sexta-feira, 31 de maio de 2024

A Mulher, o Divino e a Criação


Desde tempos imemoriais que os nossos antepassados nos deixaram imagens (sagradas?) das formas femininas. Na arte e nos artefatos do Paleolítico e Neolítico que representam os mais primitivos impulsos da génese do mito humano, estas imagens indicam uma profunda tomada de consciência do elemento criador do ser feminino. Aquando do aparecimento dos mitos de criação em inúmeras civilizações, o princípio feminino aparece como criador do mundo e do homem.

Até meados do século XX o interesse pelo papel desempenhado pelas deusas nas mitologias era ligeiro já que o interesse de pesquisa estava orientado para os deuses. Mas, nos meados dos anos 70 há uma mudança de atitude parcialmente inspirada pelo desabrochar dos movimentos feministas. A tomada de consciência do papel desempenhado pela mulher na sociedade expande-se durante esta época e começa a integrar tradições espirituais do Ocidente e do Oriente. A luta pela igualdade do homem e da mulher expandiu-se para além do social, político e económico para entrar na esfera do sagrado. Inúmeros livros e artigos vão revolucionar o modo como as pessoas viam as raízes da sua herança espiritual. Não podemos, no entanto, deixar de mencionar um autor que já no século passado tinha chamado a atenção para a existência de um período da história da humanidade em que os valores morais, jurídicos e políticos eram estruturados em torno da Mulher e da Mãe. Trata-se de J. J. Bachofen. A sua obra intitulada o Matriarcado não foi bem acolhida na época. María del Mar Llinares García diz-nos que “ só quando F. Engels lhe presta atenção ao considerar que confirmava a sua teoria do carácter histórico da família é que a obra se revaloriza e consolida com o desenvolvimento da antropologia e da arqueologia pré-histórica desde os fins do século XIX “. Hoje é uma das obras fundamentais para o estudo do tema; no entanto, alguns especialistas do mito, como J.- P. Vernant e M. Detienne, não o consideram como um dos estudiosos do mito durante o século XIX. É mencionado, no entanto, por J. de Vries mas sem que este valorize a sua obra. Actualmente as obras que mais impacto causaram no grande público na defesa da existência de um princípio de matriarcado, são The Goddesses and Gods of Old Europe, Myths and Cult Images, 6500- 3500 B C de Marija Gimbutas e as publicações de James Mellaart sobre as suas escavações na Anatólia, nomeadamente em Çatal Hüyük e Hacilar. As justificações científicas destes arqueólogos sobre a existência de um culto à Deusa-Mãe na Anatólia e que se teria estendido até à Europa Antiga são bastante convincentes. Quando o livro de Riane Eisler, O Cálice e a Espada surgiu, a sua obra fundamental sobre o tema do matriarcado, para além de outras que já tinha escrito, foi saudada por todos os defensores da existência de um matriarcado na Velha Europa . Os testemunhos da arqueologia, linguística e mitologia indicavam que em muitas culturas da Europa antiga o primeiro impulso das sociedades na esfera do religioso, para além dos sepultamentos, era uma profunda veneração pela Terra, que era Mãe, pois tal como da mulher nasciam os filhos, assim dela Terra brotava vida. Será talvez essa a explicação para o aparecimento no período do Paleolítico e Neolítico de numerosas estatuetas femininas formadas inicialmente a partir de argila e cinza e depois já cozidas no forno, e, estatuetas esculpidas a partir do osso, chifre e marfim ou mesmo na própria rocha. Existe uma grande polémica sobre a intenção original que esteve por detrás destas imagens. Desde serem consideradas como mulheres reais, cânones de beleza ou objectos pornográficos ou eróticos até terem sido usadas para ilustrar o processo do nascimento às mães da época. No entanto, a opinião mais generalizada identifica-as como símbolos da fertilidade. De notar que são representadas sem acompanhante masculino o que pode indicar que os seres humanos da época estavam convencidos de que os homens não tomavam parte na reprodução. Assim, qualquer nascimento seria um exemplo de partenogénese, o que vai dar origem ao culto da Deusa-Mãe. Culto esse que teria englobado a zona circundante do mar Egeu, os Balcãs, a região oriental da Europa Central, o Mediterrâneo Central e a Europa do Ocidente. 

Na generalidade da comunidade científica considera-se que as Vénus do paleolítico foram feitas por homens num acto de veneração pelas mulheres enquanto fonte da vida. No entanto, é de assinalar uma opinião diferente: Le Roy Mc Dermott, professor de Arte na Universidade Estadual do Missouri nos Estados Unidos, sugeriu que as distorções características desta figuras (ventres inchados, seios e nádegas volumosas, pernas curtas e pés pequenos) eram devidas ao facto de terem sido esculpidas por mulheres grávidas que representavam o seu próprio corpo. A visão que uma mulher grávida tem do seu corpo, num mundo sem espelhos, assemelha-se porventura a estas estatuetas. Talvez que um dos melhores exemplos seja a Vénus de Lespugne. Se assim tiver acontecido podemos deduzir que a maior parte das esculturas femininas do Paleolítico, e não só, foi feita por mulheres. A aceitação desta teoria vem introduzir um dado novo nas capacidades da mulher da época: também foi artífice. 

Estas estatuetas mostram uma consistência de forma e de tema: descrevem a capacidade corpórea da mulher para dar à luz, amamentar, perder sangue e curar-se a ela própria todas as luas. Das muitas estatuetas desta época queremos destacar pela sua carga iconográfica a Vénus de Laussel. Esta estatueta, como muitas outras, apresenta-se com seios pendentes, barriga e triângulo púbico bem marcados. A particularidade que queremos destacar é que esta estatueta segura numa mão um crescente lunar com a forma de um chifre de bisão manchado com ocre vermelho. No chifre foram esculpidos treze entalhes, o que poderá significar que a concepção tem lugar no 14º dia após o período da lua da mulher. Um atributo lunar onde quer que apareça tem sempre o mesmo significado, qualquer que seja o número de sínteses religiosas que tenham colaborado na constituição dessas formas: é o prestígio da fertilidade, da criação periódica, da vida inesgotável. Os chifres de bovídeo que caracterizam as grandes divindades da fecundidade são um emblema da Deusa-Mãe. Onde quer que apareçam nas culturas neolíticas, quer na iconografia quer nos ídolos de forma bovina, eles marcam a presença da deusa da fertilidade. O chifre não é mais do que a imagem da Lua Nova. A lua é fonte de toda a fertilidade e dirige ao mesmo tempo o ciclo menstrual. Através da observação dos seus próprios ciclos e do crescimento sazonal das plantas é natural que as mulheres tivessem sido as primeiras a observar as periodicidades da natureza, e o registo destes ritmos internos e externos poderiam ter servido para formar as mais primitivas raízes da ciência e da religião. Com este conhecimento crescente da vida veio uma relação igualmente intensa com a morte. O homem de Neanderthal e o de Cro-Magnon enterravam os seus mortos cerimonialmente e usavam ocre vermelho para adornar os mortos. O ocre vermelho é representativo das qualidades de afirmação de vida do sangue. As pessoas perdem sangue só enquanto são vivas. Mas as mulheres perdem sangue menstrual e durante o parto. Não há talvez outro período no qual a mulher mostre estar mais ligada ao feminino sagrado do que no ato do parto. É apesar de tudo o processo do nascimento e da morte que sustenta a crença na Deusa-Mãe, já que o nascimento sempre contém a semente da morte. O vermelho do sangue do nascimento é a primeira cor que cada um de nós vê quando presenciamos um parto. O sangue é sagrado e o ocre vermelho simula a energia vital da vida e da renovação. É possível que os primitivos humanos ao cobrir o defunto com ocre vermelho pensassem que o morto pudesse ressurgir numa outra vida. 

Para além do simbolismo do sangue a mulher é como vimos intensamente influenciada pela Lua. Enquanto o Sol permanece igual a si próprio, a Lua em contrapartida é um astro que cresce, decresce e desaparece, um astro cuja vida está submetida à lei universal do devir, do nascimento e da morte. Mas esta “morte” é seguida de um renascimento: a Lua Nova. O desaparecimento da Lua na obscuridade nunca é definitivo. Este eterno retorno às suas formas iniciais faz com que a Lua seja por excelência o astro dos ritmos da vida. Tal como a Lua a mulher segue o mesmo ritmo. 

Um outro símbolo ligado à mulher e à fertilidade é a serpente. A serpente tem significados múltiplos; de entre eles o mais importante é o da sua regeneração. Como atributo da Grande Deusa a serpente conserva o seu carácter lunar – o da regeneração cíclica. Animal telúrico e ctónico, feminino por excelência, é uma hierofania do sagrado. Sob a forma de Ouroboros, a serpente que morde a cauda, simboliza um ciclo de evolução fechado sobre si próprio. Este símbolo abrange as ideias de continuidade, de autofecundação e em consequência, de eterno retorno. Mas a forma circular da imagem dá lugar a outra interpretação: a união do mundo ctónico figurado pela serpente e do mundo celeste figurado pelo círculo, significa a união de dois princípios opostos – a terra e o céu, a noite e o dia. Todas as grandes deusas da natureza que se revêem no Cristianismo sob a forma de Maria têm, como dissemos, a serpente como atributo. Mas se há figura da Deusa-Mãe que mais se possa aproximar a Maria é Ísis, que embora sendo “ Senhora do Ocidente “ ( o que significa Senhora no mundo dos mortos, onde assiste a Osíris ) é também uma deusa solar que ilumina as Duas Terras com os seus raios, enviando a luz a todos os homens. Ísis sustenta sobre a fronte a cobra real, uraeus de ouro puro, símbolo de soberania, de conhecimento, de vida e de Juventude Divina. 

A árvore é outro dos símbolos que está ligado à mulher na iconografia e mitologias arcaicas porque a árvore é fonte inesgotável de fertilidade, dá frutos e regenera-se periodicamente. A epifania de uma divindade numa árvore é corrente e podemos assinalá-la nas civilizações hindu, mesopotâmica, egípcia e egeia. Na iconografia egípcia, por exemplo, encontrámos o motivo da Árvore da Vida de onde saem os braços divinos carregados de dons e despejando com um vaso a água da vida. Na parede do túmulo de Tutmósis III em Tebas vemos o faraó a receber a seiva da árvore diretamente de um ramo. Inúmeros exemplos poderiam ser dados, comprovativos de que as árvores foram desde há muito sagradas para a Deusa e são uma epifania dela própria. 

A água é um outro símbolo da vida, um dos mais importantes. Segundo Mircea Eliade “ Na cosmogonia , no mito, no ritual, na iconografia, as águas desempenham a mesma função, qualquer que seja a estrutura dos conjuntos culturais nos quais se encontram: elas precedem qualquer forma e suportam qualquer criação “. Justifica-se plenamente a ideia do autor se nos debruçarmos sobre a cosmogonia egípcia. A criação do mundo, por quem e como foi criado era matéria de constante interesse para os Egípcios. Os mais antigos textos religiosos conhecidos reflectem uma amálgama de cosmogonias locais elaboradas provavelmente nos tempos pré-históricos mas que se vão diferenciar nos tempos históricos. Todas, no entanto, estão de acordo ao afirmar que o mundo não é obra de um demiurgo atemporal. Segundo os Egípcios no princípio era o Caos e o Demiurgo encontrava-se diluído no Caos onde jazia inerte, como que privado de existência.Todos os sistemas religiosos concebem o Caos como um Oceano primordial que contém todos os gérmens e todas as possibilidades da Criação. Esta água é o Nun o “ pai dos deuses “. O Demiurgo aparece mais tarde na superfície das águas e adopta aspectos diferentes em cada sistema cosmogónico. A importância das águas primordiais era tão grande para os Egípcios que todos os templos possuíam lagos sagrados que simbolizavam as águas primordiais, origem de toda a Criação (…).

O desaparecimento do culto da Deusa na Europa foi ocasionado segundo os defensores do princípio do matriarcado pela vaga de indo-europeus,os Kurgan, que se estenderam por vagas sucessivas desde as estepes asiáticas e destruíram as pacíficas civilizações da Europa Antiga e as assimilaram. Portadores de armas, domesticadores do cavalo, exaltavam os deuses guerreiros e heróicos. Os seus deuses principais eram uranianos: o deus da tempestade ( cujos emblemas eram o raio e o trovão,o machado, a maça e o arco ) e o deus solar, o deus do sol que empunhava a adaga e a espada e em algumas ocasiões apresentava-se com um carro. Gerda Lerner relaciona a subordinação das mulheres e a degradação da Deusa com as mudanças políticas ocorridas no III milénio quando uma sociedade baseada nos vínculos do parentesco deu lugar ao estado arcaico. Como resultado desta transformação sociopolítica, a figura da Deusa foi suplantada por um panteão de deuses e deusas. Lerner chama também a atenção para uma alteração do simbolismo. A simbologia para aludir às potências da criação passou da “ vulva da Deusa à semente do Varão“. Por outro lado, a árvore da vida símbolo da capacidade criativa da natureza foi suplantada pela árvore do conhecimento.

Sem pretender fazer uma análise sóciopsicológica das populações do Paleolítico e do Mesolítico, idades que precedem a organização da vida sedentária, podem graças à arqueologia e ao estudo dos mitos fundamentais retirar-se hipóteses a propósito desta mudança de tendência. É praticamente tido como certo que os primeiros humanos ignoravam o papel exato do homem na procriação. Os homens mantinham uma atitude ambígua face às mulheres, aparentemente mais fracas do que eles mas capazes de dar misteriosamente a vida. Daí um profundo respeito para não dizer veneração e ao mesmo tempo uma espécie de terror perante os poderes incompreensíveis, senão mágicos ou divinos. É infinitamente provável que a humanidade primitiva tenha considerado a divindade, qualquer que ela fosse, como de natureza feminina. Tudo mudou quando o homem compreendeu a sua participação no acto sexual como condição necessária à procriação. Isto deve ter-se passado nas épocas da sedentarização quando as técnicas rudimentares da agricultura se sucederam à recolecção e à caça de animais selvagens. É preciso ter em conta no entanto, que esta alteração não se efetuou rapidamente porque os costumes ancestrais são tenazes e não se modificam senão lentamente na mentalidade coletiva. Com a domesticação dos animais e o desenvolvimento dos rebanhos, a função do homem no processo de criação tornou-se mais evidente e compreendeu-se melhor. Em consequência desta situação encontramos a Deusa-Mãe acompanhada de um ser masculino, um filho ou um irmão que a acompanha nos ritos da fertilidade e com os quais se une. Nos mitos e ritos trata-se de um deus jovem que há de morrer para logo renascer. No entanto, é a Grande Deusa quem cria a vida e governa a morte, mas agora reconhece-se muito melhor a participação masculina na procriação. As núpcias sagradas ( hierogamias ) e outros ritos similares festejados durante o quarto e terceiro milénios expressavam estas crenças. Até que a deusa se tivesse unido ao jovem deus e houvesse tido lugar a morte e o renascimento deste, não podia recomeçar o ciclo anual das estações. A sexualidade da Deusa é sagrada.

A grande mudança seguinte aparece simultaneamente com o nascimento dos estados arcaicos sob reis poderosos. Nos começos do terceiro milénio a figura da Deusa-Mãe é deposta da sua liderança no panteão divino. Cede lugar a um deus masculino. No panteão Sumério a deusa da terra Ki e o deus do céu An presidem aos outros deuses. Da sua união nascerá o deus do ar Enlil. Por volta de 2400 os principais deuses sumérios aparecem enumerados da seguinte forma: An (ceú), Enlil (ar), Ninhursag ( rainha das montanhas ), Enki ( senhor da terra ). A deusa da terra Ki está agora afastada e em textos mais tardios aparece mencionada em último lugar depois de Enki. Nammu, a Deusa-Mãe dos Sumérios que deu nascimento ao céu e à terra e foi criadora da humanidade desaparece do panteão. Na Mesopotâmia assistimos à mesma situação. O Enuma Elis conta-nos que a deusa primordial é Tiamat, o mar. Às vezes tranquila às vezes caprichosa. É a natureza primordial indiferenciada que possui nela toda a força e o poder do que é selvagem. Tem por esposo Apsu, o deus das águas doces sobre as quais repousa o mundo. De ambos nascerão os deuses que compõem o panteão mesopotâmico. O Enuma Elis narra toda a história da luta entre os deuses da primeira geração com os da geração seguinte que culmina com a destruição de Tiamat por Marduk ( filho de Damkina, senhora da terra e de Enki/ Ea ) um deus de uma nova geração que representa a vida, a civilização e o progresso, enquanto que os deuses primitivos são conotados com o caos, a natureza desorganizada, a força bruta sem inteligência. É acompanhando talvez a par e passo a evolução da importância dos deuses sumérios, acádicos e a formação final do panteão mesopotâmico que verificámos como a deusa primordial foi perdendo lentamente a sua importância até desaparecer do panteão. É o caso da Nammu suméria de que se perdeu a memória, da Tiamat mesopotâmica que foi transformada num monstro, numa serpente que é necessário abater porque representa as forças do caos, tal como é preciso que seja abatido o Yam ugarítco que será derrotado por Baal, outro deus das novas gerações que se transformou em deus principal, deus da tempestade e do trovão, deus fertilizador dador de vida. Não esqueçamos também Leviatã, a serpente, que Javé tenta destruir como lemos em Isaías 27,1 “ Naquele dia o Senhor ferirá com a sua espada pesada temperada e forte a Leviatã, a serpente tortuosa e matará o monstro do mar “

A Deusa é, já no período histórico, personificada com o mal que é preciso destruir. O episódio do pecado original no Génesis pode, como sabemos, revestir-se de vários significados. A serpente do Génesis é a representação da tentação, do mal. Eva cometeu a falta sob a influência da serpente. Mas a serpente é um símbolo da Deusa assim como a arvore se identifica com a deusa. André Smet diz-nos que Eva transgride a proibição patriarcal que é representada por Javé: “ O pecado original da Bíblia pode ser considerado como o primeiro ato desta longa luta de Deus Pai contra a Deusa-Mãe. Esta primeira queda, que será seguida de muitas outras, será como todas as outras severamente punida pelo Deus Pai. A inimizade é lançada entre a serpente e a mulher o que significa que a mulher não terá mais o direito de honrar a deusa e de lhe obedecer mas antes deverá lutar contra ela “. Javé pune também a mulher precisamente naquilo que fazia a sua glória: a gravidez e a maternidade, quando lhe diz “ Aumentarei os sofrimentos da tua gravidez, os teus filhos hão-de nascer entre dores “ . E em seguida “ procurarás com paixão a quem serás sujeita, o teu marido “. Em vez de suscitar o desejo dos homens, símbolo do culto sexual rendido à Deusa, a mulher é a eles subjugada. E por fim Javé ordena “ maldita seja a terra por tua causa “.

Há quem veja nesta atitude uma mudança radical na história das mentalidades. É uma outra civilização que começa onde a predominância será do homem, enquanto que até aqui pertenceu primeiro à mulher, em seguida foi partilhada por ambos e agora o poder cabe exclusivamente ao homem. Mas a atitude de Adão não deixa de ser curiosa ao pôr o nome de Eva à sua mulher porque ela iria ser a Mãe de todos os homens. Significará esta uma maneira oculta de homenagear a Deusa -Mãe através de Eva?

Não temos documentos relativos à passagem da religião da Deusa da Europa antiga para a religião grega. No entanto, alguns investigadores veem na trilogia de Ésquilo, Oresteia uma recordação da época em que a sexualidade feminina era objeto de veneração: Orestes é julgado pela acusação de matricídio. Defendiam-no Apolo e os outros deuses celestes gregos. Contra eles pronunciavam-se as Fúrias ou Erínias, antigas deusas relacionadas com a terra. Orestes tinha matado a mãe por esta ter assassinado o seu pai, Agamémnon, pelo facto de este ter sacrificado a filha com o objetivo de assegurar a vitória na batalha. As fúrias discutem com Apolo, mas este baseia-se em considerações nas quais a mãe não é a verdadeira progenitora do filho, porque é a semente do pai a portadora da energia geradora de vida, a que produz nova vida ao ser colocado no seio da mãe. A força geradora está na sexualidade masculina, não na feminina, segundo Apolo.

A teoria dos filósofos pré-socráticos Empédocles, Anaxágoras e Demócrito afirmava a existência das sementes masculina e feminina, mas as suas ideias foram repelidas por Aristóteles. Aristóteles tentou dar uma base científica acerca da potencialidade da sexualidade masculina e da possibilidade das funções sexuais femininas em dois tratados: Espécie dos animais e As partes dos animais. Em síntese diz-nos que “ Masculino é o que possui a capacidade de condensar, tornar mais denso, fazer que tome forma e descarregar o sémen, que possui o princípio da forma. Feminino é o que recebe o sémen, mas é incapaz de fazer que tome forma ou de descarregá-lo (…) . O sémen contém em si mesmo o princípio da actividade e da organização efetiva para a organização do embrião. Posto que o sémen masculino era portador da capacidade de gerar, procriar, o ovo feminino não podia ter esse mesmo poder “. A ideologia grega acerca da sexualidade em termos de princípio ativo e passivo terminou por impor-se até ao século XVIII.

Mas Hesíodo na Teogonia dizia: “ Primeiro de tudo foi o Caos, depois a Terra, de amplo seio, sólida e eterna morada de todos os seres, e Eros o mais formoso dos deuses imortais ( …). Do Caos nascem as Trevas e a Noite negra, e da Noite nascem a Luz e o Dia , filhos seus concebidos depois da sua união amorosa com as Trevas. A Terra criou primeiro o Céu estrelado, tão grande como ela, para a envolver por todos os lados. Depois criou as altas montanhas, moradas agradáveis dos deuses, e deu também o ser às águas estéreis, o mar com as suas altas ondas, tudo isto sem paixão amorosa “ . Já no mito platónico da criação, a passividade feminina é um facto: “ A mãe e receptáculo de todas as coisas criadas e visíveis e de algum modo sensíveis não há-de ser chamada terra ou ar ou fogo ou água ou qualquer dos seus compostos, senão que é um ser invisível e informe que recebe todas as coisas e de algum modo misterioso participa do inteligível e é absolutamente incompreensível.” Podemos referir que quanto mais se caminha à frente no tempo mais se desvanece a importância da mulher.

Ao atravessarmos toda a história da Europa e do Próximo Oriente Antigo desde a Idade do Bronze até aos nossos dias verificámos que a mulher perdeu muito da dignidade que possuiu. O Cristianismo tentou suavizar a imagem da mulher com o culto de Maria. No entanto, o inconsciente coletivo da comunidade cristã via em Maria, Mãe de Deus, a Mãe Universal, a Mãe de todos nós. Não podemos deixar de referir que foi devido à grande pressão popular desde os primeiros séculos do Cristianismo que a Igreja proclamou Maria, no Concílio de Éfeso em 431, Theotokos. Mas só em 1854 foi proclamado o Dogma da Imaculada Conceição, após séculos de divergências no seio da Igreja principalmente entre franciscanos e dominicanos. Finalmente Pio XII, em 1950, proclamou o Dogma da Assunção.

O modelo mítico de Maria, Mãe de um deus encarnado que morreu pela salvação da humanidade e ressuscitou ao terceiro dia perpassa por inúmeras Deusas-Mãe da Antiguidade. Mas, Maria não é a Grande Deusa das religiões que precederam o Cristianismo, a Grande Deusa dadora da vida e da morte, a deusa da terra, a deusa das forças telúricas. A Virgem Maria é a Deusa dos Céus que sendo Virgem deu à luz o filho de Deus. Tiepolo entre 1767-69 pintou a Imaculada Conceição. Inspirando-se em Apocalipse 12,1 representou-a rodeada de querubins, de pé sobre o Quarto Crescente da Lua, pisando uma serpente dragão que tem na boca um fruto. A serpente é trespassada na cauda por um lírio símbolo da pureza de Maria. Por cima da sua cabeça paira uma pomba, símbolo do Espírito Santo que lhe concedeu o dom da concepção. Esta iconografia é totalmente reveladora da distinção entre a Deusa- Mãe da Terra e da Deusa -Mãe dos Céus.

De tudo o que foi dito concluímos que a Criação seja do mundo ou do homem está intrínseca e profundamente ligada ao princípio feminino e à mulher. A investigação científica diz-nos que a origem da vida na terra surgiu nas águas primordiais. A Ciência hoje, com todo o seu avanço científico e tecnológico quer na fertilização in uitro quer no processo de clonagem não conseguiu substituto do suporte feminino. Nós continuamos a nascer de uma mulher. E, até Deus, para se tornar humano precisou de um corpo de Mulher.

A Relação Complexa entre Iavé, El e Baal

 

O nascimento, a sobrevivência, o crepúsculo e a derradeira extinção de um ser divino parecem seguir seus próprios padrões evolutivos, de tal forma que alguns deuses perduram sem mudanças cultuais ou teológicas significativas por séculos, enquanto outros emergem no palco mundial apenas para se consumirem até a extinção quase tão logo quanto apareceram. De fato, um dado deus deve realizar um cuidadoso ato de equilíbrio para persistir ao longo do tempo humano, marcado por tumultos aparentemente intermináveis. Por um lado, um ser divino deve possuir uma qualidade definida o suficiente para atrair e manter adoradores e, ao mesmo tempo, tal deus não pode ser tão rígido ou seu culto tão conservador que não possa suportar adaptações e mudanças significativas. A única certeza do nosso mundo mundano é que ir muito longe em uma direção torna um deus desinteressante, e ir muito longe na outra, o condena. Dadas as mudanças religiosas e modismos que fluem franca e seguramente através dos éons, alguns deuses se adaptaram e muitos se extinguiram, embora um deus tenha se mostrado bastante bem-sucedido, curiosamente o suficiente, não que isso o faça um deus melhor ou mesmo um deus real além de toda expectativa histórica razoável. De fato, este deus, cujo simples nome significa algo como “aquele que existe”, emergiu das areias da obscuridade da Idade do Bronze para, eventualmente, tornar-se não apenas um deus nacional, mas, no fim, simplesmente o Deus para a esmagadora maioria da população mundial atual. Mas como o guerreiro tribal e deus da tempestade, Iavé, foi de ser um deus menor entre deuses muito mais antigos e muito mais poderosos, perdurando até então, pelo menos, para simplesmente se tornar Deus, o único Deus de tudo o que existe na mitologia de bilhões?

Fato é que a as origens de Iavé são totalmente desconhecidas. O nome pode aparecer pela primeira vez no século XIV a.C. em uma lista de inimigos de Amenófis III e em uma lista similar, mas mais tarde, no século XIII a.C., por Ramsés II, como os shasu de Iavé ou os shasu de Iahu. Não está claro como isso era pronunciado. Os shasu eram pastores semi-nômades tipicamente associados com roubos e brigandagem em geral. O nome egípcio para eles realmente indica sua existência nômade: “vagar”. Enquanto o nome adotado em semita e hebraico significa algo como “terreno” ou “saquear”. Então, há uma pista do que eles eram. Embora o nome Iavé pareça aparecer aqui, também parece estar funcionando principalmente como um topônimo em vez de um teônimo. Mas que outros shasu na lista também estão associados à região da cordilheira de Seir, no sudoeste da Transjordânia, provavelmente será relevante aqui em um momento. Se os shasu eram proto-israelitas não está claro, mas parece razoável pensar que provavelmente havia alguma conexão. E isso se encaixa com os habiru e os grupos sociais, então étnicos, os hebreus, que começaram como um grupo social, não um grupo étnico, que também estavam associados com brigandagem. Então, esta é uma história de origem divertida. Israel aparece pela primeira vez entrando na história na Estela de Merneptá, é um filho de Ramsés II, tipo seu 13º filho, onde ele reivindica vitória, de tal forma que Canaã foi saqueada em todo tipo de desgraça, Ascalon foi vencida, Gezer foi capturada, Ianoão foi feita inexistente, Israel foi devastada, e sua semente não existe, Hurru tornou-se viúva por causa do Egito. Talvez valha a pena mencionar aqui que o determinante egípcio em Ascalon, Ianoão e Gezer indica cidade estrangeira, é o determinante da montanha tripla, enquanto Israel tem o determinante do grupo étnico estrangeiro, embora, para ser justo, o uso de determinantes por escribas egípcios pode ser em todo lugar, meio arbitrário. O posicionamento geográfico mais ao sul também pode ser importante, embora note que os israelitas que Merneptá afirma ter aniquilado não estão realmente associados aqui com os shasu, então isso é interessante. E, claro, seu deus, o deus de Israel, e nenhum desses caras é mencionado aqui.

Origens e Evolução de Iavé: Dos Shasu aos Primeiros Israelitas

O primeiro vínculo histórico-arqueológico entre Israel e Iavé, como o deus, data de muito, muito mais tarde, na Idade do Ferro, quando a estela de vitória do século IX a.C. de Mesa se vangloria de ter arrastado vasos de Iavé diante de Camos, enquanto o reino moabita se rebelava e escapava da hegemonia israelita-amorita na região. Portanto, parece que nômades e saqueadores do sul do Levante estavam associados a Iavé, talvez como um tipo de topônimo teológico, e que, pelo século XIII a.C., um grupo étnico conhecido como Israel, ao menos aos olhos dos egípcios, existia em uma área semelhante. Já no século IX a.C., a casa israelita de Onri parece ter tido Iavé como uma figura importante, provavelmente como seu deus nacional, em oposição ao moabita, antes de os mencionados vasos serem arrastados.

Dada a escassez do registro arqueológico, que basicamente se resume a isso, o que podemos inferir de nosso outro corpo sobrevivente de evidências, ou seja, a literatura israelita, conforme editada e compilada na Bíblia Hebraica, sobre as origens de Iavé, ou o que podemos chamar de iavismo primitivo?

Para tanto, parece que a melhor metodologia seria analisar as estratas linguísticas mais antigas da literatura israelita, conforme aparecem na Bíblia Hebraica, especialmente o Cântico do Mar em Êxodo 15:1-18, Juízes 5 ou o Cântico de Débora, Salmos 18, 29, 68, Gênesis 49, entre outras referências dispersas que mencionam Iavé e seu culto de forma linguisticamente arcaica. A partir disso, pode-se esboçar um retrato aproximado do Iavé primitivo. Aparentemente, a terra natal original dessa divindade era Seir, Edom, Temã, com o local de culto mais antigo provavelmente situado nessa região – lembre-se dos chasu mencionados anteriormente, ou seja, a Península Arábica noroeste, logo a leste do Mar Morto. Iavé parece ter sido originalmente um deus guerreiro, possivelmente associado a saques e bandos de guerra proféticos. Além disso, a manifestação central de Iavé parece ter sido tempestades, especificamente as tempestades catastróficas que resultam em inundações repentinas mortais, que até hoje afetam aquela região. Petra, a mesma região de onde Iavé pode ter originado, foi projetada para gerenciar exatamente essas tempestades. E, de fato, é possível ver vídeos dessas inundações repentinas na região, que são aterrorizantes.

Em algum ponto do final da Idade do Bronze ou provavelmente no início da Idade do Ferro, o culto de Iavé fez seu caminho até as Terras Altas da Judeia, estabelecendo-se provavelmente em um centro de culto em Siló. Isso corresponde, aproximadamente, ao período bíblico dos juízes. A natureza nômade e possivelmente mercantil – note a menção de caravanas no Cântico de Débora, que é, a propósito, provavelmente o texto mais antigo da Bíblia Hebraica – do iavismo primitivo pode explicar a difusão do culto, isto é, foi espalhado através do comércio mercantil. Esta difusão é provavelmente superdeterminada, no entanto, especialmente se os saques estiverem envolvidos.

O pano de fundo histórico de tudo isso é o Colapso da Idade do Bronze, ao longo do século XIII a.C., quando a civilização no Mediterrâneo Oriental experimentou um colapso de sistemas em cascata, realmente assustador, resultando em migrações em massa do Egeu – ou seja, os povos do mar –, regressão de fronteiras imperiais e colapso da hegemonia local por parte dos vários impérios, especialmente os egípcios, colapso imperial completo para os hititas e a cidade-estado de Ugarit e desintegração urbana generalizada, como em um local como a cidade de Gezer. De fato, pode ser que as condições do Colapso da Idade do Bronze tenham criado o vácuo de poder no qual o saque como meio de sobrevivência emergiu, e um culto de saque liderado por um deus guerreiro como Iavé poderia ter se mostrado bastante popular no caos. Imagine que tipo de religiões emergiriam em um mundo ao estilo de Mad Max. Embora isso seja apenas especulação, essa disrupção no Colapso da Idade do Bronze provavelmente permitiu que os vários estados se revoltassem, resultando ou não em colocá-los para baixo, mas também especialmente no colapso da hegemonia egípcia na região. E isso é muito importante, pois teria permitido a independência de fato, especialmente nas Terras Altas cananeias, porque, afinal, quem desejaria subir lá? Não me surpreende que o culto de Iavé, em sua ala de construção de estado militar-político, tenha se estabelecido em Siló, relativamente remoto, antes de se espalhar para o norte e sul nas Terras Altas e então avançar para o oeste, para baixo, no Sefelá, para eventualmente competir com o povo do mar, que também havia conquistado um ponto de apoio no antigo território da hegemonia egípcia. Isso, claro, é o peleset, como o conhecemos da literatura egípcia, ou da Bíblia, como você adivinhou, os filisteus. Assim, por volta do Ferro I, ou aproximadamente em torno de 1200 a 1000 a.C., Iavé provavelmente veio a se estabelecer nas Terras Altas Cananeias, marcando assim o fim do iavismo primitivo e o início de um processo incrivelmente complexo pelo qual elementos dos sistemas religiosos e cultuais cananeus seriam negociados com o culto, mas também a própria pessoa divina de Iavé, através de um processo de convergência teológica e assimilação, divergência e antagonismo cultual, e especialmente sincretismo monárquico inicial. Para apreciar este processo, é melhor explorar esta dialética complexa em dois eixos: um sendo o próprio panteão cananeu, mas o outro sendo a progressão através do tempo, do período dos juízes e através das monarquias, relações cultuais complexas marcadas pelo sincretismo no norte, principalmente, mas mais pontuadamente por monolatria iavista no sul, antes da eventual transição para o monoteísmo no período exílico e realmente no período pós-exílico. Então, vamos começar explorando a dinâmica da convergência teológica e divergência ou antagonismo cultual com o panteão cananeu e Iavé.

Convergência Teológica: Iavé e o Panteão Cananeu

A maior parte do nosso conhecimento do panteão cananeu vem das descobertas de vastas bibliotecas reais da cidade de Ugarit, outra vítima do Colapso da Idade do Bronze. O que emergiu desse centro são coleções significativas de documentos mitológicos e cultuais detalhando a natureza, personalidades e feitos míticos dos vários deuses cananeus nesse panteão. Embora duas ressalvas talvez sejam necessárias: a primeira é que o tesouro de Ugarit pode representar uma expressão especificamente real, especificamente ugarítica, da teologia cananeia e seus ciclos míticos; a segunda é que esses documentos datam, no mais tardar, do meio do século XII a.C. – a própria cidade foi provavelmente destruída por volta de 1185 a.C., o que são centenas de anos e ainda a uma boa distância do locus classicus do desenvolvimento do culto israelita, um bom tanto mais ao sul nas Terras Altas. Assim, não sabemos em que grau o culto cananeu se expressou especificamente nessa região, nas Terras Altas, e isso é especialmente verdadeiro porque o registro escrito cananeu naquela área é notavelmente pobre, basicamente inexistente. Portanto, em que grau podemos considerar os textos ugaríticos representativos dos textos das Terras Altas cananeias, não está claro.

Mas essas ressalvas à parte, o chefe do panteão cananeu era o deus avô El, simplesmente Deus. De fato, algumas teorias realmente sugerem que Iavé era uma manifestação local, muito ao sul de El, mas eu acho isso provavelmente duvidoso. Embora Deuteronômio 32:9 pareça ser um lembrete arcaico de quando Elion, uma manifestação de El, dividiu o mundo, fornecendo especificamente a Iavé as terras de Jacó/Israel. Isso é provavelmente uma rara sobrevivência de um período em que Iavé ainda estava, de certa forma, subordinado a Elion e antes da convergência teológica com El de forma mais ampla. No entanto, está claro que os iavistas estavam confortáveis o suficiente com El para permitir quantidades significativas de assimilação de características de El a Iavé, mesmo quando essas características talvez estivessem em contraste significativo com o guerreiro estridente do culto primitivo. Uma das características mais notáveis dessa assimilação é a de El como um deus sábio e idoso. El é conhecido como o pai dos anos nos ciclos míticos ugaríticos, e talvez essa imagem de uma divindade idosa de barba branca seja uma assimilação de El a Iavé que se mostrou a percepção mais visivelmente duradoura e popular na arte. Se você imagina um homem idoso barbudo como Deus, você está imaginando El assimilado a Iavé. Junto a esse caráter idoso, também está a sabedoria de El, um traço não tipicamente associado, novamente, a um deus guerreiro; eles não precisam ser sábios ou inteligentes. Além disso, Iavé é parcialmente assimilado como uma divindade criadora, mas apenas parcialmente. O nome Iavé provavelmente apenas significava “aquele que é” ou “ele é” e não estava primitivamente associado a poderes criativos; novamente, deuses guerreiros não fazem muita coisa criando, e a forma verbal de torcer seu nome, yod-he-vav-he, em uma forma criativa, a forma verbal que conhecemos como piel em hebraico, nunca aparece na literatura israelita. Assim, não é surpreendente que muito do trabalho criativo na Bíblia seja tipicamente associado a nomes divinos como El e especialmente Elohim; mesmo um nome como El Cana, El cria, nunca realmente aparece com uma forma teonímica iavística; nunca obtemos uma versão iavística daquele nome. Portanto, temos uma situação em que não apenas elementos de El são assimilados a Iavé, mas os israelitas primitivos estavam ou mesmo confortáveis o suficiente com uma identidade teológica feita entre os dois, eles combinam El e Iavé; é muito claro na Bíblia Hebraica. Assim, muitos elementos do El cananeu, embora não todos eles, definitivamente não todos eles, como veremos em um momento, são assimilados a Iavé, ou com a identidade sendo estabelecida, os poderes e características de El de fato se tornam aqueles de Iavé. Um elemento dessa transferência, especialmente no período anterior, era o conselho divino de El, incluindo um séquito de burocratas quase divinos, como o promotor hassatam, mas também o líder militar, o Tsar Sava, mas também incluindo os 70 filhos de El ou El Yom. Claro, esses filhos também mais tarde seriam rebaixados a anjos à medida que o monoteísmo se enraizasse, antes de descer à Terra para se acasalar com mulheres humanas em Gênesis 6, e tudo isso é desenvolvido, claro, no Livro de Enoque. Embora, como a criação, essa assimilação do conselho divino não fosse total; os filhos sempre aparecem como filhos de El, o apelido divino lá nunca dos filhos de Iavé. Embora, junto com esses seres originalmente quase divinos, também viria todo um séquito de objetos celestes, porque o céu, especialmente coisas como estrelas, o sol e a lua, que eram todos adorados na região também; um desses seres, provavelmente Vênus, aparece no conselho divino como uma espécie de insurgente sublevado para o submundo cananeu dos israelitas em um oráculo contra o rei de Babilônia, provavelmente Nabucodonosor. Claro, esse personagem mais tarde se tornaria modificado na mitologia cristã para se tornar o satânico Lúcifer naquela tradição, mostrando apenas quão longa é a meia-vida desses seres. Esse ser remonta à antiga mitologia celestial cananeia. Outra instância interessante tem um espírito enganador, um ruach shakir, sendo recrutado por Iavé para enganar alguns profetas para garantir a morte do rei Acabe. Claro, o Salmo 82 também captura essa assimilação do conselho divino de El muito claramente; ele está falando com membros do conselho divino, aqueles deuses cultuais, talvez. Talvez a assimilação mais peculiar a Iavé, o deus guerreiro, sejam realmente os traços de El como misericordioso e compassivo. Esta é uma característica marcante e sensível para o avô El, que até tem um pouco demais para beber de vez em quando; há algumas ótimas histórias nos ciclos míticos ugaríticos sobre isso. É uma assimilação interessante, mas razoável, a um deus cuja pré-história de guerra e saque brutal deve fazer a transição, tem que fazer a transição, quando você entra em um culto mais sedentário, onde, sabe, você não pode resolver todos os seus problemas por meio da violência, mesmo a maioria dos seus problemas por meio da violência.

Assim, isso resulta em leitores contemporâneos experimentando um choque ao ler a Bíblia Hebraica, na qual a divindade ali parece deleitar-se absolutamente com o banho de sangue de seus inimigos e com o ato de matar pessoas. Depois, algumas páginas, encontramos uma divindade cuja misericórdia e compaixão nunca falham. Isso ocorre porque temos aí a fusão de dois deuses com características muito distintas. Claro, nem todos os aspectos de Iavé foram assimilados igualmente pelos israelitas. Um dos epítetos importantes de El era “Touro El”, e a iconografia do touro acabou dominando toda a iconografia, especialmente no sul. Enquanto isso, a iconografia polarizava entre os israelitas, parecendo que as variantes do culto do norte aceitaram a iconografia do touro de El associada a Iavé. Jeroboão I estabeleceu imagens distintas de touro em seus santuários de Iavé em Betel — cujo nome significa “Casa de El” — e em Dã. O atual sítio de Dã é o único santuário de Iavé sobrevivente do mundo antigo, ao lado de Tel Arad, no sul, mas este está em sua maior parte desmontado e alojado no Museu de Israel; esses são os únicos dois santuários de Iavé que sobrevivem no registro arqueológico atual. Embora a imagem do touro possa ter sido primitiva para Iavé, é mais provável que tenha sido uma assimilação do culto de El no norte, enquanto o culto do sul, por sua vez, preferia a arca e os querubins como seus principais símbolos de culto, tendendo, em geral, a uma disposição anicônica e a detestar, especialmente à medida que o reino do norte crescera em poder e prestígio.

De fato, a narrativa do bezerro de ouro pode ser uma polêmica do sul contra a assimilação nortenha desse aspecto do culto de El, isto é, a importação dessa iconografia do touro. Finalmente, El tinha uma consorte divina, Atirat, mas discutirei sobre ela ao abordar Asherah em breve. Se a relação entre Iavé e El era de assimilação à convergência, então a relação com o deus guerreiro e da tempestade cananeu Baal, literalmente “O Senhor”, será caracterizada não só pela assimilação mas também por um antagonismo cultual direto. A descoberta do ciclo de Baal ugarítico contribuiu significativamente para o nosso entendimento da mitologia local antiga daquela região, mais do que talvez qualquer outro conjunto de textos, exceto, é claro, a Bíblia Hebraica. Nele, Baal é famoso por suas vitórias sobre as forças caóticas do mar, ou Yam, sua luta com a morte, até a morte, seguida por sua ressurreição e a obtenção de uma trégua com Mot, o deus da morte, com a ajuda da feroz deusa guerreira da fertilidade Anat, garantindo assim as chuvas de inverno que trazem vida à região antes de ser exaltado como virtualmente o rei do mundo inteiro.

A Relação Complexa entre Iavé, El e Baal

Quase todos os elementos do culto de Baal interceptam com Iavé e seu culto, muito provavelmente devido às semelhanças entre as divindades e à popularidade de Baal em comparação com o recém-chegado Iavé na região. Ambos os deuses estavam associados a tempestades, especialmente por suas chuvas que trazem vida à região, mas associados a tempestades de tipos muito distintos. Iavé, provavelmente, estava ligado às tempestades de trovão aterrorizantes e inundações repentinas das regiões áridas do sul, enquanto Baal estava primariamente relacionado às tempestades costeiras de inverno, sem as quais a região árida lutaria para prosperar. No entanto, à medida que Iavé se estabelecia na região, o motivo dele como cavaleiro sobre as nuvens, um atributo praticamente compartilhado com Baal, seria ampliado não apenas às tempestades do sul, mas também às chuvas costeiras. Este elemento foi facilmente assimilado em Iavé, com numerosas evidências dessas teofanias de tempestade abundantes. Embora o Salmo 29 se alinhe tanto com a iconografia de Baal que alguns estudiosos simplesmente argumentaram que ele é um hino de substituição de Baal por Iavé, isso é um pouco simplista. Além disso, elementos do desafio de Baal com o mar ou Yam e seu dragão Lotan são refletidos no iavismo israelita primitivo com um desafio similar, mais notavelmente na terceira história da criação da Bíblia, encontrada no Salmo 74 e, claro, em Jó, onde a derrota de monstros marinhos, especificamente Leviatã, era um aspecto necessário para forjar o mundo da desordem aquática para a ordem. Curiosamente, essa derrota de Leviatã seria mais tarde transposta para um apocalipse que termina o mundo, e mutações posteriores do mito, tanto no judaísmo quanto no cristianismo. Para Baal, o desafio com a morte ou Mot é frequentemente desmitologizado de tal forma que Iavé tem controle sobre a vida e a morte, e em algumas passagens, Iavé é até descrito como engolindo a morte. Isso representa uma grande afirmação de poder sobre a vida e a morte, já que é exatamente a morte, descrita no grande mito como tendo uma boca aberta, que faz o engolir, não os deuses. Ademais, o local de moradia de Baal no Monte Zafon, o moderno Jebel Aqra, tornou-se sinonímia no hebraico apenas como a palavra para norte, com Iavé também inicialmente associado a montanhas, especialmente Sinai e Moriah.

O título El Shaddai provavelmente é apenas mais uma referência à assimilação de El a Iavé, vinda da palavra acadiana para montanha, embora eventualmente o Monte Sião substituiria o monte Zafon como local de orgulho, mas a metonímia “Zafon” como palavra para norte permanece no hebraico até hoje. Claro, com ambos sendo deuses guerreiros e da tempestade, não é surpreendente que Iavé fosse colocado contra Baal em um combate cultual. A popularidade de Baal pode ser vista nos inúmeros, mais de uma dúzia, nomes teonímicos a ele associados, que são provavelmente manifestações locais de Baal, semelhantes à forma como os deuses romanos eram manifestados localmente, ou mesmo à maneira como se obtém avatares de Maria em vários lugares, Nossa Senhora de tal e tal. Além disso, o horror que a adoração de Baal parece ter inspirado em certos escritores e profetas israelitas é evidente. Está bastante claro que, pelo menos na primeira metade da monarquia, houve uma tentativa bastante forte de sincretizar a adoração de Iavé e Baal, o que parece razoável, com objetos de culto de Baal colocados em santuários especificamente iavistas, provavelmente para agradar tanto à população local quanto às esposas exógamas para quem Baal era o deus central em sua religião; os israelitas se casavam fora do grupo israelita para, basicamente, garantir relações internacionais, como todo mundo. Isso foi, muito provavelmente, uma tentativa de assimilar Baal a Iavé, assim como ocorreu com El, no norte. No entanto, o culto do sul nunca se sentiu tão confortável com isso, e purgas por vários reis do sul, como por Ezequias, Jeú e, mais famosamente, Josias, buscaram erradicar completamente a adoração não iavista e até mesmo a adoração iavista não jerusalimita.

Parece que, pelo século VIII a.C., os profetas israelitas, como Elias e Eliseu, realmente rejeitaram qualquer forma de sincretismo, e a narrativa descreve vários desafios como provações entre os partidários iavistas israelitas e o culto de Baal e o culto de Asherah, especialmente como apoiado por Acabe e sua esposa fenícia Jezabel, que recebe uma reputação maligna injustamente, a propósito, o nome dela contém um teonímico. De fato, os escribas da Bíblia Hebraica odiavam tanto Baal que os teonímicos empregando seu nome passaram por uma substituição de tabu com a palavra hebraica para vergonha, de modo que nomes como o da deusa Astarte se tornaram Astarote, usando o padrão de vogal da palavra para vergonha para alterar seu nome. Além disso, a frase “príncipe ou touro de Baal” famosamente se tornou “o Senhor das Moscas”, e até mesmo o termo de Daniel para a “abominação da desolação” pode realmente ser um trocadilho em “Baal Shamem” ou “Baal dos céus”, sugerindo que o celestial é rebaixado. Assim, Baal e Iavé são provavelmente vítimas do que Freud chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”; eles são apenas muito semelhantes. O palco da antiga Canaã, da antiga Israel, simplesmente era, bem, muito pequeno para dois deuses guerreiros da tempestade, e com apenas uma exceção menor, Baal basicamente desaparece do registro religioso em Canaã pelo período pós-exílico, embora Baal continuasse a funcionar no sistema de deidades fenício como Melqart até a ascensão da hegemonia cristã no período clássico tardio. Assim, um deus tinha que sair, e, pelo menos naquela região, acabou sendo Baal. Embora isso não diga diretamente respeito ao desenvolvimento de Iavé como um deus, mas mais ao iavismo como um culto, é a questão de como a consorte de El, Atirat, seria ou não incorporada. Asherah, mencionada cerca de 40 vezes ao longo da Bíblia Hebraica, embora majoritariamente em referência a um tipo de poste ritual de madeira que provavelmente representa uma árvore sagrada da fertilidade, que, por sua vez, claro, representa a própria deusa. Há algumas vezes em que ela é mencionada como um “pesel”, uma Asherah estabelecida por Manassés, que é provavelmente uma representação gravada dela, talvez como aquelas da Idade do Bronze dela segurando seus seios; portanto, não sabemos ao certo.

O Sincretismo e a Controvérsia em Torno de Asherah

Não surpreendentemente, o culto de Asherah era muito popular, e parece razoável por muitas razões — fertilidade é popular — que a convergência de assimilação de Iavé e El também resultaria na troca de consorte, de tal forma que El Atirat se tornaria Iavé Asherah, e isso parece ser exatamente o que aconteceu, embora, claro, não sem alguma controvérsia teológica significativa. Vários reis israelitas e judeus parecem ter colocado seu símbolo de culto em templos de Iavé, e Elias contestou estridentemente com seus profetas e os profetas de Baal, matando todos eles, pelo menos de acordo com o texto. Josias visou seu culto em suas reformas inquisitoriais. De fato, foram os deuteronomistas, em particular, que tinham as preocupações mais profundas sobre a eliminação de seu culto. Seu status exato nesse período é contestado, enquanto as duas inscrições famosas em Kuntillet Ajrud e Khirbet el-Qom parecem indicar que seu status era como consorte de Iavé, apesar do sufixo pronominal problemático que ninguém parece saber exatamente como interpretar, e há 50.000 volumes sobre esse único sufixo pronominal. A preocupação predominante sobre ela é a adoração de seu objeto de culto em si, especialmente em santuários iavistas. Eles podem ter aceitado Iavé tendo uma esposa, mas não seu objeto de culto no mesmo santuário. Embora tenhamos que reconhecer a escassez de evidências aqui, parece razoável para mim que ela funcionou como consorte de Iavé, mas que essa assimilação de El foi fortemente contestada teologicamente, especialmente no sul, com as facções monolátricas iavistas emergentes. 

O objeto de culto provavelmente representava a deusa, o que parece ser quase um fato incontestável. Claramente, este se tornou associado com Iavé. Os deuteronomistas estão constantemente reclamando sobre isso, e a lógica da convergência com El sugere que ambos foram concebidos juntos. Apesar disso, as características anicônicas e monolátricas gerais iavistas eventualmente emergiram e obtiveram hegemonia cultual, especialmente no sul. Até que ponto Asherah e Astarte/Ishtar foram assimiladas nesse período permanece desconhecido. A resposta é provavelmente incerta. Além disso, há uma vaga referência a um ser chamado “Rainha dos Céus”, muito criticada por Jeremias. A identidade desse ser também permanece um mistério, embora o termo para os bolos oferecidos à Rainha dos Céus nesse texto derive do acadiano, indicando uma possível assimilação de Ishtar/Astarte, embora não haja certezas. 

Com exceção de alguns nomes, especialmente em fontes arcaicas como o Cântico de Débora, a deusa guerreira da fertilidade Anat parece ter tido pouco papel nesse período do desenvolvimento do iavismo e, talvez, no contexto cultual de Canaã como um todo. No entanto, as imagens de derramamento de sangue associadas à Anat ugarítica — ela caminhando entre sangue e carnificina, com cabeças decapitadas rolando a seus pés e mãos desmembradas voando sobre ela como gafanhotos — necessitam ser consideradas em um contexto mais amplo. Por que não há uma banda de metal chamada Anat? Vemos descrições semelhantes de Iavé se deleitando na guerra e na carnificina no Cântico de Débora, mas eu suspeito que as semelhanças entre Iavé primitivo e Anat se devem mais às práticas comuns de guerra total antiga do que a uma convergência teológica ou assimilação real. 

Certamente, o iavismo sofreria mais assimilações com a mitologia cananeia, incluindo a desmitologização dos deuses da peste Reshef e Dever, transformando-se em figuras aterrorizantes que servem como corcéis puxando o carro divino — uma imagem presente na Bíblia Hebraica. Interessante também é a transformação dos mortos régios e poderosos dos Refaim da mitologia ugarítica para gigantes derrotados por figuras bíblicas, simbolizando uma demonstração de força.

De Henoísmo a Monoteísmo: A Evolução Teológica de Iavé 

No geral, assistimos a um complexo processo não linear pelo qual o iavismo primitivo e Iavé se tornaram dominantes na pós-colapso da Idade do Bronze, nas terras altas cananeias israelitas, emergindo como a principal divindade, embora não a única, dos israelitas. Este é o famoso henoísmo do período, que se tornou um aspecto central de sua emergente hegemonia nacional na região. O período anterior é caracterizado por uma mistura de convergência teológica e divergência, assimilação e conflito, todos com os cultos cananeus locais e seus deuses, com uma tendência ao sincretismo originalmente nas áreas mais afluentes do norte. Essa tendência provocou a ira dos partidários iavistas do sul, que possivelmente já se inclinavam à monolatria e ao aniconismo, juntamente com uma minoria de profetas xamãs do norte. Após a destruição do norte em 722 a.C., os refugiados iavistas do norte foram absorvidos no culto do sul, mais resistente ao sincretismo, anicônico e monolatra. Esse processo culminaria nas reformas de Josias e dos deuteronomistas, que visavam eliminar não apenas a adoração não iavista, mas também a adoração iavista não jerusalimita, centralizando a prática religiosa e, por extensão, a política.

Com o exílio do século VI a.C. das elites judaicas, majoritariamente monolatras iavistas ou até mesmo monoteístas, a teologia do exílio e do pós-exílio representou uma mudança significativa de um deus judaico local para um deus cósmico singular. Este período marcou o surgimento do monoteísmo, transformando o iavismo no judaísmo. A transição para um monoteísmo universal viria com seu preço: o particularismo de Iavé, distanciando-se do deus guerreiro da tempestade primitivo para se tornar uma divindade universal, transcendendo todas as diferenças.



gênios, os ghouls e outras criaturas do folclore


Todos os anos, após o Eid al-Adha, a Festa do Sacrifício, quando os muçulmanos abatem animais para honrar a vontade de Abraão de sacrificar o seu filho Ismael, as pessoas em Marrocos fazem algo estranho. Por todo o reino e especialmente nas cidades do sul como Agadir, eles se vestem como feras e vagam pelos becos ao som de tambores. Antigamente, eles vestiram as peles do gado abatido no Eid e esfregaram os espectadores com membros quebrados de animais para poder sagrado. Os adolescentes de hoje ainda batem em qualquer transeunte se não lhe derem dinheiro. As ONG locais apoiam estes concursos como uma espécie de memória cultural, não muito diferente dos funerais de jazz de “segunda linha” e outros eventos de Nova Orleães. Este é o Boujloud, o chamado Halloween do Marrocos.

Um bacanal turbulento originado das brumas da cultura Amazigh, Boujloud significa “vestido com peles”, aludindo ao antigo uso de peles de animais. Ainda hoje, pelo menos um integrante do desfile ainda usa peles de verdade. É por isso que o antropólogo finlandês Edvard Westermarck chama Boujloud de Saturnália moderna, o festival romano ao deus Saturno que governou uma era de ouro perdido. Acima de tudo, a Saturnália significa inverter as normas sociais. Os celebrantes escolhem um “Senhor do Desgoverno” entre os camponeses e os senhores servem o jantar aos escravos. (A Saturnália caiu em meados de dezembro, um fato que atraiu guirlandas, velas, banquetes, trocas de presentes e outras armadilhas ligadas ao Natal.) Os espectadores podem ver essa inversão de papéis em “O Corcunda de Notre Dame”, da Disney, onde Quasimodo é coroado como um falso papa durante a Festa dos Tolos, um drama litúrgico católico francês baseado na Saturnália e criticado pela igreja medieval.

Como tudo isso se conecta ao Boujloud? Os etnólogos Edmond Doutte e Emile Laoust dizem que o carnaval marroquino vem de ritos sazonais pré-islâmicos Amazigh. O estudioso marroquino Abdellah Hammoudi discorda, alegando que Boujloud faz parte dos sacrifícios Eid al-Adha. Os marroquinos comuns têm orgulho do feriado, mas não dizem se é ou não islâmicos. “É uma celebração cultural”, afirma frequentemente. De onde quer que Boujloud venha, ele sinaliza um instinto humano mais profundo. O uso de peles lembra os skinwalkers Navajo, ou seja, bruxas que podem mudar de forma, ou os antigos berserkers nórdicos, guerreiros de “camisa de urso” frenéticos na batalha pelo poder de suas peles de urso drapeadas. Para eles, usar peles de animais faz com que o usuário se torne realmente um animal. Isto atende a uma necessidade muito humana: brincar de ser não-humano, imitar nossos impulsos brutais, imaginar nos tornarmos alguém – ou algo – totalmente diferente.

Esta mesma vontade de transformar e ser transformada, mesmo que apenas nas nossas mentes, também deu origem a todo um cosmos de espíritos, demônios, corpulentos e mestiços do Médio Oriente. Tal como Boujloud, estas criaturas são um santuário para as suspeitas furtivas de que a nossa não é a única realidade que existe e que outras realidades se infiltram na nossa. Só porque não podemos ver-los não significa que não faça parte de quem somos. Historicamente, os seres destas esferas têm-nos assombrado, divertidos e até encarnados como musas de algumas das nossas melhores criatividades humanas. Eles nos lembram quem realmente somos. Mas não jogamos como monstros para sempre. A orgia do Mardi Gras precede o jejum da Quaresma. Quando voltamos, lembramos o que nos tornamos humanos em primeiro lugar. Qual é a melhor altura para explorar as riquezas do folclore do Médio Oriente do que o Halloween? Há guloseimas que aguardam os curiosos mórbidos que desejam encontrar alguns truques na forma de seres sobrenaturais feitos de material desumano.

“Deus criou o homem de barro como o do oleiro e criou os gênios de um fogo sem fumaça.” O Alcorão, no capítulo 55, intitulado “O Misericordioso”, dá este relato dos humanos e dos gênios – que, juntamente com os anjos, criados a partir da luz, especificamente duas das três classes de seres racionais na Islã. É parte de uma visão de mil quilômetros da criação e da vida após a morte, onde os tementes a Deus relaxam em sofás de brocado e os pecadores fogem da água fervente e do latão derretido. Os gênios, que não são as almas dos mortos, mas sim criaturas sutis possuidoras de livre arbítrio, estão entre os enviados ao paraíso ou ao inferno. “Naquele dia ninguém será questionado sobre o seu pecado [porque o seu destino foi decidido], nem homem nem gênios”, diz outro versículo do capítulo 55 do Alcorão.

Os gênios escolhem se querem ou não seguir a Deus, assim como os humanos fazem. Eles praticam diferentes religiões e debatem escolhas pessoais. A tradição islâmica mostra-os dando ouvidos ao profeta Maomé, que ordena ao seu gênero Ali que os ensine, “pois entre eles estão crentes, hereges, sabeus, judeus, cristãos e magos”. De acordo com o pregador do século VII, Hasan al-Basri, alguns gênios acreditam que responderam a Deus por suas ações, enquanto outros permanecem em silêncio sobre quem é salvo e quem é condenado. Esses detalhes refletem disputas supremamente humanas. O próprio Maomé ensinou judeus humanos, cristãos e outros sobre a Islã. Na época de al-Basri, alguns muçulmanos negaram a ideia de predestinação em favor do livre arbítrio, “qadar”, e foram assim rotulados como “qadariyyah” (partidários da agência livre) por aqueles que pensavam que as escolhas eram introduzidas por “jabr ”(a vontade de Deus). poder), rendendo o seu próprio rótulo depreciativo de “jabriyyah” (partidários do decreto divino). Quer os gênios existam ou não, tais detalhes sobre a crença humana fazem com que afirmações semelhantes sobre os gênios sejam uma espécie de espelho para os próprios humanos estudarem.

No entanto, questões de fé não são tudo o que os humanos e os génios têm em comum. Com o passar dos anos, lendas sobre almas invisíveis foram se concretizando até se transformarem em um universo inteiro assombrado pelos gênios. O geógrafo pessoal do século XIII, Zakariyya al-Qazwini, desenhou os gênios e suas origens em “As Maravilhas da Criação” (“Ajaib al-Makhluqat”), um dos muitos livros de “maravilhas e maravilhas”, como o “Almanaque de Yaqut al-Hamawi”. Reinos” (“Mujam al-Buldan”) e “Prados de Ouro” (“Muruj al-Dhahab”) de Abu al-Hasan al-Masudi. Como um museu, essas amplas coleções fazem um balanço do céu e da terra, permitindo aos leitores saborear inúmeras fábulas que misturam ciência com devaneios. O objetivo principal não era apenas informar, mas também encantar.

“Nos tempos antigos”, escreve al-Qazwini, “antes da criação de Adão, uma raça de gênios vivia na terra. Eles cobriram as montanhas e as barreiras, a terra e o mar. O favor de Deus estava sobre eles, e tinham eles governo, profecia, religião e lei” (imaginamos um parlamento gênios num impasse ou uma escola primária cheia de boas crianças gênios). “Mas então”, continua al-Qazwini, “os gênios transgrediram e ofenderam… ​​​​depois disso, Deus invejoso anjos, que possuiram a terra, expulsaram os gênios para as ilhas e levaram muitos deles cativos”.

Para os leitores da Bíblia, isso parece muito com os Anakim e Nephilim, raças de gigantes que surgiram da linhagem de Sete e Caim. Ou, como algumas interpretam, anjos caídos, uma vez que a palavra hebraica “nefilim” pode significar “os caídos”. De acordo com o Antigo Testamento e os apócrifos, esses gigantes caídos vagaram pela terra até serem engolidos pelo dilúvio de Noé. Mais tarde, seus descendentes caíram novamente, só que desta vez na batalha contra os reis israelenses. Os 12 espiões enviados por Josué a Canaã falaram de gigantes ali, que Josué teve de subjugar antes de tomar a Terra Prometida. Golias pode ter sido um dos descendentes dos Nephilim.

Da mesma forma, os gênios têm sua própria descendência. Rumores de que humanos e gênios fizeram amor e criaram filhos pegaram fogo entre os antigos contadores de histórias (e começaram a progredir em alguns círculos hoje). “Circularam casos de amor aberrantes entre gênios e humanos”, escreve a estudiosa Amira El-Zein, “criando medo e despertando a curiosidade de todas as classes da sociedade”. Novamente, isso acompanha a mitologia do Oriente Próximo. De acordo com a lenda talmúdica, depois que Adão e Eva foram expulsos do Éden, eles se separaram por cem anos, durante os quais os espíritos femininos se uniram a Adão e os espíritos masculinos a Eva. Isso levou ao nascimento dos “mazzikim” (“atormentadores”), espíritos malignos que afligem pessoas mentais e fisicamente. O aventureiro e aventureiro vitoriano Richard F. Burton pensava que os mazzikim eram iguais aos gênios, mas outros acreditavam que eram demônios. Outros ainda pensaram que poderiam voar e praticar magia, como as fadas dos mitos europeus.

Quanto aos gênios, o mais conhecido deles por acasalar com um humano foi a mãe da Rainha de Sabá, conhecida como Bilqis na tradição islâmica. Ó pai de Bilqis, o rei al-Hadhad, um dia foi caçar veados e, num ataque de misericórdia, optou por poupar o rebanho. Ele não sabia que eles eram na verdade uma tribo de gênios, ecoando a crença árabe pré-islâmica de que os cervos são sagrados e que os gênios muitas vezes assumem a forma de um animal. Como recompensa, o grato rei gênios ofereceu a mão de sua filha, Ruwaha, desde que al-Hadhad prometeusse não questionar quaisquer acontecimentos estranhos. Ele fez isso e, juntos, ele e Ruwaha tiveram dois filhos e uma filha, chamada Bilqis.

Mas as coisas eram realmente estranhas. Após o nascimento de cada criança, um cachorro grande apareceu e levou o recém-nascido embora. Mantendo sua promessa, al-Hadhad não disse nas duas primeiras vezes em que isso aconteceu. Na terceira vez, quando o cachorro foi buscar a filha Bilqis, ele finalmente cortou o silêncio. “O cachorro é um gênio”, explicou sua esposa Ruwaha, “que leva nossos filhos ao reino dos gênios para serem criados lá”. Com isso, Ruwaha saiu de casa e nunca mais voltou, pois al-Hadhad cortou seu juramento. Após a morte de al-Hadhad, Bilqis assumiu o trono e desfrutou do respeito de seu povo, principalmente por causa da magia que ela exerceu de seus ancestrais gênios.

Tal como acontece com outras lendas, esses casais humanos-jinns dizem algo sobre o nosso mundo. “Do Sudão ao Marrocos, as relações com os gênios são entendidas como uma fusão do Islã e das práticas indígenas”, escreve o historiador e podcaster Ali A. Olomi. Sua observação enquadrada bem a história de Bilqis e adaptada à vida cotidiana. Também explica práticas de “religião popular”, como o uso de amuletos, amuletos e pingentes. Tais talismãs traem uma crença comum, tanto na época como agora, de que os gênios atormentam as mentes das pessoas, assombram suas casas e apoderam-se de seus corpos.

Os amuletos podem ser feitos a partir de palavras ou caracteres, muitas vezes citados no Alcorão, ou fixando medicamentos ou outros ingredientes no corpo. Os escritores islâmicos clássicos atribuíram aos árabes pré-islâmicos o uso de amuletos, uma das muitas práticas registradas sob o título “esquisitices dos beduínos” (“awabid al-arab”). O antologista do século XI, Abu Sad al-Abi, afirma em seu livro “Colar de Pérolas” que os beduínos usavam pés de coelho para controlar os gênios. A razão foi que os gênios recusaram coelhos como montarias porque – o que é contaminado – os coelhos menstruaram. O estudioso norte-africano do século XIII, Ahmad al-Buni, inclui receitas para quadrados mágicos e talismãs em “O Sol da Gnose” (“Shams al-Maarif”), um grimório popular (livro de magia) que mostra aos leitores como usar a magia para alcançar a sabedoria oculta.

Os habitantes do Oriente Médio também não pararam de usar feitiços e poções. A estudiosa de religião Esmé Partridge rastreia práticas espirituais alternativas no TikTok, ou “WitchTok”, como uma forma de a Geração Z explorar sua identidade. O sociólogo da religião Alireza Doostdar explica que a ciência oculta islâmica tradicional, “modulada por seminários de psicologia popular, literatura de autoajuda e uma dose forte de espiritualidade da Nova Era”, é uma forma pela qual os muçulmanos modernos tentam tornar os seus sonhos econômicos uma realidade. Isto fala de um impulso básico de exercício de fé, por mais estranho que a fé possa parecer para os não treinados.

A existência de tantos túneis que levam ao mundo invisível pode ter algo a ver com todas as categorias estonteantes de gênios. Existe, por exemplo, o “ifrit”, um tipo de espírito tortuoso e sorrateiro; a própria palavra “ifrit” passou a significar qualquer pessoa astuta. Os “hinn” (lamentáveis) são um tipo fraco de gênios, enquanto o “marid” (rebelde) é uma força indisciplinada às vezes equiparada a “shaytan”, um satanás ou demônio. O termo “shiqq” (metade) denota um meio-homem grotesco, com um olho, uma mão e uma perna só, que ataca humanos. O ensaísta do século IX, al-Jahiz, conta a história de um homem chamado Alqamah ibn Safwan que transferiu contra um shiqq em um bosque. Os dois rivais trocaram frases de poesia antes de se enfrentarem e se espancarem até a morte.

De longe, um dos tipos de gênios mais estranhos são os nisnas. “Os nisnas parecem uma triste cópia do shiqq”, escreve El-Zein. É basicamente um híbrido humano-animal fraco que se esconde nas árvores e na névoa dos humanos. Acaba sendo presa com mais frequência do que predador. Em “Prados de Ouro” de al-Masudi, uma narrativa diz que as pessoas na região de Hadramaute, nos atuais Iémen e Omã, perseguiram os nisnas em busca de comida. Há uma cena de desenho animado em que um grupo de rastreadores entra em um bosque cheio de nisnas:

“Veja como o sangue deste aqui é vermelho!” diz um dos caçadores.

“Isso é porque ele comeu sumagre!” diz uma nisnas escondida em uma árvore.

“Nisnas! Pegue ele! gritam os caçadores, enquanto eles sobre caem as nisnas e as matam.

“Se ele tivesse ficado quieto, não o teríamos encontrado.”

“Estou ficando quieto!” diz outra nisnas do seu poleiro.

“Nisnas! Pegue ele! gritaram os caçadores novamente enquanto o agarraram.

E assim por diante. É muito engraçado, como assistir “Looney Tunes” ou “Benny Hill”, mas ao mesmo tempo estranhamente miserável. Os nisnas são mestiços, tímidos e em pânico, com pouca ou nenhuma autodefesa. Eles mal se mostram contra os poderosos humanos, cujo massacre dos patéticos nisnas reflete o padrão de “o poder faz o certo” que caracteriza a sociedade humana até o presente. Tal estado faz dos nisnas a ordem mais comovente dos gênios: em vez do medo, eles evocam sua emoção gêmea de piedade.

Além dos próprios gênios, que nos deram a palavra “gênio”, o outro espectro do Oriente Médio que veio para o inglês é o ghoul (árabe “ghul”). De certa forma, ghouls e gênios não poderiam ser mais diferentes. Embora conhecer um gênio possa trazer desejos ou presentes, a maioria das pessoas não deveria se envolver com um carniçal. “Ser chamado de macabro relatado é considerado um elogio”, escreve o estudioso literário Kevin J. Wetmore Jr. Ghouls são metamorfos, monstros feios que se passam por lindas mulheres que atraem viajantes tolos para a morte.

Este tropo é explorado por poetas pré-islâmicos que lamentam os seus entes queridos infiéis, como nas palavras de Kab ibn Zuhayr:

De forma em forma, ela gira e muda,
como um ghoul escapando de sua aparência.
Ela faz um voto e depois a segurança
como uma peneira de linho retém água.

Outro poeta pré-islâmico, o proscrito Taabbata Sharran, vangloria-se do seu triunfo sobre um ghoul depois de se envolver com ela numa escaramuça que durou toda a noite:

Fiquei preso em cima dela
para ver pela manhã o que havia me atacado:
Dois olhos na cabeça de um gato!
Língua bifurcada, pernas com cascos fendidos, couro cabeludo de cachorro
e um manto listrado como os odres velhos

Acima de tudo, os ghouls ficam à espera dos viajantes para que possam comê-los. Os carniçais são “os comedores de cadáveres originais”, escreve Wetmore em seu livro “Comedores dos Mortos: Mitos e Realidades dos Monstros Canibais”. Ele explica que, em alguns mitos, os carniçais “nascem” quando um humano se torna especialmente perverso ou come carne humana morta. Este último caso revela um medo básico de ser comido, que vem de um medo ainda mais profundo: deixar de existir.

Mas apesar de sua natureza terrível, os carniçais não são todos-poderosos. As lendas mostram que eles foram conquistados pelos humanos por meio da fé e também da força física. A história de “O Filho do Rei e a Ogra” da coleção de contos populares “1.001 Noites” conta a história de um jovem príncipe que conhece um ghoul na floresta. Ela tenta seduzi-lo, depois que ele ora por ajuda. “Melhor se ajudar com a grande riqueza do seu pai!” ela diz zombeteiramente, incentivando-o a orar mais. Ele faz isso e aponta o dedo para o ghoul, fazendo-a cair no chão e queimando até ficar crocante. Outra história bem conhecida de humanos versus carniçais aparece no épico popular, ou “sira”, de Sayf ibn Dhi Yazan, um verdadeiro rei do Iêmen pré-islâmico do século VI. Segundo a lenda, uma raça de ghouls surgiu depois que a esposa de um rei bruxo exilado foi estuprada por um lobo e depois engravidada pelo marido. A mistura de sentimentos de lobo e humanos – uma ligação entre monstros e caninos frequentemente vistos em tais lendas – gerou todo um Vale dos Ghouls Iemenita. Este rei Sayf finalmente foi eliminado sozinho.

É estranho que a maioria das pessoas não se lembrem dos ghouls como uma importação do Médio Oriente. Além dos gênios, os carniçais podem ser a mito mais duradoura do mundo islâmico no Ocidente. Eles aparecem no poema “The Giaour”, de Lord Byron, e no romance gótico “Vathek”, de William Beckford, que por sua vez passou pela tela do radar de HP Lovecraft. Desde a época de Lovecraft, os ghouls têm sido um elemento básico do terror ocidental. Robert Bloch, um dos membros do “Círculo de Lovecraft” e autor do romance “Psicose” que contribuiu para o filme homônimo de Alfred Hitchcock, escreveu histórias centradas em ghouls como “O Ghoul Sorridente” e “O Creeper na Cripta”. “Goosebumps” de RL Stine e o filme “Ghoulies” de 1985 falam do poder duradouro do mito. Com todas essas mudanças de aparência, parece que os ghouls ainda são os melhores metamorfos.

Por outro lado, os gênios têm um histórico misto. Aladdin é notoriamente ajudado por um gênio nas “1.001 Noites”. No capítulo 27 do Alcorão, “As Formigas” – uma versão da lenda judaica do Vale das Formigas, na qual Salomão passa velozmente por uma colônia de formigas em um tapete mágico – a história declara que “os exércitos de Salomão se uniram a ele, gênios e homens e pássaros, todos devidamente satisfeitos.” Isto mostra o alegado poder do rei israelense sobre a natureza, como ser capaz de falar com animais e gênios. Este último até o ajuda a derrotar seus inimigos. No entanto, em outras lendas, Salomão deve prender espíritos malévolos como “shayatin” (demônios) e “divs” (demônios) com a ajuda de um anel mágico. Em “1.001 Noites”, os leitores encontram a história de “O Mercador e o Jinni” sobre um comerciante que descuidadamente joga um caroço de tâmaras e mata um jovem gênio. O pai do gênio ameaça matar o comerciante, que escapa por quando pouco três velhos distraem os gênios com histórias.

Um pouco da tradição dos gênios que mostra sua relação de duas gengivas com os humanos é a noção, ecoando as musas da Grécia antiga, de que os gênios inspiram poesia e música. É uma ideia antiga, que remonta aos dias pré-islâmicos, mas é melhor retratada num ensaio do século XI de Ibn Shuhayd al-Andalusi, “O Tratado de Espíritos e Demônios Familiares” (“Risalat al-Tawabi wa-l-Zawabi” ). O narrador começa com seu próprio bloqueio de escritor incapacitante e como ele saiu dele. “Eu me vi diante de um cavaleiro na porta da câmara, montado em um cavalo negro como os cabelos de seu próprio rosto, apoiado em sua lança. Ele me chamou: 'Você é incapaz de continuar, jovem humano?'” Este é Zuhayr ibn Numayr, a musa dos gênios do narrador, que desencadeia um fluxo de pensamentos e palavras que levam ao próprio “Tratado”.

O narrador então pede a Zuhayr um passeio por poetas e ensaístas, cujos escritos são estimulados por seus gênios assistentes. Zuhayr o atende, mostrando alguns dos camaradas gênios de Zuhayr no ramo de incentivo à arte e à literatura. Há Utayba, o gênio do rei-poeta pré-islâmico Imru al-Qays, que monta uma égua em chamas enquanto canta: “Uma paixão sua foi despertada depois de ter sido subjugada!” Há também Husayn dos Jarros de Vinho, um velho bêbado e bigodudo sentado numa pilha de flores e cercado por meninos. Este é o gênio de Abu Nuwas, o poeta báquico cuja paixão pelo vinho e por fazer amor - tanto com homens quanto com mulheres - é lendária: 

Ó mosteiro de Hanna
com as apertadas celas dos monges -
outros podem ficar sóbrios com você,
mas eu nunca fico!

O “Tratado” passa a apresentar um salão literário de gênios, onde os espíritos debatem os méritos da poesia, e ainda uma cena com gênios em forma de burros e gansos falantes. Tudo isso explora o conhecimento comum sobre os gênios, remodelado em uma imagem vívida que retrata a fonte do gênio individual.

Mas se espíritos familiares e demônios são a fonte da poesia, então e os humanos? Somos importantes e poderemos algum dia saber de onde vêm nossas ideias? É divertido conversar com os gênios ou até mesmo receber dicas deles. Especular sobre a sua natureza permite-nos pensar sobre a nossa. No entanto, quando os espíritos partem e as máscaras são retiradas, resta o trabalho de ser humano, de encarar a nós mesmos e o que está claro à nossa frente. E isso pode ser mais assustador do que qualquer encontro com o mundo invisível.