segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O Mito de Abraão e Isaac segundo Søren Kierkegaard e José Saramago


Com a faca afiada colada a seu pescoço, prestes a ser degolado, o que passava pela mente do pequeno Isaac? Com o coração apavorado, golpeando com violência as paredes do tórax, que tipo de opinião sobre a fé e sobre a paternidade podem ter ocorrido ao garoto ao perceber-se na posição de ovelha-de-sacrifício? Eis algumas questões intrigantes que me ocorrem ao fim da leitura de Temor e Tremor, de Søren Kierkegaard (1813-1855), obra de tom altamente interrogativo, mas que pode ser complementada pelo leitor com uma multiplicação de novos pontos de interrogação.

Na pintura de Caravaggio, que retrata o momento em que Abraão vai sacrificar Isaac mas é impedido por uma intervenção angélica, enxergo uma cena de tortura. Na pintura, foquemos o olhar sobre o rosto de Isaac, contorcido pela angústia extrema, oprimido pela violência das mãos viris de Abraão: o que nos contam estes olhos infantis aterrorizados pela lâmina da faca ameaçadora? Diante deste quadro, é quase como se desse para ouvir o grito de Isaac, um berro quase Munchiano, reação visceral de uma criança incapaz de compreender o desatino do mundo encarnado na loucura de seu pai. Eu diria, Camusianamente, que Isaac está aí representado em pleno confronto com o Absurdo. Pois Abraão encarna nesta cena o famoso creio pois é absurdo.

Edvard Munch, “O Grito”


No prelúdio de seu livro, Kierkegaard pinta com palavras o retrato de Isaac abraçado aos joelhos de Abraão, caído aos pés do pai, implorando por sua jovem vida. Mas é algo bem diferente da misericórdia ou da ternura o que o filho descobre na atitude, a um só tempo intransigente e resignada, de Abraão-da-faca-na-mão. Este é um dos momentos cruciais desta narrativa mítica que nos mostra uma figura que, embriagada pela fé, acaba por suspender a ética: o velho está prestes a cometer um crime hediondo, o assassinato de seu próprio filho, pois acredita que os céus o ordenaram. A fé é uma das forças psíquicas capazes de varrer do quadro as mais básicas das atitudes éticas: não matar cessa de valer quando o crente acredita-se requisitado por seu deus a assassinar o ímpio ou a sacrificar a vítima apontada pelo dedo invisível do divino.

Diante de Abraão, não há como evitar a questão: estamos diante de um santo ou de um louco? Eis um herói a ser celebrado, ou então um psicopata perigoso digno de ser metido no hospício? Devemos louvar esta heróica demonstração de obediência à vontade divina, ou lamentar a psicopatologia que levou este demente senil às beiras de cometer um ato grotesco? Devemos imitar o exemplo desta obediência pia e estrita aos ditames de um deus suposto, ou devemos ler esta narrativa como um símbolo dos perigos que há nestes vícios (humanos, demasiado humanos!) da idolatria e do fanatismo?

Nossa tendência é lidar com a história de Abraão e Isaac, narrada no Gênesis, com a tranquilidade daqueles que já conhecem seu “final feliz”: sabemos que tudo não passou de um teste, de um julgamento, uma espécie de “trote” divino. Ufa, tudo não passou de um blefe! Sabemos que Abraão não consuma seu ato sacrificial sangrento e que só pode ser acusado de um quase-assassinato. Além do mais, a tradição judaico-cristã inteira posteriormente tratou de desenhar auras de santidade sobre a cabeça do “Pai da Fé”: somos todos convidados a imitá-lo como modelo, já que nada apraz mais ao deus único, criador ex nihilo de tudo, do que uma criatura que sacrifica a autonomia de seu intelecto para tornar-se plenamente obediente aos ditames do céu…

O que mais me emociona no prelúdio de Temor e Tremor é o modo como Kierkegaard pinta a perspectiva da vítima: voltando para casa depois do quase-sacrifício, pai e filho, rumando ao reencontro com a mãe Sarah, estão caminhando lado a lado, mas separados por um intransponível abismo. Isaac, escreve Kierkegaard, “tinha perdido a fé.” [1] Para Isaac, não houve final feliz coisa nenhuma, apenas a vivência traumática de uma tortura absurda; para Isaac, o episódio com certeza fez com que se rompesse a confiança que um filho deposita na boa vontade de seu pai, e é de se suspeitar que nunca mais, depois daquilo, Isaac conseguirá permanecer na presença de Abraão sem o temor e tremor que sente alguém diante de um psicopata perigoso.

Rembrandt, Sacrifício de Isaac, 1635

Temor e Tremor, é claro, não é um livro sobre a perda da fé, mas muito mais um tratado psicológico que se debruça sobre Abraão, descrito como o “cavaleiro da fé” [the knight of faith, na tradução inglesa], tão crente que está disposto a extinguir a vida do próprio filho amado se Deus assim ordenar. Kierkegaard escreve mais como poeta do que como pregador, questionando mais do que dogmatizando, ainda que no geral o tom seja de elogio e admiração à figura de Abraão. Tanto é assim que o segundo capítulo é umpanegírico onde o leitor é convidado a empatizar com o sofrer de Abraão, que tanto havia ansiado por um filho, que conquistou somente em sua velhice, e que descobre-se ameaçado de perder o rebento que ama tão intensamente pois a divindade exige seu sacrifício.

Alguns dos trechos mais belos do livro são aqueles em que Kierkegaard, ainda que timidamente, ousa questionar os supostos ditames do criador, perguntando: que diabos de deus é este capaz de exigir que um homem, já com os cabelos brancos, aniquile aquilo que mais ama neste mundo, seu filho único? “Não há compaixão alguma pelo venerável idoso, nenhuma pela criança inocente?” [2] Interrogações como estas, porém, são raras em Temor e Tremor, obra que não chega a questionar seriamente a existência deste deus que Abraão supõe como ordenante do sacrifício. Leitores ateus, agnósticos e céticos podem perguntar-se: e se tudo não passa de um delírio subjetivo de Abraão? E se a “voz de Deus” não for nada além de uma ilusão psíquica que acomete o cérebro senil do patriarca? Se Deus não existe, há qualquer possibilidade de sustentar que Abraão agiu de modo “heróico”? Ou ele foi nada mais do que um fanático que só não tornou-se assassino por um triz?

Na tragédia grega, podemos encontrar um caso semelhante ao de Abraão e Isaac: em Ifigênia em Áulis, Eurípides narra as ocorrências que precederam o início da Guerra de Tróia. Os exércitos chefiados por Agamemnon já estão a postos, preparados, ansiosos por embarcar para a carnificina. Mas as intempéries impedem as naus de navegar a contento rumo às terras de Príamo, onde Helena encontra-se após ser sequestrada (ou seduzida?) por Páris. Apesar das diferenças consideráveis entre o politeísmo grego e o monoteísmo judaico-cristão, há um certo paralelismo: tanto Ifigênia quanto Isaac são escolhidos como vítimas sacrificiais pois acredita-se que assim ordena o divino. A maior diferença entre Agamemnon e Abraão não é tanto entre um crente politeísta e um crente monoteísta, mas entre um homicida consumado e um quase-homicida. Ifigênia, a filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, irmã de Orestes e Electra, não tem a sorte de Isaac: ela não escapa da faca. É um episódio que o poeta-filósofo Lucrécio descreve, em seu Da Natureza, com o horror que sente o homem lúcido diante das atrocidades cometidas por mentes transtornadas pela superstição:

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), O Sacrifício de Ifigênia

“Na maior parte das vezes foi exatamente a religião que produziu feitos criminosos e ímpios. Foi assim que em Áulis os melhores chefes gregos, escol de varões, macularam vergonhosamente com o sangue de Ifigênia o altar… E em nada podia valer à infeliz, em tal momento, ter sido a primeira a dar ao rei o nome de pai. Foi levantada pelas mãos dos homens e arrastada para os altares, toda a tremer, não para que pudesse, cumpridos os ritos sagrados, ser acompanhada por claro himeneu, mas para, criminosamente virgem, no tempo em que deveria casar-se, sucumbir, triste vítima imolada pelo pai, a fim de garantir à frota uma largada feliz e fausta. A tão grandes males pode a religião persuadir.” LUCRÉCIO. Da Natureza das Coisas. [3]

A tragédia grega mostra o ato de Agamemnon em todo seu horror, como violação de um preceito ético fundamental, e as consequências dele para este família serão desastrosas: como narrado na trilogia de Ésquilo, Oréstia, a mãe de Ifigênia, Clitemnestra, transtornada pelo luto e pela ira, tratará de vingar-se de seu marido, o assassino da primogênita do casal. Assim que ele retornar de Tróia, triunfante na guerra porém esquecido de que deixou em casa alguém que o odeia intensamente, Agamemnon será por sua vez trespassado pelo punhal da vendeta. O ciclo de violências multiplica-se: a vingança de Clitemnestra contra Agamemnon alimenta a fúria de Orestes, que encaminha-se então para o matricídio… O theatrum mundi inunda-se de sangue.

Em Temor e Tremor, Kierkegaard não ousa penetrar tão fundo na sondagem das relações entre fé e violência: no livro, quase não aparecem palavras como “superstição” e “fanatismo”, tão aptas a descrever o tipo de demônio que traz Abraão sob seu domínio. Em sua Expectoração Preliminar, porém, faz esta interessante reflexão: alguém que ouvisse, na missa de Domingo, um padre a narrar o mito de Abraão e Isaac, poderia sair dali convencido de que não há melhor prova de amor à Deus do que sacrificar na terra a pessoa que mais ama. Impelido pelo sermão, levantaria o punhal contra o próprio filho e depois diria à polícia, enquanto é conduzido ao presídio ou ao hospício, que agiu sob a influência da edificante parábola que ouviu na igreja. Se a imitação de Abraão se transformasse em algo epidêmico, em que mundo viveríamos? Não é perigoso acreditar que a fé tem o direito de suspender a ética? Que sociedade resulta da disseminação da crença em uma divindade transcendente faminta por sacrifícios e imolações?

O que Kierkegaard destaca de modo recorrente é o paradoxo que se manifesta no mito de Abraão e Isaac, em que Deus exige o crime e atentação consiste em agir eticamente. É nesse contexto que Kierkegaard mobiliza o conceito de absurdo, tão caro aos pensadores existencialistas, especialmente Albert Camus: há um paradoxo incontornável em um deus que exige do devoto que corte a goela do filho que adora, já que então revela-se como um deus anti-ético. Ora, se este deus é compreendido como tendo como atributos a justiça, a bondade e o amor, como compreender que exija de Abraão algo de tão absurdo quanto a violação explícita do preceito evangélico não matarás? Um deus que exige beber o sangue das crianças será mesmo um deus autêntico ou somente um demônio disfarçado?

A multiplicação de tais dúvidas teológicas só nos conduz ao exacerbamento da sensação de absurdo e de paradoxo – e talvez não haja saída deste labirinto a não ser pela via do ateísmo: um deus malvado é uma contradição, um paradoxo, uma impossibilidade, e desta aporia só escapamos ao concluir que este deus das carnificinas nunca existiu fora das imaginações humanas. É um argumento sintetizado belamente por José Saramago, em artigo publicado logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001: “Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou.” [4] Em um de seus últimos romances, o autor português faz seu Caim sintetizar uma posição atéia, de rebeldia contra o deus bíblico que é tão frequentemente um genocida, praticante do assassinato em massa pela via dos dilúvios e das hecatombes, deixando vivos só um punhado de eleitos:


“A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto”, sustenta Caim, que quando confrontado com a tese de que “Deus está em todo o lado”, replica: “Uma só criança das que morreram feitas tições em Sodoma bastaria para o condenar sem remissão.” [5] Se evoco aqui a obra literária e o pensamento anti-teísta do Prêmio Nobel de Literatura lusitano é para melhor ilustrar o “tremendo paradoxo da fé” que Kierkegaard explora em Temor e Tremor: como é possível a transformação do homicídio em um ato sacro? Só por ser cometido com fé, o homicídio deixa de ser um pecado para tornar-se uma prática santa que agrada aos céus?


A ética, sustenta Kierkegaard, é universal, aplica-se a todo mundo, o tempo todo: não há época histórica ou localização geográfica onde não seja uma atrocidade, do ponto de vista ético, o homicídio dos inocentes – como aquele que perpetra Medéia contra suas crianças. Em outras palavras: a ética prescreve, como mandamento universal, o dever maternal e paternal que proíbe tratar os filhos como sacrificáveis. O problema, portanto, está na reputação cheia de honra e glória de que goza Abraão, como pai da fé e patriarca do monoteísmo, quando o mesmo Abraão é um violador da ética, já que ergueu a lâmina para assassinar Isaac. Eis o paradoxo e o absurdo: a divindade demanda a suspensão da ética; deus é o mandante de um crime; a fé é o heroísmo maluco e a loucura sagrada através do qual alguém peca contra o universal.

Se Abraão simboliza tão bem o que significa ter fé, é pois leva ao extremo a fidelidade cega e a obediência absoluta à divindade (ou ao que supõe ser a “vontade do deus”). Sua submissão é tão total que ele está pronto a obedecer a um deus que ordena assassinatos ao invés de rebelar-se contra ordens que ofendem radicalmente a consciência moral. Recusar-se a cumprir o sacrifício do primogênito seria uma atitude bastante razoável de qualquer pai apegado ao filho de sua carne e motivado pela chama do amor paternal. Abraão só tornou-se tão célebre por seu extremismo, por sua intransigência, por esta extraordinária teimosia na fé e que merece ser chamada, apesar de Kierkegaard não fazê-lo jamais, de fanatismo. 

A absurdidade do mito consiste nisto: a divindade, que se presume o princípio criador do Bom, do Belo e do Justo, exige do homem-de-fé que cometa um ato hediondo, horrendo e injusto. Se este deus é amor, como é possível que exija, como prova de fé, um ato que é transgressão obscena do amor? A tentação, para Abraão, é justamente a ética: respeitar o dever universal, que exige de um pai a proteção e o cuidado para com seu(s) filho(s), equivale neste caso à desrespeitar o mandamento divino. O que falta em Temor e Tremor é justamente um questionamento mais amplo e sistemático da possibilidade de que Abraão esteja alucinando, que tudo não passe de um delírio senil, que o absurdo está na cabeça de um velho e não no ser das coisas. Para ser bem rude com a obra de Kierkegaard, eu perguntaria: para que gastar tanta palavra de interpretação teológica deste mito, se em algumas páginas seria possível argumentar que este deus em que Abraão crê não passa de um déspota imaginário fabricado pela fantasia de um velho crédulo?

É uma interrogação inescapável: aquilo que se chama de “amor à deus” é realmente a maior de todas as virtudes e deve ser colocado acima de todo e qualquer dever ético? O Novo Testamento fornece-nos também razões de sobra para desconfiar que um paradoxo pernicioso, prenhe de consequências sangrentas, está alojado e embrenhado na ideologia religiosa de nossa tradição judaico-cristã: em Lucas (14: 26 e 33), Jesus de Nazaré exige: “Se alguém vier a mim, e não odiar a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. […] Qualquer de vós, que não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo.” [6]

É essa a religião que querem nos vender como amorável e caridosa? É este o profeta que devemos honrar de joelhos nas igrejas? Kierkegaard viu bem que estamos lidando com um conceito de deus que requer um amor absoluto que se expressa através da renúncia a amar pessoas de carne-e-osso. Eis um deus que exige ser amado mais que tudo, na exclusão de tudo, e que como prova de fé demanda que o amor entre pai-e-filho seja aniquilado em um altar. A um deus destes eu me recuso a tirar meu chapéu. Não acho que mereça minha devoção. E mais: bateria boca com Kierkegaard, que quer pintar auréolas sobre Abraão e dizer que a fé é a mais elevada das paixões humanas. Aquele que é capaz de levantar a lâmina fatal contra o próprio filho não me parece um herói a ser celebrado, mas um caso clínico; não um adorável modelo de conduta mas um nocivo psicopata; não a ilustração dos caminhos que o sábio deve seguir mas o contra-exemplo que nos conta daquilo que faremos bem em evitar: o fanatismo, a obediência cega, a fé que dá licença à suspensão da ética e ao cortejo das atrocidades.



“…o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac… atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar… Sou Caim, sou o anjo que salvou a vida de isaac… e não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida.” [7]

Um dos méritos maiores da obra de Saramago está na coragem quase punk em que ele escancara os absurdos da fé com sua sagaz mordacidade atéia, desfazendo alguns dos mais arraigados preconceitos ainda hegemônicos em nosso mundo, como por exemplo a ideia de que crimes obscenos e horrendos são realizados por gente “sem fé no coração”. Tais comentários ateofóbicos que pretendem explicar os ímpetos criminosos a partir de um déficit de fé em Deus caem por terra quando atentamos para o fato de que a fé é com frequência a justificativa e a motivação para atos criminosos – e não somente no âmbito mítico, como vimos nos casos de Abraão e Agamemnon.

Para retornar ao tema do artigo saramaguiano publicado logo após o 11 de Setembro de 2001, é explícito neste caso o quanto os atentados terroristas foram realizados por homens cheios de fé, e que se imolaram nos ataques camicase na esperança de que Alá os aplaudiria e já preparava para eles um paraíso de delícias e privilégios no Além. De modo bastante similar, a resposta militar dos EUA e seus aliados, na invasão do Afeganistão e do Iraque, baseou-se largamente em justificativas teológicas, com o uso e abuso da noção maniqueísta de um Eixo do Mal (islâmico) a ser derrotado pelas forças do Bem (cristãs) – como se os bombardeios genocidas e as torturas institucionalizadas nas prisões (como Abu Ghraib e Guantánamo) fossem suspensões da ética completamente válidas, já que seus praticantes estavam a serviço do Deus verdadeiro (além de favorecendo com suas bombas e matanças um outro deus… a Mão Invisível do Mercado, que não funciona jamais sem seu aliado, o punho-de-ferro das violências coercitivas e da pilhagem do petróleo alheio…). “Se Deus não existisse”, sugere um personagem de Dostoiévski, “tudo seria permitido”; ora, a experiência histórica nos conduz a pensar, ao contrário, que na verdade são aqueles para quem Deus existe indubitavelmente, os cavaleiros da fé que jamais duvida de si, que agem na base do “tudo é permitido”.

Em suma: a versão oficial do mito de Abraão e Isaac nos conta de uma intervenção divina que, na hora H (a hora do Homicídio), salva Isaac da faca, salvando ao mesmo tempo Abraão de transformar-se em assassino e salvando o deus em que ele crê de virar um mandante de um crime hediondo. Para encerrar este texto, repleto de blasfêmias sadias e heresias essenciais, eu sugeriria uma interpretação mais realista do mito: não foi uma angélica aparição o que impediu Abraão de consumar o sacrifício, mas um lampejo súbito de bom senso, um clarão salvífico de dúvida, uma hesitação providencial de último instante, um insight da absurdidade daquilo que ele estava prestes a cometer. Se a fé de Abraão tivesse sido de fato imperturbável, irremovível, intransigente, Isaac teria sido transformado de criança em cadáver. No último instante, porém, Abraão deve ter duvidado de deus e de si: e se eu estiver louco? E se meu deus não for senão delírio? E se eu tiver compreendido mal seus ditames? E se não houver ninguém nos céus mas apenas um desarranjo e um desatino nos meus miolos?

A fé teria assassinado Isaac; a dúvida acabou por salvá-lo.

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