"Obrigas-me fazer de uma Obra antiga uma nova... da parte de quem deve por todos ser julgado, julgar ele mesmo os outros, querer mudar a língua de um velho e conduzir à infância o mundo já envelhecido. Qual, de fato, o douto e mesmo o indouto que, desde que tiver nas mãos um exemplar, depois de o haver percorrido apenas uma vez, vendo que se acha em desacordo com o que está habituado a ler, não se ponha imediatamente a clamar que eu sou um sacrílego, um falsário, porque terei tido a audácia de acrescentar, substituir, corrigir alguma coisa nos antigos livros? (Meclamitans esse sacrilegum qui audeam aliquid in verteribus libris addere, mutare, corrigere). Um duplo motivo me consola desta acusação. O primeiro é que vós, que sois o soberano pontífice, me ordenais que o faça; o segundo é que a verdade não poderia existir em coisas que divergem, mesmo quando tivessem elas por si a aprovação dos maus".
(Obras de São Jerônimo, edição dos Beneditinos, 1693, t. It. Col. 1425).
Esta fala deveria ser uma das expressões verbais mais bombásticas e poderosas de todos os tempos. Deveria ser, também, a mais importante confissão de toda história da humanidade, pois é a fala de, ninguém menos, Jerônimo, o compilador da bíblia cristã, admitindo com sua própria boca e mãos (já que escreveu a confissão) que ADULTEROU a bíblia a mando do chefe maior da sua igreja, o Papa. Chamado a Roma pelo Papa Damaso, Jerônimo tornou-se secretário particular deste e recebeu do mesmo a incumbência de traduzir os escritos hebraicos e gregos que compunham o cânon bíblico para o latim. Até onde se sabe a intenção do Papa era, justamente, erigir uma única e universal versão dos textos bíblicos, dado o excesso de traduções populares e à diversidade de interpretações dos textos sagrados. Mas, pela fala de Jerônimo, o Papa foi um pouco mais além: criou a versão da sua conveniência. Em outras palavras, temos, então que, a bíblia cristã que conhecemos hoje e que reverenciamos como a Palavra de Deus revelada, recebeu uma “mãozinha” daquelas de Jerônimo a mando do Papa. O Deus cristão é, portanto, um deus católico.
Séculos mais tarde, o mundo religioso cristão entra em polvorosa por causa de outro Papa, Joseph Alois Ratzinger ou apenas Papa Bento XVI, que emitiu um documento afirmando que, até pode haver expressões religiosas que agradem a Deus, mas a única, exclusiva e verdadeira religião “de Deus”, é a católica e ponto final. Após publicar esse documento, o Papa Bento XVI fez tremer a base do cristianismo que hoje é ocupada por católicos, evangélicos e outras religiões não cristãs, mas que adotam o Cristo como coluna principal. Mas, para a ira de todas as religiões cristãs do mundo, o papa está coberto de razão.
Realmente, a única, verdadeira e exclusiva religião de Deus existente entre os homens é a religião católica e é ilógico até discutirmos o assunto, já que foi a igreja católica que criou o Deus cristão que conhecemos e não o contrário. Partindo do princípio que Jerônimo, o doutor da igreja e santo canonizado não mentiu, ele próprio fez uma tradução bíblica de acordo com as vontades, mandos e desmandos do seu chefe e chefe da sua igreja e não, em sintonia com a verdade real dos escritos hebraicos e gregos. Será mera coincidência que somente após as traduções bíblicas de Jerônimo a igreja instituiu os dois maiores e mais poderosos dogmas de fé para a leitura das escrituras: que as mesmas só podem ser lidas em seu estrito sentido literal e que todas as suas letras foram revelações do próprio deus? Aqui cabe uma pergunta: qual deus?
O fato é que, coincidência ou não, uma sentença divina que obriga os fiéis a uma estrita aceitação do que foi traduzido como a sagrada letra revelada de Deus sem um sopro de dúvida e o mínimo questionamento é mais uma das muitas “conveniências” que abundam no seio da “santa igreja de deus”. Seria mais ou menos a mesma coisa de alguém redigir, sozinho, a constituição de um país e depois alegar que a mesma jamais pode ser questionada, por ter sido escrita pelo próprio Deus e que todos, querendo ou não, são obrigados a aceitá-la sob pena de uma condenação eterna. Dá para acreditar em algo desse tipo? Pois foi bem isso que aconteceu.
Porém, o mais grave, sério, perigoso e lamentável é que hoje, cerca de mil e seiscentos anos depois desses fatos acontecidos e narrados pelo próprio Jerônimo, ainda existem pessoas que teimam em conceber o mundo, as pessoas, os costumes, os valores e as sociedades nos mesmos moldes da época de Jerônimo e tendo como base os mesmos escritos traduzidos por ele que, segundo a sua própria confissão, não foram tão fiéis assim ao original. Impressiona o grau de ridicularidade e de autoritarismo quando vemos pessoas que, tendo como princípio o livro de Jerônimo, condenam abertamente tudo e todos que não comungam com suas idéias em vida e pela eternidade em nome “do amor de deus”. Chega a ser risível vermos pessoas que, “em nome do amor de deus” e tendo como base o livro de Jerônimo, promovem o sectarismo e a intolerância religiosa. É debochadamente hilariante, mas perigoso, assistirmos pessoas que, “em nome do amor de deus” e tendo como base o livro de Jerônimo, vendem graças e desgraças do deus de Jerônimo nas redes de televisão e nas ondas do rádio (é a modernidade) e é insanamente cruel termos pessoas em pleno século vinte e um fazendo guerras pessoais, sociais, de classes e até de nações inteiras tendo como base o livro fraudulento de Jerônimo em nome do “amor de deus”. Aqui cabe outra pergunta: qual deus seria esse?
Jerônimo, pelo menos, teve a honradez de confessar seu feito e de mostrar para a humanidade que ele era um homem de caráter benevolente e ético. Mas, espanta como poucos dos seguidores do livro de Jerônimo seguem o exemplo do próprio Jerônimo. Entre terem como exemplo o Jerônimo verdadeiro, preferem como modelo a mentira de Jerônimo e assim, perpetuam desde os tempos de Jerônimo um deus que, segundo o próprio Jerônimo, nem é tão deus assim, já que está mais para o papado e para o catolicismo que para a sua própria divindade. Desse modo, instituímos para a humanidade, partindo do livro de Jerônimo, um deus partidário, religioso, sectário, intolerante e tão humanamente baixo que chega a ser difícil crer que haja verdade divina na divindade desse deus. Felizmente, como diz o próprio Jerônimo, “é impossível a verdade existir em coisas que divergem tanto” e é visível que entre o Cristo e as religiões cristãs as divergências são tão gritantes que não há como não perceber que a adulteração de Jerônimo faz-se viva e presente até os dias de hoje dentro de cada um dos cristãos em maior ou menor grau. Ou seja: grande parte dos cristãos, entre terem como exemplo o Cristo verdadeiro prefere como modelo a mentira construída pela igreja “em nome do amor de deus”. Aqui cabe mais uma pergunta: qual deus?
Pelo menos Jerônimo existiu e sabia ler e escrever. Pelo menos, foi Jerônimo que fez a tradução da bíblia. Pelo menos Jerônimo sabia confessar e não tinha medo de confessar. Pelo menos Jerônimo confessou e por isso existe a confissão de Jerônimo. A confissão de Jerônimo é a confissão verdadeira de uma mentira que se põe em contraste com uma mentira vista como verdade absoluta e divinamente instituída. No meio disso tudo estão os cristãos que podem escolher entre uma verdade mentirosa ou uma mentira verdadeira, ou, como Jerônimo, escolherem as duas coisas se tiverem a mesma hombridade e a mesma honestidade do mesmo. Salve Jerônimo e salve a confissão de Jerônimo.
2 comentários:
Quando perdemos a ilusão e a ingenuidade de um crédulo, só nos resta o entendimento. Ele indica categoricamente que os poderosos contam a versão da história que mais lhes convêm e que mais fortalece o poder que detêm.
Como as palavras de um livro podem ser as palavras de Deus? Infelizmente as pessoas confundem a coisa com a palavra, mas a inteligência aguçada consegue discernir o que é uma coisa e o que é uma simples, porém, muita antiga palavra.
Luz Fernando muito agradecido por sua visita ao blog Em Busca do Jesus Histórico, sinta-se sempre a vontade para sugerir, opinar, criticar. Quanto as suas palavras, para mim foram precisas e contundentes. Um abraço!
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