terça-feira, 27 de março de 2012

Raymond E. Brown, “como se deve entender o beijo de Judas?"


Madrugada de quinta para sexta-feira, arredores de Jerusalém, Palestina ocupada. Lá vem ele. Acompanha-o uma turba armada “de espadas e paus”, segundo um dos principais cronistas do evento. Sua vítima o espera, cheia de angústia. Quando os dois se encontrarem, vai se dado a mais desprestigiosa utilização que uma saudação geralmente tida por amistosa já conheceu. O mesmo cronista informa que o homem vinha chegando combinara com a turba: “É aquele que eu beijar. Prendei-o e levai-o bem guardado”. Num beijo se concentrará a torpeza sem nome da traição! Nosso cronista, conhecido apenas por prenome, Marcos, prossegue: “Tão logo chegou, aproximando-se dele, disse:” Rabi!”E o beijou. Eles lançaram a mão sobre ele e o prenderam.”

Que havia nesse beijo, o mais escandaloso da História do mundo, ocorrido há mais ou menos 1.965 anos com o qual o vil aventureiro chamado Judas entrega Jesus? Ou, para colocar a questão nos termos de um dos maiores especialistas nos evangelhos, o padre americano Raymond E. Brown, no nível da História ou da verossimilitude, como se deve entender o beijo de Judas? Brown responde:

“Se o beijo era uma saudação normal, que podia ser usado por qualquer conhecido, ou numa saudação costumeira entre Jesus e os discípulos, então ele poderia convir à trama daqueles que tinham pagado Judas para evitar uma resistência ruidosa e conseqüentemente ao desejo de Judas de parecer normal. Se não era uma saudação normal, mas um gesto incomum, implicando especial afeição, então Judas era um hipócrita malévolo”.

Em nenhum outro lugar dos evangelhos Jesus e os discípulos são mostrados trocando beijos, mas esse silêncio “pode ser acidental”, escreve Brown. Ele se inclina para a hipótese de que o beijo era uma saudação normal, e Judas o aplicou para não parecer suspeito. Contra essa tese há uma objeção forte: se Judas acabara de estar com Jesus, na última ceia, por que saudá-lo de novo? Mas, conclui Brown, “a freqüência das saudações normais, por exemplo, o aperto de mão, varia grandemente entre os povos; e temos muito pouca idéia de quão freqüentemente os palestinos as trocavam”.

Transcrevem-se aqui as conjeturas sobre o beijo para exemplificar o nível de minúcia a que podem chegar os estudiosos de um texto como o de Marcos. Qualquer texto oferece a possibilidade de discussão. Quanto mais valha a pena, mais fecunda será sua dissecação, seja por que a ótica for - gramatical, literária, histórica, filosófica, sociológica, psicológica, antropológica ou teológica. Ao longo dos últimos vinte séculos, no entanto, nenhum texto foi objeto de tanta dissecação, e tanta discussão, quanto os evangelhos Marcos, Mateus, Lucas e João., os autores canônicos, ou seja “oficiais” da cristandade. E, dentro dos evangelhos, nenhum trecho despertou tanto interesse, tanta emoção e discussão quanto a paixão e a morte de Jesus que os cristãos comemoram a partis de quinta-feira, na Semana Santa.

Não há relato tão longo e detalhado, nos evangelhos. A infância só é abordada por dois evangelistas, Mateus e Lucas, e sumariamente. A parte do ministério de Jesus é uma coleção de pequenos episódios biográficos, milagres e parábolas. Já a paixão tem começo, meio e fim. Cada evangelista apresenta detalhes exclusivos - só Mateus dá conta da morte de Judas, por exemplo, e só João reproduz um longo diálogo entre Jesus e Pilatos. Apesar disso, com ligeiros desvios em João, que é o evangelho mais diferente, há uma seqüência comum delação, prisão, julgamento pelas autoridades religiosas judaicas, julgamento pela autoridade romana, execução e enterro, com episódios de zombaria de Jesus intercalando algumas dessas cenas. Tudo somado mostra-se uma peça de insuperável força dramática.

Com o beijo de Judas, estamos entrando nesse universo misterioso. E logo se impõe a pergunta: o beijo existiu de verdade? Acompanhe-se o raciocínio de um segundo autor, o israelense Haim Cohn. Jesus tomara-se conhecido em Jerusalém, onde tinha entrado triunfalmente, montado num asno. Diariamente estava no Templo, pregando. Então, por que alguém precisaria identificá-lo e entregá-lo? Prossegue Cohn: "A explicação em geral apresentada para tornar plausível a história é a de que os principais sacerdotes tinham muito medo do clamor popular". Por isso, determinaram prendê-lo à noite, e fora da cidade. No entanto, argumenta o autor, o evangelho de Lucas informa que toda noite Jesus ia ao "monte chamado das Oliveiras". O evangelho de João o confirma. As autoridades não precisariam de informante para apanhá-lo. Para Cohn, a história da traição de Judas é "tão improvável, tão incongruente", que merece crédito".

Um terceiro autor, o irlandês radicado nos Estados Unidos, John Dominic Crossan, tem uma posição mitigada. Ele aceita que Jesus tenha tido um seguidor chamado Judas, e que esse seguidor o tenha traído. Mas não aceita a cena do beijo, cuja intenção, a seu ver, é apresentar Judas em cores caricatamente cruéis. Crossan lança uma hipótese: Judas teria sido preso antes de todos, durante uma ação da qual se falará adiante, e teria delatado Jesus.

Judas é o ponto de partida. Este artigo seguirá a paixão e a morte, tendo por baliza três perguntas: quem matou Jesus? Por quê? Como? Advirta-se de antemão que não há respostas conclusivas. O que se apresentará são as teses dos eruditos. Especificamente, vai-se seguir a trilha de três livros, dos três autores já citados. O primeiro é The Death of the Messiah (A Morte do Messias), um monumental estudo de 1600 páginas e dois volumes lançado no ano passado nos Estados Unidos (Doubleday) pelo padre Raymond Brown, professor da Union Theological Seminary, de Nova York. O segundo é Who Killed Jesus? (Quem Matou Jesus?), que John Dominic Crossan, antigo padre, hoje professor de estudos bíblicos da Universidade DePaul, em Chicago, lançou há poucas semanas, também nos Estados Unidos (HarperSan Francisco), em resposta ao livro de Brown. O terceiro é O Julgamento e a Morte de Jesus, de Haim Cohn, um livro de 1967, lançado no ano passado no Brasil (Imago), que apresenta a originalidade de o autor ser judeu e ter ocupado os cargos de procurador-geral e, depois, juiz da Suprema Corte de Israel.

Daquilo que está nos evangelhos, o que realmente aconteceu? Não é à toa que esta é a pergunta mais recorrente, nesta matéria. Tem-se repetido sempre que o cristianismo é uma religião histórica, no sentido de que se apóia não em um deus ou deuses mitológicos, mas numa figura de existência real, que viveu numa determinada parte do globo, num determinado período, e teve sua trajetória condicionada pelas circunstâncias da época e do local. Brown, no entanto, adota uma abordagem que em primeiro lugar investiga o que o evangelista quis exatamente dizer - quais as tradições que inspiraram seu texto e que mensagens ele procura transmitir. Segundo ele, a "obsessão com a história pode constituir uma obstrução ao entendimento dos evangelhos". A intenção dos evangelistas, lembra ele, era evangelizar, e Brown não exclui que, para isso, se tenham utilizado de variados recursos - inclusive a ficção.

Os evangelistas, pessoas que mal se sabe quem são, e onde viveram, não trabalharam com informações de primeira mão. Há um consenso entre os eruditos, hoje, de que seus trabalhos datam de no mínimo quarenta anos depois da morte de Jesus, sendo o mais antigo o de Marcos (escrito por volta do ano 70 a.D.), e o mais novo o de João (cerca de 10 a.D.). Nas narrativas da paixão, os evangelistas incluíram personagens e situações inesquecíveis - as negações de Pedro antes de o galo cantar, os sumos sacerdotes Anás e Caifás, o bom e o mau ladrão - e uma bomba-relógio. A bomba-relógio são as fortes acusações contra os judeus, tratados como responsáveis pela morte de Jesus. Ela foi estourando com intensidade variada ao longo dos séculos. Na Idade Média, segundo informa o livro de Brown, cultivava-se em Toulouse, na França, uma cerimônia da paixão durante a qual um judeu era trazido à catedral para receber um soco do conde da cidade. Houve práticas mais atrozes, como se sabe.

Crossan escreve: “O que estava em jogo nas narrativas da paixão no longo curso da história, era o Holocausto judeu”.

A própria figura de Judas tem a ver com o que se está dizendo. Seu nome, nota Brown, é etimologicamente ligado a “judeu”. Na arte, muitas vezes, carregaram-lhe os traços considerados “semitas”. Seu gosto pelo dinheiro foi generalizado para um povo. Santo Agostinho sustentava que, enquanto Pedro representa a Igreja, Judas representa os judeus. A história da Paixão tem duas vítimas, como se mostrará nas páginas seguintes. Jesus é uma. O povo judeu é a outra.

Prisão

No jardim de Getsêmani, com o traidor, chega a tropa. Quem se encarregou de prender? E por quê? E quem mandou?

A agonia de Jesus começa num jardim. Ali, no lugar chamado Getsêmani, no Monte das Oliveiras, ele começou a "apavorar-se e angustiar-se” segundo Marcos, e rezou para o Pai: "Afasta de mim este cálice". Os discípulos dormiam, em vez de vigiar. Ele estava só. "A minha alma está triste até a morte", disse. Logo chega Judas, à frente do grupo que o iria prender. Que grupo era esse? Quem prendeu Jesus? Eis uma primeira questão crucial, quando se investiga quem o matou e por quê?

Marcos escreve que, com Judas, vinha "uma multidão trazendo espadas e paus, da parte dos chefes dos sacerdotes, escribas e anciãos". Mateus o acompanha. Lucas acrescenta que, entre os que vieram prender Jesus, estavam “chefes dos sacerdotes, chefes da guarda do Templo e anciãos". João afirma que Judas levava uma “coorte", além de "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Escreve Brown: "Marcos e Mateus não dão sinal da presença de uma unidade militar ou policial regular no Getsêmani". Mas Lucas, ao acrescentar a presença dos chefes dos sacerdotes e da guarda do Templo, "afasta qualquer tom de uma populaça irregular”, segundo Brown. De todo modo, até aqui se sugere a predominância, se não a exclusividade, da presença de judeus. Já João dá conta de uma "coorte", e assim introduz a presença romana na cena. "Coorte" é uma fração do Exército romano, equivalente a 600 soldados, ou 1 décimo de uma legião.

Começa-se a desenhar a coligação que, segundo os evangelhos, vai encurralar Jesus até a cruz - a dos judeus com os romanos. Que peso atribuir a um e outro grupo, se é que, um e outro realmente merecem arcar com algum, é uma questão crucial. A interpretação convencional e popular, formulada a partir do valor de face dos evangelhos, é de que os romanos foram mais lenientes. A maior autoridade da região, Pôncio Pilatos, até queria soltar Jesus, mas esbarrou na intolerância dos judeus. Brown cita em seu livro o sumário de um autor alemão, J. Blinzler, reunindo os cinco níveis de envolvimento de um ou outro grupo, segundo as diversas conclusões dos eruditos: (1) Judeus totalmente responsáveis pela morte de Jesus, com os romanos reduzidos à sua mera implementação; (2) Judeus tendo um papel decisivo, cabendo aos romanos uma porção menor; (3) Judeus e romanos igualmente envolvidos, (4) Romanos tendo um papel decisivo, cabendo aos judeus uma porção menor; (5) Romanos totalmente responsáveis, sem envolvimento judeu.

Entre os diferentes graus dessa escala tem-se desenrolado a questão mais polêmica da paixão, e uma das mais polêmicas do mundo. Para situar a discussão, recordem-se os pontos fundamentais da situação política na Palestina, na época. Havia cerca de 100 anos, a região havia sido incorporada ao Império Romano. Do ponto de vista administrativo e judicial, porém, a situação era complexa. Na GaliIéia, ao norte, onde Jesus viveu e pregou a maior parte do tempo, reinava, embora devendo obediência à autoridade romana, um judeu, Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande. Na Judéia, onde fica Jerusalém, a autoridade romana era exercida diretamente, por meio de um governador, Pôncio Pilatos. Mas mesmo na Judéia os romanos permitiam a sobrevivência de órgãos judaicos de governo, o principal dos quais era o Sinédrio, do qual muito se ouve falar nos evangelhos. O Sinédrio era uma assembléia com supremo poder sobre questões religiosas, mas também algum poder em questões administrativas e judiciais. A situação confusa, sobre a qual há escassa documentação, é propícia a que se estabeleçam explicações e versões divergentes.

Somados, os evangelhos e as evidências da situação política na Judéia sugerem aos estudiosos que havia romanos na prisão de Jesus. Argumenta Brown que João não inventaria a participação romana, ele que se mostrará tão simpático a Pilatos, no julgamento. Mas teria sido mobilizada uma coorte inteira para a operação no Getsêmani? Os romanos, informa o livro de Brown, não tinham em Jerusalém um número tão grande de soldados que pudessem dispor de 600 deles só para esse fim. "Coorte", supõe Brown, teria sido usada pelo evangelista de uma maneira "popular, inexata", da mesma forma como se fala em "legiões romanas”, sem atenção à precisa quantidade das tropas.

No Getsêmani já se estrutura o Jesus de cada evangelista, na paixão. O de Marcos, seguido por Mateus, é aquele Jesus solitário que se apavora e se angustia. “Para Marcos/Mateus, a paixão é uma descida para o abismo durante a qual Jesus hesitará, ao não encontrar apoio humano”, escreve Brown. Abandonado pelos discípulos, ele atravessará um túnel escuro até, nota Brown, o grito desesperado na cruz: "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?" O de Lucas não foi abandonado pelos discípulos nem se confessará "triste até a morte". "Os leitores ficam com a sensação de que Jesus está em comunhão com seu Pai todo o tempo, tanto que, apropriadamente, as últimas palavras do crucificado não são um grito angustiado para seu Deus por quem se sente abandonado, mas um tranqüilo. ‘Pai,em tuas mãos entrego o meu espírito'." 0 Jesus de João é triunfante. Ele estará sempre no controle da situação. Quando enfrenta Pilatos, até parece que ele é que julga o governador romano, não o contrário. No Getsêmani, quando chegam às tropas, Jesus adianta-se e pergunta: "Quem procuras?" Os soldados respondem procuram Jesus de Nazaré, e Jesus responde: "Sou eu". Nesse momento soldados recuam e caem por terra pelo poder de Jesus, mesmo sobre a tropa romana, é o interesse do evangelista”, escreve Brown.

Questão seguinte: quem mandou prender, e por quê? Marcos data dos incidentes do Templo, quando Jesus ali entrou, virou as mesas e cadeiras dos comerciantes, e os expulsou do local. O início da conspiração para matá-lo. Jesus passou a ensinar que aquela devia ser uma casa de orações, não um covil de ladrões. "Os chefes dos sacerdotes e os escribas ouviram isso”, prossegue o evangelista, “e procuravam como matá-lo: eles o temiam, pois toda a multidão estava maravilhada com o seu ensinamento”.

Os “chefes dos sacerdotes” e os "escribas”, com freqüência acompanhados dos "anciãos", formam uma tríade sempre ao encalço de Jesus, nas narrativas da paixão. Em certos momentos cruciais, a coroá-los, se mencionará o “sumo sacerdote”. Quem são essas figuras? O sumo sacerdote, no período da ocupação romana, era nomeado pelo governador, que o escolhia entre as famílias judias dominantes. Caifás era então o Sumo Sacerdote, genro de Anãs, cuja influência aparentemente ainda se fazia sentir. Os “chefes dos sacerdotes", segundo Brown, “eram provavelmente antigos sumos sacerdotes, ao lado de preeminentes membros de famílias entre as quais sumos sacerdotes recentes haviam sido recrutados, e algumas pessoas a que tinham sido confiadas especiais missões sacerdotais”. Os “anciãos" seriam patriarcas das famílias “mais ricas e distintas”, e os escribas, pessoas que se destacavam “pela inteligência e cultura", entre as quais se encontrariam os fariseus. Grosso modo, esses três grupos constituiriam o Sinédrio, que no total contava 71 membros.

João apresenta outra versão. Segundo ele, foi o fato de ter ressuscitado Lázaro que desencadeou a conspiração contra Jesus. Esse prodígio lhe atraíra muitos seguidores, informa esse evangelista. Os “chefes dos sacerdotes e os fariseus reuniram então o Conselho ­(Sínédrio) e disseram:” Que faremos? Esse homem realiza muitos sinais. “Se o deixarmos assim, todos crerão nele, e os romanos virão, destruindo o nosso lugar santo e nação”. Conclui João que “a partir desse dia decidirão matá-lo”. Segundo Brown, o evangelho de João nesse ponto obedece a imperativos teológicos: ele quer contrastar a vida dada a Lázaro com a morte prometida a Jesus.

Brown é um comentarista tão informado quanto cauteloso. Seu livro, de vocação enciclopédica, resume e aprecia o trabalho e as teorias de mais de 2 000 eruditos, mas não se esperem dele teses audaciosas. Sua tendência é a interpretação conservadora dos evangelhos: as desordens no templo. Marcos situa o início da conspiração em seguida ao incidente no Templo, mas isso no contexto de uma disputa intra-religiosa e do ciúme de seguidores que Jesus vinha arregimentando. Crossan desprega-se da letra do texto evangélico para propor que o problema foi de ordem pública. O quebra-quebra é que incomodou.

O Templo era a expressão visível do judaísmo. “Assim como ha­ via um só Deus, havia um só Templo”, escreve Crossan. Era o lugar de onde emanava a suprema autoridade religiosa, mas dotada também de ampla autoridade temporal, com seu poder coercitivo de exigir obediência e cobrar taxas, num tempo - e num povo - em que mal se separavam os conceitos de autoridade religiosa e temporal. Era uma expressão do poder, portanto, e nessa qualidade, segundo Crossan, despertava sentimentos ambíguos entre os pobres filhos do campesinato como Jesus. “ Era ele (o Templo) o lugar das preces e sacrifícios ou o lugar dos dízimos e das taxas?”, escreve Crossan. "Era a morada divina ou o banco central? Era a ligação entre Deus e eles (os camponeses), entre o céu e a terra, ou a ligação entre religião e política, entre os colaboracionistas judeus e o ocupante romano?" Eram as duas coisas, conclui o autor.

O ato de Jesus contra o Templo, segundo Crossan, foi "bastante claro". Foi como, nos Estados Unidos, "invadir um centro de recrutamento, durante a Guerra do Vietnã, e virar todas as gavetas e suas fichas.” Teria sido um ato contra o poder e a política dominante, em suma, e acresce que isso ocorreu quando se aproximava, ou já se vivia, a festa do Pessah, a Páscoa do judeu, ocasião em que multidões de peregrinos acorriam a Jerusalém e mais nervosa se tornava a susceptibilidade quanto a pos­síveis desrespeitos à ordem. O Pessah comemora a libertação dos judeus da escravidão a que eram submetidos no Egito, "e esta lembrança anual deve ter sido especialmente difícil quando o Egito tinha sido substituído por Roma e a pátria judaica não era mais o lugar da liberdade, mas de ocupação colonial”, escreve Crossan. E acrescenta: “Imagine-se um grande número de pessoas reunidas num espaço muito confinado para celebrar sua antiga libertação da escravidão com um reizinho herodiano ou um prefeito romano agora no poder e soldados pagãos vigiando o Templo a partir da Fortaleza Antonina, no seu canto noroeste".

Causar turbulência no Templo era algo que as autoridades não poderiam tolerar, conclui Crossan, e é aqui que ele arrisca uma opinião sobre qual poderia ter sido o papel de Judas: "Minha suposição é de que Judas possa ter sido capturado entre os companheiros de Jesus, durante a ação no Templo, e em seguida contado quem tinha feito aquilo e onde se encontrava". A explicação de Crossan para a prisão e a morte de Jesus é conseqüência lógica de sua visão de que Jesus foi um insubmisso, com um programa de "radical igualitarismo" que, cevado no campesinato insatisfeito da Galiléia, desafiava os poderes constituídos.

Brown não concorda. Sua visão, mais uma vez, segue a letra dos evangelhos, onde Jesus afirma que seu reino "não é deste mundo". Brown alinha um elenco de razões pelas qual Jesus não era um subversivo: "Sua crítica dos ricos, em Lucas, não era parte de um projeto de reestruturação econômica; seus mais íntimos seguidores não eram camponeses, mas, até onde sabemos pessoas com ocupações independentes (inclusive pescadores e coletores de impostos); eles não eram muito numerosos e, certamente, não um grupo organizado e armado, nenhuma campanha militar foi conduzida contra ele; ele foi preso sozinho e desarmado; foi julgado e condenado de uma maneira ordeira, não morto numa batalha, ou depois dela".

Haim Cohn, o terceiro autor que estamos sumariando, começa seu raciocínio a partir das forças que prenderam Jesus, segundo João, “uma coorte romana” e "guardas destacados pelos chefes dos sacerdotes e fariseus". Que guardas seriam estes? Cohn responde: “eram membros da polícia do Templo, uma organização cuja finalidade principal, manter a ordem nas instalações do Templo, não excluía eventuais missões fora. Se havia uma coorte era porque estava desencadeada uma operação romana, operação essa tão do interesse romano que o governador se mobilizara para um julgamento fogo na manhã seguinte. Mas, então, que estaria fazendo nela a polícia do Templo? Responde Cohn: se à polícia do Templo foi permitido estar presente, foi porque ela mesmo o solicitou.

Cohn desfia sua tese salpicando-a de suspense. "Deve ter uma forte razão”, escreve, para que a polícia judia pedisse para estar presente à operação. Ele acrescenta: "Tampouco devemos subestimar a importância de uma decisão de destacar um contingente de polícia do Templo para serviço fora das dependências do Templo numa noite como aquela, quando a cidade e o santuário transbordavam visitantes de todas as partes do país, toda a força sendo necessária para manter a paz e a ordem. Havia seguramente um grande interesse em jogo”. Que grande interesse era esse? Aguarde-se o próximo capítulo.

Julgamento

Primeiro as autoridades judias, depois Pilatos, condenarão o réu. Quem entre esses dois merece a maior culpa?

Estamos agora no palácio do sumo sacerdote. O preso é levado para dentro. 0 discípulo Pedro, que o acompanhara a distância, fica no pátio, aquecendo-se ao fogo com os criados. A noite é cheia de presságios.

Os quatro evangelhos reportaram que, uma vez preso, Jesus foi levado às autoridades judaicas. Marcos e Mateus, claramente, e Lucas, com menos clareza, dão conta de um julgamento, pelos dignitários judeus, ao fim do qual Jesus será condenado à morte. João relata um interrogatório, sem julgamento, mas já informara antes, quando da ressurreição de Lázaro, que o Sinédrio condenara Jesus à morte. Existiu ou não o julgamento judaico? Este é um dos pontos mais controvertidos da paixão. Haim Cohn aceita que o Sinédrio se tenha reunido, mas não para julgar, e muito menos para condenar. Mas então para quê? Por que razão teriam os membros do mais alto corpo judaico, pessoa, importantes da sociedade, se dado ao trabalho de sair de casa àquela hora da noite, e ainda por cima num dia festivo?

Retomemos a tese cheia de suspense de Cohn “O fato de que o Sínédrio teria sido convocado naquela noite particular para uma reunião na residência do sumo sacerdote e devesse, em última instância, passar ali longas horas até a manhã seguinte exige explicação muito forte e convincente para ser crível”, escreve ele. A conclusão do autor israelense é que só pode haver uma coisa na qual toda a liderança judia estava interessada: "Impedir a crucificação de um judeu pelos romanos e, mais particularmente, de um judeu que gozava do amor e afeição do povo". Segundo Cohn, o Sinédrio reuniu-se não para condenar, mas para salvar Jesus!

Não que as autoridades judaicas morressem de amores pelo pregador da Galiléia. Mas partindo da premissa de que Jesus era popular, Cohn afirma que o Sinédrio precisava tentar alguma coisa em seu favor, sob pena de cair em desgraça perante o povo. Tendo sabido que ele seria levado na manhã seguinte à máxima autoridade romana, e com toda a probabilidade sofreria uma condenação à morte, resolveu agir rápido. Primeiro conseguiu autorização para que sua polícia participasse da prisão. Depois, que o trouxesse à sua presença. Enfim, trancado com Jesus, tentou duas coisas: instruí-lo sobre o que responder no tribunal do governador e persuadi-lo a colaborar com o alto comando judaico. Jesus recusou-se a aceitar uma parceria com o Sinédrio, porém, o que implicaria a renúncia a seus pontos de vista dissidentes, e todo o esforço foi perdido.

Como encarar a tese de Cohn? Brown, ao referir-se a ela em seu livro, descarta-a como “ficção benevolamente imaginativa”. Não há nenhuma tradição judaica antiga, argumenta ele, que coloque em dúvida o envolvimento de autoridades judias na morte de Jesus. A veracidade do julgamento judeu tem sido contestada por argumentos que vão das questões procedimentais. como a realização de um julgamento noturno, quando a jurisprudência universal os recomenda à luz do dia, até o fato mais desconcertante de os evangelhos darem conta de dois julgamentos, um judeu e outro romano “por que tal sobreposição, com que fim e com que lógica?” Brown responde, quanto ao primeiro ponto, que o julgamento ter sido à noite é coerente com o que dizem os evangelhos - que não foram oferecidas as garantias de praxe ao réu. "Marcos informa que as autoridades judias o queriam preso e levado à morte em segredo, e com tão pouca atenção pública quanto possível", escreve Brown. "Procedimentos noturnos convêm a isso muito bem."

Para a bizarra duplicação dos julga­mentos, alguns oferecem a explica­ ção de que o procedimento judeu teria sido uma investigação preliminar, não um julgamento. Outros, no sentido inverso, afirmam que coube aos romanos apenas executar uma sentença judia. A chave para o entendimento da questão estaria num diálogo reportado por João, quando Pila­tos, não encontrando razões para assumir o caso de Jesus, diz aos judeus: "Tomai-o vós mesmos e julgai-o conforme a vossa lei". Os judeus respondem: "Não nos é permitido condenar ninguém à morte”.

Será que os judeus não podiam executar penas de morte? Estamos no intrincado, território das competências entre a Justiça romana e a judaica. Brown argumenta que em alguns casos de clara inspiração na lei, religiosa, como a proibição de circular em determinadas dependências do Templo, e talvez adultério, os judeus poderiam executar eles mesmos a sentença. Em outros, de interesse para a sociedade como um todo, eles teriam de repassar o “caso à autoridade romana, que resolveria se caberia ou não a pena de morte.

As acusações contra Jesus, no julgamento judeu foram as de proferir ameaças de destruição do Templo e proclamar-se o Messias. Brown comenta, sobre a primeira das acusações, que "o Templo era a instituição-chave da vida cívica e religiosa na Judéia e o tesouro da nação". Portanto, ações contra ele iam além do interesse teológico, para atingir os reinos sócio-econômicos e da política, e é bastante plausível que provocasse nas autoridades letal hostilidade. Estamos a alguns passos da tese de Crossan, de que Jesus caiu em desgraça por promover desordens no Templo, mas Brown não dará esses passos.

O fato é que apenas dois evangelistas, Marcos e Mateus, referem-se claramente à acusação pertinente ao Templo, e todos reportam a segunda acusação “a pretensão de Jesus a ser o Messias, ou o Filho de Deus. E é por admitir sê-lo”, segundo Marcos, acompanhado por Mateus, que Jesus será conde­nado pelo tribunal judeu, pois sua proteção messiânica foi considerada blasfê­mia. Cohn afirma que blasfêmia, para os judeus, era apenas, e estritamente, pronunciar o tetragrama, o nome proibido de Deus, e se não há notícia de que Jesus o tenha feito, então ele não pode ter sido condenado por esse crime. Além do mais, blasfêmia é crime puramente reli­gioso, que poderia ser punido pelos pró­prios judeus - e por apedrejamento, como impõe a Bíblia, não na cruz. Já Brown considera verossímil que Jesus tenha sido condenado por blasfêmia, cri­me que, para ele, neste caso tipificou-se pela "reivindicação arrogante de prerrogativas ou status mais propriamente associados a Deus.

Encerrados os procedimentos judeus, Jesus foi levado pela manhã a Pilatos. Quem era esse governador romano, tão célebre que entrou no Credo, garantindo-se, com sua participação nesse episódio uma memória histórica com que nem de longe na carreira mediana lhe faria supor? Um documento que se tem sobre ele é uma carta do dirigente judeu Herodes Agripa ao imperador Calígula, cerca de dez anos depois da morte de Jesus. Diz Agripa que Pilatos era "naturalmente inflexível e implacável", e cometia atos de corrupção, de insulto, de rapina, de ultrajes ao povo, de arrogância, assassinatos de vítimas inocentes e da mais violenta selvageria”. Haim Cohn considera esse documento 6 mais fidedigno entre os que dão conta da personalidade de Pilatos.

Brown, mais uma vez, oferece uma visão inversa, a partir de um episódio relatado pelo historiador judeu antigo Flávio Josefo. Uma vez Pilatos enviou a Jerusalém uma tropa levando estandartes com a efígie do imperador Tibério, algo considerado sacrílego pelos judeus. Estes organizaram expedições à cidade costeira de Cesaréa, onde residia o governador, para protestar e exigir que ele removesse os estandartes. As manifestações se sucederam dia após dia. No sexto, Pilatos ameaçou matar os manifestantes. Estes se deitaram no chão, dispostos a morrer. Admirado com a determinação dos judeus, Pilatos voltou atrás e mandou remover os estandartes. Brown comenta que o incidente "não sugere um tirano teimoso até a selvageria", e conclui que os evangelhos podem ter pintado um Pilatos não distante da realidade, ao mostrá-lo como um juiz tolerante, disposto a dar uma chance ao réu.

Perante o governador romano, a acusa­ção messiânica transmuda-se para o plano temporal. Agora Jesus é acusado de pretender-se "o rei dos judeus”. "Sob a lei romana, isso devia parecer sedição”, escreve Brown. Muitos eruditos concordam que Jesus pode ter sido enquadrado na famosa Lex lulia de Maiestate, ou seja, considerado culpado de crime de lesa-majestade.

A cruel questão da culpa judaica não se exprime apenas na condenação pelo Sinédrio. Mais polêmica ainda é a participação que é conferida à "multidão", incitada pelos "chefes dos sacerdotes e os anciãos", segundo Marcos e Mateus, ou os "judeus", pura e simplesmente, como quer João, no julgamento romano, interferindo agressivamente, e levando um relutante Pilatos a condenar o réu. "Que farei de Jesus, que chamam de Cristo?", pergunta Pilatos. As "multidões", segundo Mateus, respondem: "Crucifiquem-no”. Em João, em cenas de elaborada dramaturgia, Pilatos alterna diálogos filosóficos com Jesus, sobre a verdade e o reino deste mundo e do outro, com exortações ao populacho para que perdoe o réu. Não adianta, os "judeus” estavam-se inflexíveis: "À morte! À morte! Crucifica-o!"

Cohn aponta várias estranhezas, no episódio. Primeira: que fez com que os "judeus" ficassem tão hostis a Jesus, eles que o haviam recebido em triunfo em Jerusalém havia alguns dias? Segunda: como aceitar que um "onipotente governador romano? se sujeitasse a ficar pedindo aos nativos "conselho sobre como tratar um criminoso preso", e ao tomar a decisão se deixasse arrastar pelos "apelos populares histéricos"? Cohn considera o episódio "demasiado grotesco" para merecer crédito, mas Brown acredita em sua plausibilidade. 0 padre americano traça o cenário seguinte: "Pilatos suspeita que a verdadeira questão seja assunto religioso judaico, de que a verdadeira questão seja um assunto religioso judaico de interesse interno, e não um crime político contra a majestade do imperador. “A multidão pressiona Pilatos; e ele não deseja que o caso resulte num outro tumulto em Jerusalém, ainda mais no contexto de festival de Páscoa”. Daí ele ter-se sujeitado à pressão popular, da mesma forma que o fizera no caso dos estandartes com efígie do imperador.

Momento mais célebre da trajetória de Pilatos na história e no imaginário universais é quando ele lava as mãos. “estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa”, diz. Trata-se de um não romano, mas judeu. Está na Bíblia que, quando morre um inocente que não se sabe quem matou, os principais do lugar devem lavar as mãos e declararem-se inocentes daquele sangue. Brown, que geralmente tende a dar plausibilidade à letra dos evangelhos, dessa vez não vai por esse caminho. O pagão Pilatos, nesse momento, escreve ele, “age e fala como se fosse um leitor do Antigo Testamento e um seguidor dos costumes legais judaicos”. Outro momento ao qual Brown não empresta seu veredito de plausibilidade é quando Pilatos oferece a opção soltar Jesus ou o bandido Barrabás, segundo um suposto costume de soltar um preso na Páscoa. Não havia tal costume, conclui Brown, de acordo com a quase­ unanimidade dos eruditos, e mesmo se houvesse seria pouco sensato que o governador soltasse um homem que acabara de ser preso por homicídio durante um tumulto, caso de Barrabás.

No evangelho de Mateus, depois que Pilatos lava as mãos e diz “ A responsabilidade é vossa “, o povo responde: “ O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos”. Ter o “sangue sobre”, segundo ensina Brown, é um expressão bíblica indicando quem é responsável por uma morte aos olhos de Deus. A frase é a mais terrível dos evangelhos, no que se refere ao anti-judaísmo. Orígenes, no século III, deu o tom de como a frase de Mateus ecoaria séculos afora: “Portanto, o sangue de Jesus derramou-se não só sobre os que existiam naquele tempo, mas também sobre todas as gerações de judeus que se seguiriam, até o fim dos tempos".

Brown reconhece a trilha de preconceito e de tragédias aberta com o tratamento dado aos judeus nas narrativas da paixão. "A observação de que efetivas autoridades judaicas (e algumas multidões de Jerusalém) tiveram um papel na execução de Jesus (...) teve efeitos duráveis." O pensamento cristão, segundo Brown, “chegou atrasado ao reconhecimento de que uma atitude hostil para com os judeus por causa da crucificação é religiosamente injustificável e moralmente repreensível".

O irlandês Crossan considerou insuficientes as justificativas de Brown e é por isso que escreveu um livro em resposta. O ponto de partida de Crossan é que Brown tende a aceitar demais a "verossimilhança", ou a plausibilidade", dos fatos nos evangelhos, sem arriscar contestar-lhes a historicidade. Com isso, endossa uma narrativa da paixão que, diz Crossan, "foi a sementeira do antijudaísmo cristão”. Sem esse antijudaísmo, acrescenta, “o letal e genocida anti-semitismo europeu seria impossível, ou pelo menos não tão bem-sucedido”. Para Crossan, as narrativas da paixão são peças de ficção. "E bastante possível entender e simpatizar com uma pequena seita judaica sem poderes, escrevendo ficção para se defender. Mas, uma vez que essa seita judaica se torna o Império Romano Cristão, a estratégia defensiva se toma a mais longa das mentiras.

A propósito, se Crossan aceita a historicidade de Jesus, que ele tenha sido preso e crucificado, mas não aceita a historicidade da paixão, o que teria acontecido, então? Simples. Jesus foi preso por promover desordens no Templo e executado sumariamente. Ele escreve: "A eliminação de um estorvo perigoso representado por um camponês como Jesus não precisaria envolver nenhum julgamento oficial nem consultas entre o Templo e as autoridades romanas. O caso foi, a meu ver, administrado de acordo com os procedimentos gerais de manutenção do controle das massas durante a Páscoa. Se alguém causa sério distúrbio no Templo, que se o crucifique imediatamente, como exemplo”.

Execução

De que forma era a cruz? Jesus carregou-a até o alto do calvário? Foi pregado ou amarrado a ela?

“Então o crucificaram”. É assim, dessa forma econômica e singela que Marcos dá conta desse momento tão capital da história que vem contando. Mateus escreve: “E após crucificá-lo, repartiram entre si as suas vestes, lançando a sorte”. Como nota Brown, a frase que dá conta da crucificação é subordinada à informação sobre a repartição das vestes. Lucas e João não são mais loquazes. "Alguma vez um momento tão crucial foi expresso de maneira tão breve e pouco informativa?", pergunta Brown. Nada é dito sobre o formato da cruz, ou como o condenado foi fixado nela.

A erudição de Brown nos servirá de guia na subida ao Calvário. Os quatro evangelistas informam que, encenado o julgamento perante Pilatos, Jesus foi levado por soldados romanos para a execução. Versão diferente aparece num texto apócrifo (isto é, não reconhecido pela Igreja), o chamado Evangelho de Pedro, do qual só nos chegou um fragmento, descoberto no século passado no Egito. Nesse texto os judeus têm todo o controle do processo, inclusive a execução do condenado na cruz.

Jesus carregou ele mesmo a cruz? João diz que sim, mas só ele. Os demais relatam que certo Simão Cirineu, "que passava por ali vindo do campo", segundo Marcos, foi requisitado para fazer o serviço, Brown estranha. O costume impunha que o condenado levasse a cruz ao local da crucificação, o que é atestado pelo historiador Plutarco: “Todo malfeitor que vai para a execução carrega sua própria cruz". A versão de João parece então mais verossímil. A menos, nota Brown, que Jesus estivesse tão debilitado pelos flagelos que lhe foram impostos que não lhe fosse possível suportar o peso.

Mas o peso de quê? O que, exatamente, se carregava? Não era a cruz inteira, informa Brown. Normalmente, a parte vertical ficava fixa no lugar da execução. O que o condenado carregava era a parte horizontal, patibulum em latim. Segundo Lucas, "uma grande multidão do povo' o seguia, inclusive as mulheres a que Jesus se referirá como "filhas de Jerusalém". Brown considera plausível que houvesse gente a segui-lo, com base na cínica observação de outro autor antigo, Luciano, segundo a qual "aqueles que eram levados à cruz (...) tinha um grande número de pessoas em seus calcanhares".

O local da execução é o lugar chamado GóIgota em hebraico ou aramaico, que tem 'Calvário" como equivalente latino, ou "Lugar da Caveira”, segundo traduzem os quatro evangelhos. O nome indica um monte arredondado na forma de uma caveira, ou crânio. Lá chegados, "então o crucificaram", para retomar Marcos. Mas crucificaram como? Para começar, não há informação precisa sobre a forma da cruz, e ela variava. A palavra "cruz", informa Brown, chegou às línguas modernas com o sentido de uma linha que cruza outra, mas nem o grego stauros nem o latim crux necessariamente têm esse significado. Ambas essas palavras, acrescenta Brown, "referem-se a uma estaca à qual as pessoas podiam ser atadas de várias maneiras: empaladas, penduradas, pregadas ou amarradas". O empalamento produziria uma morte rápida. A crucificação, uma morte lenta.

Originário da Pérsia, o método da crucificação era reservado no Império Romano em princípio às classes baixas, os escravos e os estrangeiros. Há pouca informação sobre ele, na literatura latina ou helenístíca, e isso se deve, segundo Brown, ao fato de que "os romanos educados o consideravam uma punição bárbara, da qual se devia falar o menos possível". Em qualquer período da História, acrescenta Brown, aqueles que praticam a tortura não são muito comunicativos sobre os detalhes. Para Cícero, era "a mais cruel e revoltante penalidade”, que devia ser reservada só para os escravos, e em último caso. "A própria palavra cruz devia não apenas ficar longe do corpo de um cidadão romano, mas também de seus pensamentos, seus olhos e seus ouvidos", escreveu o mesmo autor.

A pena de Jesus não foi de empalamento nem de enforcamento, mas resta saber a forma da cruz e a maneira com que ele foi fixado a ela. A cruz podia ser em forma de "X” ou de “T”, além da que normalmente se imagina. O condenado podia ser fixado nela de cabeça para baixo. Ocasionalmente, informa ainda Brown, uma estaca única, vertical, seria utilizada. O condenado seria pregado nela com os braços estendidos para cima. Se Jesus carregou a barra transversal até o local da execução, ou se a carregaram para ele, então é porque não foi crucificado nem na estaca vertical nem na cruz em "X", que ficavam fixas no solo. Era cruz com barra, portanto, mas essas poderiam ser também em forma de 'T'. Presume-se que não era 0 caso porque, segundo Mateus, "colocaram acima da sua cabeça, por escrito, 0 Motivo da sua condenação”. Isso significaria que sobrava um pedaço de estaca onde colocar a inscrição geralmente representada com a sigla “INRI”.

Os evangelhos não informam de maneira direta que Jesus foi pregado. Mas Lucas, ao relatar a aparição aos apóstolos, depois da ressurreição, escreve que ele disse ao incrédulo Tomé: “Vede minhas mãos e meus Pés", dando a entender que havia sinais perfuração. João, mais claro, ao relatar mesmo episódio, diz que Tomé queria colocar o dedo "no lugar dos cravos”. Os pregos não poderiam ter sido aplicados à mãos, no entanto, pois elas se rasgariam. O crucificado tinha de ser pregado à transversal pelos pulsos. Feito isso, a barra seria erguida por duas forquilhas até um encaixe talhado na barra vertical.

Jesus foi pregado também pelos pés? Fora dos evangelhos, não havia documento algum a atestar que se pregavam crucificados também pelos pés, até a descoberta, em 1968, em Jerusalém, de um túmulo contendo, entre outros, os ossos de um homem que se aproximava dos 30 anos. Tratava-se de um homem morto por Crucificação, e uma crucificação mais ou menos na mesma época de Jesus, pois esses ossos apresentavam sinais de que o homem fora pregado com dois pregos em baixo, cada prego num calcanhar. Pelos furos, imagina-se que ele foi fixado à cruz com as pernas abertas, cada uma colada a um lado da barra vertical. Os pregos foram-lhe então aplicados no lado do pé, à altura do osso do calcanhar. No caso de Jesus, a tradição atribui a Helena, a mãe do imperador Constantino, a descoberta de três pregos que o teriam pregado - só três. Daí o fato de os artistas ao redor do mundo passarem a representar a crucificação com um prego só prendendo os dois pés, um sobre o outro.

Sobre a cruz, resta acrescentar que algumas apresentavam a variante de ter um pequeno assento, outras um apoio para os pés. Não se tratava de misericórdia. Antes, de permitir que, tendo onde se sustentar, o crucificado durasse mais, e portanto sofresse mais. A inscrição que os evangelhos afirmam ter sido afixada à Cruz com as palavras "O Rei dos Judeus" (Marcos) ou “Jesus Nazareno, o Rei dos Judeus” (João), é o titulus - uma placa indicando o crime cometido pelo executado. Em nenhum dos evangelhos, nota Brown, sugere-se que se tratasse de zom­baria contra Jesus. O titulus, ao informar ao público o crime cometido, reforça o caráter intimidatório das execuções públi­cas. Como observa magistralmente Brown, são as únicas palavras que se afirma ter sido escrita sobre Jesus, em sua vida.

“Jesus, então, dando um grande grito, expirou", informa Marcos. Era a hora nona, ou 3 da tarde, e assim esta história vai chegando ao fim. Ou melhor, seria dizer assim começa esta longa história. O que se colecionou nesta parte é apenas uma pequena amostra do torrencial volume de informações do livro de Brown. O que se transcreveu, desde o início, das pesquisas, concordâncias e discordâncias dos três autores citados é apenas uma pequena amostra dos infinitos caminhos a que tem levado o estudo e a reflexão sobre o assunto. Ele é tão vasto quanto o mundo, este assunto, tão vasto quanto a História e quanto qualquer vã filosofia. Só não é tão vasto quanto a que começa com a ressurreição e para a qual nem no controvertido tratamento do povo judeu, nem nas dúvidas históricas, nem em nada, há obstáculo.

terça-feira, 6 de março de 2012

Os Empobrecidos, segundo o livro de Jó


Milton Schwantes é um mestre. Sempre ensinou com gosto. Com isso, ajudou muita gente a ter gosto pelo estudo, em especial pelo estudo da Bíblia. Ele abriu os olhos de muita gente para a beleza, a profundidade e a radicalidade da palavra de Deus. Com isso foi sinalizando caminhos, nos quais ele mesmo trilhava como alguém que busca, que experimenta, que percebe, mas também retrocede para poder recomeçar. O seu trabalho com os textos nunca foi pela via dogmática, das certezas absolutas, das coisas prontas. Era um aproximar-se deste Sagrado travestido em palavras, com temor e tremor, mas em alegria e firmeza. Por estes caminhos muita gente continuou a caminhar, por vezes reforçando o caminho, tantas vezes descobrindo novos atalhos ou desvios ou até descortinando caminhos novos. Eu me sinto parte destes caminhantes na leitura da Bíblia.
O trabalho bíblico, exegético e teológico do mestre Milton tem muitas facetas. Há um colorido de perspectivas. Uma, porém, sempre foi a perspectiva dominante: ler o texto bíblico desde a perspectiva do pobre, do empobrecido, do humilde – homens e mulheres e também crianças – com um direito inalienável à vida. A sua tese de doutorado foi programática neste sentido: O direito dos pobres. Este trabalho descortinou uma perspectiva que, na maioria das vezes, não é levada à sério neste campo da pesquisa acadêmica: o lugar social da gente empobrecida nos tempos bíblicos e os seus direitos próprios. Neste trabalho, Milton destacou especialmente o lugar e o direito dos pobres no contexto da literatura legal e profética do Antigo Testamento. Nesta obra paradigmática, ele mesmo indica que, por motivos de tempo e espaço, não prescrutaria o tema no contexto da literatura sapiencial e no saltério. O presente texto se inscreve como uma continuação desta lacuna, embora o próprio autor tenha trabalhado isso em textos posteriores. Constitui, pois, alegria e honra poder homenagear o mestre com o presente texto sobre o direito dos pobres em Jó e sobre a trajetória de um empobrecido que se tornou sujeito e até o final se manteve sujeito frente ao sistema.
I. Problemática e arquitetura da obra
O livro de Jó é um texto intrigante dentro do colorido do cânon bíblico. É sabido que com este livro se expressa dentro do desenvolvimento da literatura bíblica a chamada ‘crise da sabedoria’. Esta ‘crise’ consiste basicamente no fato de que o sistema de retribuição como mecanismo regulador da ordem social, pressuposto nos textos sapienciais mais antigos, como expressos em Pv 10-29, não funcionava mais. A ‘crise’ brota da experiência, do cotidiano, da vida. No nível existencial, o justo não mais recebe a sua devida recompensa, enquanto que ímpios prosperam. Aquilo que pelo sistema deveria ser um direito do justo se torna a causa da queixa e do protesto do personagem Jó. Com o protesto, o próprio sistema é colocado em xeque.
O livro de Jó é uma obra aberta; a partir de seus textos as mais diferentes questões podem ser discutidas. Fundamentalmente, porém, destacam-se dois temas na trama do livro. Na descendente e ascendente trajetória do personagem Jó discute-se o caso de Jó, isto é, levanta-se a pergunta pelo destino existencial e pela solução da pobreza e do sofrimento de pessoas que como Jó caíram em desgraça social, tornando-se pobres. Por outro lado, o livro discute o problema de Jó, isto é, a questão teórica e teológica acerca do sofrimento inocente e da ação de Deus no mundo face à questão. Nessa discussão da teodicéia, trata-se de perscrutar o silêncio de Deus e o adequado falar de Deus a partir do sofrimento inocente. O livro trata, pois, de existência e de doutrina.
Sabidamente, a discussão da crise da sabedoria também se expressa em outras partes literárias da Bíblia hebraica, como no livro de Eclesiastes ou Coélet, em alguns salmos (Sl 49; 73), bem como nas obras dêutero-canônicas de Sirácida e Sabedoria. O livro de Jó não constitui uma ruptura completa com o pensamento sapiencial clássico. Ele evidencia descontinuidades e continuidades. Reflete a transição e as adequações necessárias no pensamento sapiencial e teológico no antigo Israel a partir das novas demandas e das necessárias adequações no modo de pensar.
O surgimento do livro de Jó como obra, muito provavelmente, deve ser situado no período persa, portanto na época do pós-exílio. É neste contexto que o acúmulo de experiências de sofrimento e de empobrecimento, causadas pelos vários exílios, deportações e derrotas do povo de Israel, do norte e do sul, puderam ser melhor discutidas, não por último à luz e em diálogo com textos da chamada ‘teodicéia babilônica’. O autor do livro costuma ser alocado entre círculos aristocráticos do período do pós-exílio, embora se deva distinguir mais concretamente entre esses grupos da elite judaíta, assumindo que, provavelmente, o autor do livro de Jó faça parte de um círculo de justos piedosos materialmente bem situados, mas que decaíram socialmente no contexto de profundas e mui rápidas transformações sociais no período.
A arquitetura do livro evidencia uma trama literária complexa, mas muito bem construída. Pode-se falar de uma polifonia, na medida em que o livro é constituído de várias camadas e vários níveis de significação, com várias vozes teológicas, que se delimitam, corrigem e complementam, procurando, assim, fazer juz ao problema central.Estilisticamente costuma-se diferenciar duas partes importantes do livro: as partes em prosa, dominante nas partes inicial (cap. 1-2) e final (42,7-17) e as partes em poesia, dominantes na parte central (cap. 3-41). Alguns denominam estas partes de moldura prosaica de “porta de entrada” e “porta de saída”. Dentro desta polifonia é possível isolar várias vozes e analisá-las dentro de sua intencionalidade e limitação imaginária próprias. Assim temos, por exemplo, as vozes de Jó (na parte inicial, nos diálogos da parte central e na resposta final), a voz da mulher de Jó (2,9), a voz dos amigos (4-27), a voz de Eliú (32-37) e a voz de Deus na teofania (38-41). Cada uma dessas vozes, com sutilidades teológicas próprias poderia se analisada separadamente e com bons resultados. Pode-se ainda perceber as ‘costuras’ literárias na imbricação das partes, o que também expressa uma intencionalidade própria. O importante, contudo, é perceber a trama da obra como um todo, para dentro da qual confluíram diversas camadas, tradições e releituras constituindo justamente uma obra polifônica.
No intento de perceber esta trama da obra, convém ter sempre em mente a discussão de um duplo problema: o caso de Jó e o problema de Jó. O personagem Jó interliga as duas questões. Ao longo da trajetória existencial deste personagem literário discutem-se as várias possibilidades teológicas de explicar o sofrimento e ação de Deus , bem como a própria possibilidade de transformação de quem, como Jó, através da rebeldia, se coloca em busca de conhecimento mais profundo, que ultrapassa os limites da tradição e bebe na fonte da experiência com o próprio Sagrado. Na trama, o personagem Jó passa por dois movimentos fundamentais: da riqueza para a condição periférica de pobre e da pobreza para o bem-estar físico, material e social. Na condição periférica, isto é, “sentado em cinzas” (2,8; cf. 42,6), Jó realiza o intenso processo de discussão com os amigos, o que, após uma terceira opinião, e encontro com Deus, culmina num discernimento mais profundo, que parece ser um dos objetivos do livro de Jó.
Com o intuito da discussão da teoria ou doutrina da retribuição mecânica, que pressupõe uma relação bipolar entre duas grandezas (ser humano X ser humano ou ser humano X Deus), o autor da obra situa Jó em condição social e econômica quase lendária: o cabra é podre de rico (1,3)! Jó é também um tipo multicultural, pois sendo da terra de Uz representa um personagem de fora de Israel (1,1). Com a quádrupla caracterização inicial como “íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (1,1), Jó está na linha de um tipo ideal do justo proposto na profecia (Mq 6,8), e também pressuposto como o protótipo da nova humanidade na figura de Noé (Gn 6,9). Jó é mantido e mantém-se como sujeito nesta caracterização até o final da obra. Na parte inicial ressalta-se a constante preocupação de Jó e fazer o que social e culticamente é correto. É um tipo preocupado em agir corretamente perante as pessoas, e especialmente diante de Deus.
Na moldura inicial já há uma problematização da doutrina, isto é do problema de Jó, através da inserção do personagem Satã (1,6), que ainda não é o diabo crescido e amadurecido do dualismo teológico no século I, mas representa uma grandeza criada (por Deus), que age com relativa autonomia, mas que está fora de Deus e fora do ser humano. Satã é o tentador, o sacaneador por excelência, que toca num problema fundamental da doutrina teológica da época: quem vive na abastança pode louvar Deus de boca cheia, mas será que a mesma confiança inabalável se manterá na penúria da pobreza? Esta é a aposta! O prognóstico ‘satânico’ é pelo não; e Deus espera para ver. As sacanagens de Satã reduzem o lendário rico Jó a um sujeito pobre, que passa a viver na condição de marginalidade social. Jó tornou-se um empobrecido, mas em seus diálogos ainda mantém o jeito patriarcal de pensar. Com isso talvez o personagem corporifique setores da classe social abastada do antigo Israel que, sob os impulsos das transformações sociais, passaram e passam por processos de empobrecimento. Aqui se pode pensar nos tradicionais proprietários livres de Israel, muitos dos quais, durante o século VIII aC passaram por um processo de empobrecimento, tão arduamente defendidos por profetas como Amós, Isaías e Miquéias, e que estão na iminência de perder ou que já perderam sua terra e com isso sua liberdade jurídica e cúltica. Deve tratar-se da classe dos cidadãos livres, talvez do ‘povo da terra’, sustentadores da reforma de Josias e da legislação deuteronômica.
As investidas deste Satã contra Jó apontam para a complexização da relação da pessoa com Deus. Na trama da obra, para os ouvintes e leitores estava já claro que há uma outra força atuante no mundo, além de Deus e do ser humano, capaz de provocar desgraças e sofrimento através do seu agir. Para Jó, contudo, isso permanece oculto, sendo desvendado somente no final da obra, nos discursos de Deus para Jó e com a apresentação das figuras de Leviatã e Beemot. Os três personagens mítico-teológicos indicam para um incipiente dualismo na cultura teológica de Israel no período do pós-exílio, acolhendo parcialmente imports teológicos da Pérsia e rompendo, assim, parcialmente com o monismo teológico, que atribuía tanto o bem quanto o mal a Deus. Toda a criação permanece sendo obra e espaço de cuidado de Deus, mas a criação se tornou um complexo espaço-planetário. Dentro desta trama literária, se dá o processo de discernimento de Jó.
II. Sentado em cinzas e sem a luz da bênção
Na condição de pobreza e marginalidade, isto é, “sentado em cinzas” (2,8), o personagem Jó começa seu itinerário de discussões em busca de uma explicação para sua desgraça. As falas de Jó na parte poética do livro, isto é, a partir do cap. 3 são uma coletânea de acusações contra Deus e de defesas diante dos três amigos, os quais procuram enquadrar o sofrimento de Jó nos limites da teologia retributiva tradicional. No resfolegar de sua angústia, Jó chega a amaldiçoar o dia do seu nascimento (3,3-8). Sua crítica principal é a de que a criação estaria nas mãos de um gerente incompetente. Na sua visão, o mundo saiu dos eixos. Essa crítica é renovada ao longo dos diálogos com os amigos, especialmente no cap. 9, sendo também ratificada no monólogo de defesa nos cap. 29-31. “A terra está na mão de um perverso; os rostos dos juízes dela ele cobre; se não é ele [= Deus], quem será?”. Pessoas pobres e sofredoras se sentem como se estivessem em trabalhos forçados. Jó responsabiliza o próprio Deus por tais acontecimentos. O critério para o seu julgamento e para suas duras críticas a Deus é o próprio destino existencial. Na pena e na trama do autor, a desgraça pessoal de um rico empobrecido se torna a âncora para a crítica a Deus e ao sistema dominante da época.
Nas três rodadas de discussão dos cap. 4-27, os três amigos Elifaz, Bildade e Zofar articulam várias vezes seus pontos de vistas. Eles defendem Deus; são porta-vozes da tradicional teodicéia. Segundo eles, Deus é justo em seu agir no mundo, pois “ele frustra as maquinações dos astutos, para que as suas mãos não possam realizar seus projetos;
Ele apanha os sábios na sua própria astúcia; e o conselho dos que trama se precipita (...) Deus salva da espada que lhes sai da boca, salva o necessitado da mão do poderoso.
Assim há esperança para o pobre, e a iniqüidade tapa a sua boca” (5,13-16).
Estes amigos, como representantes da teologia oficial, tem toda uma fineza na argumentação teológica. Podem até estar existencialmente preocupados em consolar o amigo em sofrimento, mas o fazem nos limites da sua teologia, sem a experiência do sofrimento.
Tanto os amigos quanto este Jó dos diálogos (3-27) e da defesa final (29-31) necessitam rever suas posições. Por mais críticas que Jó expresse em suas falas, a busca de seus direitos ainda se inscreve nos parâmetros da retribuição mecânica. Nesse jeito de pensar, quem é justo, isto é, quem se comporta conforme as normas da legalidade da justiça comunitária, tem o direito de receber a sua devida recompensa. Este Jó empobrecido ainda pensa nos moldes de uma ética patriarcal como é recomendada nos vários códigos de leis da Torá, especialmente no Código Deuteronômico (Dt 12-26). No seu discurso de defesa nos cap. 29-31, Jó faz eco a várias leis deuteronômicas, algo similar também se dá no cap. 24. Desta forma, Jó personifica toda uma classe social dos proprietários livres (e em parte ainda ricos) em Israel, que constituiu o grupo de suporte para a legislação de base na Torá, no final do período da monarquia. Essa gente deve ter desenvolvido uma espiritualidade ou uma filosofia de vida em conformidade com a própria Torá.
A caracterização de Jó com o sinal ‘justo’ deriva provavelmente da justiça ou da legalidade na prática dos preceitos das leis deuteronômicas. Isso se torna especialmente evidente no seu playdoier nos cap. 29-31. Logo no início do cap. 29 encontra-se a referência à dimensão da circularidade da bênção, tão característica do código deuteronômico. Jó se sente como alguém que outrora, nos bons tempos, vivia sob a bênção de YHWH e, agraciado com terra e liberdade, deveria estender adiante o manto da graça aos empobrecidos, até para manter a circularidade da bênção recebida. Nesta condição de pater famílias, isto é, sujeito jurídico das leis, ele estendia a bênção recebida aos grupos de pobres e empobrecidos no antigo Israel. As três categorias das personae miserae são citadas neste contexto: “porque eu livrava os pobres (‘anî = oprimidos) que clamavam e também o órfão que não tinha quem o socorresse” (29,12); “eu fazia rejubilar-se o coração da viúva” (29,13); “eu me fazia de olhos para o cego e de pés para o coxo” (29,15); “dos necessitados (‘ebyonim) era pai” (29.16). Essa justiça de Jó deriva da Torá, e as leis sociais da tradição hebraica, por sua vez, derivam da pregação e da defesa dos pobres na profecia do século VIII aC.
Jó é assim um típico “tu” da lei deuteronômica. No âmbito das relações micro-físicas do poder familiar-clânico, ele deve fazer valer a lei tornada oficial. É o pater famílias, que, nesta condição, gozando do estatuto de cidadão livre e proprietário de terra, pode cultivar uma ética patriarcal. Essa ética patriarcal tem o seu lugar próprio em boa medida circunscrito ao âmbito do exercício do poder na unidade familiar de produção e reprodução. Mas é uma ética que tem suas limitações. Ela não serve para descrever o comportamento dos israelitas que há muito estão em condição de pobreza, ou aqueles e aquelas que nunca tiveram ou puderam ter expectativa de uma vida melhor, estando em condição de servos temporários, estrangeiros, dependentes da ordem e da estrutura patriarcal reinante. A ética de Jó revela um tipo de justificação legal. Perante os preceitos da Torá, Jó é um justo, mas, no exercício desta ética, esquece-se a perspectiva dos que sempre foram pobres. Neste sentido, o Jó que observa o direito dos pobres, reivindicado e compromissado nas leis da Torá, e que quase ‘farisaicamente’ vangloria-se perante Deus da observância dos direitos dos pobres, ainda necessita de revisão na sua perspectiva.
Com a demonstração de sua eticidade legal, Jó desafia Deus para um diálogo face a face. Juridicamente, trata-se de um desafio para um pleito em espaço público: “quem me dará que se me escute? Tomara que Shaday me responda. E um libelo escreva o homem do meu processo” (31,35). Na sua disputa com Deus, Jó se articula nos espaços e formas do direito clânico no portão da cidade. Ainda após haver desafiado Deus para a disputa jurídica, Jó reforça sua inocência e legalidade, agregando o argumento de sua postura ecologicamente correta no cultivo da terra: “se a minha terra clamar contra mim, se os seus sulcos juntamente chorarem...” (31,37). Colateralmente transparece aqui um lampejo de consciência ecológica na lide com os bens da criação.
Antes, porém, de Deus responder, o poeta compositor do livro de Jó introduz uma nova voz na polifonia. Trata-se do discurso de Eliú nos cap. 32-37. Em geral, estes trechos são considerados uma interpolação dentro da obra, talvez a mais antigas das inserções. Este amigo com nome tipicamente hebraico não é mencionado nem no prólogo nem no epílogo e também as falas de Deus para os amigos em 42,7-9 não fazem referência a ele. Mesmo se tratando de um elemento textual inserido no conjunto, provocando um efeito retardante da resposta de Deus a Jó, o discurso de Eliú apresenta mais uma opinião no conjunto das explicações possíveis sobre a relação de Deus com o sofrimento de um justo. Sua fala parece a de um jovem, que por respeito só tardiamente se intromete na discussão. Mas ele fala como alguém convencido de uma (nova) verdade. Aparentemente, o desejo de Eliú não é consolar Jó, mas “ensinar e julgar”: “ninguém de vós conseguiu refutar a Jó e responder aos seus argumentos” (32,12). O que ele pretende não é “esquadrinhar tanto de onde e por que vem o sofrimento, mas o para quê, sua finalidade dentro da providência divina”. Segundo sua opinião, deve haver na vida sempre uma abertura para a dimensão inescrutável dos desígnios de Deus. Deus tem seu senhorio garantido na criação; isso é textualmente reforçado especialmente através do poema “o soberano das estações” (36,26-37,24). Na opinião de Eliú, o sofrimento pode ter uma função pedagógica. Sofrer faz parte da pedagogia divina! Esta é a contribuição mais duradoura destas palavras e talvez uma das posições de maior recepção na vida pastoral das igrejas. Com todo o cuidado teológico, as falas Eliú servem para evitar qualquer tipo de protesto dos pobres e injustiçados; a posição mais adequada deveria ser buscar compreender a vontade de Deus no sofrimento. Neste tipo de teologia, os pobres não chegam a ter seus direitos respeitados e garantidos.
Com essa resposta interpolativa, o problema de Jó recebeu uma luz teológica a mais, mas o caso de Jó, que representa o sofrimento de real de pessoas supostamente boas e justas, em nada foi alterado. Na pena do redator, deve haver um discernimento mais profundo e isso deveria dar-se através de uma fala direta de Deus. Assim, após o desafio para um processo jurídico, o redator usa do artifício literário de uma teofania para a busca deste sentido mais profundo da vida dos pobres sofrentes e dos seus direitos. Em termos fenomenológicos, trata-se da busca de uma nova experiência com o Sagrado.
III. De dentro da tempestade: a complexa criação e o lugar do humano (pobre)
Finalmente, o próprio YHWH responde para Jó. Com isso, a obra alcança um pretendido ponto alto. É preciso estar lembrado que a queixa principal de Jó era que o seu direito enquanto justo não estava sendo devidamente observado por Deus. Por isso, suas rebeldes queixas e protestos se dirigem ao próprio Deus, acusando-o de ser um gerente incompetente do cosmos. A situação e o destino particular tornam-se, pois, o critério para o julgamento da ordem da criação.
YHWH responde de dentro da tempestade. Já o lugar assignado para estas falas é sintomático. Com a roupagem de uma teofania, os conteúdos aqui expressos se colocam na linha e ao lado de manifestações de YHWH para Moisés no Horebe (Ex 3), no Monte Sinai (Ex 19), a revelação para Elias (1Rs 19). Característico em todas elas é que aquilo que é dito traz novidade para o viver e o compreender da ação de Deus no mundo. A manifestação do Sagrado é fonte de novidade!
Na pesquisa, as respostas de YHWH para Jó foram entendidas de modo muito diverso. Há opiniões no sentido de que aqui YHWH falaria do céu como um faraó. Outros dizem que as respostas são escassas e vazias e que o seu conteúdo é inadequado, pois não respondem aos anseios existenciais do Jó empobrecido e sofredor. Discute-se se o mais importante é o fato de Deus responder ou o conteúdo de suas respostas. O grande exegeta alemão Gerhard Von Rad foi bastante categórico na apreciação da questão, dizendo: “todos os intérpretes entendem a fala de Deus chocante, na medida em que ela passa ao largo do anseio específico de Jó e YHWH de modo algum se manifesta no sentido de possibilitar uma clara interpretação de si mesmo”. Essas respostas, pois, constituem um nó interpretativo.
Quem ajudou a desatar este nó foi o exegeta católico suíço Othmar Keel, numa obra de 1978, em que ele buscou entender as falas de YHWH sob o pano de fundo da iconografia do antigo Oriente e do antigo Egito. Segundo ele, nesta teofania, após uma censura inicial em relação a Jó sobre quem, sem entendimento (hebr. da´at ) estaria obscurecendo o seu plano na gerência do mundo, Deus se expressa na forma de dois poemas, nos quais é mostrada toda a criação em seus traços cosmológicos. Cada poema é secundado por um interlúdio responsivo da parte de Jó.
No primeiro poema, “YHWH, o senhor da criação” (38,4-38), apresenta-se a Jó uma série de questionamentos relacionados a diversos âmbitos dos cosmos e dos quais Jó não poderia ter conhecimento com base em sua experiência e seu horizonte de vida: 38,4-7 – fundação e fundamento da terra; 38,8-11 – domesticação e cuidado do mar; 38,12-15 – origem e cuidado do amanhecer e da luz; 38,16-21 – ironia e sarcasmo em relação ao interrogante humano; 38,22-30 – neve, granizo, chuva e orvalho são atribuições divinas; 38,31-38 – constelações, céu e clima. O Deus que se revela aqui a Jó, ou que é representado nestas falas, descreve-se ou é descrito como um Deus criador com tarefas cotidianas que de longe suplantam as preocupações humanas num esquema de retribuição. No todo, percebe-se que Deus se apresenta (e é apresentado) como uma divindade criadora e mantenedora, isto é, que reúne em si as dimensões de criador e aquele que mantém uma relação de cuidado para com estes âmbitos da natureza ou criação, cuja complexidade escapa à imediata percepção humana e sua adequada avaliação.
No segundo poema, “YHWH, o senhor dos animais (não domesticados” (38,39-39,30), são apresentadas idiossincrasias de um conjunto de dez animais: 38,39-41 – a presa das leoas e dos corvos; 39,1-4 – o parto das camurças e das corças; 39,5-12 – a liberdade do asno selvagem e a inservidão do touro selvagem; 39,13-25 – a despreocupação da avestruz e a coragem do cavalo; 39,26-30 – a percepção do falcão e a distância do urubu. Keel mostrou muito bem que a inter-relação destes dez animais consiste em que cada um a seu modo representa um espaço, que se caracteriza pela sua não-funcionalidade em relação às necessidades humanas. Estes animais e espaços testemunham uma “espécie de contra-mundo ao mundo humano”. Em cada uma das particularidades dos animais apresentados, há elementos não-antropocêntricos.
Após este longo discurso de YHWH, e justamente no seu final (40,1-2), a divindade desafia Jó a uma resposta. Este, por sua vez, responde de modo breve (40, 3-5), afirmando que ele, na verdade, é de uma categoria “leve demais”. Na linguagem da luta de boxe, Jó seria o “peso pena” em confronto com o “peso pesado” Deus.
A segunda parte da resposta de Deus a Jó é constituída de três seções distintas, porém interligadas: 40,6-14: censura interrogante de Jó; 40,15-24: Beemot; 40,25-41,34: Leviatã.
O trecho de Jó 40, 6-14 parece ser aquela parte da longa resposta de Javé que mais se aproxima das preocupações existenciais de Jó no âmbito de suas discussões com os amigos no esquema de uma teologia retributiva que trabalha com uma relação de causa e de efeito. Olhando-se o todo da resposta de Deus, poder-se-ia dizer que este trecho constitui uma espécie de centro do todo. Afinal, aparece emoldurado por dois discursos maiores. Mas, mesmo neste trecho, a resposta divina não opera na lógica da simples retribuição. Jó é dasafiado pelo criador a ser um valente como ele próprio, capaz de “travejar com voz semelhante” (ao criador) (40,9) e ornar-se com “glória e majestade” como o próprio Deus (40,10). Travestido para este papel, Jó é desafiado a fazer o difícil discernimento entre o justo e o ímpio e, uma vez discernidos ou identificados os ímpios, Jó é desafiado a humilhá-los, a esmagá-los e a enterrá-los na prisão (v.12-13). Após tal trabalho hercúleo e divino, cessaria por si mesmo o problema central que aflige a Jó e os israelitas justos e sofredores que perguntam pelo seu quinhão de bênção. Havendo feito tal trabalho, o próprio Deus louvaria o humano Jó, pois teria este realizado uma tarefa que mesmo ao criador parece complexa. É inevitável perceber as pitadas de ironia e de sarcasmo colocadas nas palavras de YHWH!
Em Jó 40,15-24, descreve-se a figura de Beemot. O nome é uma simples transliteração do substantivo plural feminino de behemâ, que pode ter o significado de “conjunto indiferenciado de animais”. Desde o século XVI, este termo é entendido como um animal identificado como o hipopótamo. Na Antiguidade, sobretudo no Egito, este animal era tido como um monstro mitológico, que representa não somente o espaço distante dos humanos, mas o mundo inimigo e adversário como tal. Assim, Beemot representa o monstro do caos, que disputa a soberania da criação com o próprio Deus criador. Este monstro mitológico-real deveria ser caçado ritualmente pelo rei para, assim, assegurar a ordem e a manutenção do cosmo. Mais tarde, a ameaça imaginada e vivenciada no fortíssimo hipopótomo não mais é vencida pelo rei, mas pelo deus Horus. Pressupondo o teor mitológico importado do Egito ou talvez até do saber comum em
Israel, nas formulações teofânicas do texto, agora é o próprio Javé quem assume a função de caçador e domador de Beemot. Isso acrescenta mais uma pitada de ironia e sarcasmo em relação ao personagem Jó. Como alguém, que nem de longe teria forças para agarrar esse bicho de frente ou atravessar-lhe o focinho com um gancho (40,24), poderia pretender questionar YHWH? Outro dado é que o texto transfere um elemento divino típico do deus egípcio Horus para o Deus hebraico YHWH, tratando-se, pois, de um exemplo a mais de sincretismo na história da fé monoteísta no contexto do antigo Oriente próximo.
Há um detalhe no texto que deve ser ressaltado. É a afirmação inicial em 40,15, na boca de YHWH: “Vê o Beemot, que eu criei contigo”. A expressão hebraica ‘im com o sufixo da segunda pessoa masculina singular deve ser entendida no sentido de “com” (= contigo) e não “como”, conforme traduz a Bíblia de Jerusalém. Na fala de Deus, o próprio monstro mitológico-real Beemot-hipopótamo é uma criatura de YHWH, que por mais adversa que seja à soberania do criador, faz parte da complexidade da criação divina. YHWH, além de suas tantas outras atribuições, deve também se ocupar com monstros como estes que complicam enormemente qualquer pretensão de harmonia na criação. Assim, pois, em termos teológicos, esse trecho afirma o monumental poder de YHWH e simultaneamente a dimensão não-antropocêntrica desta tarefa do criador.
O trecho dedicado a Leviatã (Jó 40,25-41-34) é mais longo. Isso provavelmente já indica um acúmulo de tradições. Também Leviatã era concebido como sendo um monstro mitológico, representado no mundo zoológico pelo crocodilo. O termo hebraico livyatan significa algo como uma grandeza que se move e se vira. Em Is 27,1, Leviatã é apresentado como “serpente escorregadia” (Bíblia de Jerusalém). No Sl 104,26, o mar ou ambiente aquático é apresentado como o habitat de Leviatã. A isso se junta uma tradição que o concebe como o “dragão do caos”. A própria Septuaginta, neste ponto, traduz o termo hebraico por drakon, conectando provavelmente tradições distintas e distantes. Leviatã, descrito como um crocodilo monumental e monstruoso, também indica essa dimensão não-antropocêntrica da criação. Ele inclusive é afirmado como a “obra-prima” do criador YHWH (40,19). Tal monstro representa espaços de profunda hostilidade a uma vida tranqüila dos seres humanos, não estando, assim, de modo algum em função deles. Pelo contrário, Leviatã sempre representará espaço e poder de ameaça (Jó 40,27-28). Mesmo assim, o texto afirma que YHWH pode “brincar” com ele ou fisgá-lo sem dificuldades (40,29), o que Jó ou seus semelhantes jamais poderiam fazer. Novamente há transferência de atributos divinos do mundo egípcio para YHWH. Este monstro terrível, para o qual não há igual na terra e que foi feito para não ter medo (41,25), é parte integrante da criação de YHWH. Novamente se evidencia a dimensão do poder de Javé e simultaneamente a dimensão da complexidade e conflitividade desta criação.
Estes discursos de YHWH para Jó não respondem diretamente aos anseios deste por seu quinhão de recompensa dentro do esquema retributivo tradicional. Pelo contrário, os conteúdos destas falas, devidamente entendidos, são para Jó [e ouvintes] um convite para abertura a um “outro horizonte novo muito mais amplo que sua atual estreiteza” dentro do esquema retributivo. No caminho do discernimento mais profundo, o redator da obra leva o personagem Jó, no encontro [literário] com o Sagrado, YHWH, a perceber uma amplidão maior da criação divina. YHWH é aquele que, vencendo as forças caóticas, cuida para que a criação não se torne um caos. Essa visão de Deus é dinâmica. Deus, a cada dia, de forma nova, cuida de toda a criação.
Para o problema de Jó, isto é, para a questão da teodicéia, agrega-se agora mais uma perspectiva teológica, a de um Deus, cujo ‘bom governo’ “vela pela vida de todos os povos da terra e pelo direito de cada criatura a existir em toda a sua variedade e complexidade”. Há, assim, a afirmação de uma perspectiva não antropocêntrica da criação.
Mas o que significa isso para os direitos do Jó empobrecido?
IV. Pobre-sujeito
No caso de Jó, essa visão não-antropocêntrica do agir de Deus provoca um deslocamento a mais: além de fazer o caminho da descida social da riqueza para a pobreza, Jó deve agora se reconhecer como um elemento dentro de uma criação mais complexa, que não está unicamente direcionada ou funcionalizada para suas necessidades humanas.
Nesta nova concepção, o esquema retributivo, que está sistemicamente orientado, não pode mais funcionar. A relação direta com a divindade não é mais possível, pois em toda relação pode haver perturbações externas a Deus e ao indivíduo. Estas perturbações externas estão simbolizadas na figuras míticas de Beemot e Leviatã, que, embora em última instância estejam sujeitas a Deus, representam “as forças caóticas fora de Deus e do ser humano”, constituindo um dualismo incipiente na teologia israelita da época persa.
Dentro desta nova concepção da complexidade do mundo criado há que se definir o lugar de Jó como pessoa empobrecida. É bem verdade, como já afirmou Crüsemann, que nas respostas de Deus a Jó se dá um distanciamento de Deus em relação às causas sociais e humanas. Deus e seu agir parecem ser algo imperscrutável.
No início da segunda resposta a Jó (40,5-14), em tom irônico, YHWH desafia Jó a ser sujeito de ações promotoras do suposto e esperado equilíbrio nas relações sociais entre ricos e pobres, opressores e oprimidos, justos e ímpios. Jó é desafiado a agir historicamente como Deus e assumir os atributos divinos. A metáfora do braço de Deus (40,9) é uma indicação sutil para a ação de Deus no êxodo. Também o trovejar da voz de Deus remete para a teofania do Sinai (Ex 19 - e também do Horebe – Ex 3), indicando um sentido libertador. Jó deveria agir como YHWH.
Esse desafio para ser sujeito de transformações históricas continua na passagem 40,10-14. Novamente há ironia e ceticismo nas formulações. Jó é desafiado a rebaixar as coisas altas, abater todo soberbo, humilhar todo ímpio e encerrar todos eles no pó da terra. Agindo assim historicamente, os problemas sociais deixariam de ter sua razão e um sujeito como Jó poderia ser reconhecido em atributos divinos. A ironia das formulações não significa que isso seja impossível, mas evidencia a dificuldade do empreendimento por mãos humanas. Parece-me ser assim que, através desta atribuição cética a Jó somo sujeito de transformações sociais, expressa-se perigos e temores inerentes a movimentos sociais como o messianismo e a posterior apocalíptica. Dentro do novo quadro não retributivo da complexa criação, Jó tem limitadas suas possibilidades de ser sujeito.
O livro de Jó, contudo, acrescenta ou atribui a Jó um novo direito: o direito de ser sujeito questionador frente ao sistema social e teológico estabelecido. Esse direito é conferido a Jó desde o momento em que em 3,1 abre a boca para maldizer o dia de seu nascimento e iniciar uma jornada de busca por discernimento mais profundo do sentido da vida e de Deus e, especialmente, questionando e acusando YHWH de ser o promotor ou o legitimador do sofrimento inocente no mundo. O autor do livro deixa Jó exercer esse direito ao longo de toda a parte poética da obra, chegando às raias da blasfêmia contra o próprio Deus.
Esse direito de sujeito frente ao sistema não é revogado nem mesmo após o encontro de YHWH com Jó (cap. 38-41). Face às inúmeras perguntas de Deus a Jó, este reconhece plenamente o poderio e a superioridade de YHWH no manejo da criação, dizendo, por exemplo: “bem sei que tudo podes” (42,2). Jó até se coloca como aprendiz e capaz de aprender coisas novas (42,4). O encontro com o Sagrado trouxe nova luz ao conhecimento e à experiência. Do ouvir-dizer, Jó chega à visão de Deus. Isso não significa uma completa relativização ou mesmo superação da tradição teológica de Israel, mas dá início a uma nova perspectiva. Esta somente é possível por meio de um intenso diálogo com as tradições herdadas, e ainda presentes, no imaginário do povo na época.
Deve haver um cuidado especial na interpretação do último versículo da resposta final de Jó a YHWH. Usualmente, traduz-se aqui algo no sentido de expressar um arrependimento de Jó e algum tipo de ritual de humilhação perante o Sagrado. A tradução de Almeida é sintomática neste sentido: “me abomino e me arrependo”. Muitas outras traduções vão no mesmo sentido de dar a entender que aqui o pobre Jó tem a sua subjetividade relativizada. As interpretações nos comentários sobre o livro de Jó acentuam isso de modo bastante nítido e forte. Há autores que falam de “sujeição formal” e de retração de conteúdo. Georg Fohrer afirma que Jó “não somente silencia (40,4s), mas revoga e se arrepende de tudo o que dissera anteriormente” e que a postura adequada de uma pessoa crente é “o silêncio humilde e de entrega perante Deus”. Um outro comentador diz que Jó capitula por completo, incondicionalmente e só lhe resta arrepender-se de sua rebeldia, martirizando-se em pó e cinza. Mais outro ainda acrescenta que na autonomia de Jó perante Deus resplandeceria a hybris do pecado original (Gn 3).
Essas afirmações na tradição interpretativa desfazem por completo o ser-sujeito de Jó. Retiram-lhe, na verdade, um direito que o poeta autor do livro atribui a seu personagem principal. Deve-se, pois, observar melhor o campo semântico e o significado dos dois verbos. O verbo nhm na forma Nifal não expressa tanto um sentimento interno de arrependimento, mas, com base em Gn 6,6 e Jn 3,9s, pode ser entendido no sentido de “um distanciamento de um agir e de uma concepção e uma tendência rumo a uma nova postura e um novo agir”. Trata-se, pois, de um passo no processo cognitivo. Algo similar pode ser afirmado como relação ao verbo ma’as. Com base em usos do verbo no próprio livro de Jó (5,17; 7,16; 8,20; 9,21; 10,3; 19,18; 31,13, 34,33, 36,5) e também no Sl 118,22 e Is 7,15, pode-se entender o verbo no sentido de rejeitar uma concepção anterior acerca de Deus e de si mesmo. Isso significa que Jó não é levado a arrepender-se no sentido de revogar o exercício do direito de ser sujeito frente ao sistema social e religioso, mas o personagem reconhece a complexidade do mundo que lhe apresentado por YHWH nos seus discursos teofânicos.
Interpretação similar vale para a última expressão ‘al ‘afar wa’efer (42,6b). Aqui não se trata da indicação de um ritual de penitência nem do reconhecimento do ser-criatura de Deus por Jó, mas muito provavelmente é a indicação do lugar social real em que Jó realiza este discernimento mais profundo. Cabe lembrar que Jó está sentado em pó e cinzas desde 2,8 e todas as discussões com os amigos são travadas a partir deste lugar social, isto é, a partir da condição de marginalidade social, de empobrecimento. Nesta condição periférica, na discussão com os amigos, Jó ainda desfilava a sua anterior forma de pensar aristocrática, em conformidade com a filosofia de vida sapiencial tradicional dos proprietários livres de Israel e em conformidade com os seus direitos de recompensa face à observância dos preceitos da Torá. Agora, a partir do seu sofrimento em condição marginal, porém, ele percebe que dentro da dinâmica ecocêntrica de um mundo complexo, perpassado por espaços e poderes hostis, com gozo de liberdade, não se pode pensar as relações com os outros e com Deus dentro de um esquema diretametne retributivo. O ser humano permanece interlocutor primeiro e preferencial de Deus, mas é um elo dentro de uma tessitura cósmica maior. E dentro deste amplo e complexo espaço planetário, Jó tem o seu direito de ser sujeito frente ao sistema plenamente resguardado. Jó é um pobre-sujeito!
Este ser sujeito do Jó empobrecido é ratificado na moldura narrativa final. Em 42,7-8, o autor da obra faz o próprio YHWH censurar a postura de intransigente defesa do sistema por parte dos amigos e, simultaneamente, afirmar que a postura de Jó em suas falas e em suas profundas e sofridas buscas pelo sentido da vida e pelo agir de Deus no mundo eram retas (hebr.: nekonah) perante Deus. Este ser-sujeito de Jó no questionamento do sistema é plenamente mantido!
V. Concluindo
As várias vozes dentro da polifonia do livro de Jó buscaram expressar opiniões sobre o problema de Jó, isto é, a questão da teodicéia. Várias opiniões foram expressas, com acertos e desacertos. Um dos objetivos da obra na referida ‘crise da sabedoria’ era buscar a superação da teologia retributiva. Neste sentido, o autor da obra acrescenta às várias vozes, a opinião de certa forma dominante de que o mundo como criação divina é um espaço complexo, perpassado de elementos e poderes hostis, no qual, porém, cada elemento pode gozar de liberdade. Dentro desta nova concepção de Deus e de sua complexa criação, o personagem Jó é desafiado a encontrar o seu lugar próprio. De sujeito da Torá, após seus questionamentos a Deus, Jó é desafiado ironicamente a ser sujeito de transformações sociais, um empreendimento difícil, mas não impossível. Na sua condição de empobrecido, embora ainda desfraldando ética e postura patriarcal, Jó exercita um novo direito: o direito de ser sujeito frente ao sistema. Esse direito é resguardado ao personagem até o final.
Assim, o problema de Jó recebe várias soluções possíveis, porém não as soluções últimas, pois enquanto houver gente no mundo que sofre de modo inocente deverá haver sempre de novo o exercício do direito da subjetividade e da autonomia humanas frente ao sistema. Na ótica e na pena do poeta-autor da obra, porém, também o caso de Jó, isto é, o caso de um justo sofredor recebe uma solução. Ao exercitar a intercessão pelos amigos (42,10), Jó teve sua condição de bem-estar restituída. Na descrição dessa nova mudança, o texto se move no mesmo nível do lendário da parte inicial. Jó volta a ser novamente um cabra muito rico. Essa pode não ser a melhor solução para o caso; talvez bastasse a descrição de um bem-estar razoável, sem os artifícios da riqueza lendária. Advogo, porém, em favor de que não se interprete esta nova mudança da condição de Jó como um reenquadramento dentro do superado sistema de retribuição. Considero mais adequado interpretar este final como uma resposta exagerada, mas acertada de que um empobrecido voltou a viver em plenitude! É um outro Jó! É um Jó que se sente livre em relação à obrigação do sistema retributivo! Ele pode acompanhar, agora, mesmo que com temor, as andanças de seus novos filhos e novas filhas. Ele sabe agora que a vida em liberdade frente ao sistema e dentro da complexidade da criação traz perigos intrínsecos, mas que ele não pode nem prever nem prevenir plenamente. Por isso, este Jó pôde morrer “velho e farto de dias” (42,17). Esta é a história de Jó: um pobre-sujeito!

Agradecimentos a Haroldo Reimer