Dentre os símbolos primordiais, a serpente é aquele que mais fortemente encerra toda uma complexidade de arquétipos. Presente em todas as culturas de qualquer época espalhadas pelos cinco continentes, sua imagem mitológica assume sempre um papel fundamental, associada que está, antes de tudo, à essência primordial da natureza, à fonte original de vida, ao princípio organizador do Caos, anterior à própria Criação.
A víbora guarda em si intrigantes paradoxos; se por um lado exprime uma ameaça, já que de seu veneno pode sobrevir a morte, por outro, resume no processo de renovação de sua pele escamosa todo o intrincado mistério da vida, que se atualiza em movimento rejuvenescente.
Diferentes cultos e cerimônias ritualísticas reverenciam este réptil sorrateiro, atribuindo-lhe as mais díspares qualidades. As serpentes podem estar associadas a cultos solares ou lunares, a sociedades matriarcais ou patriarcais, (quando assumem valores masculinos ou femininos); podem significar a luz ou as trevas; a vida ou a morte; o bem e o mal; a sabedoria ou seu oposto, a paixão cega; representar ora o falo, por seu corpo assemelhar-se ao bastão, ou mesmo simbolizar a vulva, conforme se lhe parecem as escamas que a recobrem, bem como o formato de sua goela quando esta se abre para devorar sua presa. Tanto quanto as energias yin e yang expressam no taoísmo as polaridades negativa e positiva que estão por detrás de toda manifestação da natureza, os ofídios, miticamente, ocultam em si a síntese desta dicotomia universal.
Uma das figuras mais intrigantes do simbolismo alquímico, presente milenarmente em diversas culturas, é a da cobra (ou dragão) que morde o próprio rabo e opera, num movimento circular e contínuo, todo o processo dinâmico e transformador da vida. “Meu fim é meu começo”, diz a cobra nesse ato mágico de devorar-se e cuspir-se, a representar a unidade indiferenciada da vida, e seu caráter divino implícito na perfeição do círculo. À serpente devorando a própria cauda, os alquimistas chamaram Oroboro. Tal palavra não consta da maioria dos dicionários, e em alguns livros da Grande Obra aparece grafada como “ouroboros”, principalmente na língua inglesa; outras fontes, menos comumente, escrevem-na “uróboro”. Prefiro, particularmente, o termo oroboro, visto não ter sido nunca tão oportuno em nossa língua nomearmos um símbolo cuja singularidade é a de não ter começo nem fim, por meio de palavra tão especial, que permite ser lida de trás para a frente sem prejuízo sequer de sua pronúncia, transmitindo ela própria a idéia de algo que se expressa ciclicamente.
Etimologicamente, o termo tem curiosa explicação: óros, em grego, significa “termo, limite”, podendo ser também “meta, regra ou definição”; borós se traduz por boca, ou por voracidade. Daí que oroboro representa aquilo que se delimita ou se atinge pela boca, também aquilo que se define por sua própria função.Órobos, em grego, ainda significa “planta”, mais especificamente a alfarroba (fruto da alfarrobeira), uma vagem de polpa doce e nutritiva indicada no tratamento das doenças inflamatórias digestivas. O dicionário Aurélio traz para órobo o significado de “cola”, palavra esta que além de se referir a outro tipo de árvore, a Cola acuminata, cuja semente produz alcalóides tônicos, também pode significar “cauda”, conforme certos regionalismos do Brasil, sendo igualmente encontrada na língua espanhola a designar o rabo dos animais. Para orobó (só muda o acento), o Aurélio reserva o sinônimo “coleira”, em nova referência à aromática árvore acima citada, cujas sementes guardam extrato lenhoso de propriedades estimulantes, semelhantes à cafeína. Coincidentemente, coleira é o nome dado ao colar que cinge o pescoço dos animais, e o oroboro lembra sua forma; além disso, nossas vísceras intestinais assemelham-se à serpente enrolada, e o aparelho digestivo como um todo, se tomado da boca ao ânus, bem desenha a serpente aprumada, prestes a dar seu bote, a devorar sua presa.
Outra aproximação do significado implícito no oroboro encontramos entre os caldeus, que com uma mesma palavra designavam vida ou serpente. Por influência destes, os árabes também denominam de el-hayyah a cobra, e por el-hayat, a vida. El-Hay, por sua vez, um dos principais nomes divinos do islamismo, não deve ser traduzido por “o que está vivo”, mas sim por “aquele que vivifica”, sendo El-Hay o princípio primário da vida.
Dialeticamente, a cobra que morde sua cauda e não pára de girar sobre si mesma, evoca a roda da vida à qual estamos presos, bem representada pelo décimo arcano do Tarô, denominada em sânscrito roda de Samsara, que se traduz por “fluir junto”. Samsara nos condena a experimentar as ilusões do mundo sem que jamais escapemos de seu giro, salvo quando rompemos o ciclo vicioso pelo despertar da serpente Kundalini, como veremos logo adiante.
Numa tentativa de resgate arcaico, cumpre lembrar que desde o paleolítico este réptil era representado por inscrições rupestres em forma de linha, assim como até hoje o fazem os pigmeus caçadores do sul da República dos Camarões. Mas como da linha só enxergamos a parte desenhada, e intuímos que ela se prolongue por suas duas extremidades ao infinito, talvez provenha daí o conceito de que a cobra que vemos (que pode nos envenenar, ser caçada, sacrificada em rituais etc) nada mais seja do que encarnação da verdadeira serpente universal, invisível, fundamento da vida e também o eixo e a base sobre os quais se escora o mundo conhecido.
A “Grande Serpente Invisível” acha-se representada em diversas culturas. Entre os egípcios ela é Ra-Atum, divindade que ao emergir das águas primordiais cuspiu, ou expeliu pela masturbação conforme outras versões, Shu (o ar) e Tefnut (a umidade), que por sua vez engendraram Geb (a Terra) e Nut (a noite). Várias são as passagens do Livro dos Mortos em que Rá-Atum se pronuncia. No capítulo VII diz estar situado no centro do oceano celeste, frisa ser seu nome um mistério e seu poder, absoluto. No capítulo XVII diz ser o deus solitário dos vastos espaços do Céu, ser deus Rá levantando-se na aurora dos tempos, também a suprema divindade que nasce de si mesma, e que seus misteriosos nomes criam as hierarquias celestes; Ra-Atum, maravilhado pela própria criação, noutra passagem adverte: “Sou aquele que não passa; (…) quando tudo retornar ao indiferenciado, então me transformarei de novo na serpente que nenhum homem conhece nem os deuses podem ver”.
Na mitologia hindu encontramos concepção cosmogônica semelhante. O tantrismo roga que entre cada um dos ciclos de vida e morte do Universo há um período de repouso durante o qual Vishnu, o princípio conservador de Brahma, repousa sobre Ananta, a serpente da eternidade. Nesta condição atemporal, Shiva, o princípio desorganizador de Brahma, está imiscuído de modo indiferenciado em seu próprio poder, Shakti. Quando Shiva inicia sua dança, o Universo é então criado, e Shakti, operando agora como Prakriti (energia primordial incapturável e imperceptível da qual todas as formas de vida evoluem) desenvolve todo o Universo desde os tattva (mundos) mais sutis até os mais densos, até criar a mente, os sentidos e a matéria sensível sob suas cinco formas, éter, água, fogo, terra e ar. Quando Shakti penetra no último e mais grosseiro dos tattva, a “terra”, ou seja, a matéria sólida, sua missão está acabada. Shakti aí adormece sob a forma de Shesha, a serpente que sustenta o mundo, até a próxima era da nova Criação. Shesha nada mais é que um correlato da serpente cósmica Ananta, o infinito, e sua função é a de suportar o orbe e tudo o que nele se manifeste. Shesha e Ananta compõem, respectivamente, o sono divino e o divino despertar de Brahma.
Além da serpente, outros animais podem ser carregadores do mundo; há versões mitológicas em que o touro, o crocodilo, a tartaruga e o elefante exercem tal papel; mas estes são meros substitutos da serpente em sua função cósmica, haja vista que em sânscrito o termo naga designa ao mesmo tempo cobra e elefante, e nenhum indiano sensato constrói sua casa sem antes descobrir geomanticamente (pela radiestesia) em seu terreno qual o ponto relacionado ao “centro do mundo”, quando então enterra uma estaca na cabeça do naga subterrâneo, em torno do qual erigirá sua morada.
Análoga à serpente macrocósmica Ananta-Shesha é Kundalini (cuidado, a palavra é feminina e oxítona), serpente esta que se encontra enrolada na base coccigiana, na extremidade inferior da coluna vertebral humana. Afinal, o hinduísmo considera indistintos macro e microcosmo, de modo que todas as forças universais encontram no ser humano perfeita correlação. Também o corpo físico do homem é mera manifestação do corpo sutil, dizem os hindus, e nele se distribuem os chakras, centros energéticos com funções específicas, em concordância com a ordem de emanação dos tattva, isto é, indo dos mais sutis aos mais densos em sentido descendente. Kundalini jaz dormente no último e mais grosseiros dos chakras, denominadomuladhara, que se traduz por “suporte”. Despertar a Kundalini é tarefa das mais arriscadas, mas ao mesmo tempo necessária à nossa transcendência. A serpente, potencialmente perigosa, obstrui com sua cabeça a entrada para o canal de Sushumna, via direta para que a mente suba aos Céus e comungue diretamente com Brahma, o deus supremo. Perturbar Kundalini em seu sono, por conseguinte, é viabilizar este contato transcendente. Quando a serpente desperta, sibila e se enrijece, permitindo nesse momento a ascensão sucessiva da libido pelos chakras imateriais situados ao longo da coluna até que se alcance o sétimo e mais sutil deles, relacionado à fontanela superior, no alto da cabeça; este recebe o nome deSahasrara, ou chakra coronário, posto que “coroa” todos os demais. Isto porque Kundalini, uma vez acordada, não pára em sua ascensão, que se faz por etapas que podem durar anos ou mesmo a vida inteira, sempre numa progressão que dissolve o tattva inferior naquele que lhe é imediatamente superior. E cada um dos degraus só pode ser galgado à custa de importante sacrifício pessoal, de modo que o homem se purifique, passo a passo, até que se dissolva na essência bramânica universal de onde se originou.
Inúmeras culturas incutem na serpente essa idéia de espiritualidade confrontada aos padrões mais grosseiros da existência, fazendo deste réptil enigmático o emblema da síntese dos opostos, da coniunctioni opositorum dos alquimistas. O dragão, exemplo de serpente alada, traz em suas asas o tom de espiritualidade inerente ao símbolo. Aliás, entre os chineses, butaneses e outros povos do oriente, nem se faz distinção entre a cobra e o dragão, suas imagens são intercambiáveis, e há oroboros em que o dragão que morde a própria cauda é branco na metade superior do círculo e negro em sua parte inferior, a reforçar a noção de complementaridade dos opostos. O dragão celeste é o pai mítico de muitas dinastias, e os imperadores chineses o traziam estampado em suas vestes e estandartes para que o povo não se esquecesse de sua origem divina.
Curiosamente, entre os astecas e outras culturas da América Centrla e andina, Quetzacoatl, a serpente emplumada (uma combinação de Quetzal pássaro e serpente), é divindade solar e surge como elo entre os deuses e os homens, podendo ainda estar associada à chuva, ao vento, aos raios e trovões, bem como ao sopro de vida, ou ainda ao tempo incriado.
Destarte, vemos que a serpente expressa antes de tudo um desejo de hegemonia espiritual em detrimento das forças mundanas que nos iludem quanto ao sentido da existência. Preocupação semelhante encontramos na mitologia grega, no episódio em que Zeus enfrenta Tifão, filho da cólera de Hera, criado pela serpente Píton. Tifão é gigantesco dragão de cem cabeças, de cujos olhos saem labaredas de fogo infernal, com asas no lugar dos dedos, “vestido” de víboras que, presas em torno de sua cintura, alcançam seus calcanhares. Tifão afugenta todos os deuses, exceto Zeus e sua filha Atena (a razão), que resistem a seus ataques. Por fim, Zeus o fulmina com seus raios e o lança ao fundo do Etna, de onde, vez por outra, moribundo, volta a cuspir fogo. Derrotar Tifão é tarefa das mais árduas, necessária, porém, a todo aquele que, decidindo lapidar seus aspectos brutos e terríveis, deseje alcançar a maestria.
A serpente, na mitologia clássica e em outras tantas, surge ainda associada à prática da adivinhação. Prova-o deus Apolo ao subjugar a serpente Píton que jazia na caverna do santuário de Delfos, da qual derivou o nome “pitonisa”, dado às sacerdotisas de seu templo, exímias profetizas. Também os ofídios vêm atrelados ao cultivo das artes, poesia e música principalmente, mas, sobretudo, à medicina.
Consoante a versão mais aceita, Asclépio é filho de Apolo e Corônis, filha de Flégias, um dos reis de Tebas. Certa feita, devendo retornar a Delfos, Apolo deixa um corvo branco ao lado de sua esposa prenhe, para guardá-la. Mas Corônis, muito bela, temendo que Apolo, eternamente jovem, a abandonasse na velhice, mesmo grávida, une-se a Ísquius. Consumado o coito, o corvo, que estava encantado, torna-se preto, o que faz com que Apolo descubra o adultério. Apolo atira Ísquius ao Tártaro, nível infernal do mundo dos mortos, onde até hoje está a envenenar tudo aquilo que ele toque. Corônis é morta ao parir o menino, por uma flecha de Ártemis, irmã de Apolo. Asclépio passa então a ser amamentado por uma cabra, o que para os gregos é distinção de divindade, e é deixado pelo pai, na infância, aos cuidados do centauro Quíron. O nome “quíron” é abreviatura de queirourgós, a designar aquele que trabalha com as mãos, de onde se deriva o termo “cirurgião”. O sábio, cujo corpo era metade humano e metade eqüino, ensina as artes nobres a seu pupilo: a música, a poesia, a guerra e a caça e, principalmente, a medicina, na qual era especialmente versado. Acidentalmente, porém, Quíron teve seu joelho ferido numa batalha por uma flecha de Heracles, um de seus pupilos, cuja ponta estava envenenada pelo sangue verde e tóxico da Hidra de Lerna. Por conta disso, Quíron, imortal por ser filho de Cronos, vê-se fadado a sofrer por toda a eternidade. Mesmo sendo médico, não tinha poderes para desfazer-se do veneno assimilado. Daí dizer-se que os médicos feridos são os que melhor sabem curar, ou os que, ao menos, por terem experimentado a dor, são aqueles que podem com sabedoria ensinar a arte médica. Pois bem, o atroz sofrimento de Quíron só se resolve quando Zeus, compadecido de sua sina, permite-lhe trocar com Prometeu sua natural condição; este lhe cede seu direito à morte e assume para si a imortalidade do nobre centauro. Quíron sobe então aos céus para brilhar numa constelação. Ele é Sagitário, aquele que tem o dom de aspirar às coisas belas, símbolo da alma zelosa, do caráter arguto e altruísta. A esta constelação, os antigos consagravam a serpente, o galo e a tartaruga.
Asclépio, cuja arte era a de saber observar, certa feita feriu uma serpente que estava prestes a dar-lhe o bote, e pôde ver que outra veio em seu socorro, trazendo em sua goela a erva que curaria a primeira. Desde então teria tomado para si completo domínio sobre as drogas e assumido a serpente como símbolo da vida. Asclépio, presume-se, viveu por volta do século XIII a.C. Seu nome já aparece na expedição dos Argonautas, quando trouxe de volta à vida alguns mortos em combate, o que atraiu contra si a ira de Hades, que o acusou diante de Zeus de estar sonegando almas ao mundo inferior. Por conta deste crime, Zeus fulmina o médico com seus raios para impedir-lhe de estabelecer um desequilíbrio no Cosmo. Asclépio seria ainda assimilado pelos romanos como Esculápio; estes o tinham em tão grande respeito que chegaram a importar a serpente de Epidauro e construir um templo ao novo deus na ilha tiberina, a fim de que pudessem conter uma epidemia que assolava Roma no ano de 293 a.C., creditada à ira de Apolo.
Em Epidauro, o culto de Asclépio ganhou força principalmente dos fins do século VI a.C. ao final do V d.C., mais de um milênio de glória. O médico, conhecido como “o bom e o simples”, hábil ao buscar nas plantas seus remédios, fundara aí sua Escola de Medicina, fundamentada na magia. De Epidauro ramificaram várias escolas, ditas Asclepíades, de medicina “científica”, a formar alunos dentre os quais Hipócrates (de Cós) é o melhor exemplo. As principais Asclepíades estabeleceram-se na ilha de Cós, em Corinto, Pérgamo e outras regiões. Epidauro era famoso por seu labirinto, no centro do qual se guardava a serpente sagrada. A víbora, um ser ctônico, habitante das entranhas da terra, detinha o dom da adivinhação e, enrolada num bastão, em alusão ao ancião Asclépio, passou a ser símbolo da medicina.
Não devemos, porém, confundir o símbolo de Asclépio com o caduceu de Hermes, sobre o qual se enrolam duas serpentes, guardiãs de nosso adormecer e despertar, representantes também de um dos atributos dessa divindade, que é o de levar a alma dos vivos ao mundo dos mortos, ou de lá voltar com as almas que renascerão em nosso mundo. A confusão toda foi feita na época da Primeira Guerra Mundial, quando tropas médicas francesas passaram a usar o caduceu de Hermes (em vez do de Asclépio), antes de ser adotado o símbolo cristão da Cruz Vermelha nos uniformes. Daí para frente, os E.U.A., a partir de meados do século XX, por meio de seus laboratórios farmacêuticos, que nada sabem de mitologia nem têm por princípio respeitar a medicina, também por meio de suas insígnias militares durante a Segunda Guerra, vieram a repetir a equivocada associação, reforçando e difundindo o erro. Cumpre dizer que nenhuma representação mitológica de Asclépio o traz com duas serpentes em torno de seu caduceu. E deus Hermes, dentre os inúmeros atributos que têm, nunca foi médico absolutamente.
De qualquer modo, o fato é que a serpente encerrará para sempre seus mitos de tantas sutilezas. Nas curvas de seu dorso deslizam sinuosos mistérios; em seu veneno oculta-se a dose curadora; em sua goela está o portal para as entranhas da Terra. Essencialmente guardado, a víbora detém o serpentino enigma da morte e da vida.
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