É comum ouvirmos dos críticos afirmando que o texto neotestamentário foi escrito tardiamente e pelos romanos para persuadir e apaziguar os judeus. Será que essa informação procede?
Para responder ao questionamento, busquei vários livros e preparei uma argumentação dividida em 10 pontos. Tenha uma ótima leitura - e tire as suas próprias conclusões!
Para entrar no espírito do texto, comecemos com Josh McDowell, que é categórico em sua primeira frase sobre o assunto no livro "Evidências da Fé Cristã", compilado por Bill Wilson: "A ambientação de todos os quatro Evangelhos é evidentemente a do primeiro século hebraico."
Índice: 1 - Aspectos culturais singulares; 2 - O relato do julgamento de Jesus não é antissemita; 3 - As profecias e a história do Antigo Testamento; 4 - Documentos palestinos e o hebraico e aramaico nos Evangelhos; 5 - Evidências do testemunho ocular; 6 - A antiguidade do Novo Testamento e o testemunho da História; 7 - O ódio dos romanos para com os judeus; 8 - O ódio dos romanos contra os cristãos; 9 - As divergências entre os Evangelhos; 10 - Textos embaraçosos para os judeus e para os romanos; Conclusão.
1 - Aspectos culturais singulares: Muitos aspectos particulares da cultura judaica aparecem com naturalidade e sem explicações nos relatos neotestamentários. Os romanos compreendiam muito pouco desses costumes. Vejamos alguns exemplos:
- Em Lucas 7:38 temos o relato da mulher que se prostrou aos pés de Jesus e lavou-os com suas lágrimas. Acontece que o choro era uma parte importante da cultura judaica - carpideiras profissionais eram contratadas para os funerais e um considerável número de judeus tinha vasos de lágrimas, onde guardavam as lágrimas de suas aflições. É possível que a mulher que chorou aos pés de Jesus tenha derramado todo o conteúdo de seu vaso de lágrimas sobre eles.
- Lucas 2:24 relata a oferta deita por José e Maria, em obediência à exigência de Levítico 12:2, 6 e 8, pelo bebê recém-nascido - duas pombas ou rolinhas, indicando sua posição social.
- Os costumes do casamento hebraico também explicam o que aparenta ser uma contradição em Mateus 1:18-19: no versículo 18 Maria aparece como noiva de José e no 19 ela o chama de "marido".
A verdade, segundo James Freeman, é que o noivado na antiga Israel era levado mais a sério do que em nossa cultura atual, sendo considerado o próprio começo do casamento - o compromisso legal era tão sério quando no casamento consumado e não poderia ser rompido, senão por uma declaração de divórcio.
- O confronto ente Jesus e os saduceus, Marcos 12, está em conformidade com o que se sabe sobre a percepção dos saduceus com relação ao levirato. No Talmude palestino, os saduceus empregam o levirato para zombar dos fariseus, propondo o hipotético problema do sobrevivente dentre 13 irmãos que é ordenado a se casar com as viúvas dos 12 irmãos falecidos.
- O relato da mulher hemorrágica (Mateus 9:20-22; Marcos 5:25-34; Lucas 8:43-48), adquire profundo significado quando entendido o seu contexto israelita. Por doze anos essa mulher permaneceu impura e, ao tocar as vestes de Cristo, ela o teria contaminado - é por isso que ela se amedrontou quando notou que Jesus percebera seu toque. A compaixão do Messias nessa situação demonstra com mais nitidez a Nova Aliança.
- Nos Evangelhos sinóticos há o relato das purificações que Jesus realizou no Templo de Jerusalém, expulsando os mercadores. Só podemos entender o que realmente aconteceu quando verificamos o evento nos moldes dos costumes judaicos: Jesus não era contrário ao câmbio monetário. A maioria do povo carregava moedas romanas com a imagem de César, que eram proibidas de entrar no Templo, conforme a Lei mosaica.
Outro tipo de moeda circulava nas repartições do Templo - dinheiro judaico contendo apenas flores, ornamentos geométricos ou cerimoniais. Foi contra esse processo de câmbio que o Mestre se opôs: há fontes israelitas que sugerem que algumas famílias sacerdotais obtinham lucros ilícitos nesse procedimento. A corrupção e o tumulto irritaram o Mestre, que queria ver puro o local que representava a majestade de Deus.
- Outro aspecto interessante dos Evangelhos é que eles apresentam Jesus se dirigindo quase que exclusivamente às cidades judias para realizar Suas obras. Apenas duas cidades que não eram judaicas ortodoxas foram visitadas por Cristo: Sidom e Sicar. Sidom era pagã e Sicar era samaritana. Não havendo nenhum registro de milagre em Sidom, não sabemos de nenhuma maravilha promovida pelo Messias entre os pagãos. Jesus aparece indo para Betsaida, mas não Júlia, cem metros distante; entra na pequena Nazaré, mas evita Séforis, cinco quilômetros distante; Ele se dirige para a região de Decápolis, Cesareia de Filipe e Tiro, mas não entra em nenhuma cidade pagã - o relato inteiro é judaico ortodoxo.
- A imagem do Mestre colorida nos Evangelhos O apresenta como pró-semita, com comentários que podem parecer antigentios. Vide Mateus 10:5; 15:26; Marcos 7:27 e João 4:22. 2 - O relato do julgamento de Jesus não é antissemita: Antes de observar se uma determinada declaração é antissemita, é importante observar se a pessoa que fala é judia ou não. Durante suas aulas de Novo Testamento, o professor Felming sempre começa dizendo o seguinte: "Eu não sei por que alguns judeus são tão sensíveis ao suposto antissemitismo do Novo Testamento. Como poderia alguém que diz 'eu o vomitarei para fora da terra', ser antissemita? Como poderia alguém que diz 'suas orações são um fedor às narinas de Deus', ser antissemita? E é claro que todos eles ficam transtornados. 'Como se poderia dizer que isso não é antissemita?' Então eu os lembro de que estou citando Isaías e Jeremias." Se houvesse interesse da parte dos evangelistas de encobrir os romanos, por qual motivo colocariam Pôncio Pilatos açoitando Jesus? Poderiam ter feito de Pilatos um herói que assume a responsabilidade e, na sua autoridade, põe fim na situação. João, considerado o mais "antissemita" dos Evangelhos, afirma que Jesus disse que "a salvação vem dos judeus" (João 4:22). Lucas, por sua vez, apresenta Jesus pedindo, na cruz, perdão pelos pecados dos Seus juízes, declarando que "eles não sabem o que fazem" (Lucas 23:34), coisa estranha se a ideia era imputar a culpa nos judeus.
Até quando os Evangelhos desferem críticas sobre os líderes judeus, nada estão dizendo que já não tivesse sido falado pelos judeus anteriormente. Arqueólogos encontraram em Jerusalém pratos com a inscrição "Kathros", nome desenterrado também em Baraita, revelando o caráter das famílias sacerdotais dos tempos de Jesus: "Ai de mim por causa da casa de Hannan [Anás] por causa dos seus segredos! Ai de mim por causa da casa de Kathros, por causa de suas penas [provável referência à falsificação de documentos ilegais]. [...] Porque eles são sumo sacerdotes e os seus filhos são tesoureiros, e os seus genros [Caifás era genro de Anás] são os inspetores, e os seus criados batem nas pessoas com varas." Se declarações assim são encontradas, por qual motivo pensar que os Evangelhos são antissemitas?
Na verdade, verificando a inscrição anterior, a preocupação dos evangelistas com as autoridades parece bem justificada. No período herodiano os membros do Sinédrio eram nomeadas por interesses políticos. Quando os evangelistas usam o termo "os judeus", não estão imputando culpa alguma à comunidade judaica - trata-se, na verdade, de um termo geral aplicado a um grupo de israelitas, geralmente da classe dos líderes, envolvidos em determinada situação. Por exemplo: não foram todos os judeus que pediram pela crucificação de Jesus, começando pelo fato de os discípulos de Cristo serem judeus, apenas a multidão presente diante de Pilatos é que clamou pela severa condenação - o Templo tinha cerca de vinte mil servidores e dezoito mil trabalhadores pagos, tornando fácil que os dirigentes do local mobilizassem um grande grupo de pessoas para exigir a morte de Jesus. O fato é que os Evangelhos nunca declararam que foram os judeus aqueles que mataram Jesus, referindo-se à multidão apenas por "eles".
Lucas, em Atos, registra que a Igreja Primitiva não viu os judeus como "os assassinos de Cristo" - a oração de Pedro e João em Atos 4:24-28 ajuda a perceber isso. Fonte: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 94-98. 3 - As profecias e a história do Antigo Testamento: Existe uma conexão profética extremamente forte entre o Antigo e o Novo Testamento, e apenas um judeu dos dias de Cristo, profundamente familiarizado com as esperanças proféticas, a leitura e a história do seu povo, poderia discernir a vastidão delas. Uma obra romana conseguiria acertar nalguns pontos, mas jamais daria interpretações corretas para o cumprimento de tantas profecias e estaria tão imersa em toda a tradição profética milenar de Israel. Segundo Werner Gitt, no livro "Perguntas que Sempre São Feitas", Actual, 2005, pg 33, há 6.408 versículos com indicações proféticas, das quais 3.268 já se cumpriram. A Bíblia de Estudo das Profecias, John C. Hagee, Atos, 2005, pg 987, nos informa que há cerca de 300 profecias veterotestamentárias que se cumpriram em Jesus Cristo no Novo Testamento. A profecia é um traço típico da literatura judaica e a sua presença nos escritos neotestamentários ajuda a reconhecer a sua procedência - além disso, a necessidade nítida dos autores do Novo Testamento de evidenciar o cumprimento de profecias em Cristo está em concordância com os anseios proféticos que eletrizavam a Palestina no Século Primeiro, resultantes de uma esperança judaica secular.
Um resumo da profecia messiânica no Antigo Testamento você pode encontrar no seguinte artigo do EMEAB: Cristo e as Profecias do Antigo Testamento. 4 - Documentos palestinos e o hebraico e aramaico nos Evangelhos: Um dos maiores achados arqueológicos de todos os tempos, os Manuscritos do Mar Morto, de Qumran, pinta um pano de fundo histórico bastante colorido sobre os anos que antecederam Cristo e sobre o Primeiro Século na Palestina. Muitos pontos dos Evangelhos que outrora foram questionados mostraram-se coerentes com o pensamento corrente na primeira metade do Século Primeiro, como a afirmação bíblica de que Cristo é o "Filho de Deus", antes explicada como influência romana, mas posteriormente, com base no 4Q246 de Qumran, tida como palestina. A declaração de Jesus em Mateus 11:4-6, quando se apresenta como Messias, está dentro dos moldes da esperança messiânica do período, registrada no 4Q521, também de Qumran.
Além da mensagem falada pelo Mestre ser apresentada dentro de uma matriz judaica, algumas de Suas parábolas encontram eco em histórias morais palestinas, com ênfase nas ilustrações utilizando os vinhedos. Jesus também não era o único a desferir palavras proféticas, embora as profecias dEle tenham se cumprido cabalmente. Mais um aspecto do ministério de Jesus que encontra paralelos reside na realização de milagres - diversos taumaturgos perambulavam na região da Palestina, embora apenas Cristo tenha realizado as mais incríveis maravilhas sem o uso de nenhum objeto ou ritual. Sua fama como realizador de milagres rendeu o uso de Seu nome até por pagãos, que O tiveram como autoridade curativa em suas operações durante várias décadas depois da Sua ascensão.
Outra singularidade palestina que aparece nos Evangelhos é a esperança messiânica - não era incomum que alguém aparecesse afirmando ser o Messias esperado, como Cristo fez. É claro que Jesus teve todo o suporte de centenas de profecias cumpridas, realizou as mais extraordinárias maravilhas, afirmou ser Deus e ressuscitou dos mortos. Até mesmo a zombaria que os romanos despejaram sobre o Salvador durante Seu julgamento é corroborada por outras ocorrências da época. Tudo isso indica que os Evangelhos formam um livro plenamente judaico. Fonte: O Jesus Fabricado, Craig Evans, Cultura Cristã, 2009, pgs 41-44; 120-124; 136, 138, 140 e 160-161; Manual Bíblico Unger, Merril Frederick Unger, Vida Nova, 2006, pgs 437-439. Segundo se pode extrair de Papias, bispo de Hierápolis, que escreveu por volta de 130 d.C., Mateus redigiu seu Evangelho primeiramente em hebraico - ou "no estilo judaico". Jerônimo, o responsável pela Vulgata Latina por volta de 380 d.C., afirmou ter tido contato com o original hebraico de Mateus.
Esse Evangelho, cujo público leitor era o hebreu, apresenta uma familiaridade ímpar com o pensamento judaico e transmite informações proféticas e culturais com grande naturalidade e de modo muito específico, reconhecendo que os primeiros a terem contato com a sua mensagem não demandavam maiores explicações. O Evangelho de Marcos, mesmo que tenha sido escrito tendo o público romano em mente, apresenta uma matriz distintamente semita, evidenciando que o grego utilizado para a sua confecção era a segunda língua do autor. Também fica claro em sua leitura o uso de testemunho ocular, provavelmente Pedro (Marcos é também conhecido como "Memórias Petrinas") - o que se torna claro quando reconhecemos que a estrutura desse Evangelho segue o esquema geral das pregações do apóstolo Pedro em Atos. Sabe-se que o público-alvo de Marcos são os romanos pelo fato de o documento, entre outros motivos, não insistir nos costumes judaicos e na Lei mosaica - e quando alude alguma singularidade dos judeus, desfere explicações mais profundas do que os demais Evangelhos. Isso indica que Marcos não pode ter sido uma obra romana para apaziguar os judeus - o próprio público era romano.
O Evangelho de Lucas é singular pelo fato de ter sido o único dos quatro a ser escrito, provavelmente, por um gentio - Lucas deve ter se convertido, no máximo, 15 anos após da ressurreição de Cristo. Ele deixa clara a sua origem gentílica ao chamar os habitantes de Malta de "bárbaros". Essa obra apresenta o melhor grego das Escrituras e, segundo afirmado pelo próprio autor, está totalmente embasada em testemunho ocular coletado em diversas fontes - as melhores que Lucas encontrou em sua acurada busca.
Dos Evangelhos, o mais questionado é o de João. Muitos críticos insistem que ele é tardio e que não foi escrito por um cristão judeu, mas grego, com tendências gnósticas. Nada disso é verdadeiro quando considerados os aspectos do seu texto: a leitura do material nos mostra um autor judeu acostumado a pensar em aramaico, mesmo que tenha escrito em grego, pois seu público leitor dependia disso - há muitas palavras hebraicas e aramaicas inseridas no material, indicações da expectativa messiânica do povo judeu (1:19-28), conhecimento sobre a relação entre os judeus e os samaritanos (4:9) e a posição exclusivista do judaísmo (4:20), além de ele demonstrar familiaridade com as festividades judaicas. Trata-se, sem dúvida, de um judeu palestino - há descrições muito precisas de Jerusalém e dos arredores (5:2; 9:7; 11:18; 18:1), isso de antes da Queda, em 70 d.C., e familiaridade com as cidades da Galiléia (1:44; 2:1) e com o território de Samaria (4:5, 6 e 21); o autor foi testemunha ocular dos eventos descritos - 1:14 e 19:35; ele observou detalhes, colorindo a narrativa como apenas uma testemunha muito observadora poderia fazer - Jesus sentando no parapeito do poço (4:6), o número e o tamanho das talhas nas bodas de Caná (2:6), o peso e o valor do perfume que Maria derrubou sobre os pés de Jesus (12:3-5) e os pormenores do julgamento de Cristo (caps 18-19).
As descobertas de Qumran confirmaram a autenticidade do contexto e do padrão de raciocínio judaicos observados no livro. Material consultado: A Bíblia de Estudo Anotada Expandida, Charles C. Ryrie, Mundo Cristão, 2007, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Bíblia de Estudo Defesa da Fé, CPAD, 2012, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Manual Bíblico Unger, Merrill Frederick Unger, Vida Nova, 2006, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; O Novo Testamento, Sua Origem e Análise, Merrill C. Tenney, SHEDD Publicações, 2011, sobre Mateus, Marcos, Lucas e João. A questão é: como um livro escrito pelos romanos seria tão inteiramente judaico? E por qual motivo os romanos escreveriam algo para apaziguar os judeus, mas tendo eles mesmos como público leitor, como é o caso de Marcos? Ou de Lucas e João, que objetivaram atingir primeiramente os gregos? 5 - Evidências do testemunho ocular: Os Evangelhos demonstram claramente que são fruto, basicamente, do testemunho ocular. Há muitas evidências arqueológicas, além de pistas na construção dos textos, que apontam para isso.
É interessante notar que é justamente no Evangelho de João, aquele que os críticos consideram mais tardio, que os testemunhos oculares mais evidentes aparecem, conforme as citações que seguem: "Em termos gerias, a evidência interna indica que o autor [do Evangelho de João] foi testemunha ocular dos eventos que descreve. Sobre isso, é interessante citar o veredito de Dorothy Sayers, que focalizou o assunto na perspectiva do artista criativo: 'Convém ter-se em mente que, dos quatro evangelhos, é João o único a apresentar-se como um relato direto de uma testemunha ocular. E para quem quer que esteja acostumado com o tratamento construtivo de documentos, a evidência interna confirma esse pressuposto.' (...) o falecido professor de história oriental antiga, na Universidade de Chicago, A. T. Olmstead, acredita que a história da ressurreição de Lázaro, que aparece no capítulo 11, exibe 'toda a minúcia circunstancial da testemunha ocular convicta', enquanto a narrativa do sepulcro vazio no capítulo 20 é 'narrada incontestavelmente por uma testemunha ocular - plena de vida e destituída de qualquer detalhe a que possa o cética usar para fazer uma objeção justificável'." Fonte: Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pg 64. O livro "Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu", Norman Geisler e Frank Turek, Vida, 2012, pgs 261-275, apresenta 84 evidências para o testemunho ocular em Lucas e 59 para o testemunho ocular em João, unindo aspectos do texto e achados arqueológicos. Se houver interesse, leia as seguintes postagem do EOMEAB sobre o assunto: A Precisão do Relato de Lucas; O Testemunho Ocular do Evangelho de João. Sobre a precisão de Lucas, é interessante compartilhar as reflexões de Sir. William Ramsay, que explorou o Mundo Mediterrâneo pelas terras registradas pelo evangelistas, constatando: "Comecei tendo um pensamento desfavorável a ele [o livro de Atos] [...]. Eu não tinha o propósito de investigar o assunto em detalhes. Contudo, mais recentemente, vi-me muitas vezes sendo levado a ter contato com o livro de Atos vendo-o como uma autoridade em topografia, antiguidade e sociedade da Ásia Menor.
Fui gradualmente percebendo que, em vários detalhes, a narrativa mostrava verdades maravilhosas." "A história de Lucas é insuperável no que diz respeito à sua fidedignidade." "Lucas é um historiador de primeira grandeza; não apenas suas afirmações são de fato fidedignas; revela-se possuído de verdadeiro senso histórico; fixa a mente na ideia e no plano que regem a evolução da história e regulam a escala de sua consideração à importância de cada fato. Focaliza nos eventos importantes e críticos e lhes ressalta a verdadeira natureza em maior extensão, enquanto que apenas considera ligeiramente ou omite inteiramente muito do que não se reveste de valor para seu propósito. Em síntese, este autor deveria ser colocado entre os maiores historiadores." Fontes: Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu, Norman Geisler e Frank Turek, Vida, 2012, 266; Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pgs 118-119. Se os Evangelhos formassem um livro romano, não poderiam apresentar testemunhos oculares tão claros e equilibrados. Também não descreveriam a geografia e os costumes culturais dos judeus palestinos de forma tão precisa, somente possível para aquele que está familiarizado com a região e o seu povo. 6 - A antiguidade do Novo Testamento e o testemunho da História: Os mais antigos testemunhos que temos apontam para a autoria judaica - ou sob forte influência dos judeus - do texto neotestamentário. Não há nenhuma razão, tomando como base os registros históricos, para negar isso. O processo é justamente o contrário do proposto por alguns críticos: tratam-se de escritos formulados, em todos os aspectos, sob a pena judaica para influenciar os hebreus e os gentios.
O mais antigo dos testemunhos que temos para a autoria dos Evangelhos está em Papias, que escreveu por volta de 130 d.C. e foi preservado por Eusébio, no século IV d.C. Segundo Papias, citado por Eusébio, "Mateus organizou as palavras de Jesus em hebraico e aramaico e as interpretou da melhor forma que pôde", ou "Mateus colecionou os oráculos [logia] no idioma hebraico [hebraidi dialekto]" (Eusébio, História da Igreja III, 39, 16). Irineu de Lyon, por volta de 180 d.C., reforça Papias afirmando que "Mateus publicou também um evangelho entre os hebreus em seu próprio dialeto, enquanto Pedro e Paulo pregavam em Roma e punham os fundamentos da Igreja". No início do Século II já aparece a designação "O Evangelho Segundo São Mateus" (Adv. Haereses II, 1,1). A atribuição "Segundo São Marcos", aparece no Século III, mas Papias também formula declarações nesse sentido: "Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, mas sem ordem, tudo aquilo que recordava das palavras e ações do Senhor; não tinha nem ouvido nem seguido o Senhor (....). Ora, como Pedro ensinava, adaptando-se às várias necessidades dos ouvintes, sem se preocupar em oferecer composição ordenada das sentenças do Senhor, Marcos não nos enganou escrevendo conforme recordava; tinha somente esta preocupação, nada negligencias do que tinha ouvido, e nada dizer de falso." (Eusébio, História da Igreja, III, 39, 15).
Quanto ao Evangelho de Lucas, há um prólogo do Século II: "Lucas foi sírio de Antioquia, de profissão médica, discípulo dos apóstolos, mais tarde seguiu Paulo até a confissão (martírio) deste, servindo irrepreensivelmente o Senhor. Nunca teve esposa nem filhos; com oitenta e quatro anos morreu na Bitínia, cheio do Espírito Santo. Já tendo sido escritos os evangelhos de Mateus, na Bitínia, e de Marcos, na Itália, impelido pelo Espírito Santo, redigiu este Evangelho nas regiões da Acaia, dando a saber logo no início que os outros Evangelhos já haviam sido escritos." Sobre o Evangelho de João, temos um precioso trecho de Irineu, falecido em 202 d.C., citando Papias: "Enfim, João, o discípulo do Senhor, o mesmo que reclinou sobre o seu peito, publicou também o Evangelho quando de sua estadia em Éfeso." Fonte: Ciência e Fé em Harmonia, Prof. Felipe Aquino, Cléofas, 2012, pgs 154-162.
Além de declarações antigas de cristãos, há evidências arqueológicas do próprio Novo Testamento que atestam para a sua antiguidade: - O Papiro Rylands: apresenta partes do Evangelho de João e pode ser datado do ano 125 d.C. - Fragmento de Marcos: sugere-se que um dos fragmentos da Caverna 7 de Qumran seja do Evangelho de Marcos, datando-o, segundo o estilo de escrita, da década de 50 d.C., no máximo, Tal proposta é bastante contraditória. - O Evangelho de Marcos em múmia: recentemente foi divulgado o achado do Evangelho de Marcos numa máscara de múmia egípcia do Século Primeiro. O manuscrito foi datado como pertencente aos anos 80 ou 90 d.C. - Outros manuscritos muito antigos, abrangendo os Evangelhos, Atos, as epístolas gerais e/ou as epístolas de Paulo, são: os papiros I, II e III, de Chester Beatty, datados entre os séculos II e III; e os papiros II, VII, VIII, XIV e XV, de Bodmer, datados entre os séculos II e IV. Há considerável fartura de folhas nalguns desses manuscritos, chegando a ter 102. Foram catalogados, até o momento, 96 papiros. - Possuímos entre 10 e 15 manuscritos dos cem primeiros anos após a conclusão do Novo Testamento. Fontes: Ciência e Fé em Harmonia, Prof. Felipe Aquino, Cléofas, 2012, pgs 154-162; Crítica Textual do Novo Testamento, Wilson Paroschi, Vida Nova, 2008, pgs 44-46; Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizado por Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Vida Nova, 2013, Capítulo 12 por Daniel B. Wallace, pg 113; A Evidência Definitiva do Evangelho no Primeiro Século, Entreomalhoeabigorna.blogspot.com.br, 23/01/2015.
A antiguidade do Novo Testamento ajuda a destruir a proposta de que o texto neotestamentário é fruto da pena romana, pois desbanca as duas teorias principais: a de que o Novo Testamento foi criado e imposto depois do Concílio Niceno, no Século IV, e a de que o Novo Testamento foi forjado e empurrado para os judeus depois de 70 d.C. Como o Novo Testamento foi forjado em meados do Primeiro Século para enganar pessoas que estiveram na Palestina nos dias de Cristo? Como fazê-las acreditar que aconteceram coisas extraordinárias que nenhuma delas viu, mesmo que no quintal de suas casas? A proximidade dos eventos e dos manuscritos impossibilita tal golpe! A história de Cristo é real - e pessoas que O viram também leram documentos que estamos atualmente desenterrando. 7 - O ódio dos romanos para com os judeus: É sabido que os romanos nutriam grande desprezo pelos judeus, que habitavam os confins do Império. Por diversas vezes ao longo de séculos os semitas de Israel se rebelaram contra o Império, exigindo o deslocamento de legiões inteiras repetidas vezes - algumas dessas rebeliões se estenderam por anos. A região era um barril de pólvora sempre prestes a explodir. Isso levou o Império a adotar medidas cada vez mais severas para preservar seu domínio. Ainda assim, o povo hebreu permaneceu fechado às honras e bagatelas que os povos conquistados pelos romanos geralmente aceitavam como produto da Pax Romana. É extremamente complexa a história política de Israel no período de dominação romana, mas o fato é que, segundo Christiane Rancé, "Roma nutria um desgosto profundo pela Palestina irredutível, pelos judeus que não se deixavam assimilar, por seu culto incompreensível, e alimentava o desejo secreto de eliminar o local da face do império." Fonte: Jesus, Christiane Rancé, L&PMPocket, 2012, pg 48. Esse "desejo secreto" consolidou-se entre 66 e 70 d.C., quando as legões do Império mataram mais de um milhão de judeus e destruíram completamente o Templo de Jerusalém. Mas não era só a situação política de Israel que produzia o desprezo dos romanos: o povo judeu não era apreciado também por ser considerado bárbaro e relativamente primitivo.
Muitos eruditos romanos viam nos escritos judaicos cópias de mitos pagãos, como o Dilúvio de Noé, e tinham-nos como mal escritos, em comparação com as obras de seus grandes escritores. Fonte: Uma História Politicamente Incorreta do Cristianismo, Robert J. Hutchinson, Agir, 2012, pg 13. Os que alegam que os romanos criaram o Novo Testamento, inventando o cristianismo para apaziguar os judeus, precisam considerar o seu desprezo pela cultura judaica: diversas declarações romanas demonstram que eles ignoravam tanto os costumes judaicos, que não conseguiam discernir as suas práticas religiosas e culturais mais comuns. Esse desconforto pela cultura judaica seria uma forte barreira contra uma imersão nela objetivando a formulação de uma nova religião. O desgosto de Roma para com os judeus, que consideravam indignos e inferiores, não propiciaria um movimento tão complexo de redefinição religiosa - a primeira opção era sempre a legião e a guerra. 8 - O ódio dos romanos contra os cristãos: Os cristãos, à princípio, eram tidos apenas como uma seita judaica e, por isso, desde o começo foram tratados com o mesmo desprezo que os judeus. Mas, conforme os romanos foram discernindo o movimento cristão, o tiveram como algo pior que o próprio judaísmo: uma seita bizarra e supersticiosa, fundada por um judeu fanático, provocador e problemático, coerentemente condenado à morte - e uma morte em desonra. Os romanos também acusavam os cristão de, em suas reuniões secretas, comerem carne e beberem sangue humanos - uma interpretação equivocada da Santa Ceia - e promoverem orgias incestuosas, já que chamavam uns aos outros de "irmão" e "irmã". Para Roma, essa seita era muito menos interessante do que a religião tradicional e as religiões de mistério, com os elevados cultos mitraicos, estoicos e a Ísis. Além de estranharem o comportamento dos cristãos, os romanos repudiavam os seus Escritos. Para eles, tanto as Escrituras judaicas quanto cristãs eram, segundo Hutchinson, nada além de "uma coletânea ralé de lendas folclóricas, leis esquisitas, cartas mal escritas, biografias de mágicos milagrosos", entre outros. Sem dúvida os romanos preferiam, em todos os sentidos, os seus escritores clássicos, como Virgílio, Cícero, Ênio e Cato.
Diante deles, apontavam que a Bíblia era imatura, repleta de erros de ortografia e gramática e provida de "tramas ridículas". É com isso em mente que Tertuliano, apologista cristão do século II d.C., afirma que "os homens estão tão longe de aceitar nossas escrituras que ninguém se aproxima delas a menos que o individuo em questão seja cristão." O próprio Santo Agostinho, maior teólogo do Primeiro Milênio, manteve-se longe do cristianismo por 12 anos por causa da Bíblia. Fonte: Uma História Politicamente Incorreta do Cristianismo, Robert J. Hutchinson, Agir, 2012, pgs 13-14. Os romanos se opuseram ao cristianismo de tal forma que lançaram diversas perseguições ferozes, resultando em milhares de martírios. O fato é que os cristãos, além de praticarem coisas que causavam estranheza e de terem um livro desprezado, ignoravam a religião oficial e o culto ao imperador, tinham uma tendência de negar o serviço militar e afastavam-se dos costumes romanos, sendo considerados como "inimigos da humanidade". Fonte: O Cristianismo Através dos Séculos, Earle E. Cairns, Vida Nova, 2008, pgs 75-77; Os Cristãos, Tim Dowley, Martins Fontes, 2009, pgs 15-18. Por fim, podemos evidenciar o desinteresse dos romanos para com a "seita dos cristãos" em diversas declarações pagãs contra o cristianismo, que deixam claro o quanto os seguidores de Cristo eram voluntariamente desconhecidos pelos romanos, sendo, por exemplo, confundidos com os judeus por Suetônio - 120 d.C. -, que justificou a expulsão dos judeus de Roma apontando os distúrbios frequentes causados por eles sob influência de "Cresto".
O que de fato pode ter acontecido foi que os cristãos e os judeus de Roma entraram em discordância - Suetônio parece pensar que Cristo, ou "Cresto", estivesse pessoalmente na capital do império por aqueles dias. Foi por essa época, 111-113 d.C., que Plínio, o Moço, resolveu pesquisar sobre a singular "raça dos cristãos", objetivando deixar o Imperador Trajano consciente de como eles eram. Fonte: Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pg 154; Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, pg 1751; Em Defesa de Cristo, Lee Strobel,Vida, 2011, pgs 108-109. Como o Novo Testamento poderia ser um livro romano se o mesmo era mal compreendido e explicitamente desprezado pelos latinos? Por qual motivo os romanos inventariam uma religião que discordasse tanto dos anseios imperiais? Gerando, inclusive, insubmissão ao culto ao Imperador? Por qual motivo eles criariam uma religião para, imediatamente após isso, iniciarem um forte movimento de desmantelamento através de perseguições literárias e armadas, arregimentando seus grandes eruditos e as suas legiões? Se o Novo Testamento fosse um livro romano escrito para controlar os judeus, certamente apresentaria passagens que facilitassem a submissão ao Império, e não o contrário - além disso, seria composto de forma mais romana, não gerando tanto estranhamento e repúdio da parte dos latinos. 9 - As divergências entre os Evangelhos: Se os Evangelhos fossem obra dos romanos para a persuasão dos judeus, sendo produzidos juntos e pela mesma mente, não apresentariam divergências.
Mas elas existem no texto neotestamentário, mesmo que não comprometam a Mensagem. Essas divergências existentes entre os documentos são positivas, pois demonstram que cada Evangelho foi escrito por pessoas diferentes e em períodos e lugares distintos - não houve uma reunião dos evangelistas para a formulação de um texto uno. Isso indica que houve um único evento verdadeiro presenciado por várias pessoas e registrado isoladamente por cada uma delas, sendo as mais proeminentes os autores dos quatro Evangelhos. Essa verdade única é verificável pelo fato de, mesmo que os textos tenham brotado da pena de pessoas em momentos e locais diferentes, eles concordam em quase tudo - não há contradições doutrinárias e nenhuma divergência cronológica e histórica relevante. Na verdade, se consideramos os padrões da época, os Evangelhos são muito harmoniosos entre si - e as variações existentes, em sua maioria paráfrases, omissão ou seleção de fatos, abreviações ou acréscimos explicativos, que em nada alteram o significado.
Sobre isso, Henri Daniel-Rops afirma: "Santo Irineu falou com muita precisão do evangelho tetramórfico, isto é, o evangelho existente sob quatro formas. E, a partir da metade do segundo século, com Clemente de Alexandria e o Cânon Muratoriano, era a prática - e a única prática correta - dizer: o Evangelho segundo São Mateus, segundo São Marcos, segundo São Lucas, segundo São João; deixando claro que aqui existe um corpo de verdade, substancialmente um e único, comunicado aos homens em diferentes formas." Para Hans Stier, da escola historiográfica clássica, a harmonia em dados básicos e a divergência nos detalhes são sinal de credibilidade, já que as narrativas fabricadas costumam ser integralmente consistentes e harmoniosas. Fontes: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 81-82; Em Defesa de Cristo, Lee Strobel, Vida, 2011, pgs 58-60. 10 - Textos embaraçosos para os judeus e para os romanos: Uma mentira forjada para persuadir não incluiria detalhes que apenas serviriam para produzir desentendimento e dificultar a aceitação do trabalho. Mas os Evangelhos, por tratarem da verdade, não foram poupados desses inconvenientes.
Tomemos alguns exemplos: as palavras duras de Cristo e Seus ensinamentos excessivamente éticos; o fato de que Cristo não pôde realizar milagres em Nazaré; o trecho no qual o Mestre afirma "não saber o dia e nem a hora" de Seu retorno; a falta de fé e a tripla negação de Pedro; o aparente abandono de Jesus na cruz; o evidente fato de que os discípulos quase sempre entendiam mal o que o Mestre dizia; o momento no qual Tiago e João pediram ao Messias os melhores lugares no Seu reino... Além disso, quando os Evangelhos apresentam passagens desconfortáveis para os judeus, conforme relatado no segundo tópico, sugerem uma crítica judaica, não a tentativa romana de oferecer aos judeus uma mentira confortável e sedutora. Trata-se de uma crítica judaica, pois não há favorecimento dos gentios, como seria esperado de um texto romano para apaziguar os judeus e produzir neles mais submissão ao Imperador. Fonte: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 94-98.
Conclusão:
Com base nos 10 pontos levantados, podemos entender que os Evangelhos não são obra dos romanos pelos seguintes motivos: apresentam detalhes culturais e políticos muito singulares de Israel; não elogiam nem judeus e nem romanos; estão ligados ao Antigo Testamento de forma muito profunda; entram em concordância com outros documentos palestinos do período; apresentam palavras e estilo judaico; evidenciam o testemunho ocular, consolidado pela arqueologia; são muito antigos e os mais remotos testemunhos sobre a sua autoria apontam para o contexto judaico; os romanos odiavam e não compreendiam os judeus e os cristãos; as divergências dos Evangelhos evidenciam sua escrita por pessoas em lugares e momentos diferentes, e todos apresentam passagens incômodas para os judeus e os romanos. Fica evidente, depois de tudo, que o que temos em mãos são documentos que formam um livro plenamente judaico.