quarta-feira, 2 de novembro de 2016

Seriam os Romanos os escritores do Novo Testamento?



É comum ouvirmos dos críticos afirmando que o texto neotestamentário foi escrito tardiamente e pelos romanos para persuadir e apaziguar os judeus. Será que essa informação procede?
 Para responder ao questionamento, busquei vários livros e preparei uma argumentação dividida em 10 pontos. Tenha uma ótima leitura - e tire as suas próprias conclusões!

Para entrar no espírito do texto, comecemos com Josh McDowell, que é categórico em sua primeira frase sobre o assunto no livro "Evidências da Fé Cristã", compilado por Bill Wilson: "A ambientação de todos os quatro Evangelhos é evidentemente a do primeiro século hebraico."

Índice: 1 - Aspectos culturais singulares; 2 - O relato do julgamento de Jesus não é antissemita; 3 - As profecias e a história do Antigo Testamento; 4 - Documentos palestinos e o hebraico e aramaico nos Evangelhos; 5 - Evidências do testemunho ocular; 6 - A antiguidade do Novo Testamento e o testemunho da História; 7 - O ódio dos romanos para com os judeus; 8 - O ódio dos romanos contra os cristãos; 9 - As divergências entre os Evangelhos; 10 - Textos embaraçosos para os judeus e para os romanos; Conclusão. 

1 - Aspectos culturais singulares: Muitos aspectos particulares da cultura judaica aparecem com naturalidade e sem explicações nos relatos neotestamentários. Os romanos compreendiam muito pouco desses costumes. Vejamos alguns exemplos: 

- Em Lucas 7:38 temos o relato da mulher que se prostrou aos pés de Jesus e lavou-os com suas lágrimas. Acontece que o choro era uma parte importante da cultura judaica - carpideiras profissionais eram contratadas para os funerais e um considerável número de judeus tinha vasos de lágrimas, onde guardavam as lágrimas de suas aflições. É possível que a mulher que chorou aos pés de Jesus tenha derramado todo o conteúdo de seu vaso de lágrimas sobre eles. 

- Lucas 2:24 relata a oferta deita por José e Maria, em obediência à exigência de Levítico 12:2, 6 e 8, pelo bebê recém-nascido - duas pombas ou rolinhas, indicando sua posição social.

- Os costumes do casamento hebraico também explicam o que aparenta ser uma contradição em Mateus 1:18-19: no versículo 18 Maria aparece como noiva de José e no 19 ela o chama de "marido".

A verdade, segundo James Freeman, é que o noivado na antiga Israel era levado mais a sério do que em nossa cultura atual, sendo considerado o próprio começo do casamento - o compromisso legal era tão sério quando no casamento consumado e não poderia ser rompido, senão por uma declaração de divórcio. 

- O confronto ente Jesus e os saduceus, Marcos 12, está em conformidade com o que se sabe sobre a percepção dos saduceus com relação ao levirato. No Talmude palestino, os saduceus empregam o levirato para zombar dos fariseus, propondo o hipotético problema do sobrevivente dentre 13 irmãos que é ordenado a se casar com as viúvas dos 12 irmãos falecidos.

- O relato da mulher hemorrágica (Mateus 9:20-22; Marcos 5:25-34; Lucas 8:43-48), adquire profundo significado quando entendido o seu contexto israelita. Por doze anos essa mulher permaneceu impura e, ao tocar as vestes de Cristo, ela o teria contaminado - é por isso que ela se amedrontou quando notou que Jesus percebera seu toque. A compaixão do Messias nessa situação demonstra com mais nitidez a Nova Aliança. 

- Nos Evangelhos sinóticos há o relato das purificações que Jesus realizou no Templo de Jerusalém, expulsando os mercadores. Só podemos entender o que realmente aconteceu quando verificamos o evento nos moldes dos costumes judaicos: Jesus não era contrário ao câmbio monetário. A maioria do povo carregava moedas romanas com a imagem de César, que eram proibidas de entrar no Templo, conforme a Lei mosaica. 

Outro tipo de moeda circulava nas repartições do Templo - dinheiro judaico contendo apenas flores, ornamentos geométricos ou cerimoniais. Foi contra esse processo de câmbio que o Mestre se opôs: há fontes israelitas que sugerem que algumas famílias sacerdotais obtinham lucros ilícitos nesse procedimento. A corrupção e o tumulto irritaram o Mestre, que queria ver puro o local que representava a majestade de Deus. 

- Outro aspecto interessante dos Evangelhos é que eles apresentam Jesus se dirigindo quase que exclusivamente às cidades judias para realizar Suas obras. Apenas duas cidades que não eram judaicas ortodoxas foram visitadas por Cristo: Sidom e Sicar. Sidom era pagã e Sicar era samaritana. Não havendo nenhum registro de milagre em Sidom, não sabemos de nenhuma maravilha promovida pelo Messias entre os pagãos. Jesus aparece indo para Betsaida, mas não Júlia, cem metros distante; entra na pequena Nazaré, mas evita Séforis, cinco quilômetros distante; Ele se dirige para a região de Decápolis, Cesareia de Filipe e Tiro, mas não entra em nenhuma cidade pagã - o relato inteiro é judaico ortodoxo. 

- A imagem do Mestre colorida nos Evangelhos O apresenta como pró-semita, com comentários que podem parecer antigentios. Vide Mateus 10:5; 15:26; Marcos 7:27 e João 4:22. 2 - O relato do julgamento de Jesus não é antissemita: Antes de observar se uma determinada declaração é antissemita, é importante observar se a pessoa que fala é judia ou não. Durante suas aulas de Novo Testamento, o professor Felming sempre começa dizendo o seguinte: "Eu não sei por que alguns judeus são tão sensíveis ao suposto antissemitismo do Novo Testamento. Como poderia alguém que diz 'eu o vomitarei para fora da terra', ser antissemita? Como poderia alguém que diz 'suas orações são um fedor às narinas de Deus', ser antissemita? E é claro que todos eles ficam transtornados. 'Como se poderia dizer que isso não é antissemita?' Então eu os lembro de que estou citando Isaías e Jeremias." Se houvesse interesse da parte dos evangelistas de encobrir os romanos, por qual motivo colocariam Pôncio Pilatos açoitando Jesus? Poderiam ter feito de Pilatos um herói que assume a responsabilidade e, na sua autoridade, põe fim na situação. João, considerado o mais "antissemita" dos Evangelhos, afirma que Jesus disse que "a salvação vem dos judeus" (João 4:22). Lucas, por sua vez, apresenta Jesus pedindo, na cruz, perdão pelos pecados dos Seus juízes, declarando que "eles não sabem o que fazem" (Lucas 23:34), coisa estranha se a ideia era imputar a culpa nos judeus.

Até quando os Evangelhos desferem críticas sobre os líderes judeus, nada estão dizendo que já não tivesse sido falado pelos judeus anteriormente. Arqueólogos encontraram em Jerusalém pratos com a inscrição "Kathros", nome desenterrado também em Baraita, revelando o caráter das famílias sacerdotais dos tempos de Jesus: "Ai de mim por causa da casa de Hannan [Anás] por causa dos seus segredos! Ai de mim por causa da casa de Kathros, por causa de suas penas [provável referência à falsificação de documentos ilegais]. [...] Porque eles são sumo sacerdotes e os seus filhos são tesoureiros, e os seus genros [Caifás era genro de Anás] são os inspetores, e os seus criados batem nas pessoas com varas." Se declarações assim são encontradas, por qual motivo pensar que os Evangelhos são antissemitas? 

Na verdade, verificando a inscrição anterior, a preocupação dos evangelistas com as autoridades parece bem justificada. No período herodiano os membros do Sinédrio eram nomeadas por interesses políticos. Quando os evangelistas usam o termo "os judeus", não estão imputando culpa alguma à comunidade judaica - trata-se, na verdade, de um termo geral aplicado a um grupo de israelitas, geralmente da classe dos líderes, envolvidos em determinada situação. Por exemplo: não foram todos os judeus que pediram pela crucificação de Jesus, começando pelo fato de os discípulos de Cristo serem judeus, apenas a multidão presente diante de Pilatos é que clamou pela severa condenação - o Templo tinha cerca de vinte mil servidores e dezoito mil trabalhadores pagos, tornando fácil que os dirigentes do local mobilizassem um grande grupo de pessoas para exigir a morte de Jesus. O fato é que os Evangelhos nunca declararam que foram os judeus aqueles que mataram Jesus, referindo-se à multidão apenas por "eles". 

Lucas, em Atos, registra que a Igreja Primitiva não viu os judeus como "os assassinos de Cristo" - a oração de Pedro e João em Atos 4:24-28 ajuda a perceber isso. Fonte: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 94-98. 3 - As profecias e a história do Antigo Testamento: Existe uma conexão profética extremamente forte entre o Antigo e o Novo Testamento, e apenas um judeu dos dias de Cristo, profundamente familiarizado com as esperanças proféticas, a leitura e a história do seu povo, poderia discernir a vastidão delas. Uma obra romana conseguiria acertar nalguns pontos, mas jamais daria interpretações corretas para o cumprimento de tantas profecias e estaria tão imersa em toda a tradição profética milenar de Israel. Segundo Werner Gitt, no livro "Perguntas que Sempre São Feitas", Actual, 2005, pg 33, há 6.408 versículos com indicações proféticas, das quais 3.268 já se cumpriram. A Bíblia de Estudo das Profecias, John C. Hagee, Atos, 2005, pg 987, nos informa que há cerca de 300 profecias veterotestamentárias que se cumpriram em Jesus Cristo no Novo Testamento. A profecia é um traço típico da literatura judaica e a sua presença nos escritos neotestamentários ajuda a reconhecer a sua procedência - além disso, a necessidade nítida dos autores do Novo Testamento de evidenciar o cumprimento de profecias em Cristo está em concordância com os anseios proféticos que eletrizavam a Palestina no Século Primeiro, resultantes de uma esperança judaica secular. 

Um resumo da profecia messiânica no Antigo Testamento você pode encontrar no seguinte artigo do EMEAB: Cristo e as Profecias do Antigo Testamento. 4 - Documentos palestinos e o hebraico e aramaico nos Evangelhos: Um dos maiores achados arqueológicos de todos os tempos, os Manuscritos do Mar Morto, de Qumran, pinta um pano de fundo histórico bastante colorido sobre os anos que antecederam Cristo e sobre o Primeiro Século na Palestina. Muitos pontos dos Evangelhos que outrora foram questionados mostraram-se coerentes com o pensamento corrente na primeira metade do Século Primeiro, como a afirmação bíblica de que Cristo é o "Filho de Deus", antes explicada como influência romana, mas posteriormente, com base no 4Q246 de Qumran, tida como palestina. A declaração de Jesus em Mateus 11:4-6, quando se apresenta como Messias, está dentro dos moldes da esperança messiânica do período, registrada no 4Q521, também de Qumran. 

Além da mensagem falada pelo Mestre ser apresentada dentro de uma matriz judaica, algumas de Suas parábolas encontram eco em histórias morais palestinas, com ênfase nas ilustrações utilizando os vinhedos. Jesus também não era o único a desferir palavras proféticas, embora as profecias dEle tenham se cumprido cabalmente. Mais um aspecto do ministério de Jesus que encontra paralelos reside na realização de milagres - diversos taumaturgos perambulavam na região da Palestina, embora apenas Cristo tenha realizado as mais incríveis maravilhas sem o uso de nenhum objeto ou ritual. Sua fama como realizador de milagres rendeu o uso de Seu nome até por pagãos, que O tiveram como autoridade curativa em suas operações durante várias décadas depois da Sua ascensão. 

Outra singularidade palestina que aparece nos Evangelhos é a esperança messiânica - não era incomum que alguém aparecesse afirmando ser o Messias esperado, como Cristo fez. É claro que Jesus teve todo o suporte de centenas de profecias cumpridas, realizou as mais extraordinárias maravilhas, afirmou ser Deus e ressuscitou dos mortos. Até mesmo a zombaria que os romanos despejaram sobre o Salvador durante Seu julgamento é corroborada por outras ocorrências da época. Tudo isso indica que os Evangelhos formam um livro plenamente judaico. Fonte: O Jesus Fabricado, Craig Evans, Cultura Cristã, 2009, pgs 41-44; 120-124; 136, 138, 140 e 160-161; Manual Bíblico Unger, Merril Frederick Unger, Vida Nova, 2006, pgs 437-439. Segundo se pode extrair de Papias, bispo de Hierápolis, que escreveu por volta de 130 d.C., Mateus redigiu seu Evangelho primeiramente em hebraico - ou "no estilo judaico". Jerônimo, o responsável pela Vulgata Latina por volta de 380 d.C., afirmou ter tido contato com o original hebraico de Mateus. 

Esse Evangelho, cujo público leitor era o hebreu, apresenta uma familiaridade ímpar com o pensamento judaico e transmite informações proféticas e culturais com grande naturalidade e de modo muito específico, reconhecendo que os primeiros a terem contato com a sua mensagem não demandavam maiores explicações. O Evangelho de Marcos, mesmo que tenha sido escrito tendo o público romano em mente, apresenta uma matriz distintamente semita, evidenciando que o grego utilizado para a sua confecção era a segunda língua do autor. Também fica claro em sua leitura o uso de testemunho ocular, provavelmente Pedro (Marcos é também conhecido como "Memórias Petrinas") - o que se torna claro quando reconhecemos que a estrutura desse Evangelho segue o esquema geral das pregações do apóstolo Pedro em Atos. Sabe-se que o público-alvo de Marcos são os romanos pelo fato de o documento, entre outros motivos, não insistir nos costumes judaicos e na Lei mosaica - e quando alude alguma singularidade dos judeus, desfere explicações mais profundas do que os demais Evangelhos. Isso indica que Marcos não pode ter sido uma obra romana para apaziguar os judeus - o próprio público era romano. 

O Evangelho de Lucas é singular pelo fato de ter sido o único dos quatro a ser escrito, provavelmente, por um gentio - Lucas deve ter se convertido, no máximo, 15 anos após da ressurreição de Cristo. Ele deixa clara a sua origem gentílica ao chamar os habitantes de Malta de "bárbaros". Essa obra apresenta o melhor grego das Escrituras e, segundo afirmado pelo próprio autor, está totalmente embasada em testemunho ocular coletado em diversas fontes - as melhores que Lucas encontrou em sua acurada busca. 

Dos Evangelhos, o mais questionado é o de João. Muitos críticos insistem que ele é tardio e que não foi escrito por um cristão judeu, mas grego, com tendências gnósticas. Nada disso é verdadeiro quando considerados os aspectos do seu texto: a leitura do material nos mostra um autor judeu acostumado a pensar em aramaico, mesmo que tenha escrito em grego, pois seu público leitor dependia disso - há muitas palavras hebraicas e aramaicas inseridas no material, indicações da expectativa messiânica do povo judeu (1:19-28), conhecimento sobre a relação entre os judeus e os samaritanos (4:9) e a posição exclusivista do judaísmo (4:20), além de ele demonstrar familiaridade com as festividades judaicas. Trata-se, sem dúvida, de um judeu palestino - há descrições muito precisas de Jerusalém e dos arredores (5:2; 9:7; 11:18; 18:1), isso de antes da Queda, em 70 d.C., e familiaridade com as cidades da Galiléia (1:44; 2:1) e com o território de Samaria (4:5, 6 e 21); o autor foi testemunha ocular dos eventos descritos - 1:14 e 19:35; ele observou detalhes, colorindo a narrativa como apenas uma testemunha muito observadora poderia fazer - Jesus sentando no parapeito do poço (4:6), o número e o tamanho das talhas nas bodas de Caná (2:6), o peso e o valor do perfume que Maria derrubou sobre os pés de Jesus (12:3-5) e os pormenores do julgamento de Cristo (caps 18-19). 

As descobertas de Qumran confirmaram a autenticidade do contexto e do padrão de raciocínio judaicos observados no livro. Material consultado: A Bíblia de Estudo Anotada Expandida, Charles C. Ryrie, Mundo Cristão, 2007, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Bíblia de Estudo Defesa da Fé, CPAD, 2012, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; Manual Bíblico Unger, Merrill Frederick Unger, Vida Nova, 2006, introduções dos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João; O Novo Testamento, Sua Origem e Análise, Merrill C. Tenney, SHEDD Publicações, 2011, sobre Mateus, Marcos, Lucas e João. A questão é: como um livro escrito pelos romanos seria tão inteiramente judaico? E por qual motivo os romanos escreveriam algo para apaziguar os judeus, mas tendo eles mesmos como público leitor, como é o caso de Marcos? Ou de Lucas e João, que objetivaram atingir primeiramente os gregos? 5 - Evidências do testemunho ocular: Os Evangelhos demonstram claramente que são fruto, basicamente, do testemunho ocular. Há muitas evidências arqueológicas, além de pistas na construção dos textos, que apontam para isso.

É interessante notar que é justamente no Evangelho de João, aquele que os críticos consideram mais tardio, que os testemunhos oculares mais evidentes aparecem, conforme as citações que seguem: "Em termos gerias, a evidência interna indica que o autor [do Evangelho de João] foi testemunha ocular dos eventos que descreve. Sobre isso, é interessante citar o veredito de Dorothy Sayers, que focalizou o assunto na perspectiva do artista criativo: 'Convém ter-se em mente que, dos quatro evangelhos, é João o único a apresentar-se como um relato direto de uma testemunha ocular. E para quem quer que esteja acostumado com o tratamento construtivo de documentos, a evidência interna confirma esse pressuposto.' (...) o falecido professor de história oriental antiga, na Universidade de Chicago, A. T. Olmstead, acredita que a história da ressurreição de Lázaro, que aparece no capítulo 11, exibe 'toda a minúcia circunstancial da testemunha ocular convicta', enquanto a narrativa do sepulcro vazio no capítulo 20 é 'narrada incontestavelmente por uma testemunha ocular - plena de vida e destituída de qualquer detalhe a que possa o cética usar para fazer uma objeção justificável'." Fonte: Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pg 64. O livro "Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu", Norman Geisler e Frank Turek, Vida, 2012, pgs 261-275, apresenta 84 evidências para o testemunho ocular em Lucas e 59 para o testemunho ocular em João, unindo aspectos do texto e achados arqueológicos. Se houver interesse, leia as seguintes postagem do EOMEAB sobre o assunto: A Precisão do Relato de Lucas; O Testemunho Ocular do Evangelho de João. Sobre a precisão de Lucas, é interessante compartilhar as reflexões de Sir. William Ramsay, que explorou o Mundo Mediterrâneo pelas terras registradas pelo evangelistas, constatando: "Comecei tendo um pensamento desfavorável a ele [o livro de Atos] [...]. Eu não tinha o propósito de investigar o assunto em detalhes. Contudo, mais recentemente, vi-me muitas vezes sendo levado a ter contato com o livro de Atos vendo-o como uma autoridade em topografia, antiguidade e sociedade da Ásia Menor. 

Fui gradualmente percebendo que, em vários detalhes, a narrativa mostrava verdades maravilhosas." "A história de Lucas é insuperável no que diz respeito à sua fidedignidade." "Lucas é um historiador de primeira grandeza; não apenas suas afirmações são de fato fidedignas; revela-se possuído de verdadeiro senso histórico; fixa a mente na ideia e no plano que regem a evolução da história e regulam a escala de sua consideração à importância de cada fato. Focaliza nos eventos importantes e críticos e lhes ressalta a verdadeira natureza em maior extensão, enquanto que apenas considera ligeiramente ou omite inteiramente muito do que não se reveste de valor para seu propósito. Em síntese, este autor deveria ser colocado entre os maiores historiadores." Fontes: Não Tenho Fé Suficiente Para Ser Ateu, Norman Geisler e Frank Turek, Vida, 2012, 266; Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pgs 118-119. Se os Evangelhos formassem um livro romano, não poderiam apresentar testemunhos oculares tão claros e equilibrados. Também não descreveriam a geografia e os costumes culturais dos judeus palestinos de forma tão precisa, somente possível para aquele que está familiarizado com a região e o seu povo. 6 - A antiguidade do Novo Testamento e o testemunho da História: Os mais antigos testemunhos que temos apontam para a autoria judaica - ou sob forte influência dos judeus - do texto neotestamentário. Não há nenhuma razão, tomando como base os registros históricos, para negar isso. O processo é justamente o contrário do proposto por alguns críticos: tratam-se de escritos formulados, em todos os aspectos, sob a pena judaica para influenciar os hebreus e os gentios. 

O mais antigo dos testemunhos que temos para a autoria dos Evangelhos está em Papias, que escreveu por volta de 130 d.C. e foi preservado por Eusébio, no século IV d.C. Segundo Papias, citado por Eusébio, "Mateus organizou as palavras de Jesus em hebraico e aramaico e as interpretou da melhor forma que pôde", ou "Mateus colecionou os oráculos [logia] no idioma hebraico [hebraidi dialekto]" (Eusébio, História da Igreja III, 39, 16). Irineu de Lyon, por volta de 180 d.C., reforça Papias afirmando que "Mateus publicou também um evangelho entre os hebreus em seu próprio dialeto, enquanto Pedro e Paulo pregavam em Roma e punham os fundamentos da Igreja". No início do Século II já aparece a designação "O Evangelho Segundo São Mateus" (Adv. Haereses II, 1,1). A atribuição "Segundo São Marcos", aparece no Século III, mas Papias também formula declarações nesse sentido: "Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, mas sem ordem, tudo aquilo que recordava das palavras e ações do Senhor; não tinha nem ouvido nem seguido o Senhor (....). Ora, como Pedro ensinava, adaptando-se às várias necessidades dos ouvintes, sem se preocupar em oferecer composição ordenada das sentenças do Senhor, Marcos não nos enganou escrevendo conforme recordava; tinha somente esta preocupação, nada negligencias do que tinha ouvido, e nada dizer de falso." (Eusébio, História da Igreja, III, 39, 15). 

Quanto ao Evangelho de Lucas, há um prólogo do Século II: "Lucas foi sírio de Antioquia, de profissão médica, discípulo dos apóstolos, mais tarde seguiu Paulo até a confissão (martírio) deste, servindo irrepreensivelmente o Senhor. Nunca teve esposa nem filhos; com oitenta e quatro anos morreu na Bitínia, cheio do Espírito Santo. Já tendo sido escritos os evangelhos de Mateus, na Bitínia, e de Marcos, na Itália, impelido pelo Espírito Santo, redigiu este Evangelho nas regiões da Acaia, dando a saber logo no início que os outros Evangelhos já haviam sido escritos." Sobre o Evangelho de João, temos um precioso trecho de Irineu, falecido em 202 d.C., citando Papias: "Enfim, João, o discípulo do Senhor, o mesmo que reclinou sobre o seu peito, publicou também o Evangelho quando de sua estadia em Éfeso." Fonte: Ciência e Fé em Harmonia, Prof. Felipe Aquino, Cléofas, 2012, pgs 154-162. 

Além de declarações antigas de cristãos, há evidências arqueológicas do próprio Novo Testamento que atestam para a sua antiguidade: - O Papiro Rylands: apresenta partes do Evangelho de João e pode ser datado do ano 125 d.C. - Fragmento de Marcos: sugere-se que um dos fragmentos da Caverna 7 de Qumran seja do Evangelho de Marcos, datando-o, segundo o estilo de escrita, da década de 50 d.C., no máximo, Tal proposta é bastante contraditória. - O Evangelho de Marcos em múmia: recentemente foi divulgado o achado do Evangelho de Marcos numa máscara de múmia egípcia do Século Primeiro. O manuscrito foi datado como pertencente aos anos 80 ou 90 d.C. - Outros manuscritos muito antigos, abrangendo os Evangelhos, Atos, as epístolas gerais e/ou as epístolas de Paulo, são: os papiros I, II e III, de Chester Beatty, datados entre os séculos II e III; e os papiros II, VII, VIII, XIV e XV, de Bodmer, datados entre os séculos II e IV. Há considerável fartura de folhas nalguns desses manuscritos, chegando a ter 102. Foram catalogados, até o momento, 96 papiros. - Possuímos entre 10 e 15 manuscritos dos cem primeiros anos após a conclusão do Novo Testamento. Fontes: Ciência e Fé em Harmonia, Prof. Felipe Aquino, Cléofas, 2012, pgs 154-162; Crítica Textual do Novo Testamento, Wilson Paroschi, Vida Nova, 2008, pgs 44-46; Origem, Confiabilidade e Significado da Bíblia, organizado por Wayne Grudem, C. John Collins e Thomas R. Schreiner, Vida Nova, 2013, Capítulo 12 por Daniel B. Wallace, pg 113; A Evidência Definitiva do Evangelho no Primeiro Século, Entreomalhoeabigorna.blogspot.com.br, 23/01/2015. 

A antiguidade do Novo Testamento ajuda a destruir a proposta de que o texto neotestamentário é fruto da pena romana, pois desbanca as duas teorias principais: a de que o Novo Testamento foi criado e imposto depois do Concílio Niceno, no Século IV, e a de que o Novo Testamento foi forjado e empurrado para os judeus depois de 70 d.C. Como o Novo Testamento foi forjado em meados do Primeiro Século para enganar pessoas que estiveram na Palestina nos dias de Cristo? Como fazê-las acreditar que aconteceram coisas extraordinárias que nenhuma delas viu, mesmo que no quintal de suas casas? A proximidade dos eventos e dos manuscritos impossibilita tal golpe! A história de Cristo é real - e pessoas que O viram também leram documentos que estamos atualmente desenterrando. 7 - O ódio dos romanos para com os judeus: É sabido que os romanos nutriam grande desprezo pelos judeus, que habitavam os confins do Império. Por diversas vezes ao longo de séculos os semitas de Israel se rebelaram contra o Império, exigindo o deslocamento de legiões inteiras repetidas vezes - algumas dessas rebeliões se estenderam por anos. A região era um barril de pólvora sempre prestes a explodir. Isso levou o Império a adotar medidas cada vez mais severas para preservar seu domínio. Ainda assim, o povo hebreu permaneceu fechado às honras e bagatelas que os povos conquistados pelos romanos geralmente aceitavam como produto da Pax Romana. É extremamente complexa a história política de Israel no período de dominação romana, mas o fato é que, segundo Christiane Rancé, "Roma nutria um desgosto profundo pela Palestina irredutível, pelos judeus que não se deixavam assimilar, por seu culto incompreensível, e alimentava o desejo secreto de eliminar o local da face do império." Fonte: Jesus, Christiane Rancé, L&PMPocket, 2012, pg 48. Esse "desejo secreto" consolidou-se entre 66 e 70 d.C., quando as legões do Império mataram mais de um milhão de judeus e destruíram completamente o Templo de Jerusalém. Mas não era só a situação política de Israel que produzia o desprezo dos romanos: o povo judeu não era apreciado também por ser considerado bárbaro e relativamente primitivo. 

Muitos eruditos romanos viam nos escritos judaicos cópias de mitos pagãos, como o Dilúvio de Noé, e tinham-nos como mal escritos, em comparação com as obras de seus grandes escritores. Fonte: Uma História Politicamente Incorreta do Cristianismo, Robert J. Hutchinson, Agir, 2012, pg 13. Os que alegam que os romanos criaram o Novo Testamento, inventando o cristianismo para apaziguar os judeus, precisam considerar o seu desprezo pela cultura judaica: diversas declarações romanas demonstram que eles ignoravam tanto os costumes judaicos, que não conseguiam discernir as suas práticas religiosas e culturais mais comuns. Esse desconforto pela cultura judaica seria uma forte barreira contra uma imersão nela objetivando a formulação de uma nova religião. O desgosto de Roma para com os judeus, que consideravam indignos e inferiores, não propiciaria um movimento tão complexo de redefinição religiosa - a primeira opção era sempre a legião e a guerra. 8 - O ódio dos romanos contra os cristãos: Os cristãos, à princípio, eram tidos apenas como uma seita judaica e, por isso, desde o começo foram tratados com o mesmo desprezo que os judeus. Mas, conforme os romanos foram discernindo o movimento cristão, o tiveram como algo pior que o próprio judaísmo: uma seita bizarra e supersticiosa, fundada por um judeu fanático, provocador e problemático, coerentemente condenado à morte - e uma morte em desonra. Os romanos também acusavam os cristão de, em suas reuniões secretas, comerem carne e beberem sangue humanos - uma interpretação equivocada da Santa Ceia - e promoverem orgias incestuosas, já que chamavam uns aos outros de "irmão" e "irmã". Para Roma, essa seita era muito menos interessante do que a religião tradicional e as religiões de mistério, com os elevados cultos mitraicos, estoicos e a Ísis. Além de estranharem o comportamento dos cristãos, os romanos repudiavam os seus Escritos. Para eles, tanto as Escrituras judaicas quanto cristãs eram, segundo Hutchinson, nada além de "uma coletânea ralé de lendas folclóricas, leis esquisitas, cartas mal escritas, biografias de mágicos milagrosos", entre outros. Sem dúvida os romanos preferiam, em todos os sentidos, os seus escritores clássicos, como Virgílio, Cícero, Ênio e Cato. 

Diante deles, apontavam que a Bíblia era imatura, repleta de erros de ortografia e gramática e provida de "tramas ridículas". É com isso em mente que Tertuliano, apologista cristão do século II d.C., afirma que "os homens estão tão longe de aceitar nossas escrituras que ninguém se aproxima delas a menos que o individuo em questão seja cristão." O próprio Santo Agostinho, maior teólogo do Primeiro Milênio, manteve-se longe do cristianismo por 12 anos por causa da Bíblia. Fonte: Uma História Politicamente Incorreta do Cristianismo, Robert J. Hutchinson, Agir, 2012, pgs 13-14. Os romanos se opuseram ao cristianismo de tal forma que lançaram diversas perseguições ferozes, resultando em milhares de martírios. O fato é que os cristãos, além de praticarem coisas que causavam estranheza e de terem um livro desprezado, ignoravam a religião oficial e o culto ao imperador, tinham uma tendência de negar o serviço militar e afastavam-se dos costumes romanos, sendo considerados como "inimigos da humanidade". Fonte: O Cristianismo Através dos Séculos, Earle E. Cairns, Vida Nova, 2008, pgs 75-77; Os Cristãos, Tim Dowley, Martins Fontes, 2009, pgs 15-18. Por fim, podemos evidenciar o desinteresse dos romanos para com a "seita dos cristãos" em diversas declarações pagãs contra o cristianismo, que deixam claro o quanto os seguidores de Cristo eram voluntariamente desconhecidos pelos romanos, sendo, por exemplo, confundidos com os judeus por Suetônio - 120 d.C. -, que justificou a expulsão dos judeus de Roma apontando os distúrbios frequentes causados por eles sob influência de "Cresto". 

O que de fato pode ter acontecido foi que os cristãos e os judeus de Roma entraram em discordância - Suetônio parece pensar que Cristo, ou "Cresto", estivesse pessoalmente na capital do império por aqueles dias. Foi por essa época, 111-113 d.C., que Plínio, o Moço, resolveu pesquisar sobre a singular "raça dos cristãos", objetivando deixar o Imperador Trajano consciente de como eles eram. Fonte: Merece Confiança o Novo Testamento?, F. F. Bruce, Vida Nova, 2010, pg 154; Bíblia de Estudo Arqueológica, Vida, 2013, pg 1751; Em Defesa de Cristo, Lee Strobel,Vida, 2011, pgs 108-109. Como o Novo Testamento poderia ser um livro romano se o mesmo era mal compreendido e explicitamente desprezado pelos latinos? Por qual motivo os romanos inventariam uma religião que discordasse tanto dos anseios imperiais? Gerando, inclusive, insubmissão ao culto ao Imperador? Por qual motivo eles criariam uma religião para, imediatamente após isso, iniciarem um forte movimento de desmantelamento através de perseguições literárias e armadas, arregimentando seus grandes eruditos e as suas legiões? Se o Novo Testamento fosse um livro romano escrito para controlar os judeus, certamente apresentaria passagens que facilitassem a submissão ao Império, e não o contrário - além disso, seria composto de forma mais romana, não gerando tanto estranhamento e repúdio da parte dos latinos. 9 - As divergências entre os Evangelhos: Se os Evangelhos fossem obra dos romanos para a persuasão dos judeus, sendo produzidos juntos e pela mesma mente, não apresentariam divergências. 

Mas elas existem no texto neotestamentário, mesmo que não comprometam a Mensagem. Essas divergências existentes entre os documentos são positivas, pois demonstram que cada Evangelho foi escrito por pessoas diferentes e em períodos e lugares distintos - não houve uma reunião dos evangelistas para a formulação de um texto uno. Isso indica que houve um único evento verdadeiro presenciado por várias pessoas e registrado isoladamente por cada uma delas, sendo as mais proeminentes os autores dos quatro Evangelhos. Essa verdade única é verificável pelo fato de, mesmo que os textos tenham brotado da pena de pessoas em momentos e locais diferentes, eles concordam em quase tudo - não há contradições doutrinárias e nenhuma divergência cronológica e histórica relevante. Na verdade, se consideramos os padrões da época, os Evangelhos são muito harmoniosos entre si - e as variações existentes, em sua maioria paráfrases, omissão ou seleção de fatos, abreviações ou acréscimos explicativos, que em nada alteram o significado. 

Sobre isso, Henri Daniel-Rops afirma: "Santo Irineu falou com muita precisão do evangelho tetramórfico, isto é, o evangelho existente sob quatro formas. E, a partir da metade do segundo século, com Clemente de Alexandria e o Cânon Muratoriano, era a prática - e a única prática correta - dizer: o Evangelho segundo São Mateus, segundo São Marcos, segundo São Lucas, segundo São João; deixando claro que aqui existe um corpo de verdade, substancialmente um e único, comunicado aos homens em diferentes formas." Para Hans Stier, da escola historiográfica clássica, a harmonia em dados básicos e a divergência nos detalhes são sinal de credibilidade, já que as narrativas fabricadas costumam ser integralmente consistentes e harmoniosas. Fontes: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 81-82; Em Defesa de Cristo, Lee Strobel, Vida, 2011, pgs 58-60. 10 - Textos embaraçosos para os judeus e para os romanos: Uma mentira forjada para persuadir não incluiria detalhes que apenas serviriam para produzir desentendimento e dificultar a aceitação do trabalho. Mas os Evangelhos, por tratarem da verdade, não foram poupados desses inconvenientes. 

Tomemos alguns exemplos: as palavras duras de Cristo e Seus ensinamentos excessivamente éticos; o fato de que Cristo não pôde realizar milagres em Nazaré; o trecho no qual o Mestre afirma "não saber o dia e nem a hora" de Seu retorno; a falta de fé e a tripla negação de Pedro; o aparente abandono de Jesus na cruz; o evidente fato de que os discípulos quase sempre entendiam mal o que o Mestre dizia; o momento no qual Tiago e João pediram ao Messias os melhores lugares no Seu reino... Além disso, quando os Evangelhos apresentam passagens desconfortáveis para os judeus, conforme relatado no segundo tópico, sugerem uma crítica judaica, não a tentativa romana de oferecer aos judeus uma mentira confortável e sedutora. Trata-se de uma crítica judaica, pois não há favorecimento dos gentios, como seria esperado de um texto romano para apaziguar os judeus e produzir neles mais submissão ao Imperador. Fonte: Evidências da Fé Cristã, Josh McDowell, compilado por Bill Wilson, Hagnos, 2006, pgs 94-98. 

Conclusão: 
Com base nos 10 pontos levantados, podemos entender que os Evangelhos não são obra dos romanos pelos seguintes motivos: apresentam detalhes culturais e políticos muito singulares de Israel; não elogiam nem judeus e nem romanos; estão ligados ao Antigo Testamento de forma muito profunda; entram em concordância com outros documentos palestinos do período; apresentam palavras e estilo judaico; evidenciam o testemunho ocular, consolidado pela arqueologia; são muito antigos e os mais remotos testemunhos sobre a sua autoria apontam para o contexto judaico; os romanos odiavam e não compreendiam os judeus e os cristãos; as divergências dos Evangelhos evidenciam sua escrita por pessoas em lugares e momentos diferentes, e todos apresentam passagens incômodas para os judeus e os romanos. Fica evidente, depois de tudo, que o que temos em mãos são documentos que formam um livro plenamente judaico.

Os métodos de interpretação da Bíblia

 
Neste estudo, serão apresentados os métodos de interpretação da Bíblia usados durante a história da Igreja (e ainda hoje), ressaltando os erros do método alegórico e dos métodos histórico-crítico e pós-moderno, e a coerência do método histórico-gramatical, que é a mais honesta abordagem das Escrituras, tendo sido usada pelos cristãos no início, resgatada após a Reforma e usada até aos dias de hoje por cristãos sinceros.

Falaremos também sobre as questões da inerrância e da infalibilidade das Sagradas Escrituras, e das traduções da Bíblia.

I – O método alegórico

A partir da Idade Média, o método cristão de interpretação da Bíblia sofreu alterações. Os exegetas medievais, seguindo Orígenes (185-253 d.C.), consideravam o sentido literal das Escrituras como pouco importante e pouco edificante. Eles diziam que o texto bíblico sempre tinha quatro níveis de sentidos: o sentido literal, o sentido anagógico, o sentido escatológico e o sentido moral. Eram inspirados na abordagem de Orígenes, que usava a figura do ser humano aplicada à interpretação da Bíblia, onde esses quatro pontos eram resumidos em uma tricotomia: (a) o corpo do texto – sentido literal (que Orígenes dizia ser apenas “casca e aparência”); (b) a alma do texto – sentido espiritual; e (c) o espírito do texto – sentido alegórico e cristológico. O texto sempre tinha, portanto, mais de um sentido, e o sentido literal era o menos importante.

Com base nessa hermenêutica, sempre e invariavelmente atribuíam a cada afirmação bíblica três sentidos ou níveis de significado além do literal, geralmente deixado de lado. Cada um desses sentidos levava a um sentido alegórico amplo, que consideravam “mais profundo” e, por isso, mais edificante, como julgavam.

Com o sentido moral, aprendiam as regras de conduta; com o propósito alegórico, procuravam ressaltar artigos de fé; e com o sentido anagógico, queriam aprender as realidades invisíveis do Céu. Por exemplo: todas as vezes que viam o termo “Jerusalém” nas Escrituras, sempre afirmavam que além de denotar literalmente uma cidade na Palestina, também se referia, no sentido moral, à sociedade civil; alegoricamente, à Igreja; e anagogicamente, ao Céu. Apenas esses três sentidos tinham valor para o estudo teológico dos exegetas medievais. O registro literal não tinha valor, apenas como um veículo de sentido figurativo.

Como bem define o teólogo britânico James I. Packer, “a exegese medieval foi, assim, exclusivamente mística. Fatos bíblicos se tornaram apenas uma base de salto para o terreno dos anseios teológicos; os fatos eram espiritualizados”.

II – O método histórico-gramatical


Com a Reforma Protestante no século 16, a importância do sentido literal do texto bíblico é resgatada e o “misticismo hermenêutico”, deixado de lado. Os reformadores protestaram contra o método alegórico e enfatizaram que o sentido literal, a intenção do autor, o sentido original de cada passagem das Escrituras, são o único guia seguro para entender a Palavra de Deus. Com isso, não estavam querendo dizer que esse “literalismo” não reconhecia as figuras de linguagem empregadas nas Escrituras, mas afirmava que deveria se fazer distinção clara entre o que era explicitamente figura de linguagem e o que não era.

Uma declaração exemplar da visão coerente dos reformadores é a de William Tyndale: “Tu deverás compreender, portanto, que as Escrituras têm apenas um sentido, que é o sentido literal; e esse sentido literal é a raiz e o fundamento de tudo, e a âncora que nunca falha, sem a qual errarás o caminho. E se te afastares um pouco do sentido literal, deverás ter cuidado para não saíres do caminho. As Escrituras usam provérbios, similitudes, alegorias, como todos os outros discursos usam, mas o significado do provérbio, similitude ou alegoria é sempre o sentido literal, que tu tens de buscar diligentemente”.
Outro detalhe é que embora os católicos, como os protestantes, entendam que a Bíblia é a Palavra de Deus, eles também consideram como fonte de revelação, com o mesmo peso da Bíblia Sagrada, o magistério eclesiástico católico preservado na tradição oral e os pronunciamentos do papa ex cátedra. Enquanto isso, os protestantes aceitam apenas a Bíblia como regra de fé e prática.

Ao reconhecerem a Bíblia como Palavra de Deus, os protestantes estão afirmando não que ela foi toda ditada por Deus (algumas passagens o foram, porém a maioria esmagadora não), mas, sim, que ela é totalmente inspirada por Deus e, por isso, infalível em sua mensagem e conteúdo. A Bíblia é, portanto, um livro divino, uma vez que dado por Deus, inspirado totalmente por Deus; mas também é um livro humano, uma vez que Deus respeitou a humanidade de seus autores – a linguagem, por exemplo. Por isso, para entendê-la, devemos orar, mas, ao mesmo tempo, estudá-la – e com isso estamos nos referindo ao estudo do seu contexto histórico e do aspecto gramatical.

Deve-se respeitar a intenção do autor – que só pode ser entendida pelo estudo do contexto histórico e o aspecto gramatical – e a evolução da revelação. O texto bíblico só pode ter um sentido, não quantos sentidos o leitor desejar. O sentido verdadeiro é o pretendido pelo autor quando foi inspirado pelo Espírito Santo.

III – O método histórico-crítico de interpretação


O método histórico-crítico de interpretação é um método de interpretação da Bíblia próprio do liberalismo teológico, que é a sua base ideológica. É também chamado de Alta Crítica. 

A gênese do método histórico-crítico está no Iluminismo, quando os homens passaram a achar que a própria razão, a análise crítica e racional, é o suficiente para o homem entender o mundo e resolver os seus problemas. A filosofia predominante era o racionalismo. Essa influência fez surgir o deísmo e, a partir daí, o liberalismo teológico. O liberalismo e o seu método histórico-crítico nasceram originalmente no deísmo, mas hoje é adotado até mesmo por teólogos agnósticos.

No método histórico-crítico, a interpretação da Bíblia deixou de ser uma tarefa para entender o que o autor queria dizer para ser uma tarefa de questionamento da produção do texto. O objetivo era tirar do cânon formal o cânon normativo. O teólogo alemão Johann Salomo Semler (1725-1791) dizia: “A raiz de todos os males (na teologia) é usar os termos ‘Palavra de Deus’ e ‘Escritura’ como se fossem idênticos”. Logo, segundo ele, era preciso distinguir e separar a “Palavra de Deus” da “Escritura”. O que Semler estava querendo dizer com isso é que a Escritura conteria erros e contradições ao lado de palavras que provêm de Deus. Estava implícita também nesta declaração a descrença na possibilidade do sobrenatural na história, devido à influência do racionalismo e do deísmo. Rejeitava-se a infalibilidade e a autoridade das Escrituras. Foi a partir desses pressupostos teológicos que o método histórico-crítico foi construído.

As etapas do método histórico-crítico são:

I – Crítica das Fontes – Partia do princípio de que os textos bíblicos eram edições feitas a partir de várias fontes diferentes, e usavam como pista qualquer aparente diferença de vocabulário ou estilo, repetições de histórias e digressões. A primeira hipótese desse tipo de crítica foi a Hipótese Documentária, que cria nas fontes Eloísta, Javista, Deuteronomista e do Quarto Documento no Antigo Testamento. Segundo os defensores dessa teoria, a Bíblia Hebraica teria sido editada para aglutinar quatro fontes. Tudo começou com um médico francês chamado Jean Astruc, que em 1753 levantou a tese de duas fontes – Eloísta e Javista – em Gênesis.

II – Crítica da Forma – Ainda mais radical. Já que poder-se-ia dizer ainda que as fontes se baseavam em tradição oral, então os liberais partiram para a crítica da forma do texto. Todos os textos tinham uma intenção política e eram manipulados. Bultmann chega a dizer que menos de 10% das falas de Jesus foram realmente proferidas por Ele. Tentam diferenciar o “Jesus da Fé” do “Jesus Histórico”.

III – Crítica da Redação – Objetivava identificar as “edições” na redação do texto bíblico e expurgá-las para extrair o que seria real e historicamente confiável segundo os liberais.

Nas últimas décadas, o método histórico-crítico começou a declinar. Por quê?

a) Caiu-se na real de que, na verdade, nunca fora um método neutro.

b) O subjetivismo inerente aos critérios utilizados para reconhecer a Palavra de Deus dentro do cânon fez com que os resultados fossem completamente diferentes, ao ponto de até hoje não existir um consenso do que seria a Palavra de Deus dentro do cânon reconhecido e aceito pelos próprios críticos.

c) O objetivo era impossível. Uma vez que desacreditava as Escrituras, elas perdiam todo o valor. Então, para que entender Deus pela Bíblia? Cada um passaria a ter uma teologia subjetiva agora. Daí o surgimento da Hermenêutica Pós-moderna

d) As igrejas aceitaram o liberalismo social e murcharam. As passagens contrárias à visão do liberalismo social foram vistas como “cânon formal” e não “cânon normativo”. As igrejas esfriaram, pois os pastores não pregavam mais a Bíblia e não oravam, apenas “meditavam”. As igrejas esvaziaram e morreram na Europa e em outras regiões.

Um detalhe importante é que, apesar de Karl Barth ter a sua importância, a Neo-ortodoxia também adotou o método histórico-crítico e é, em essência, mais relacionada ao liberalismo do que propriamente à ortodoxia.

IV – Hermenêutica pós-moderna

Os cristãos emergentes defendem que devemos aceitar interpretações diversificadas da Bíblia. Dizem que a Igreja é melhor enriquecida e abençoada quando há pluralidade de interpretações (cada uma atendendo a uma necessidade do momento). Eles desprezam conceitos básicos de Hermenêutica Bíblica, tais como a intenção dos autores bíblicos, o contexto cultural de cada livro e passagem (isto é, desprezam o princípio de que texto sem olhar o contexto é pretexto) e a homogeneidade da Bíblia (ou seja, desprezam o princípio de que a Bíblia se explica pela própria Bíblia). Assim, distorcem o significado de passagens da Bíblia a seu bel prazer para acomodá-las a seus pontos de vista. É o que se chama também de “Hermenêutica Pós-moderna” ou “Hermenêutica Generosa”. É desonestidade completa.

Jacques Derrida (1930-2004) pode ser considerado, involuntariamente, o pai da “Hermenêutica Pós-moderna”. De origem judaica, Derrida nasceu na Argélia, então colônia francesa, e sofreu muito em sua infância por causa do anti-semitismo. Já na juventude, tornou-se discípulo confesso dos escritos dos ateus Friedrich Nietzsche, Jean-Jacques Rousseau e Albert Camus. Inspirado nesses seus ídolos, Derrida fundou o desconstrutivismo, tese que propõe a indeterminação do sentido dos textos. Por descrer em verdade absoluta e ser defensor ferrenho do relativismo, Derrida ensinava que qualquer texto deve ser lido sem nos preocuparmos em achar qualquer intenção do autor por trás dele. Para o francês, devemos ser livres na interpretação de um texto, que pode ter quantos significados sejam necessários, independente do propósito do autor ao escrevê-lo. Caberia a cada leitor, portanto, dar aos textos o significado que ele mesmo acha que tenham.

Seguindo os pressupostos desconstrutivistas, os teólogos emergentes ensinam que a interpretação de um texto bíblico pode ter vários significados, não sendo possível determinar um sentido único que seja apresentado como o verdadeiro. O sentido do texto não estaria dentro do texto, mas fora do texto. Não seria intra-textual, mas extra-textual. O significado e a interpretação de todos os textos bíblicos seriam, portanto, relativos e caberia a cada um extrair dos textos bíblicos, sem preocupar-se com regras de hermenêutica, as lições que achar interessantes, conforme a necessidade do momento.
V – Uma visão honesta e correta das Escrituras

Jesus disse certa vez que os escribas e fariseus erravam por não examinarem as Escrituras e ignorarem o poder delas (Mt 22.29). Isso demonstra que desconhecer o propósito das Escrituras resulta em não experimentarmos o seu poder e eficácia em nossas vidas. A Bíblia é suficiente, mas ela só se torna eficiente em nossas vidas quando nós a aceitamos como Palavra de Deus, como regra de fé e prática para nossas vidas.

O apóstolo Paulo, escrevendo ao seu discípulo Timóteo, apresenta o propósito das Sagradas Escrituras. Afirma Paulo: “Toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus [1] seja perfeito e [2] perfeitamente instruído para toda a boa obra”.

O vocábulo grego traduzido por “perfeito” em 2 Timóteo 3.17 é artios, que só aparece nessa passagem em todo o Novo Testamento. O vocábulo significa “provido”, “completo”, “perfeito” ou “aperfeiçoado”. Quando Paulo fala que as Escrituras são, em primeiro lugar, para que o homem de Deus seja artios, ele está evocando o mesmo que afirma em Efésios 4.12-15.

Jesus afirmou que a Bíblia é infalível. Disse Ele que “a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35). Logo, a infalibilidade das Escrituras não é uma invenção dos estudiosos da Bíblia, e as pessoas que tentam encontrar falhas na Bíblia e ao mesmo tempo dizem que crêem em Jesus estão sendo contraditórias, pois, para empreender essa busca, já têm que partir do princípio de que Jesus mentiu ou se equivocou ao dizer que a Escritura é infalível.

Outro detalhe sobre a infalibilidade das Escrituras é que os que tentam contestá-la são justamente aqueles que desprezam uma hermenêutica correta. Por exemplo, desprezam a necessidade de atentarmos para a intenção dos autores bíblicos para entendermos o significado do texto (mais à frente, ainda neste capítulo, vamos nos dedicar a esse assunto). Um exemplo: Será que quando Josué escreveu que o Sol e a Lua pararam (Js 10.12-15) ele tinha a intenção de afirmar necessariamente que o Sol e a Lua giram em torno da Terra ou será que estava apenas descrevendo, com suas próprias palavras e conhecimento limitado, um milagre que presenciou com seus próprios olhos após a sua oração? Como é que alguém, na época de Josué, descreveria o milagre de o dia ficar prolongado? Não diria que o Sol e a Lua ficaram estacionados em cantos opostos do horizonte? Inclusive, ainda hoje nós não dizemos que o Sol “nasce” e “se põe”? Qual era a intenção do autor ali? Se o texto de Josué fosse uma passagem bíblica em que a intenção do autor fosse apresentar ou descrever, com base na inspiração e na revelação divinas, uma verdade sobre o universo (como em Gênesis 1 e 2), aí seria diferente, mas não é o caso.

A Bíblia também é inerrante, posto que:

(a) O próprio Jesus asseverou que ela é fidedigna em seus mínimos detalhes (Mt 5.18);
(b) As Escrituras dizem que Deus, que a inspirou (2Tm 3.16), não pode errar (Hb 6.18; Tt 1.2);
(c) E Jesus afirma que a Palavra de Deus é a verdade (Jo 17.17).

Se a Bíblia foi dirigida pelo Deus da verdade, conforme ela mesma nos diz, então podemos confiar em sua inerrância. Isto é, todas as vezes que a Bíblia prescreve o conteúdo de nossa fé (doutrina) e o padrão de nossa vida (ética) ou registra eventos reais (história), ela não mente, não erra, mas fala a verdade. Há dificuldades em algumas passagens da Bíblia? Sim, só que essas dificuldades são logo dissipadas quando nos dedicamos a estudá-las sinceramente em busca de respostas, em vez de tomar a nossa primeira dificuldade em entendê-las como prova de que não podem ser entendidas. Quando agimos assim, as contradições se revelam aparentes. Muitos delas são, inclusive, contradições decorrentes de uma leitura isolada do texto sem olhar o seu contexto, que muitas vezes é toda a Escritura. Como lembra o teólogo escocês Bruce Milne, “quando uma passagem da Escritura é interpretada de acordo com a intenção do escritor e em harmonia com outras passagens bíblicas, sua verdade inerrante será percebida claramente” (Conheça a verdade, Bruce Milne, ABU Editora, 1987).

A Bíblia também é autoritativa e normativa, pois ela mesma se apresenta assim em suas páginas. O próprio termo “Escritura” para se referir à Bíblia hebraica e depois ao Novo Testamento (2Pe 3.15,16) era usado nos tempos bíblicos para descrever o texto sagrado como autoritativo e normativo. O próprio termo “Palavra de Deus”, que Jesus utilizou para se referir à Escritura em Marcos 7.7-13, era usado também para demonstrar que o texto do Antigo Testamento tem valor normativo e autoritativo. Aliás, nessa mesma passagem, Jesus afirma aos fariseus que a Bíblia está acima da tradição como referência normativa e chama a Palavra de Deus também de “mandamento de Deus”. Cristo ainda usou a autoridade das Escrituras para rebater o Maligno (Mt 4.4) e sempre invocou a Bíblia como normativa e autoritativa para várias questões (Mt 19.4; 10.34-36).

O Mestre também aceitou a ética do Antigo Testamento como normativa (Mt 5.17) e a Bíblia apresenta a lei moral de Deus como algo que devemos obedecer. O termo “lei” sugere autoridade e normatividade.

O Antigo Testamento, que é chamado de “Palavra de Deus” (como vimos, por exemplo, em Marcos 7.13), é também chamado de Escritura divinamente inspirada (que é justamente o significado de “Palavra de Deus”), que é a mesma categoria dada às Epístolas de Paulo (2Pe 3.16,17) que, por sua vez, compõem o Novo Testamento. Logo, se o Novo Testamento é Escritura divinamente inspirada como o Antigo Testamento, ambos são “Palavra de Deus”.

Quem lê a Bíblia apenas como uma obra literária excepcional com grandes lições morais, mas sem considerá-la a revelação de Deus aos homens e um livro que apresenta proposições para a fé, isto é, doutrinas, não está aceitando, de fato, a Bíblia como ela é. Ler a Bíblia apenas de forma literária é, simplesmente, não levar a Bíblia a sério. O apóstolo Paulo, escrevendo aos tessalonicenses, destacou a importância de recebermos a pregação do conteúdo bíblico como Palavra de Deus (1Ts 2.13). Devemos fazer o mesmo hoje e sempre.

VI – Quanto às traduções da Bíblia

A maioria das traduções que temos da Bíblia hoje em dia é bastante confiável. Claro que pode-se fazer críticas a algumas versões como Atualizada, NVI e Bíblia na Linguagem de Hoje, quanto à real fidelidade em algumas passagens muito específicas do texto bíblico, porém as diferenças são minimizadas por não envolverem nenhuma questão doutrinária essencial. Essas versões as quais mencionei não usam como base o Texto Recebido, usado pela Igreja do 16º ao 19º século, mas os exemplares de Texto Crítico de Westcott e Hort, de Eberhard Nestle e das Sociedades Bíblicas Unidas. Já a Revista e Corrigida, e principalmente a Corrigida Fiel, usam o Texto Recebido. A versão mais preocupante é a NIV (a em inglês), mas a NVI (em português) evitou muitos desses erros desde a sua primeira edição, que foi apenas inspirada na proposta original da NIV, não seguindo todas as suas sugestões de tradução.

Bem, mas de forma geral, sobre esse assunto de traduções, é preciso entender o seguinte:

A) Em primeiro lugar, é errada a teoria de que a inspiração da Bíblia só pode ser conservada na sua língua original ou numa versão em língua clássica ou erudita. Tal conceito seria o mesmo que defender a crença da língua sagrada, como o árabe no islamismo, o sânscrito no hinduísmo e o latim no catolicismo medieval. No próprio Novo testamento há inúmeras citações da Septuaginta, que é o Antigo Testamento em grego. Jesus fez uso dessa versão em seus ensinos e pregações (Is 7.14; 8.8,10; Mt 1.23; Is 42.4 e Mt 12.21) e fizeram o mesmo os apóstolos Paulo (Dt 27.26 e Gl 3.10), Pedro (Is 28.16 e 1Pd 2.6) e Tiago (Pv 3.34 e Tg 4.6). Os apóstolos não impuseram o hebraico às nações quando levaram o Evangelho para outros povos.

B) Em segundo lugar, a linguagem pode ser atualizada, mas a mensagem jamais pode ser alterada. Quando a mensagem é modificada, a versão deixa de ser inspirada, pois o texto foi corrompido e falsificado. Exemplo: A geração de judeus que retornou do cativeiro babilônico falava aramaico, que era a língua oficial do império. Eles não entendiam bem a leitura em hebraico da Lei e dos Profetas, que era comum nas sinagogas. Por isso, surgiu a necessidade de explicações orais em aramaico, como vemos em Neemias 8.8. Com o passar dos anos, essas explicações foram escritas, tornando-se os Targumim, traduções parafraseadas do Velho Testamento hebraico para o aramaico. O Targum de Ônquelos contém o Pentateuco e o de Jônatas, os Profetas. Curiosamente, o Targum de Ônquelos parafraseou a expressão “Eu Sou” de Êxodo 3.14 e Deuteronômio 32.29 da seguinte forma: “Aquele que é, e que era, e que há de vir”. Essa mesma expressão aparece 5 vezes em Apocalipse (Ap 1.4,8; 4.8; 11.17; 16.5). Isso mostra que as várias formas, estilos e construções gramaticais são válidas, contanto que o conteúdo do texto, seu sentido, não seja corrompido. 

C) Em terceiro lugar, no processo de tradução, a paráfrase pode ser usada, mas com muito cuidado. A paráfrase traduz explicando o texto. Na paráfrase, em vez de traduzir palavra por palavra, se traduz idéia por idéia. Esse recurso deve ser usado apenas quando uma tradução literal não ajuda o leitor a entender a passagem; é quando é necessário o uso de nossas expressões idiomáticas para que o texto fique mais claro. É perfeitamente possível manter a fidelidade ao texto original assim, mas esse recurso, repito, só pode ser usado em passagens em que realmente se faz necessário isso.

D) O Texto Recebido (Textus Receptus) é a última revisão do texto impresso do Novo Testamento grego, preparado originalmente por Erasmo de Roterdam e publicado em 1516. Foi o primeiro texto impresso do Novo Testamento grego a ser publicado após a invenção da imprensa. O de Francisco de Cisneros foi preprado antes, mas publicado só em 1520. Como Erasmo não dispunha de manuscritos completos do Novo Testamento, fez uso de apenas quatro manuscritos gregos cursivos: um do século 10, dois do século 12 (sendo que um deles contém apenas o Apocalipse com algumas lacunas supridas pela Vulgata) e um do século 13, que contém apenas Atos e as Epístolas. Na época, Erasmo não teve acesso aos principais manuscritos e os papiros antigos ainda não tinham sido descobertos. O texto de Erasmo foi revisado várias vezes até que os irmãos Bonaventure e Abraham Elzevir publicaram uma nova e definitiva edição desse texto de Erasmo em 1624, intitulando-a Textus Receptus. É a base das principais traduções do Novo Testamento, como, por exemplo, a tradução de João Ferreira de Almeida, a inglesa King James Version e a versão espanhola de Casiodoro de Reina.

Hoje, há mais de 5,7 mil manuscritos gregos no Novo Testamento. Com base nos novos manuscritos que foram descobertos, foram feitas revisões, o chamado Texto Crítico, mas tais revisões, para espanto dos tradutores, mostrou como o texto bíblico permanecia extremamente puro apesar dos séculos.

Como bem afirma o pastor e teólogo assembleiano Esequias Soares, em artigo publicado no jornal Mensageiro da Paz, “seria muita ingenuidade esperar que todas as cópias do NT produzidas à mão em três continentes durante mais de 13 séculos ficassem exatamente iguais, como as páginas impressas. Como era de se esperar, há algumas diferenças como ordem diferente de palavras, sinônimos, soletração, palavras, frases e versículos omissos, acrescidos ou deslocados”, mas nada que não pudesse ser claramente identificado para que se garantisse o texto puro. “A Crítica Textual, desde 1750, checou cada versículo em todos esses manuscritos” – frisa pastor Esequias, acrescentando ao final que, depois do intenso trabalho de investigação, “os críticos ficaram estupefatos com o grau de exatidão” do texto do Novo Testamento. A fidedignidade do conteúdo fora preservado.

Os 5,7 mil manuscritos foram submetidos à análise de críticos textuais os mais exigentes, que, em sua meticulosidade, descobriram cerca de 250 mil variações entre todos os manuscritos do Novo Testamento, só que, a maioria esmagadora dessas variações, quase que a totalidade, girando apenas em torno de ortografia e disposição de palavras, e não afetando em absolutamente nada o conteúdo doutrinário. Os poucos casos maiores envolvem interpolações ou erros de copistas (mas que são facilmente identificáveis), o que garante, no mínimo, uma pureza de 99,5% do texto bíblico que temos em mãos em relação aos seus autógrafos originais.

Só para se ter uma idéia, essas mais de 200 mil variações, se vertidas para a nossa língua, nem apareceriam! Não podem sequer ser traduzidas da língua grega para qualquer idioma. São nuances do grego e diferenças de ortografia sem alteração alguma no sentido da passagem. E dentre os 0,5% que são realmente substanciais, não há nada que comprometa a Teologia Cristã. Textos como alguns versículos de Marcos 16, João 8 1João 5, que são interpolações, são os casos maiores, e mesmo assim nenhum deles, se omitidos, mudaria qualquer doutrina bíblica. E ainda há o fato de que algumas dessas interpolações são altamente discutíveis se são ou não interpolações mesmos. Exemplo: Marcos 16.9-20.

Além de Marcos terminar de forma abrupta, no original o versículo 8 termina com uma conjunção (“gar”) e, como afirmam os especialistas, “na literatura grega, a conjunção ‘gar’ jamais é usada como conclusão de um texto”. O vocábulo “gar” significa “pois” ou “porque”. Outro detalhe importantíssimo é que apesar de as duas cópias mais antigas de Marcos não conterem os versículos de 8 a 20 (o Manuscrito Sinático, conhecido como Códice Alef, escrito em cerca de 340 d.C, e o Manuscrito do Vaticano, conhecido como Códice B, datado de 350 d.C), mas apenas o terceiro mais antigo (o Manuscrito Alexandrino, Códice A, do ano 450 d.C.) contém o texto e todas as demais 677 cópias restantes, os Pais da Igreja, bem antes dessas cópias mais antigas, mencionam muitos versículos de Marcos 16.9-20 em seus escritos teológicos. Exemplos são Irineu (125-202 d.C.); Hipólito (160-236 d.C.) e Taciano, um seguidor de Justino Mártir, que viveu no final do segundo século, todos atestando conhecer a existência da redação de Marcos após o versículo 8. Além do que, como já afirmamos, dos 5,7 mil manuscritos gregos do Novo Testamento, aproximadamente 680 deles contém o Evangelho de Marcos completo e apenas dois desses 680 manuscritos não incluem esses versículos; e as 8 mil versões do latim contém os versículos de 9-20, além das versões góticas, egípcias e armênias.

E) Finalmente, é importante frisar que há, atualmente, mais de 5,7 mil cópias de manuscritos gregos do Novo Testamento ou de porções neotestamentárias, indo do primeiro ao nono século, e a maioria é do terceiro, quarto e quinto séculos. Isso é impressionante, uma vez que nenhuma outra obra da literatura grega pode ostentar uma abundância tão grande de cópias.

“A Ilíada de Homero, a maior de todas as obras clássicas gregas, é subsistente em cerca de 650 manuscritos; e as tragédias de Eurípides existem em aproximadamente 330 manuscritos. O número de cópias de todas as outras obras da literatura grega é bem menor. Além disso, deve-se acrescentar que o espaço de tempo entre a composição original e o manuscrito subsistente mais próximo é muito menor para o Novo Testamento do que para qualquer obra da literatura grega. O lapso de tempo para a maioria das obras clássicas gregas fica entre oitocentos e mil anos, enquanto que o intervalo para muitos dos livros do Novo Testamento é de cerca de 100 anos”, destaca o teólogo norte-americano Philip Wesley Comfort.

Flávio Josefo, historiador judeu do primeiro século, fala da existência do Cânon Hebraico do Velho Testamento já estabelecido: “...e pelos quais temos tal respeito, que ninguém jamais foi tão atrevido para tentar tirar ou acrescentar, ou mesmo modificar-lhes a mínima coisa. Nós os consideramos como divinos” (História dos Hebreus, Contra Ápion, Livro 1, capítulo 21, CPAD). Essa recomendação de não alterar as Escrituras Sagradas aparece ao longo da Bíblia (Dt 4.2; 12.32; Pv 30.5-6 e Ap 22.18-19). Esse Cânon mencionado por Josefo parece ser o mesmo mencionado por Jesus (Lc 24.44), cuja tríplice parte está presente em Josefo e na Bíblia Hebraica ainda hoje.



quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Fé na Verdade - Daniel Dennett


1. É a ciência uma religião?

É a matemática realmente uma religião? E a ciência? Hoje em dia ouve-se muitas vezes dizer que a ciência é “apenas” mais uma religião. Há algumas semelhanças interessantes. A ciência oficial, tal como a religião oficial, tem as suas burocracias e hierarquias entre funcionários, as suas instalações grandiosas e esotéricas sem qualquer utilidade aparente para os leigos, as suas cerimônias de iniciação. Tal como uma religião decidida a alargar a sua congregação, a ciência tem uma enorme falange de missionários — que não se chamam a si mesmos missionários, mas professores.

Eis uma fantasia engraçada: um observador mal informado presencia o trabalho de equipe, intrincado e formal, necessário para preparar uma pessoa para a parafernália esotérica de uma tomografia axial computadorizada — um exame T.A.C. — e supõe tratar-se de uma cerimônia religiosa, um sacrifício ritual, porventura, ou a investidura de um novo arcebispo. Mas estas semelhanças são superficiais. E quanto às semelhanças mais profundas que têm sido defendidas? A ciência, tal como a religião, tem as suas ortodoxias e as suas heresias, não tem? Não é afinal a crença no poder do método científico um credo, tal como os credos religiosos, no sentido em que em última análise é de uma questão de fé, tão incapaz de confirmação independente ou fundamento racional como qualquer outro credo religioso? Repare-se que a pergunta ameaça autodestruir-se: ao contrastar a fé com a confirmação independente e com o fundamento racional, negando que a ciência como um todo possa usar os seus próprios métodos para assegurar o seu próprio triunfo, a pergunta presta homenagem a esses mesmos métodos. Parece existir uma assimetria curiosa: os cientistas não apelam à autoridade de quaisquer líderes religiosos quando os seus resultados são contestados, mas muitas religiões atuais adorariam poder garantir o aval da ciência. Algumas dessas religiões têm nomes que manifestam esse desejo: os cientistas cristãos e os cientologistas, por exemplo. Temos também uma palavra para a veneração da ciência: “cientificismo”. Acusam-se de cientificismo aqueles cuja atitude entusiástica perante as proclamações da ciência é muito semelhante às atitudes do devoto: em vez de ser cauteloso e objetivo, tem uma postura de adoração, é acrítico ou até fanático.

Se o summum bonum ou máximo bem dos cientistas é a verdade, se os cientistas fazem da verdade o seu Deus, como já foi defendido, não será esta uma atitude tão situada quanto o culto de Jeová, de Maomé, ou do Anjo Moroni? Não, a nossa fé na verdade é, verdadeiramente, a nossa fé na verdade — uma fé partilhada por todos os membros da nossa espécie, mesmo que exista grande divergência nos métodos admitidos para a obter. A assimetria acima referida é real: a fé na verdade tem uma primazia que a distingue de todas as outras fés.
2. O primado da verdade

Neste preciso momento, há bilhões de organismos neste planeta a jogar às escondidas. Mas para eles não se trata apenas de um jogo. É uma questão de vida ou de morte. Não se enganarem, não cometerem erros, tem sido de uma importância primordial para todos os seres vivos deste planeta desde há mais de 3 bilhões de anos; por isso, estes organismos desenvolveram milhares de formas diferentes de descobrir como é o mundo em que vivem, distinguindo os amigos dos inimigos, os alimentos dos companheiros e ignorando, em grande medida, o resto. É para eles importante não estarem mal informados acerca destas matérias — mas, regra geral, não se dão conta disto. Eles são os beneficiários de um equipamento delicadamente concebido para captar bem o que interessa, mas quando o seu equipamento funciona mal e capta as coisas mal, não têm, regra geral, recursos para se darem conta disto, quanto mais para o lamentarem. Eles limitam-se a prosseguir, inconscientemente. A diferença entre a aparência e a realidade das coisas é um hiato tão fatal para eles quanto o pode ser para nós, mas eles não se apercebem, em grande medida, disso. O reconhecimento da diferença entre a aparência e a realidade é uma descoberta humana. Algumas das outras espécies (alguns primatas, alguns cetáceos, talvez até algumas aves) reconhecem, aparentemente, o fenômeno da “crença falsa” — o engano. Mostram alguma sensibilidade aos erros dos outros e talvez até alguma sensibilidade aos seus próprios erros enquanto erros, mas não têm a capacidade de reflexão necessária para refletir nesta possibilidade, razão pela qual não podem usar esta sensibilidade para conceber deliberadamente correções ou aperfeiçoamentos nos seus próprios instrumentos de busca e dissimulação. Esse tipo de superação do hiato entre a aparência e a realidade é um ardil que só nós, os seres humanos, dominamos.

Somos a espécie que descobriu a dúvida. A comida armazenada será suficiente para o Inverno? Terei feito os cálculos mal? Estará a minha companheira a enganar-me? Deveríamos ter ido para Sul? Será seguro entrar nesta caverna? As outras criaturas são muitas vezes visivelmente inquietadas pelas suas próprias incertezas acerca destas mesmas questões, mas, porque não podem, na verdade, colocar-se a si mesmas estas perguntas, não podem articular, perante si próprias, os seus dilemas, nem tomar medidas para aperfeiçoar o seu controle da verdade. Estão encurraladas num mundo de aparências, fazendo com elas o melhor que podem, raramente se preocupando (se é que alguma vez o fazem) com a questão de saber se as aparências correspondem à realidade.*1

Só nós podemos ser arruinados pela dúvida e só nós fomos impelidos por essa inquietação epistêmica a procurar uma cura: melhores métodos de procurar a verdade. Ao desejar um conhecimento mais adequado das nossas reservas de comida, dos nossos territórios, famílias e inimigos, descobrimos os benefícios de falar sobre isso com os outros, de fazer perguntas e de transmitir conhecimentos: inventamos a cultura. Depois, inventamos a medição e a aritmética, os mapas e a escrita. Estas inovações nas áreas da comunicação e do registro arrastam já consigo um ideal: a verdade. O sentido de fazer perguntas é encontrar respostas verdadeiras; o sentido da medição é medir de forma precisa; o sentido de produzir mapas é encontrar o caminho para o nosso destino. Pode existir uma Ilha dos Daltônicos (para usar a enorme dose habitual de liberdade poética de Oliver Sacks), mas não uma Ilha das Pessoas Que Não Reconhecem os Seus Próprios Filhos. A Terra dos Mentirosos só poderá existir nos enigmas dos filósofos; não há tradições de Sistemas de Calendários Falsos para registrar erradamente a passagem do tempo. Em suma, é evidente que o objetivo da verdade existe em todas as culturas humanas.

Na verdade, o dizer não faria realmente sentido sem o ideal da verdade. Mas assim que o dizer a verdade foi inventado, descobriram-se igualmente formas de explorar este pressuposto: sobretudo, a mentira. Como Talleyrand cinicamente afirmou em tempos, a linguagem foi inventada para podermos esconder os nossos pensamentos uns dos outros. Dizer a verdade é, e tem de ser, o pano de fundo de toda a comunicação genuína, incluindo a mentira. Afinal, o dolo só funciona quando aquele que pretende enganar tem a reputação de dizer a verdade.*2 A adulação não conduziria a nada sem o pressuposto inicial de dizer a verdade: arrulhar como uma pomba ou grunhir como um porco teriam as mesmas probabilidades de captar as boas graças de alguém.

O mundo dos animais não humanos descobriu muitas vezes a possibilidade da publicidade falsa. Onde existem espécies venenosas, avisando os possíveis predadores com as suas cores brilhantes, existem muitas vezes espécies não venenosas que imitam estas cores brilhantes, obtendo assim proteção barata graças à prática do engano. Mas aqueles que fazem às vezes de mentirosos entre os animais descobriram também uma forma de fazer valer a verdade: o princípio de Zahavi. Como defendeu o biólogo Amotz Zahavi, só a publicidade cara mostra claramente a sua credibilidade porque não pode ser imitada. Por exemplo, na competição do acasalamento os pretendentes com chifres incômodos, caudas de pavão ou outras desvantagens óbvias estão na realidade a dizer: “sou tão bom que posso suportar estes custos enormes e, mesmo assim, sobreviver”. Quem quiser competir é obrigado a sustentar estes custos extravagantes, senão fica sem acasalar. Assim, as espécies não humanas são muitas vezes conduzidas pelo caminho que conduz diretamente ao verídico; entre os animais, somos os únicos a apreciar a verdade por si mesma. E, graças à ciência que criamos ao procurar a verdade, somos também os únicos que podemos ver por que razão a verdade, apesar de não ser admirada ou até mesmo concebida, é um ideal que constrange as atividades perceptivas e comunicativas de todos os animais.

Nós, seres humanos, usamos as nossas capacidades comunicacionais não apenas para dizer a verdade, mas também para fazer promessas e ameaças, para regatear e contar histórias, para divertir, mistificar e originar transes hipnóticos ou, simplesmente, para brincar — mas a rainha de todas estas atividades é a de dizer a verdade, e foi para esta atividade que inventamos utensílios cada vez melhores. Juntamente com os nossos utensílios para a agricultura, a construção, a guerra e o transporte, criamos uma tecnologia da verdade: a ciência.
3. A ciência como a tecnologia da verdade

Tente desenhar uma linha reta, ou um círculo, “à mão”. A não ser que tenha um talento artístico considerável, o resultado não será grande coisa. Mas com uma régua e um compasso, por outro lado, poderá eliminar praticamente as fontes da instabilidade humana e obter um resultado satisfatório, limpo e objetivo, sempre igual.

É a linha realmente reta? Quão reta? Em resposta a estas questões desenvolvemos testes cada vez mais precisos, seguidos de testes da precisão desses testes, e assim por diante, consolidando o nosso progresso em direção a uma cada vez maior precisão e objetividade. Os cientistas são tão vulneráveis ao raciocínio caprichoso, tão passíveis de serem tentados por motivos baixos, tão subornáveis, crédulos e desleixados como o resto da humanidade. Os cientistas não se consideram santos; nem sequer fingem ser sacerdotes (de quem, de acordo com a tradição, se espera melhores resultados do que os obtidos por todos nós na luta contra a tentação e a fraqueza moral). Os cientistas acham-se tão fracos e falíveis quanto qualquer outra pessoa, mas ao reconhecer essas mesmas fontes de erro em si mesmos e nos grupos a que pertencem, conceberam complicados sistemas para atar as suas próprias mãos, impedindo energicamente que as fragilidades morais e os preconceitos contaminem os seus resultados.

Não são apenas os instrumentos, os utensílios físicos próprios da atividade, que foram concebidos para resistir ao erro humano. A organização dos métodos está também sob pressão da seleção rigorosa a favor de cada vez mais fidedignidade e objetividade. O exemplo clássico é a experiência na qual nem as pessoas sujeitas ao teste nem os próprios cientistas que fazem o teste sabem quem está a tomar o fármaco que se pretende testar e quem está a tomar uma substância inativa, de maneira a que nenhuns desejos e pressentimentos subliminares possam influenciar a percepção dos resultados. A concepção estatística quer das experiências individuais quer de conjuntos de experiências faz assim parte da prática geral de tentativas de rotina nas quais investigadores independentes procuram reproduzir essas experiências, o que por sua vez faz parte de uma tradição — imperfeita, mas reconhecida — de publicação dos resultados positivos e negativos.

O que inspira a fé na aritmética é o fato de centenas de escrevinhadores, trabalhando independentemente no mesmo problema, chegarem todos à mesma resposta (excetuando aqueles poucos cujos erros podem ser encontrados e identificados de forma pacífica para todos). Esta objetividade incomparável encontra-se também na geometria e nos outros ramos da matemática, que desde a antiguidade tem sido o próprio modelo do conhecimento positivo, em oposição ao mundo do fluxo e da controvérsia. No diálogo Ménon, de Platão, Sócrates e o escravo descobrem em conjunto um caso especial do teorema de Pitágoras. O exemplo de Platão exprime o reconhecimento claro de um cânone de verdade ao qual todos os que procuram a verdade devem aspirar, um cânone que não só nunca foi seriamente desafiado, mas que foi tacitamente aceito — e no qual, na verdade, se confia fortemente, mesmo em casos de vida ou de morte — pelos mais vigorosos oponentes da ciência. (Ou conhece o leitor alguma igreja que controle o seu rebanho, e os seus donativos, sem o benefício da aritmética?)

Sim, mas a ciência quase nunca parece assim tão incontroversa, tão consolidada, como a aritmética. Na verdade, as facções científicas rivais envolvem-se muitas vezes em batalhas de “evangelização” tão ferozes quanto as que encontramos na política, ou até mesmo nos conflitos religiosos. A exaltação com que alguns defensores da ortodoxia científica defendem muitas vezes as suas doutrinas contra os heréticos não tem, provavelmente, paralelo noutras áreas do combate retórico entre os seres humanos. Esta competição pela popularidade — e, claro, pelos financiamentos — são concebidas para captar a atenção e, se forem bem executadas, conseguem-no. O efeito secundário disto é desviar a atenção do imenso pano de fundo incontestado de qualquer ciência para a guerra travada nas suas orlas — e é esse imenso pano de fundo que dá às suas orlas tanta força. O que é assumido por todos, nestas acaloradas desavenças, é uma coleção enciclopédica e organizada de fatos científicos banais, com os quais todos concordam.*3

Robert Proctor chama acertadamente a nossa atenção para uma distinção entre a neutralidade e a objetividade. Os geólogos sabem muito mais sobre xistos petrolíferos do que acerca de outras rochas — por razões econômicas e políticas óbvias — mas o que eles sabem sobre os xistos petrolíferos é objetivo. E muito do que eles aprendem sobre os xistos petrolíferos pode ser generalizado a outras rochas menos favorecidas. Queremos que a ciência seja objetiva; mas não devemos desejar que a ciência seja neutra. Os biólogos sabem muito mais sobre a mosca da fruta, Drosophila, do que sabem acerca de outros insetos — não porque se possa enriquecer à custa das moscas da fruta, mas porque é mais fácil saber coisas acerca das moscas da fruta do que acerca da maioria das outras espécies. Os biólogos sabem também muito mais sobre mosquitos do que sobre outros insetos — neste caso porque os mosquitos são mais prejudiciais para as pessoas do que outras espécies que seriam muito mais fáceis de estudar. As razões para concentrar a atenção na ciência são variadas, e todas elas concorrem para fazer com que os rumos da investigação estejam longe de ser neutras; mas essas razões não fazem, geralmente, com que a ciência seja menos objetiva. Às vezes, é verdade, um ou outro preconceito conduz à violação dos cânones do método científico. Estudar o padrão de certa doença nos homens, por exemplo, ao mesmo tempo em que se negligencia a recolha de dados sobre a mesma doença nas mulheres, não é algo que se limita a não ser neutra; é má ciência, tão indefensável em termos científicos como em termos políticos.

Os métodos da ciência não são completamente seguros, mas podem ser constantemente aperfeiçoados. E o que é igualmente importante: existe uma tradição de crítica que obriga ao aperfeiçoamento sempre que se descobrem defeitos, e seja onde for que se descubram defeitos. Os próprios métodos da ciência, tal como tudo o que existe, são objeto do escrutínio científico, transformando-se os métodos em metodologia, a análise dos métodos. A metodologia, por seu turno, fica debaixo do olhar daepistemologia, a investigação da própria investigação — não há nada que escape ao questionamento científico. A ironia é que estes frutos da reflexão científica, que nos mostram as manchas indeléveis da imperfeição, são por vezes usadas por quem desconfia da ciência como pontos de partida para negarem a esta um estatuto privilegiado na área da procura da verdade — como se as instituições e práticas que eles tomam como concorrentes da ciência não estivessem ainda em pior posição no que respeita a estas matérias. Mas onde estão os exemplos do abandono da ortodoxia religiosa face a provas irresistíveis? Na ciência, as heresias de ontem tornaram-se vezes e vezes sem conta as novas ortodoxias de hoje. Nenhuma religião exibe este padrão evolutivo ao longo da sua história.

Que diferença existente nestas instituições pode explicar este fato? Trata-se, claramente, do impulso fornecido pela fé que os cientistas depositam na verdade. Considerem-se os diagramas de Richard Feynman da eletrodinâmica quântica, por exemplo.*4 Quando os vi pela primeira vez, pareceram-me uma espécie de numerologia, uns guias da verdade grotescamente improváveis, mais parecidos com deitar cartas de tarot ou deitar sortes do que com ciência. Parecia estranho que um processo tão bizarro pudesse gerar a verdade; mas, na realidade, funciona: e pode compreender-se por que motivo funciona (com esforço!). E porque funciona, e porque pode demonstrar-se que funciona, gerando resultados de uma precisão e constância eptosas, foi aceito como parte do método científico ortodoxo. E se se conseguisse provar que deitar sortes, ou a astrologia, geram resultados de uma precisão análoga, também estas práticas poderiam ser acomodadas na ciência ortodoxa, juntamente com uma teoria que explicasse por que razão funcionam. Mas é claro que esses métodos nunca foram legitimados. Os cientistas têm fé na verdade, mas não uma fé cega. Não é como a fé que os pais têm na honestidade dos seus filhos, ou a fé que os adeptos desportivos têm na capacidade dos seus heróis para ganhar. É antes como a fé que qualquer pessoa pode ter num resultado a que vários grupos de pessoas chegaram de forma independente.
4. Epistemologia: tentar dizer a verdade acerca da verdade

A investigação reflexiva última acerca da investigação ocorre no ramo da filosofia conhecido como epistemologia, a teoria do conhecimento. Também aqui as controvérsias existentes nas margens criaram um efeito nocivo, uma distorção que muitas vezes conduziu a interpretações erradas. Ao concordar que a verdade é um conceito muito importante, os epistemólogos tentaram dizer exatamente o que é a verdade — sem se despistarem. Perceber o que é verdade acerca da verdade, contudo, acabou por se revelar uma tarefa difícil, tecnicamente difícil, uma tarefa na qual as definições e as teorias que parecem à primeira vista inocentes conduzem a complicações que rapidamente fazem o teórico enredar-se em doutrinas duvidosas. A nossa estimada e conhecida amiga, a verdade, tende a transformar-se na Verdade — com V maiúsculo —, um conceito inflacionado de verdade que de fato não pode ser defendido.

Eis um dos caminhos que conduzem à dificuldade: suponhamos que o conhecimento não é nada senão acreditar justificadamente em proposições verdadeiras. Suponhamos, além disso, que as proposições verdadeiras, ao contrário das falsas, exprimem fatos. O que são os fatos? Quantos fatos existem? (Tom, Dick e Harry estão sentados numa sala. Eis um fato. Mas para além de Tom, Dick e Harry, da sala onde estão sentados e do que lhes serve de assento, parece que temos um sem-fim de outros fatos: Dick não está de pé, não existe qualquer cavalo que esteja a ser montado por Tom, e assim por diante, ad infinitum. Precisaremos realmente admitir uma infinidade de outros fatos juntamente com o pouquíssimo equipamento deste pequeno mundo?) Já existiam fatos antes de existirem aqueles que os procuram, ou são antes os fatos como as frases verdadeiras (inglesas, francesas, latinas etc.), cuja existência teve de aguardar que se criassem as línguas humanas? São os fatos independentes das mentes daqueles que acreditam nas proposições que os exprimem? Correspondem as verdades aos fatos? A que correspondem então as verdades da matemática, se é que correspondem a algo? As categorias começam a multiplicar-se, não emergindo nenhuma teoria unificada, óbvia e consensual sobre a verdade.*5 Os céticos, vendo as armadilhas que parecem rodear qualquer versão da verdade, absoluta ou transcendental, argumentam a favor de versões mais moderadas, mas os seus adversários contra-argumentam, mostrando as imperfeições das tentativas rivais de chegar a uma teoria aceitável. Reina a controvérsia sem fim.

Esta investigação modesta, mas por vezes brilhante, do próprio significado da palavra “verdade” tem tido algumas consequências perniciosas. Algumas pessoas pensaram que os argumentos filosóficos que mostram a situação desesperada das doutrinas inflacionadas da verdade mostraram que, na realidade, a própria verdade não era algo digno de apreço ou sequer passível de ser alcançado. “Desistam!”, parecem essas pessoas dizer. A verdade é um ideal inalcançável e insensato. Aqueles que buscam uma doutrina da verdade aceitável e defensável parecem estar a agarrar-se a um credo ultrapassado, dando crédito a uma religião que não conseguem fundamentar pelos métodos da própria ciência. A epistemologia começa a parecer-se com um jogo de idiotas — mas apenas porque os seus observadores esquecem tudo aquilo que ambos os lados aceitam acerca da verdade. Os efeitos desta visão distorcida podem ser perturbadores.

Quando era um jovem assistente de filosofia, recebi uma vez uma visita de um colega do Departamento de Literatura Comparada, um elegante e eminente teórico literário que precisava de ajuda. Senti-me lisonjeado por ele me ter procurado e fiz o melhor que pude para corresponder ao pedido, mas fiquei, estranhamente, perplexo com o sentido geral das suas perguntas acerca de vários tópicos filosóficos. Durante muito tempo não chegamos a lado nenhum, até que ele conseguiu tornar claro o que desejava. Ele queria “uma epistemologia”, afirmou. Uma epistemologia. Todos os teóricos literários dignos desse nome tinham, ao que parece, de exibir uma epistemologia naquela temporada, sem a qual ele se sentia nu, de maneira que tinha vindo ter comigo em busca de uma epistemologia que pudesse usar — ele tinha a certeza que isso estava na moda e queria por isso o dernier cri em epistemologia. Não lhe interessava que fosse sólida, defensável, nem (como se poderia muito bem dizer) verdadeira; só tinha de ser nova e diferente e com estilo. Usa os acessórios certos, meu caro amigo, senão ninguém vai reparar em ti na festa.

Nesse momento percebi que existia entre nós um abismo que até àquele momento não tinha claramente compreendido. Primeiro pensei tratar-se unicamente do abismo entre a seriedade e a frivolidade. Mas a minha vaga inicial de orgulho na minha própria integridade era, de fato, uma reação ingênua. O meu sentimento de ultraje, o meu sentimento de que tinha desperdiçado o meu tempo com o bizarro projeto deste homem era, à sua própria maneira, tão pouco sofisticado como a reação de alguém que, ao assistir pela primeira vez a uma peça de teatro, irrompe pelo palco para proteger a heroína do vilão. “Não estás a ver?”, perguntamos, incrédulos. “É um faz-de-conta. É arte. Não é suposto ser tomado literalmente!” Neste contexto, a demanda deste homem não era afinal tão vergonhosa quanto isso. Eu não teria ficado ofendido se um colega do Departamento de Teatro me tivesse pedido alguns metros de livros para colocar nas prateleiras do cenário para a sua produção da peça Jumpers, de Tom Stoppard, pois não? Que mal haveria em abastecer este amigo com uma série de vistosas doutrinas epistemológicas escandalosas, com as quais ele poderia excitar ou confundir os seus colegas?

O que seria errado, uma vez que ele não se dava conta do abismo, não reconhecendo sequer a sua existência, seria o fato de a minha concordância com a sua pândega consumista contribuir para o aviltamento de um bem precioso e para a erosão de uma distinção valiosa. Muitas pessoas, incluindo quer os espectadores quer os participantes, não se dão conta deste abismo, ou negam ativamente a sua existência; e é aí que está o problema. O que é triste nisto tudo é que em alguns círculos intelectuais, habitados por alguns dos nossos pensadores mais avançados nas artes e nas humanidades, esta atitude passa por ser uma sofisticada apreciação da futilidade da demonstração e da relatividade de todas as afirmações de conhecimento. Na verdade, esta opinião, longe de ser sofisticada, é o cúmulo da ingenuidade inconsciente, só possível graças à ignorância grosseira dos métodos já demonstrados de procura científica da verdade, assim como do seu poder. Como muitos outros ingênuos, estes pensadores, ao refletirem na manifesta insuficiência dos seus métodos de procura da verdade para atingir resultados estáveis e valiosos, generalizam inocentemente a partir dos seus próprios casos, concluindo que mais ninguém sabe como descobrir a verdade.

Entre os que contribuem para este problema está, lamento dizê-lo, um anterior orador nas Conferências da Amnistia de Oxford, o meu bom amigo Dick Rorty. Rorty e eu temos vindo a discordar construtivamente desde há mais de um quarto de século. Penso que cada um de nós ensinou muito ao outro, através do processo recíproco de polir as nossas discordâncias mútuas. Não há outro filósofo contemporâneo com quem tenha aprendido mais. Rorty abriu os horizontes da filosofia contemporânea, mostrando de forma perspicaz a nós, filósofos, muito acerca do modo como os nossos próprios projetos têm resultado dos projetos filosóficos do passado distante e recente, ao mesmo tempo em que corajosamente descreve e prescreve rumos futuros. Mas não concordamos de maneira nenhuma — por enquanto — no que respeita à sua tentativa, ao longo dos anos, de mostrar que os debates dos filósofos acerca da Verdade e da Realidade eliminam de fato o abismo, permitem de fato a derrapagem para uma forma de relativismo. No fim de contas, diz-nos Rorty, tudo são apenas “conversas”, restando apenas bases políticas ou históricas ou estéticas para assumir um ou outro papel numa conversa que continua.

Rorty tem tentado muitas vezes fazer-me alinhar na sua campanha, declarando poder encontrar na minha própria obra um ou outro insight explosivo que o ajudaria no seu projeto de destruir o ilusório edifício da objetividade. A passagem com que termino o meu livro Consciousness Explained (1991) é uma das suas favoritas:

Trata-se apenas de uma guerra de metáforas, poderá dizer-se — mas as metáforas não são “apenas” metáforas; as metáforas são instrumentos do pensamento. Ninguém pode pensar acerca da consciência sem instrumentos, por isso é importante equiparmo-nos com os melhores instrumentos possíveis. Repare-se no que construímos com os nossos instrumentos. Poderíamos nós imaginar tudo isto sem eles? [pág. 455]

“Gostaria”, afirma Rorty, “que ele tivesse dado mais um passo e que tivesse acrescentado que esses instrumentos são tudo o que a investigação pode alguma vez fornecer, porque a investigação nunca é ‘pura’ no sentido do ‘projeto de investigação pura’ de [Bernard] Williams. A investigação é sempre uma questão de alcançar algo que queremos.” (“Holism, Intrinsicality, Transcendence”, in Dahlbom, org., Dennett and his Critics. 1993) Mas eu nunca daria tal passo, pois apesar de as metáforas serem de fato instrumentos de pensamento insubstituíveis, não são os únicos instrumentos insubstituíveis. Os microscópios e a matemática e os scanners de IMR (imagem por ressonância magnética) são alguns dos outros. Sim, toda a investigação é uma questão de alcançar o que queremos: a verdade acerca de algo que nos interessa, se as coisas forem como devem ser.

Quando os filósofos discutem acerca da verdade estão a discutir acerca de como não inflacionar a verdade acerca da verdade, transformando-a na Verdade acerca da Verdade — uma doutrina absolutista que faça exigências indefensáveis aos nossos sistemas conceituais. A este respeito, a discussão é análoga aos debates sobre a realidade do tempo, por exemplo, ou sobre a realidade do passado. Existem investigações filosóficas sofisticadas e meritórias sobre a questão de saber se, se formos precisos, o passado será real. As opiniões dividem-se, mas estará enganado quem pensar que se rejeitam afirmações como as seguintes:

A vida surgiu neste planeta há mais de três mil milhões de anos.

O Holocausto aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial.

Jack Ruby disparou a matar sobre Lee Harvey Oswald às 11:21 da manhã, hora de Dallas, no dia 24 de Novembro de 1963.

Estas são verdades sobre acontecimentos que ocorreram de fato. As suas negações são falsidades. Nenhum filósofo em seu perfeito juízo alguma vez pensou o contrário, apesar de no calor da batalha terem por vezes afirmado coisas que poderiam interpretar-se dessa maneira.

Richard Rorty merece os muitos leitores seduzidos que tem nas artes e humanidades, assim como nas ciências sociais “humanísticas”, mas quando os seus leitores o interpretam entusiasticamente como alguém que encoraja o ceticismo pós-modernista acerca da verdade, estão a precipitar-se por caminhos que ele próprio se absteve de tomar. Quando o pressiono sobre estes tópicos, ele concede a existência de um conceito útil de verdade que sobrevive a todas as corrosivas objeções filosóficas. Rorty reconhece que este prestável e modesto conceito de verdade tem os seus usos: quando queremos comparar, em termos de precisão, dois mapas da província, por exemplo, ou quando se trata de saber se o réu cometeu ou não o crime de que é acusado.

Assim, até mesmo Richard Rorty reconhece o hiato, e a importância do hiato, entre a realidade e a aparência, entre os exercícios dramáticos que podem entreter-nos sem pretenderem dizer a verdade, e aqueles que procuram, e muitas vezes conseguem, a verdade. Rorty chama a isto uma concepção “vegetariana” da verdade. Muito bem, sejamos então todos vegetarianos acerca da verdade. Em qualquer caso, os cientistas nunca quiseram ser uns carnívoros radicais.
5. A verdade pode magoar

Toda a gente deseja a verdade. Quando o leitor se interroga sobre se o seu vizinho o enganou, ou se há peixes nesta área do lago, ou para que lado deve caminhar para chegar a casa, está interessado na verdade. Mas então, se a verdade é tão maravilhosa, por que motivo existe tanto antagonismo em relação à ciência? Toda a gente aprecia a verdade; mas nem toda a gente aprecia os instrumentos científicos de procura da verdade.

Ao que parece, algumas pessoas prefeririam outros métodos mais tradicionais de alcançar a verdade: a astrologia, a adivinhação, os profetas e gurus e xamãs, o transe e a consulta de vários textos sagrados. Nestes casos, o veredicto da ciência é tão familiar que quase nem preciso repeti-lo: enquanto diversões ou exercícios de elasticidade mental, todas estas atividades têm os seus méritos, mas, enquanto métodos para procurar a verdade, nenhum deles pode competir com a ciência — um fato em geral reconhecido tacitamente pelos que defendem a sua prática alternativa favorita através do que afirmam ser a base científica (que outra coisa havia de ser?) dos seus poderes. Nunca encontramos um crente na comunicação com o além a procurar o apoio de uma associação de astrólogos ou de um Colégio dos Cardiais; pelo contrário: exibem-se avidamente todos os farrapos de possíveis indícios estatísticos e qualquer físico ou matemático extraviado que possa oferecer um testemunho favorável.

Mas então por que motivo há tanto pavor, se mesmo os que procuram passar palavra acerca de alternativas apelam regularmente para a ciência? A resposta é amplamente conhecida: a verdade pode magoar. Sem dúvida que pode. Isto não é uma ilusão, mas é por vezes negado ou ignorado por cientistas e outras pessoas que fingem acreditar que a verdade acima de tudo é o bem supremo. Posso facilmente descrever circunstâncias nas quais eu próprio mentiria ou omitiria a verdade para evitar o sofrimento humano. A uma senhora idosa, no fim dos seus dias, nada resta senão as histórias dos feitos heroicos do seu filho — vai o leitor dizer-lhe a verdade quando o seu filho for preso, condenado por um crime terrível e humilhado? Não será para ela melhor deixar este mundo em ignorante serenidade? Claro que é, afirmo eu. Mas note-se que mesmo aqui temos de compreender estes casos como exceções à regra. Não poderíamos oferecer a esta mulher o conforto das nossas mentiras se mentir fosse a regra geral; ela tem de acreditar em nós quando falamos com ela.

É um fato que as pessoas não querem muitas vezes saber a verdade. E é um fato mais inquietante que as pessoas não queiram muitas vezes que os outros saibam a verdade. Mas, tentar transformar estes fatos de forma a que apoiem a ideia estúpida de que a própria fé na verdade é uma atitude humana relativa a certas culturas, situada ou em qualquer caso opcional, é confundir tudo. O pai do acusado que ouve em tribunal os testemunhos contra o seu filho, a mulher que se pergunta se o marido a anda a enganar — eles podem muito bem não querer saber a verdade, e podem ter razão em não querer saber a verdade, mas o fato é que acreditam na verdade; isso é claro. Eles sabem que a verdade está aí, para ser evitada ou abraçada, e sabem que a verdade é importante. É por isso que eles podem muito bem não querer saber a verdade. Porque a verdade pode magoar. Podem conseguir enganar-se a si mesmos, pensando que a atitude que têm nestas ocasiões perante a verdade reflete um defeito da própria verdade, assim como da própria procura e descoberta da verdade — mas se isto acontecer é puro autoengano. O máximo a que podem aspirar agarrar-se é à ideia de que podem existir boas razões, as melhores razões — no tribunal da verdade, note-se — para, por vezes, suprimir ou ignorar a verdade.

Não devíamos, então, considerar a possibilidade de suprimir, em grande escala, a verdade, protegendo assim dos seus efeitos corrosivos vários grupos em situação de risco? Pense no que acontece inevitavelmente quando a nossa cultura científica, e a sua tecnologia, é apresentada a populações que têm até agora sido poupadas às suas inovações. Que efeitos terão os telefones celulares e a MTV e o armamento de alta tecnologia (e a medicina de alta tecnologia para combater os efeitos do armamento de alta tecnologia) nos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo? Sem dúvida, muitos efeitos destrutivos e penosos. Mas não temos de olhar para os artifícios eletrônicos para ver o mal que pode ser cometido. Tijs Goldschmidt, no seu fascinante livro,Darwin’s Dreampond (1996), conta-nos os efeitos devastadores de introduzir a perca do Nilo no Lago Vitória (Uganda): a eptosa espécie de peixes ciclóstomos quase se extinguiu em apenas alguns anos, uma perda catastrófica… isto é, para os biólogos, mas não necessariamente para as pessoas que viviam nas suas margens e que podem agora completar as suas dietas de subsistência com uma nova e abundante pesca. Goldschmidt também descreve, todavia, um efeito cultural análogo: a extinção dos tradicionais cestos sukuma.

Estes cestos à prova de água eram tecidos pelas mulheres e usados nas festas religiosas como vasilhas para consumir vastas quantidades de pombe, uma cerveja de milho [...] Os cestos eram entretecidos, em padrões geométricos de significado simbólico, com folhas de erva tingidas com manganês. Nem sempre era possível descobrir o significado dos padrões porque a introdução do mazabethi — os pratos de alumínio, cujo nome deriva da rainha Isabel, introduzidos em grande escala durante o domínio britânico — foi o fim da cultura masonzo. Falei com uma mulher idosa de uma pequena aldeia que, ao fim de mais de 30 anos, estava ainda revoltada com os mazabethi [...] “Sisi wanawake, nós, as mulheres, costumávamos tecer cestos, sentadas em grupo, ao mesmo tempo em que falávamos umas com as outras. Não vejo nada de mal nisso. Cada mulher dava o seu melhor para tentar fazer o cesto mais bonito que fosse possível. Os mazabethi acabaram com tudo isso.” [pág. 39]

Acho que ainda mais triste é o efeito da introdução de machados de aço junto dos índios panare da Venezuela.

Dantes, quando se usavam os machados de pedra, juntavam-se vários indivíduos, trabalhando em conjunto para cortar árvores para fazer um jardim. Contudo, com a introdução do machado de aço, um só homem pode fazer um jardim sem qualquer ajuda [...] A colaboração já não é obrigatória nem é particularmente frequente. [Sublinhado meu] (Katharine Milton, “Civilization and Its Discontents”, Natural History, Março, 1992, pp. 37-42)

Estas pessoas perderam a sua “estrutura de interdependência cooperativa” tradicional, perdendo também grande parte do conhecimento, acumulado ao longo dos séculos, da fauna e da flora do seu próprio mundo. Muitas vezes as suas línguas extinguem-se numa ou duas gerações. Estas são sem dúvida grandes perdas. Mas que políticas devemos adotar em relação a eles?

Em primeiro lugar, não devemos esquecer o óbvio: quando os povos de culturas tradicionais contatam com a cultura ocidental adotam entusiasticamente quase todas as novas práticas, os novos instrumentos, os novos costumes. Por quê? Porque sabem o que sempre desejaram, valorizaram e ambicionaram, e sentem que essas novidades são melhores meios para os seus próprios fins do que os seus velhos costumes. Os machados de aço substituem os de pedra, os motores fora de borda substituem as velas, a medicina moderna substitui os curandeiros, os radiotransistores e os telefones celulares são avidamente desejados. Estas pessoas não são afinal melhores do que nós a prever os efeitos em longo prazo das suas escolhas, mas, com base na informação de que dispõem, as suas escolhas são racionais.

É sem dúvida verdade que por vezes a “publicidade” espalhafatosa, astuciosamente dirigida às suas noções insulares do que a vida tem para nos oferecer, tira partido da sua inocência. Mas repare-se que esta tática deplorável não é domínio exclusivo dos que os exploram. Aqueles que os querem proteger da tecnologia moderna estão aparentemente preparados para morder a língua e mentir-lhes descaradamente: “Escondam as vossas maravilhas de alta tecnologia! Se lhes derem alguma coisa, impinjam-lhes pérolas de fantasia coloridas ou quaisquer outros nadas que eles possam rapidamente incorporar na sua cultura tradicional.”

É assim que se tratam membros adultos da nossa própria espécie? Não temos todos nós, entre outros direitos humanos, o direito de saber a verdade? É escandalosamente paternalista dizer que devemos isolar estas pessoas dos frutos da civilização. Serão eles como elefantes, para serem postos numa reserva? Acho que devemos tratá-los como tratamos os nossos próprios cidadãos: oferecemos-lhes todos os instrumentos de procura da verdade que temos, de maneira a que possam escolher com base numa opinião informada — se assim o escolherem. É claro que esta política é uma estrada de sentido único. Depois de os termos informado já violamos a sua prístina pureza. Não é possível voltar atrás.

Não é possível ter as duas coisas. Se se trata de humanos adultos, então têm o direito de saber, não têm? Está o leitor realmente disposto a tomar medidas no sentido de lhes impedir o acesso à educação? Mas a educação irá transformá-los completamente. Perderão muitos dos seus velhos costumes. Em alguns casos será um alívio, noutros será, sem dúvida, trágico. Mas que cânone usaria o leitor para definir o que devem e o que não devem perder? Devem preservar os costumes dos últimos 100 anos? Ou dos últimos 10 anos? Ou dos últimos 10 milênios? E, o mais importante de tudo, o que nos daria afinal o direito de os discriminar em relação aos nossos próprios cidadãos?

E já agora, estas restrições autoimpostas são exigidas por quem? Quem é que implora que fechemos as nossas bocas “imperialistas” e que guardemos as chamadas verdades científicas para nós próprios? Não é, em geral, o povo, mas antes os seus autoproclamados líderes espirituais. São eles, e não o seu rebanho, que exigem que o seu rebanho seja protegido das influências corrosivas e irreversíveis da nossa cultura científica da verdade. As pessoas que trabalham nos cultural studies e outras que agitam a bandeira do multiculturalismo deviam deter-se cuidadosamente sobre a seguinte sugestão: a sua política bem intencionada de tolerância das políticas tradicionais que recusam o livre acesso aos instrumentos científicos de procura da verdade é muitas vezes uma política ao serviço dos tiranos — e parece-me que são mais as vezes em que isto é assim do que aquelas em que não o é.

Na nossa cultura, o conceito de consentimento informado é uma das pedras-de-toque da liberdade. Mas o próprio conceito de informar as pessoas para que possam consentir ou não é encarada, noutras culturas, com hostilidade. Na verdade, penso que os líderes políticos terão cada vez mais dificuldades em manter os seus povos num estado de falta de informação. Tudo o que precisamos fazer é continuar a passar a palavra claramente e sempre com o cuidado escrupuloso de dizer a verdade. De fato, não há nada de novo nesta sugestão. Algumas instituições, como a BBC Internacional, têm vindo a fazer precisamente isto, com enorme sucesso, desde há décadas. E ano após ano, a elite de todas as nações do mundo envia os seus filhos para as nossas universidades para aí receberem a sua formação. Eles sabem, talvez melhor do que nós próprios pensamos, que a ciência e a tecnologia da procura da verdade constitui o nosso mais valioso bem de exportação.