As primeiras comunidades cristãs, ao comporem narrativas acerca das atividades religiosas de seu líder, lançaram mão de um vasto conjunto de práticas e conceitos relativos à cura de doenças e à ressurreição dos mortos. Noções judaicas de causa, tratamento e cura de doenças se modificam no interior desses grupos no debate com práticas presentes, por exemplo, nos cultos a Esculápio, Ísis e Serápis. Para além do mundo divino, cura e ressurreição foram associadas, tanto no judaísmo como para além dele, a mortais como Apolônio de Tiana, Hipócrates e Salomão, assim como a figuras públicas como Vespasiano e Pirro. Nos primeiros séculos da Era Comum, este diálogo toma forma através da atribuição do poder de curar exclusivamente a Cristo, o qual inclusive lança mão de outros personagens para exercer milagres. As comunidades cristãs sintetizam, neste único personagem, os papéis do sábio/médico à terapia e à cura.
No mundo antigo grego, conviviam distintas perspectivas sobre o adoecer, tanto no que diz respeito ao agente causador da moléstia quanto no que se refere ao comportamento e à responsabilidade do doente diante dela. No período clássico delineou-se a idéia de corpo físico como dimensão ética da pessoa de maneira que a corporeidade passou a ser objeto tanto de reflexão quanto de ação. O corpo doente ou saudável, como pensado pelos autores de tratados medicinais hipocráticos, é objeto de conhecimento e de controle. Para Brooke Holmes, esses dois aspectos fundamentam uma nova subjetividade e, mais ainda, uma ética do cuidado. A responsabilidade sobre o corpo reconfigura os sentidos sociais e éticos da doença. A documentação antiga grega explorou o tema de maneira extensa. No Hipólito de Eurípedes, encenado em 428 a.E.C. em Atenas, Fedra combate a aflição erótica à qual é submetida por Afrodite com argumentos fundamentados por preceitos políades centrados na fidelidade da esposa.
No século seguinte, Platão identificará, no Timeu, a necessidade da educação e de uma vida de equilíbrio a fim de evitar a calamidade natural que é a doença, a qual é provocada pelo desequilíbrio entre os quatro elementos que compõem o corpo humano. Mais tarde, na Ética a Nicômaco, Aristóteles argumenta sobre a necessidade do paciente de exercer o controle sobre si mesmo e submeter se à autoridade médica. Mais tarde, os estóicos desenvolverão a dimensão ética da doença ao identificarem-na como algo acima das causas naturais e dependente da vontade de uma providência que a tudo governa. A doença seria, assim, não uma calamidade, mas um pequeno incidente na ordem natural das coisas e, diante dela, o homem deve proceder com paciência e resistência. No terceiro século antes da Era Comum, Crisipo, postulava que fazer os homens vulneráveis à doença não é o principal propósito do criador. Contudo, com o objetivo de aquilo que é benéfico para a humanidade, há a necessidade de se permitir a existência da doença.
Enfermidade e saúde estão, assim, natural e intimamente correlacionadas e ambas fazem parte da ordem natural, e, portanto, não podem ser objeto de ansiedade e desespero. A doença deve ser, pelo contrário, tolerada e suportada pacientemente.
Na transcrição dos discursos de Epitecto, composta por seu pupilo Arriano em 108 de nossa era, a tolerância à doença é pensada como atitude indispensável ao tão esperado momento da separação da alma do corpo:
O que significa suportar bem uma febre? Não culpar nem os deuses nem os homens nem se afligir diante do que acontece, mas esperar a morte de maneira boa e elegante e fazer aquilo que deve ser feito. Quando o 76 médico chega, não recear o que ele tem a dizer nem ficar excepcionalmente alegre caso ele diga que você está se recuperando bem e, se ele disser que você está doente demais, não fique desanimado, pois o que significa estar doente demais senão estar próximo da separação do corpo da alma?
Em suas Meditações, compostas já no final do segundo século, Marco Aurélio identifica Zeus como o grande médico sob cuja autoridade nos submetemos quando doentes. É necessário, aceitar tudo que acontece, mesmo aquilo que é mais desagradável, pois leva a tais coisas: a saúde do universo e a prosperidade e felicidade de Zeus. Pois ele não daria a nenhum homem o que ele dá se isso não fosse útil para a totalidade. Nem mesmo a natureza de coisa alguma, qualquer que ela seja, causa o que não é adequado àquilo que é orientado por ela.
Portanto, por dois motivos é correto contentar-se com o que acontece consigo: primeiramente, porque foi feito para si e prescrito para si e, de certa maneira origina-se em si, desde as mais antigas causas que giram em torno de seu destino. Em segundo lugar, porque mesmo aquilo que de mais severo ocorre a todos os homens é, para o poder que governa o universo, motivo de felicidade e perfeição e mesmo o que lhe dá continuidade. Pois a integridade da totalidade é mutilada se tu excluis o que quer que seja da continuidade e da comunhão seja das partes, seja das causas.
No início da Era comum, portanto, a relação do homem com qualquer calamidade pessoal ou coletiva é pensada, por um lado, a partir de uma ética da fatalidade. O doente deve aceitar aquilo que a ordem do universo – identificada por Marco Aurélio como Zeus – lhe oferece de bom ou ruim, pois faz parte de seu funcionamento ótimo, o qual não deve jamais ser constrangido pelo desejo do homem de viver de maneira distinta daquela que a providência estabeleceu. Esse posicionamento foi visto com desdém por Plutarco, o qual escreve:
Para o supersticioso, toda enfermidade do corpo, toda perda de dinheiro ou de filhos... é chamada de praga dos deuses e o assédio de algum demônio. O indivíduo não se aventura a se ajudar, pois isso significaria lutar contra os deuses... se alguém está doente, afasta o médico e exclama: “deixe-me sozinho para sofrer minha punição, ímpio e desgraçado como sou, detestado por deuses e demônios”.
Apesar do posicionamento passivo e tolerante por parte de homens como Marco Aurélio, uma parcela considerável dos indivíduos via como impossível adotar tal postura. A doença era, nesse contexto, uma grande calamidade, não um evento normal e adequado no funcionamento da maquinaria do universo. Era, sim, uma característica perturbadora e aberrante desse mecanismo. Originada fora do homem, ela era resultado da fúria de uma divindade ou da possessão por um demônio. Diante da enfermidade, o homem tinha como único remédio o acesso direto ao seu agente causador: o apelo ao deus ou a expulsão do demônio. Súplica e eliminação figuravam, desta maneira, como ações alternativas diante dos agentes causadores da moléstia. Num mesmo universo religioso, para o qual a ordem do mundo é regida por uma inteligência de autoridade acima da humana, acima do indivíduo e da pólis, duas atitudes perante a desgraça se estabeleciam: tolerância, complacência e submissão, por um lado, e súplica, exigência e expulsão, por outro.
Tais atitudes dúbias perante a doença estão associadas à popularidade de santuários em honra a deuses como Ísis, Serápis e Esculápio e à figura do curandeiro, do mago como médico. Espaços devocionais e indivíduos que curam são desta maneira, elementos-chaves para o desenvolvimento, no interior de grupos cristãos, da personagem do devoto que cura imbuído do espírito divino.
O vínculo entre devoção, doença e cura presente no cristianismo desenvolve se a partir de concepções gregas como as anteriormente descritas e noções judaicas sobre as quais podemos ler no Pentateuco. Por um lado, a dor do parto será a punição conferida a Eva e ela e Adão serão expulsos do paraíso divino para que não comam da árvore da vida e vivam como imortais (Gênesis 3, 16; 22-24).
Em seguida, o limite de 120 anos para a vida humana – responderá à união ilícita entre as filhas dos homens e os filhos de Deus (Gênesis, 6, 1-3). Mas o deus do Pentateuco não é apenas aquele que se utiliza da doença como instrumento de punição do homem. Ele também tem o poder de distribuir saúde a quem lhe convém. No Êxodo, é dito que Iahweh livrará aqueles que o obedecerem de todas as pragas e doenças:
se ouvires atento a voz de Iahweh teu Deus e fizeres o que é reto diante dos seus olhos, se deres ouvidos aos seus mandamentos e guardares todas as leis, nenhuma enfermidade virá sobre ti, das que enviei sobre os egípcios. Pois eu sou Iahweh, aquele que te restaura. (Êxodo, 15, 16)
O judaísmo antigo associava, portanto, o distanciamento da divindade à dor, à doença e à morte e a submissão a ela como única garantia da vida e da saúde. O “Iahweh que restaura” o faz tão-somente quando obedecido, quando identificado como aquele que orienta o homem na melhor maneira de viver. No primeiro século da Era Comum, Fílon sintetiza essas concepções:
Essas coisas são a recompensa pela impiedade e a iniqüidade. Há doenças físicas que afligem e devoram cada membro e cada parte separadamente e que também atormentam e torturam o corpo com febres e calafrios e debilitações terríveis e também convulsões espasmódicas dos olhos e ferimentos e abscessos putrefatos.
As primeiras comunidades cristãs combinaram as concepções éticas sobre a doença e a saúde advindas do mundo grego e judaico ao interpretarem a doença como um sinal do desgosto divino. Diante da possibilidade de tornar-se doente, o devoto deve submeter-se à vontade de deus a fim de conservar a saúde e a vida.
Quando Jesus encontra-se diante do paralítico de Cafarnaum, seus pecados precisam ser perdoados antes da cura (Evangelho de Marcos 2, 5-12). Em outra ocasião, Jesus cura um doente que, como tantos outros, se encontrava prostrado diante do tanque de Betesda. Ao reencontrar o homem, tempos depois, Jesus exclama: Eis que estás curado; não peques mais para que não te suceda algo pior!
(Evangelho de João 5, 1-14). Decerto, em nenhum momento é explicitado se o pecado era a causa dessas doenças. Contudo, a julgar pela afirmação paulina de que a doença e a morte de certos membros da igreja de Corinto figuravam como castigo de deus por conta da inobservância da Ceia do Senhor (Primeira Epístola aos Coríntios 11, 30-32), é possível afirmar que as primeiras comunidades cristãs associavam transgressão e doença de maneira, senão causal, relacional. O mau funcionamento do homem como ser social compõe a dimensão física do mau funcionamento do corpo.
Como no mundo grego, comunidades cristãs também identificavam a ação demoníaca como causa das enfermidades. No Evangelho de Mateus (9, 32; 12, 22), mutismo e cegueira são atribuídos à ação demoníaca, a qual é neutralizada pelo exorcismo praticado por Jesus. Em outra ocasião, narrada no Evangelho de Marcos (9, 17), os discípulos tentam expulsar o demônio que possuía um menino epilético e mudo, mas não obtêm sucesso e ele é curado quando Jesus executa o exorcismo.
Além dessa compreensão da doença como resultado da ação de um demônio que possui o doente, outras enfermidades são concebidas numa relação diferente com o mundo demoníaco. Uma febre pode ser “conjurada”, “repreendida”, da mesma maneira que se “repreende um espírito”, como narrado no Evangelho de Lucas (4, 39). No mesmo documento, uma mulher encontra-se inválida devido à possessão por um espírito e, ao ser tocada por Jesus, este lhe informa: Mulher, estás livre de tua doença (Evangelho de Lucas 11, 13). O agente demoníaco, espiritual é, portanto, a própria doença. Ao dirigir-se a um, atinge-se o outro e, quando um é expulso, o outro simultaneamente desaparece.
O sintoma, para as primeiras comunidades cristãs, originado externamente, ocupava, contaminava o indivíduo e submetia-o a vontades próprias que alienavam o homem e retiravam-no do contexto social. Neste sentido, a concepção cristã da doença como a possessão por uma inteligência externa assemelha-se às idéias clássicas do interior do corpo como dimensão desconhecida, perigosa e de onde advêm impulsos, movimentos e dores que não são reconhecidos como originados na pessoa. Brooke Holmes denomina esse espaço de “cavidade”, a qual não se refere nem ao lugar em que o herói homérico oculta “palavras aladas” nem a um elemento da anatomia humana. A cavidade é, pelo contrário, um espaço em grande medida além daquilo que o médico pode ver e, crucialmente, abaixo do limiar da consciência. Esse espaço interior inacessível à pessoa é, no mundo cristão, um dos lugares da ação divina cujo objeto de interesse é o homem. Na Segunda Epístola aos Coríntios lemos a narrativa da doença de Paulo como sinal da ação divina por intermédio de Satanás: Para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne – um anjo de Satanás para me espancar – a fim de que eu não me encha de soberba. A esse respeito três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim. Respondeu-me, porém: “Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder”. Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo. Por isto, eu me comprazo nas fraquezas, nos opróbrios, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por causa de Cristo. Pois quando sou fraco, então é que sou forte. (Segunda Epístola aos Coríntios 12, 7-10).
Aqui, a vontade divina toma a forma da doença e, para ser exercida, lança mão do mundo demoníaco como instrumento de ação. Nesse sentido, a doença ganha um caráter benéfico para o indivíduo, pois é através dela que este se torna objeto de atenção por parte do mundo divino. Diferentemente da concepção estóica em que a ordem do mundo depende de situações desagradáveis ao indivíduo, como no caso das enfermidades, a atitude de passividade cristã diante da doença é entendida como determinante, não para a totalidade ou a comunidade, mas para o indivíduo. Não é o universo que depende da ação, por vezes desfavorável ao homem, por parte da vontade dos deuses. O indivíduo é, não apenas, a vítima e o objeto de atenção divina. No mundo grego, como vemos na tragédia clássica, a possessão ocorre para que o desejo da divindade se cumpra e essa não traz qualquer benesse para o indivíduo. Na documentação paulina, a possessão pode ter um valor positivo, mesmo se toma a forma de doença, pois age de maneira repressora e educativa. A dimensão ética da doença não está numa relação de causa e efeito entre ação transgressora e sintoma, mas sim entre o sintoma e o comportamento esperado pela divindade.
O papel do curandeiro, desempenhado seja por Jesus, seja pelos apóstolos, tem por sua vez uma longa trajetória. Deuses como Esculápio, Ísis e Serápis exerciam atividades medicinais, inclusive através de prescrições emitidas em sonhos aos doentes. Ao dormir, o doente encontrava-se com a divindade e esta praticava a cura ao medicá-lo, operá-lo ou tocá-lo. Em outras situações, a atividade divina limitava-se a prescrever uma série de exercícios, alimentos, medicamentos e hábitos a fim de promover o restabelecimento do doente. A prática da incubação nos templos de Esculápio persistiu até 450 da Era Comum no santuário de Atenas, sobre o qual foram construídas sucessivas basílicas cristãs depois da eliminação do culto original. Muitas das práticas presentes nas Asklepiaia no período clássico podem ser conhecidas pelos Hieroi Logoi, um conjunto de orações compostas por Élio Aristides de Esmirna cerca de 170 da Era Comum. Aristides fora internado por diversas vezes ao longo de sua vida no santuário de Esculápio em Pérgamo e, sob as ordens do deus, registrou num diário suas experiências. Ao final da vida, os diários convertem-se em fonte para a composição dos Hieroi Logoi, obra na qual o devoto de Esculápio escreveu sobre as diversas moléstias que o acometeram, suas experiências religiosas, sociais e intelectuais no Asklepieion e as prescrições médicas emitidas pelo deus em sonhos. Essas incluíam passeios sem sapatos na neve, banhos, purgas, jejuns e o uso de diversos medicamentos cuja receita era também informada pelo deus.
Segundo Diodoro da Sicília, o qual escreve no último século antes da Era Comum, o mesmo tipo de atividade era atribuído a Ísis, Segundo ele, os egípcios acreditavam que a deusa teria descoberto muitos remédios e, quando se tornou imortal, passou a curar e a ensinar aos homens, em sonhos, como eles poderiam ser curados das enfermidades que os acometiam. Os santuários em honra ao sincrético Serápis também eram lugares para onde os doentes se dirigiam para sonhar com o deus e obterem cura para suas doenças. No segundo século da Era Comum, Arriano de Nicomédia narra como sete dos amigos de Alexandre, quando este se encontrava doente, dormiram no templo de Serápis para saber do deus se era aconselhável levá-lo para lá. A resposta foi negativa e em seguida Alexandre morreu, de maneira que sua morte foi entendida como se tivesse sido previamente profetizada.
O poder de curar não era exclusividade dos deuses no mundo Greco-Romano. Mais do que isso, ele podia se estender à habilidade em ressuscitar os mortos, numa radicalização absoluta do papel desempenhado pelo curandeiro, cuja identidade é redefinida pela do mago. Aos magos e feiticeiros era atribuída o poder de curar todos os tipos de doenças e de levantarem os mortos, como, no século I E.C., sintetiza Lucano. Ele escreve sobre uma mulher da Tessália chamada Ericto, procurada por Sextus, filho de Pompeu, a fim de obter o conhecimento sobre o futuro. Para isso, Ericto promove o retorno da alma ao corpo de um soldado morto ao convocar o fantasma das regiões inferiores e forçá-lo a entrar no cadáver e a falar:
Então o sangue quente e líquido com um toque suave acariciou os ferimentos enrijecidos e preencheu as veias até que vibrasse mais uma vez o pulso que lentamente retornava. E toda fibra estremeceu como se com a morte a vida tivesse se combinado. Então, não membro por membro, de maneira trabalhosa e com grande esforço, mas elevando-se de uma vez só, num salto o homem vivo se levantou da terra. Seus olhos brilhavam num clarão feroz e a vida era débil. Sobre sua face ainda restavam as pálidas matizes da morte recém-expulsa. Ele foi tomado de assombro, há pouco trazido de volta à terra: mas de seus lábios retesados não saia qualquer murmúrio. Apenas ele tinha poder de responder quando questionado. “Fale”, disse a mulher da Tessália, “pois te recompensarei.
Será grande o teu ganho se me responderes sinceramente e também livre de qualquer arte da Tessália. Este túmulo deve ser agora seu e em sua pira funerária tantas toras fatais devem queimar, tantos cantos devem ser entoados que nada mais, nem nenhum outro encantamento ou feitiço irá alcançá-lo. Assim, seu sono do Letes não será jamais perturbado novamente por uma morte recebida por mim há pouco. Por tal recompensa não considere esta segunda vida como algo forçado e em vão. As respostas dos deuses dadas pela sacerdotisa no sagrado santuário podem ser obscuras. Mas aqueles que enfrentam os oráculos da morte em busca da verdade devem ser respondidos de maneira clara. Portanto, fale, eu te rogo. Permita que a fortuna oculta fale através de tua voz sobre os mistérios do porvir”.
A bruxa da Tessália é procurada por Sextus a fim de desvendar um futuro sombrio: o morto profetiza derrota de Pompeu, a ser descrita no Livro Oitavo da obra. A ressurreição é neste caso, apenas um instrumento político, pois através dela, é dado a conhecer o desenvolvimento dos conflitos.
Em certas situações o elemento mágico está ausente e o curandeiro tem o poder de detectar os vestígios de vida no corpo de alguém dado como morto e lhe restaurar a vida, habilidade utilizada como sinal do grande poder. No primeiro século de nossa era, Plínio escreve sobre o médico Asclepíades de Prusa o qual invadira um funeral para o qual não fora convidado e salvara a vida do morto, cujo corpo já havia sido colocado sobre a pira. No século seguinte, Apuleio estende a narrativa:
Uma vez, por um acaso, quando ele estava voltando para a cidade vindo de sua casa no campo, viu uma enorme procissão funerária nos subúrbios da cidade. Uma imensa multidão de homens que foram prestar as últimas honras ao morto encontravam-se próximos ao carro fúnebre, todos imersos em grande tristeza e vestidos em trapos. Ele perguntou de quem era o funeral, mas ninguém respondeu. Então, se aproximou para satisfazer sua curiosidade e ver quem poderia ser aquele que estava morto, ou, quem sabe, na esperança de descobrir algo do interesse de sua profissão. De qualquer forma, ele arrebatou o homem das presas da morte, prestes a ser enterrado. Os membros do pobre sujeito já estavam cobertos de ervas e sua boca preenchida por um ungüento de doce perfume. Ele havia sido untado e tudo estava pronto para a pira. Mas Asclepiades olhou para ele e, cuidadosamente, tomou ciência de certos sinais. Manipulou seu corpo algumas vezes e percebeu que ainda havia vida nele, apesar da dificuldade em detectá-la. Rapidamente, ele exclama:
“Ele vive! Larguem as tochas, levem embora o fogo e ponham abaixo a pira. Levem de volta o banquete funerário e estendam-no sobre sua mesa em casa”. Enquanto ele falava, surgiu um burburinho; alguns diziam que era preciso confiar nas palavras do médico enquanto outros zombavam de sua habilidade. Finalmente, apesar da resistência até mesmo de alguns de seus parentes, talvez porque já haviam se apropriado dos bens do morto, talvez por não acreditarem ainda em suas palavras, Asclepiades os persuadiu a adiar o enterro por um breve momento. Tendo-o resgatado das mãos do responsável pelo funeral, ele levou o homem para casa como se o tivesse tirado da própria boca do inferno, e rapidamente fez com que seu espírito revivesse e, através de certos medicamentos, convocou a vida que ainda existia escondida nos lugares ocultos de seu corpo. (Florida 19) Alguns homens podiam exercer curas de maneira tão milagrosa quanto aquelas encontradas nos santuários dos deuses. No início da Era Comum, Plutarco narra como o general Pirro de Épiro, o qual vivera no século III antes da Era Comum, era capaz de curar o baço ao pressionar o corpo dos doentes com seu pé direito. Acreditava-se que o dedão de seu pé direito detivesse uma virtude divina, pois depois de sua morte, quando seu corpo todo havia sido queimado, ele permaneceu intacto. Tácito, o qual escreve na mesma época de Plutarco, discorre, por sua vez, sobre o poder do imperador Vespasiano de curar: Entre os pobres de Alexandria havia um homem que todos sabiam ser cego. Um dia ele se atirou aos pés de Vespasiano, implorando-lhe com gemidos que curasse sua cegueira. Ele havia sido instruído por Serápis para dirigir-lhe essa súplica, o deus favorito de uma nação muito agarrada a estranhas crenças. Ele perguntou se o imperador poderia untar seu rosto e olhos com a saliva de sua boca. Um outro suplicante, o qual sofria de atrofia numa mão, também implorou ao imperador por orientação de Serápis que César o tocasse com seu pé imperial.
A princípio, Vespasiano riu e recusou-se. Quando eles insistiram, ele hesitou. Por um momento, ficou preocupado em ser acusado de vaidade, caso falhasse. Depois, os apelos urgentes das vítimas e das pessoas em volta do imperador fizeram-no desejar executar se curas. Finalmente, ele solicitou a opinião dos médicos sobre se uma cegueira e uma atrofia daquele tipo poderiam ser curadas por meios humanos. Os médicos foram eloqüentes sobre várias possibilidades. A visão do homem cego não estava completamente destruída e se certos impedimentos fossem removidos, sua visão retornaria. O membro da outra vítima havia sido deslocado, mas poderia ser colocado no lugar com o tratamento correto.
Talvez aquela fosse a vontade dos deuses, eles acrescentaram; talvez o imperador tivesse sido escolhido para exercer um milagre. De qualquer maneira, se houvesse cura, o crédito iria para ele. Se ela não acontecesse, os pobres coitados teriam que suportar o ridículo.
Então, Vespasiano pressentiu que o destino lhe fornecido a chave para todas as portas e que nada agora desafiava a crença. Com uma expressão sorridente e cercado por uma multidão ansiosa de expectadores, ele fez o que lhe era pedido. Instantaneamente, o aleijado recuperou o movimento da mão e a luz do dia raiava novamente para seu companheiro cego.
A proximidade do homem de um deus podia garantir-lhe o poder de curar e até mesmo de ressuscitar. Filóstrato narra como Apolônio de Tiana, o qual vivera no primeiro século de nossa era, curou um rapaz possuído por um demônio. Em diferentes momentos, um homem manco, outro cego e outro com uma mão atrofiada, foram curados. Em Atenas, perturbado pela presença de um jovem possuído, Apolônio o encarou e o demônio gritou com medo e ódio. Ao fim, o demônio declarou que sairia do corpo do rapaz e jamais possuiria ninguém. Quando Apolônio ordenou que saísse e demonstrasse de maneira visível que não mais possuía o jovem, o demônio obedeceu fazendo tombar uma das estátuas do pórtico. Em seguida, o possuído esfregou os olhos como se tivesse sido acordado de um sonho e estava perfeitamente curado. No mesmo documento, Filóstrato narra como Apolônio, como Asclepiades, teria restaurado a saúde de uma jovem que aparentemente morrera durante seu casamento. Nessa narrativa, contudo, há certa dúvida se a jovem estava realmente viva ou se já havia morrido quando Apolônio se aproximou dela:
Uma moça morrera bem na hora de seu casamento e o noivo seguia o carro funerário em lamento como era natural por não ter consumado o matrimônio. Toda Roma lamentava ao seu lado, pois a donzela pertencia a uma família de cônsules. Então, Apolônio, vendo sua tristeza, disse: “Desçam o carro, pois eu cessarei as lágrimas derramadas por vocês por esta jovem”.
Ainda assim, ele perguntou qual era o seu nome. A multidão pensou que ele faria uma oração, como era comum para compor o funeral e para provocar o lamento. Contudo, ele não fez nada disso, mas apenas tocando-a e sussurrando em segredo algum encantamento sobre ela, de uma vez só acordou a jovem da morte aparente. E a jovem falou em bom som e retornou à casa paterna, exatamente como Alceste fez quando ressuscitada por Héracles. E os parentes da jovem quiseram presenteá-lo com a soma de 150.000 sestércios, mas ele disse que doaria o dinheiro para a jovem na forma de dote.
Bem, se ele detectou alguma fagulha de vida nela, a qual não fora notada por aqueles que cuidavam da jovem – pois foi dito que apesar de estar chovendo no dia, um vapor saía de sua face – ou se sua vida estava realmente extinta e ele a restaurara pelo calor de seu toque, é um mistério que nem eu nem aqueles que estavam presentes puderam esclarecer.
A dúvida sobre o estado do homem dado como morto foi objeto de reflexão dos primeiros autores cristãos. Aqueles que ressuscitam não estão mortos, mas dormem. No Evangelho de Marcos, é narrado como Jesus fora abordado por Jairo, o qual rogou que salvasse sua filha, a qual estava à beira da morte. Ao chegar à casa, Jesus exclama: “Por que este alvoroço e este pranto? A criança não morreu; está dormindo”. A narrativa segue até a recuperação da menina: E caçoavam dele. Ele, porém, ordenou que saíssem todos, exceto o pai e a mãe da criança e os que o acompanhavam, e com eles entrou onde estava a criança. Tomando a mão da criança, disse-lhe: “Talítha kum”- o que significa: “Menina, eu te digo, levanta-te”. No mesmo instante, a menina se levantou, e andava, pois já tinha doze anos. (Evangelho de Marcos, 5, 39-43).
O mesmo sentido encontra-se na narrativa de ressurreição de Lázaro, presente no Evangelho de João. Ao encontrá-lo Jesus exclama: “Nosso amigo Lázaro dorme, mas vou despertá-lo”. A narrativa prossegue: Os discípulos responderam: “Senhor, se ele está dormindo, vai se salvar!”. Jesus, porém, falara de sua morte e eles julgaram que falasse do repouso do sono. Então Jesus lhes falou claramente: “Lázaro morreu. Por vossa causa, alegro-me de não ter estado lá, para que creiais. Mas vamos para junto dele!” Tomé, chamado Dídimo, disse então aos outros discípulos: “Vamos também nós, para morrermos com ele!”
Ao chegar, Jesus encontrou Lázaro já sepultado havia quatro dias. Betânia ficava perto de Jerusalém, a uns quinze estádios. Muitos judeus tinham vindo até Marta e Maria, para consolá-las da perda do irmão. Quando Marta soube que Jesus chegara, saiu ao seu encontro; Maia, porém, continuava sentada, em casa. Então, disse Marta a Jesus: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido. Mas ainda agora sei que tudo que pedires a Deus, ele te concederá”. Disse-lhe Jesus: “Teu irmão ressuscitará”. “Sei, disse Marta, que ele ressuscitará na ressurreição, no último dia!” Disse-lhe Jesus:
“Eu sou a ressurreição. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá. Crês nisso?” Disse ela: “Sim, senhor. Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que vem ao mundo”.
Tendo dito isso, afastou-se e chamou sua irmã Maria, dizendo baixinho: “O Senhor está aqui e te chama!” Esta, ouvindo isso, ergueu-se logo e foi ao seu encontro. Jesus não entrara ainda no povoado, mas estava no lugar em que Marta o fora encontrar. Quando os judeus, que estavam na casa com Maria, consolando-a, viram-na levantar-se rapidamente e sair, acompanharam-na, julgando que fosse ao sepulcro para aí chorar.
Chegando ao lugar onde Jesus estava, Maria, vendo-o, prostrou-se a seus pés e lhe disse: “Senhor, se estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”. Quando Jesus a viu chorar e também os judeus que a acompanhavam, comoveu-se interiormente e ficou conturbado. E perguntou: “Onde o colocastes?” Responderam-lhe: “Senhor, vem e vê!” Jesus chorou. Diziam, então, os judeus: “Vede como ele o amava!” Alguns deles disseram: “Esse, que abriu os olhos do cego, não poderia ter feito com que ele não morresse?” Comoveu-se de novo Jesus e dirigiu-se ao sepulcro. Era uma gruta, com uma pedra sobreposta. Disse Jesus: “Retirai a pedra!” Marta, a irmã do morto, disse-lhe: “Senhor, já cheira mal: é o quarto dia!” Disse-lhe Jesus: “Não te disse que, se creres, verás a glória de Deus?” Retiraram, então, a pedra. Jesus ergueu os olhos para o alto e disse: “Pai, dou-te graças porque me ouviste. Eu sabia que sempre me ouves; mas digo isso por causa da multidão que me rodeia, para que creiam que me enviaste”. Tendo dito isto, gritou em voz alta: “Lázaro, vem para fora!” O morto saiu, com os pés e mãos enfaixados e com o rosto recoberto com um sudário. Jesus lhes disse: “Desatai-o e deixai-o ir embora”. (Evangelho de João 11, 11-44).
A certeza de que Lázaro encontra-se vivo, identificada pela fala atribuída a Jesus, não é capaz de amenizar a ambigüidade da situação apresentada logo nas primeiras linhas da narrativa de ressurreição. “Lázaro dorme” é corrigido por “Lázaro morreu” e a observação sobre seu corpo sepultado há quatro dias, já em estado de putrefação. O importante, no entanto, não é o estado no qual o personagem se encontra – como no caso da jovem “ressuscitada” por Apolônio de Tiana – mas, sim, a habilidade inquestionável do curandeiro em restaurar a vida. Estamos diante, portanto, do modelo clássico de theios anér), o homem cuja proximidade com o mundo divino e uma sabedoria oculta lhe permite praticar milagres.
Essa intimidade com a divindade confunde se com o conhecimento de como essa atua no mundo mortal e, principalmente, a respeito do instrumental sobrenatural do qual lança mão a fim de afetar os homens. Neste sentido, cura, ressurreição e expulsão de demônios figuram como valores análogos, cuja pedra de toque é a identidade do agente causador do mal: deus, doença, demônio. A circulação desses elementos entre um mundo marcadamente politeísta e outro, de matriz judaica, não foi sintetizada exclusivamente pela presença do curandeiro sagrado na documentação cristã. No primeiro século e em meio judaico, Josefo escreve aos gentios que, nesse sentido, Salomão não era nada inferior aos seus sábios:
(...) deus também permitiu que Salomão aprendesse a arte de expulsar demônios, a qual é ma ciência útil e salutar para os homens. Ele também proferiu encantamentos através dos quais doenças eram aliviadas e deixou como herança a maneira de se utilizar de exorcismos através dos quais afastar demônios para que eles nunca retornem e esse método de cura é um grande poder, mesmo hoje em dia.
A narrativa de Josefo, utilizada como argumento contra a exclusividade do mundo Greco-romano em prover homens sábios com a habilidade de curar, nos remete ao problema da associação entre possessão e doença. Em meios cristãos, ambos se tornarão veículos para o exercício da vontade divina no mundo, através de curas empreendidas por Jesus e seus seguidores. Como no mundo grego, cura e doença têm origem divina. Entretanto, no cristianismo, o objeto último de interesse do deus não é a ordem do mundo, mas uma mudança interior nas concepções de mundo e atitudes do indivíduo. Como no mundo judaico, a doença é fruto da vontade divina, inclusive de maneira punitiva, e a possessão demoníaca germina seus sintomas. Por outro lado, no cristianismo, como no mundo Greco-romano, o exercício do poder de cura se dá pela proximidade entre o curandeiro e a divindade, seja essa proximidade entendida como intimidade e combinação de vontades ou entendida como filiação e mesmo identidade com o divino.