um anjo de Satanás para me espancar – a fim de que eu não me encha de soberba. A esse respeito três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”. Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte. (Segunda Epístola aos Coríntios 12, 7-10).

Aqui, a vontade divina toma a forma da doença e, para ser exercida, lança mão do mundo demoníaco como instrumento de ação. Nesse sentido, a doença ganha um caráter benéfico para o indivíduo, pois é através dela que este se torna objeto de atenção por parte do mundo divino. Diferentemente da concepção estóica em que a ordem do mundo depende de situações desagradáveis ao indivíduo, como no caso das enfermidades, a atitude de passividade cristã diante da doença é entendida como determinante, não para a totalidade ou a comunidade, mas para o indivíduo. Não é o universo que depende da ação, por vezes desfavorável ao homem, por parte da vontade dos deuses. O indivíduo é, não apenas, a vítima e o objeto de atenção divina. No mundo grego, como vemos na tragédia clássica, a possessão ocorre para que o desejo da divindade se cumpra e essa não traz qualquer benesse para o indivíduo. Na documentação paulina, a possessão pode ter um valor positivo, mesmo se toma a forma de doença, pois age de maneira repressora e educativa. A dimensão ética da doença não está numa relação de causa e efeito entre ação transgressora e sintoma, mas sim entre o sintoma e o comportamento esperado pela divindade.

O papel do curandeiro, desempenhado seja por Jesus, seja pelos apóstolos, tem por sua vez uma longa trajetória. Deuses como Esculápio, Ísis e Serápis exerciam atividades medicinais, inclusive através de prescrições emitidas em sonhos aos doentes. Ao dormir, o doente encontrava-se com a divindade e esta praticava a cura ao medicá-lo, operá-lo ou tocá-lo. Em outras situações, a atividade divina limitava-se a prescrever uma série de exercícios, alimentos, medicamentos e hábitos a fim de promover o restabelecimento do doente. A prática da incubação nos templos de Esculápio persistiu até 450 da Era Comum no santuário de Atenas, sobre o qual foram construídas sucessivas basílicas cristãs depois da eliminação do culto original. Muitas das práticas presentes nas Asklepiaia no período clássico podem ser conhecidas pelos Hieroi Logoi, um conjunto de orações compostas por Élio Aristides de Esmirna cerca de 170 da Era Comum. Aristides fora internado por diversas vezes ao longo de sua vida no santuário de Esculápio em Pérgamo e, sob as ordens do deus, registrou num diário suas experiências. Ao final da vida, os diários convertem-se em fonte para a composição dos Hieroi Logoi, obra na qual o devoto de Esculápio escreveu sobre as diversas moléstias que o acometeram, suas experiências religiosas, sociais e intelectuais no Asklepieion e as prescrições médicas emitidas pelo deus em sonhos. Essas incluíam passeios sem sapatos na neve, banhos, purgas, jejuns e o uso de diversos medicamentos cuja receita era também informada pelo deus.

Segundo Diodoro da Sicília, o qual escreve no último século antes da Era Comum, o mesmo tipo de atividade era atribuído a Ísis, Segundo ele, os egípcios acreditavam que a deusa teria descoberto muitos remédios e, quando se tornou imortal, passou a curar e a ensinar aos homens, em sonhos, como eles poderiam ser curados das enfermidades que os acometiam. Os santuários em honra ao sincrético Serápis também eram lugares para onde os doentes se dirigiam para sonhar com o deus e obterem cura para suas doenças. No segundo século da Era Comum, Arriano de Nicomédia narra como sete dos amigos de Alexandre, quando este se encontrava doente, dormiram no templo de Serápis para saber do deus se era aconselhável levá-lo para lá. A resposta foi negativa e em seguida Alexandre morreu, de maneira que sua morte foi entendida como se tivesse sido previamente profetizada.

O poder de curar não era exclusividade dos deuses no mundo Greco-Romano. Mais do que isso, ele podia se estender à habilidade em ressuscitar os mortos, numa radicalização absoluta do papel desempenhado pelo curandeiro, cuja identidade é redefinida pela do mago. Aos magos e feiticeiros era atribuída o poder de curar todos os tipos de doenças e de levantarem os mortos, como, no século I E.C., sintetiza Lucano. Ele escreve sobre uma mulher da Tessália chamada Ericto, procurada por Sextus, filho de Pompeu, a fim de obter o conhecimento sobre o futuro. Para isso, Ericto promove o retorno da alma ao corpo de um soldado morto ao convocar o fantasma das regiões inferiores e forçá-lo a entrar no cadáver e a falar:

Então o sangue quente e líquido com um toque suave acariciou os ferimentos enrijecidos e preencheu as veias até que vibrasse mais uma vez o pulso que lentamente retornava. E toda fibra estremeceu como se com a morte a vida tivesse se combinado. Então, não membro por membro, de maneira trabalhosa e com grande esforço, mas elevando-se de uma vez só, num salto o homem vivo se levantou da terra. Seus olhos brilhavam num clarão feroz e a vida era débil. Sobre sua face ainda restavam as pálidas matizes da morte recém-expulsa. Ele foi tomado de assombro, há pouco trazido de volta à terra: mas de seus lábios retesados não saia qualquer murmúrio. Apenas ele tinha poder de responder quando questionado. “Fale”, disse a mulher da Tessália, “pois te recompensarei.

Será grande o teu ganho se me responderes sinceramente e também livre de qualquer arte da Tessália. Este túmulo deve ser agora seu e em sua pira funerária tantas toras fatais devem queimar, tantos cantos devem ser entoados que nada mais, nem nenhum outro encantamento ou feitiço irá alcançá-lo. Assim, seu sono do Letes não será jamais perturbado novamente por uma morte recebida por mim há pouco. Por tal recompensa não considere esta segunda vida como algo forçado e em vão. As respostas dos deuses dadas pela sacerdotisa no sagrado santuário podem ser obscuras. Mas aqueles que enfrentam os oráculos da morte em busca da verdade devem ser respondidos de maneira clara. Portanto, fale, eu te rogo. Permita que a fortuna oculta fale através de tua voz sobre os mistérios do porvir”.

A bruxa da Tessália é procurada por Sextus a fim de desvendar um futuro sombrio: o morto profetiza derrota de Pompeu, a ser descrita no Livro Oitavo da obra. A ressurreição é neste caso, apenas um instrumento político, pois através dela, é dado a conhecer o desenvolvimento dos conflitos.

Em certas situações o elemento mágico está ausente e o curandeiro tem o poder de detectar os vestígios de vida no corpo de alguém dado como morto e lhe restaurar a vida, habilidade utilizada como sinal do grande poder. No primeiro século de nossa era, Plínio escreve sobre o médico Asclepíades de Prusa o qual invadira um funeral para o qual não fora convidado e salvara a vida do morto, cujo corpo já havia sido colocado sobre a pira. No século seguinte, Apuleio estende a narrativa:

Uma vez, por um acaso, quando ele estava voltando para a cidade vindo de sua casa no campo, viu uma enorme procissão funerária nos subúrbios da cidade. Uma imensa multidão de homens que foram prestar as últimas honras ao morto encontravam-se próximos ao carro fúnebre, todos imersos em grande tristeza e vestidos em trapos. Ele perguntou de quem era o funeral, mas ninguém respondeu. Então, se aproximou para satisfazer sua curiosidade e ver quem poderia ser aquele que estava morto, ou, quem sabe, na esperança de descobrir algo do interesse de sua profissão. De qualquer forma, ele arrebatou o homem das presas da morte, prestes a ser enterrado. Os membros do pobre sujeito já estavam cobertos de ervas e sua boca preenchida por um ungüento de doce perfume. Ele havia sido untado e tudo estava pronto para a pira. Mas Asclepiades olhou para ele e, cuidadosamente, tomou ciência de certos sinais. Manipulou seu corpo algumas vezes e percebeu que ainda havia vida nele, apesar da dificuldade em detectá-la. Rapidamente, ele exclama:

“Ele vive! Larguem as tochas, levem embora o fogo e ponham abaixo a pira. Levem de volta o banquete funerário e estendam-no sobre sua mesa em casa”. Enquanto ele falava, surgiu um burburinho; alguns diziam que era preciso confiar nas palavras do médico enquanto outros zombavam de sua habilidade. Finalmente, apesar da resistência até mesmo de alguns de seus parentes, talvez porque já haviam se apropriado dos bens do morto, talvez por não acreditarem ainda em suas palavras, Asclepiades os persuadiu a adiar o enterro por um breve momento. Tendo-o resgatado das mãos do responsável pelo funeral, ele levou o homem para casa como se o tivesse tirado da própria boca do inferno, e rapidamente fez com que seu espírito revivesse e, através de certos medicamentos, convocou a vida que ainda existia escondida nos lugares ocultos de seu corpo. (Florida 19) Alguns homens podiam exercer curas de maneira tão milagrosa quanto aquelas encontradas nos santuários dos deuses. No início da Era Comum, Plutarco narra como o general Pirro de Épiro, o qual vivera no século III antes da Era Comum, era capaz de curar o baço ao pressionar o corpo dos doentes com seu pé direito. Acreditava-se que o dedão de seu pé direito detivesse uma virtude divina, pois depois de sua morte, quando seu corpo todo havia sido queimado, ele permaneceu intacto. Tácito, o qual escreve na mesma época de Plutarco, discorre, por sua vez, sobre o poder do imperador Vespasiano de curar: Entre os pobres de Alexandria havia um homem que todos sabiam ser cego. Um dia ele se atirou aos pés de Vespasiano, implorando-lhe com gemidos que curasse sua cegueira. Ele havia sido instruído por Serápis para dirigir-lhe essa súplica, o deus favorito de uma nação muito agarrada a estranhas crenças. Ele perguntou se o imperador poderia untar seu rosto e olhos com a saliva de sua boca. Um outro suplicante, o qual sofria de atrofia numa mão, também implorou ao imperador por orientação de Serápis que César o tocasse com seu pé imperial.

A princípio, Vespasiano riu e recusou-se. Quando eles insistiram, ele hesitou. Por um momento, ficou preocupado em ser acusado de vaidade, caso falhasse. Depois, os apelos urgentes das vítimas e das pessoas em volta do imperador fizeram-no desejar executar se curas. Finalmente, ele solicitou a opinião dos médicos sobre se uma cegueira e uma atrofia daquele tipo poderiam ser curadas por meios humanos. Os médicos foram eloqüentes sobre várias possibilidades. A visão do homem cego não estava completamente destruída e se certos impedimentos fossem removidos, sua visão retornaria. O membro da outra vítima havia sido deslocado, mas poderia ser colocado no lugar com o tratamento correto.

Talvez aquela fosse a vontade dos deuses, eles acrescentaram; talvez o imperador tivesse sido escolhido para exercer um milagre. De qualquer maneira, se houvesse cura, o crédito iria para ele. Se ela não acontecesse, os pobres coitados teriam que suportar o ridículo.

Então, Vespasiano pressentiu que o destino lhe fornecido a chave para todas as portas e que nada agora desafiava a crença. Com uma expressão sorridente e cercado por uma multidão ansiosa de expectadores, ele fez o que lhe era pedido. Instantaneamente, o aleijado recuperou o movimento da mão e a luz do dia raiava novamente para seu companheiro cego.

A proximidade do homem de um deus podia garantir-lhe o poder de curar e até mesmo de ressuscitar. Filóstrato narra como Apolônio de Tiana, o qual vivera no primeiro século de nossa era, curou um rapaz possuído por um demônio. Em diferentes momentos, um homem manco, outro cego e outro com uma mão atrofiada, foram curados. Em Atenas, perturbado pela presença de um jovem possuído, Apolônio o encarou e o demônio gritou com medo e ódio. Ao fim, o demônio declarou que sairia do corpo do rapaz e jamais possuiria ninguém. Quando Apolônio ordenou que saísse e demonstrasse de maneira visível que não mais possuía o jovem, o demônio obedeceu fazendo tombar uma das estátuas do pórtico. Em seguida, o possuído esfregou os olhos como se tivesse sido acordado de um sonho e estava perfeitamente curado. No mesmo documento, Filóstrato narra como Apolônio, como Asclepiades, teria restaurado a saúde de uma jovem que aparentemente morrera durante seu casamento. Nessa narrativa, contudo, há certa dúvida se a jovem estava realmente viva ou se já havia morrido quando Apolônio se aproximou dela:

Uma moça morrera bem na hora de seu casamento e o noivo seguia o carro funerário em lamento como era natural por não ter consumado o matrimônio. Toda Roma lamentava ao seu lado, pois a donzela pertencia a uma família de cônsules. Então, Apolônio, vendo sua tristeza, disse: “Desçam o carro, pois eu cessarei as lágrimas derramadas por vocês por esta jovem”.

Ainda assim, ele perguntou qual era o seu nome. A multidão pensou que ele faria uma oração, como era comum para compor o funeral e para provocar o lamento. Contudo, ele não fez nada disso, mas apenas tocando-a e sussurrando em segredo algum encantamento sobre ela, de uma vez só acordou a jovem da morte aparente. E a jovem falou em bom som e retornou à casa paterna, exatamente como Alceste fez quando ressuscitada por Héracles. E os parentes da jovem quiseram presenteá-lo com a soma de 150.000 sestércios, mas ele disse que doaria o dinheiro para a jovem na forma de dote.

Bem, se ele detectou alguma fagulha de vida nela, a qual não fora notada por aqueles que cuidavam da jovem – pois foi dito que apesar de estar chovendo no dia, um vapor saía de sua face – ou se sua vida estava realmente extinta e ele a restaurara pelo calor de seu toque, é um mistério que nem eu nem aqueles que estavam presentes puderam esclarecer.

A dúvida sobre o estado do homem dado como morto foi objeto de reflexão dos primeiros autores cristãos. Aqueles que ressuscitam não estão mortos, mas dormem. No Evangelho de Marcos, é narrado como Jesus fora abordado por Jairo, o qual rogou que salvasse sua filha, a qual estava à beira da morte. Ao chegar à casa, Jesus exclama: “Por que este alvoroço e este pranto? A criança não morreu; está dormindo”. A narrativa segue até a recuperação da menina: E caçoavam dele. Ele, porém, ordenou que saíssem todos, exceto o pai e a mãe da criança e os que o acompanhavam, e com eles entrou onde estava a criança. Tomando a mão da criança, disse-lhe: “Talítha kum”- o que significa: “Menina, eu te digo, levanta-te”. No mesmo instante, a menina se levantou, e andava, pois já tinha doze anos. (Evangelho de Marcos, 5, 39-43).

O mesmo sentido encontra-se na narrativa de ressurreição de Lázaro, presente no Evangelho de João. Ao encontrá-lo Jesus exclama: “Nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo”. A narrativa prossegue: Os discípulos responderam: “Senhor, se ele está dormindo, vai se salvar!”. Jesus, porém, falara de sua morte e eles julgaram que falasse do repouso do sono. Então Jesus lhes falou claramente: “Lázaro morreu. Por vossa causa, alegro-me de não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos para junto dele!” Tomé, chamado Dídimo, disse então aos outros discípulos: “Vamos também nós, para morrermos com ele!”

Ao chegar, Jesus encontrou Lázaro já sepultado havia quatro dias. Betânia ficava perto de Jerusalém, a uns quinze estádios. Muitos judeus tinham vindo até Marta e Maria, para consolá-las da perda do irmão. Quando Marta soube que Jesus chegara, saiu ao seu encontro; Maia, porém, continuava sentada, em casa. Então, disse Marta a Jesus: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. Mas ainda agora sei que tudo que pedires a Deus, ele te concederá”. Disse-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará”. “Sei, disse Marta, que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia!” Disse-lhe Jesus:

“Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá. Crês nisso?” Disse ela: “Sim, senhor. Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo”.

Tendo dito isso, afastou-se e chamou sua irmã Maria, dizendo baixinho: “O Senhor está aqui e te chama!” Esta, ouvindo isso, ergueu-se logo e foi ao seu encontro. Jesus não entrara ainda no povoado, mas estava no lugar em que Marta o fora encontrar. Quando os judeus, que estavam na casa com Maria, consolando-a, viram-na levantar-se rapidamente e sair, acompanharam-na, julgando que fosse ao sepulcro para aí chorar.

Chegando ao lugar onde Jesus estava, Maria, vendo-o, prostrou-se a seus pés e lhe disse: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”. Quando Jesus a viu chorar e também os judeus que a acompanhavam, comoveu-se interiormente e ficou conturbado. E perguntou: “Onde o colocastes?” Responderam-lhe: “Senhor, vem e vê!” Jesus chorou. Diziam, então, os judeus: “Vede como ele o amava!” Alguns deles disseram: “Esse, que abriu os olhos do cego, não poderia ter feito com que ele não morresse?” Comoveu-se de novo Jesus e dirigiu-se ao sepulcro. Era uma gruta, com uma pedra sobreposta. Disse Jesus: “Retirai a pedra!” Marta, a irmã do morto, disse-lhe: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia!” Disse-lhe Jesus: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?” Retiraram, então, a pedra. Jesus ergueu os olhos para o alto e disse: “Pai, dou-te graças porque me ouviste. Eu sabia que sempre me ouves; mas digo isso por causa da multidão que me rodeia, para que creiam que me enviaste”. Tendo dito isto, gritou em voz alta: “Lázaro, vem para fora!” O morto saiu, com os pés e mãos enfaixados e com o rosto recoberto com um sudário. Jesus lhes disse: “Desatai-o e deixai-o ir embora”. (Evangelho de João 11, 11-44).

A certeza de que Lázaro encontra-se vivo, identificada pela fala atribuída a Jesus, não é capaz de amenizar a ambigüidade da situação apresentada logo nas primeiras linhas da narrativa de ressurreição. “Lázaro dorme” é corrigido por “Lázaro morreu” e a observação sobre seu corpo sepultado há quatro dias, já em estado de putrefação. O importante, no entanto, não é o estado no qual o personagem se encontra – como no caso da jovem “ressuscitada” por Apolônio de Tiana – mas, sim, a habilidade inquestionável do curandeiro em restaurar a vida. Estamos diante, portanto, do modelo clássico de theios anér), o homem cuja proximidade com o mundo divino e uma sabedoria oculta lhe permite praticar milagres.

Essa intimidade com a divindade confunde se com o conhecimento de como essa atua no mundo mortal e, principalmente, a respeito do instrumental sobrenatural do qual lança mão a fim de afetar os homens. Neste sentido, cura, ressurreição e expulsão de demônios figuram como valores análogos, cuja pedra de toque é a identidade do agente causador do mal: deus, doença, demônio. A circulação desses elementos entre um mundo marcadamente politeísta e outro, de matriz judaica, não foi sintetizada exclusivamente pela presença do curandeiro sagrado na documentação cristã. No primeiro século e em meio judaico, Josefo escreve aos gentios que, nesse sentido, Salomão não era nada inferior aos seus sábios:

(...) deus também permitiu que Salomão aprendesse a arte de expulsar demônios, a qual é ma ciência útil e salutar para os homens. Ele também proferiu encantamentos através dos quais doenças eram aliviadas e deixou como herança a maneira de se utilizar de exorcismos através dos quais afastar demônios para que eles nunca retornem e esse método de cura é um grande poder, mesmo hoje em dia.

A narrativa de Josefo, utilizada como argumento contra a exclusividade do mundo Greco-romano em prover homens sábios com a habilidade de curar, nos remete ao problema da associação entre possessão e doença. Em meios cristãos, ambos se tornarão veículos para o exercício da vontade divina no mundo, através de curas empreendidas por Jesus e seus seguidores. Como no mundo grego, cura e doença têm origem divina. Entretanto, no cristianismo, o objeto último de interesse do deus não é a ordem do mundo, mas uma mudança interior nas concepções de mundo e atitudes do indivíduo. Como no mundo judaico, a doença é fruto da vontade divina, inclusive de maneira punitiva, e a possessão demoníaca germina seus sintomas. Por outro lado, no cristianismo, como no mundo Greco-romano, o exercício do poder de cura se dá pela proximidade entre o curandeiro e a divindade, seja essa proximidade entendida como intimidade e combinação de vontades ou entendida como filiação e mesmo identidade com o divino.