segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

As Investigações sobre o Jesus histórico. André Chevitarese


André Leonardo Chevitarese possui Graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – 1986), Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – 1989), Doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP – 1997) e Pós-Doutorado em História e Arqueologia, pela Universidade de Campinas (UNICAMP – 2003). Atualmente é Professor Associado I da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga Grega, Romana, Judaísmo Helenístico e Paleocristianismo.

1) Quais as perspectivas no Brasil, a cerca das investigações do Jesus histórico?
Há várias perspectivas em andamento. A primeira delas é o fato de que nos últimos dez anos, em diferentes universidades brasileiras, independentes de serem elas públicas ou privadas, grupos de pesquisas estão se consolidando no sentido de buscarem, por meios estritamente acadêmicos e científicos, um conjunto de resposta sobre a figura de Jesus, sobre os primeiros seguidores de Jesus, bem como a forma como essas comunidades cristãs foram constituídas. Esse é o primeiro aspecto que eu acho fundamental. O segundo é que esses grupos de pesquisas, pelo menos boa parte dos que eu conheço, adotam uma postura extremamente rica, na medida em que se colocam campos de experimentação transdisciplinar, isto é, historiadores, filósofos, teólogos, antropólogos se reúnem para debater essas questões em torno de um cristianismo original. Então as idéias tendem a ser muito mais ricas e plurais. O terceiro ponto, associado ao enorme esforço de um grande número de pessoas nesse país, diz respeito a ampliar de forma extremamente significativa o leque fundamental para se entender e estudar esse cristianismo originário, no geral, e o Jesus Histórico, no particular. Quer dizer os textos neotestamentários continuam decisivos, porém outros documentos passam a interagir advindos da cultura material e da epigrafia ganham relevâncias. Documentos imagéticos também ganham importância nesses grupos de pesquisas. Em suma, na última década, no Brasil, tem-se ajudado a consolidar e a formar grupos que eu diria que estão extremamente antenados com o que se trata nas pesquisas mundiais, mais que aqui trazem algumas novidades, já que rompem com determinados ranços ou panelinhas, a coisa não é mais o historiador, o teólogo, o filósofo; são campos mais transdisciplinares. Os intelectuais estão mesmos dispostos a avançar nas pesquisas e não demarcar seus respectivos territórios.

2) Sabendo da sua experiência em Arqueologia, quais são as principais contribuições da Arqueologia para historicização da figura de Jesus?
Eu vou dar um exemplo que pode sistematizar bem essa questão. Há uma passagem em João 5:1-9 bastante conhecida porque ela diz respeito a um individuo com problemas de saúde, de movimento, que está há anos com esse problema, tentando entrar na piscina de Betesda. Jesus se aproximar dele e o cura, sem que ele precise entrar nessa piscina. Isso é a leitura (teológica) do texto. Mas, essa piscina, descoberta quando da ampliação de uma casa no contexto de Jerusalém no final do século XIX, foi escavada em meados do século XX. Para surpresa dos arqueólogos, alguns dados vieram à tona: o primeiro deles é que essa piscina faz parte de um complexo ligado ao santuário de Serápis (Asclépio) que era o deus associado à cura. Ela tem muito pouco (pelo menos o que foi escavado) haver com o ambiente estritamente judaico. Talvez, por isso, Jesus não mandou o homem mergulhar na piscina; ele o curou ali mesmo na borda. Este era um santuário do deus da cura, Asclépio, e parece ter muito mais relação com as guarnições multiétnicas romanas estacionadas em Jerusalém, o que não quer dizer que ele também não possa ter atendido a judeus helenizados. Segundo dado é que João fala na passagem em questão que essa piscina tinha cinco pórticos, contudo os arqueólogos verificaram que os tais cinco pórticos são resultados de uma ampliação da piscina realizada no século II, pelas estruturas arquitetônicas aplicadas, pelo tipo de cimento, pela argamassa. Eles associaram os tais cinco pórticos a uma realidade do século II, do que propriamente a do século I. Neste sentido, os dados arqueológicos permitem ao pesquisador pensar para essa passagem uma possível “interpolação”, isto é, o redator final, pelo menos nesta passagem específica, está longe de ser alguém do século I. Trata-se de alguém preso ao século II, que olha aquela realidade que lhe é dada e a projeta como sendo a de Jesus. Mas, na verdade, aquele complexo já tinha sido ampliado e o redator final não tinha conhecimento disso. Fica, então, nessa passagem, um vestígio, uma pista para nós de que a mão que produziu esse texto é a de um interpolador tardio, que intervém no texto, ampliando-o. Essa intervenção nos ajuda a datar a própria passagem. Terceiro, e ai já é um problema relacionado aos manuscritos. Os mais antigos não falam de um anjo que movimenta as águas. Essa ação que faz com que a água se movimente, onde o primeiro homem a pular dentro da piscina ficaria curado, parece ter muito pouco haver com o judaísmo e mais com os rituais de cura de Serápis / Asclépio, onde todos ficavam deitados, esperando o deus passar; e, ao passar, ele produz um movimento, fazendo as pessoas crerem que estavam sendo curadas pelo deus. Vê-se, então, que uma simples passagem abre um enorme espectro de análise. A arqueologia mostra que os dados relativos à piscina de Betesda se inserem num contexto de tempo de Serapis, o qual nada tem haver com o Judaísmo e sim com o politeísmo. Os tais cinco pórticos seriam o resultado de uma expansão do complexo no século II; e, terceiro “o anjo se mexer” está associado a manuscritos mais tardios, já que os mais antigos não mencionam isso. São pequenos detalhes, pequenas pistas, que, as vezes, estão claros, não precisando muito da Arqueologia. Tem uma passagem onde Marcos (2:1-12) menciona quatro amigos carregando um colega paralítico. Eles tentam chegar até Jesus, mas não consegue. Há uma multidão em torno da casa e eles organizam um estratagema, qual seja, o de colocar o amigo no interior da casa, onde estava Jesus. Assim, eles abrem um buraco no teto da casa e descem a maca. Ora, a mesma passagem em Lucas (5:17-20) fala que os amigos ao chegarem na parte de cima da casa, a destelharam. Essa pequena diferença tem levado muitos a pensar que Marcos estava mais próximo de um ambiente de uma Galiléia judaica, onde a imensa maioria das casas eram simples e pobres, onde quase todas não deixaram vestígios (os materiais utilizados nas construções eram altamente perecíveis). O tempo se encarregou de levá-los. Ao mesmo tempo, a realidade de Lucas, um autor, cujo grego era absolutamente diferenciado, faria parte de uma “classe média e / ou abastada”, que não viveria em casas de barros e tetos de palha, mas que teriam, o que as aproximaria de um contexto grego urbano. Em tais áreas, o uso de telhas era bastante comum. Uma simples passagem parece mostrar que esse nosso autor Lucas já projeta uma realidade de uma Galiléia ou mesmo de uma Judéia que era muito mais grega que propriamente judaica. Arqueologia, sobre muitos aspectos, nos dá ótimas pistas, não para dizer que uma passagem bíblica está errada. É claro que a Arqueologia não existe pra isso, mas ela projeta luzes sobre essas passagens, de modo que a gente possa ver toda uma série de outras questões que a superfície do texto não nos permite ver. Porque o olhar arqueológico é muito mais profundo do que uma leitura chapada, como normalmente a gente faz.

3) Como relacionar Arqueologia e História nas pesquisas acadêmicas brasileiras?
Isso é uma questão absolutamente interessante porque fala de duas disciplinas que, para as pesquisas relacionadas tanto a judaísmo quanto a cristianismo, precisam comparecer. É BM insistir nesse tema, logo de início: tratam-se de duas disciplinas. É extremamente importante que quem se interessa em agregar dados arqueológicos à sua pesquisa tenha a clareza que a Arqueologia não é ama da História, ela não é aquela ama de leite que coloca o seio para fora de forma que o historiador vá beber dessa fonte. Ao contrário, a Arqueologia, enquanto disciplina, possui métodos e teorias claros e definidos. O historiador, ao ir ao texto arqueológico, precisa compreender que esse texto vai produzir informações que podem: primeiro, confirmar o que a História tem a dizer; segundo, contradizer o que o texto está dizendo; e terceiro, a Arqueologia pode, em parte, sustentar um argumento do historiador e em parte, negá-lo. Portanto, o historiador compreendendo e respeitando a disciplina arqueológica saberá estabelecer, se bem preparado, todos os contrapontos, elucidar todas as questões levantadas a partir do encontro que ele próprio tomou iniciativa de fazer.
Incomoda-me, muitas vezes no mercado editorial, a existência de publicações onde há muito mais ignorância do que propriamente compreensão. Há livros do tipo “e a Bíblia tinha razão” ou “a bíblia não tinha razão” a partir de relatos arqueológicos. Para mim, todos eles são uma grande bobagem, já que, em ambos os casos, o cerne desses trabalhos é lançar mão da cultura material apenas e tão somente para ilustrar e / ou confirmar ou não um relato bíblico. Como se um arqueólogo, quando faz uma escavação, tivesse em mente que com esse dado ele queria confirmar que a bíblia tinha razão ou prová-la a sua falta de razão. Um arqueólogo sério não trabalha assim. Portanto quando se pensa num diálogo entre história e arqueologia é indispensável que o historiador entenda a arqueologia como uma ciência com todas as suas especificidades, caso contrário é melhor não usá-la porque ela será uma ama de leite a amamentar o historiador que quer simplesmente ilustrar o seu grande saber.


4) De que forma, você como profissional da área de História antiga, acredita que seja possível levar a antiguidade para além dos bancos da academia?
Eu acho que é possível sim. Primeiro é preciso romper com a idéia de que haja um especialista em antiguidade Não há um professor de história antiga. Essa é uma questão base se formos capazes de entender. Nós que trabalhamos com pesquisas relacionadas ao mundo antigo, se nos formos capazes de entender que não somos pesquisadores da antiguidade, mas pesquisadores do tempo presente, os quais se voltam a um período histórico específico, a fim de compreender o seu próprio tempo, a sua própria realidade. Fora desse princípio, reina uma grande confusão. Como a história antiga não está lá, mas está sendo reelaborada, reescrita e resignificada em termos desse tempo presente, tudo que nós fazemos, em grande parte, é dar conta dessa experiência presente e não a do tempo passado. Não existe o pesquisador da antiguidade, não existe o pesquisador medieval; as suas demandas, enquanto pesquisas, são demandas do tempo presente, não do tempo passado. O tempo passado não está lá. Ao contrário, ele está sendo reconstruído. Se eu perco de vista, por exemplo, que helenismo é um conceito altamente contaminado de uma ideologia que me prende ao século XIX, eu vou achar que eu sou um pesquisador da antiguidade, pesquisando o período helenístico. Isso é uma criação do século XIX, já que o que está por detrás do período chamado helenístico, senão o pressuposto de que foi graças a Deus interferindo na história, ou seja, Deus intervindo na história, que levou Alexandre a expandir o seu império em direção ao Oriente mais longínquo, de modo que toda essa população oriental pudesse aprender o grego. Com isso, eles puderam ler os evangelhos. É isso o que está por detrás do conceito de Helenismo. Então, se eu acho que sou um pesquisador da antiguidade dando conta do período de Alexandre com sua helenização, eu preciso mesmo acreditar que Alexandre estava helenizando alguma coisa. Esse é um conceito absolutamente encravado no século XIX, marcadamente eurocêntrico. Certamente, por essa perspectiva, acaba-se por sentir saudade de Alexandre, já que, foi por meio de sua ação, que os evangelhos puderam ser lidos por esses tais árabes e indus. Hoje, essa leitura se complica, ela ganha um ar surreal. Mas, eu me interesso, entre outros aspectos, de uma região chamada Bactria, que seria hoje um grande território dominado por países contemporâneos como Afeganistão, Paquistão, e principalmente noroeste da Índia. O embate historiográfico que ainda se sustenta para essa área é se os gregos situados na Bactria foram indianizados ou se eles helenizaram a Índia. No fundo, ainda se vê o resultado de uma aplicação que nos costumamos fazer, de colocar nas nossas salas de aula sem a devida reflexão: assumimos que houve um momento de helenização do oriente, mas nunca o contrário, isto é, que os tais orientais reagiram, ocorrendo, com isso, uma orientalização dos gregos. Ora, essas questões não têm nada haver com antigo, como também não tem nada de antigo projetarmos para antiguidade grega ou romana os indivíduos serem todos brancos, já que ali haviam muitos negros. Mas, até a noção de negro e de branco passa por um crivo racial que não estava lá, nesta tal antiguidade, mas no século XIX. Então eu acho que a gente vai dar um grande passo quando nos convencermos que todos são pesquisadores do tempo presente, que optam por um determinado recorte temporal e espacial para pensar em suas próprias realidades.

5) Qual o limite entre o Jesus histórico, Jesus mito, e Jesus profeta?
Essa é uma linha muito tênue. Eu diria o seguinte: para quase a totalidade dos pesquisadores é mais fácil definir o Jesus numa perspectiva estritamente religiosa de fé, principalmente num contexto cultural brasileiro, onde as possibilidades de escolha de uma criança que nasce no Brasil de não ser cristão tende a quase zero. Portanto, desde muito cedo os dados advindos sobre Jesus são todos eles mediados por percepções marcadamente envoltas num contexto religioso, demarcado por um ambiente de fé. Jesus, então, antes de qualquer coisa, adquire essa leitura de divino, de Deus. Olha quanta teologia tem aí, desde o indivíduo que começa perambular pela Galiléia até ele chegar a ser Deus. E essa percepção teológica, ao invés de ser lida assim, é assumida como verdade. Se eu falo de Jesus, eu falo de fé, e ao falar de um Jesus de fé, eu não leio essa percepção como sendo teológica, mas histórica. Tem-se aí uma inversão: o retrato de Jesus que eu tenho é um retrato histórico de Jesus Deus, como se isso fosse História, e não profissão de fé. O Jesus histórico é um grande estranhamento, porque, se desde criança somos ensinados a ver o Jesus da fé e o Jesus da História com um só pessoa, então o Jesus histórico da academia nada tem de histórico, nada tem de verdadeiro, porque lhe falta o elemento fé. Com isso eu não quero dizer se essa inversão é boa ou ruim, mas é assim que começa. Em muitos casos os pesquisadores sentem uma enorme dificuldade em pensar o Jesus histórico descontextualizado de toda a fé que ele atribui a Jesus. Então como é que se pode pensar uma pesquisa nestes termos. Eu acho que o exercício maior, antes de se buscar uma pesquisa direta, pelo menos eu faço assim com os meus alunos, é trabalhar dois, três, quatro semestres com esses alunos, por meio de muita disciplina e orientação acadêmica; discutir muitos textos com eles, de modo que eles compreendam que a sua experiência de fé, ao ser deslocada da pesquisa do Jesus histórico, não os colocará no inferno. Para que suas pesquisas ganhem credibilidade acadêmica, essa separação precisa se impor. Eles precisam ousar, eles precisam ter certa coragem de pegar, por exemplo, o evangelho de João, para a gente se manter em João, e perceber interpoladores agindo. Se perguntar: Jesus foi batizado por João? Saber que por detrás dessa questão, há muita teologia, há muito debate teológico. E Jesus, ele batizou alguém? Se batizou, no ato do batismo, havia ou não a presença do Espírito Santo? Isto está em João, não sou eu quem estou dizendo, este é o embate que está lá. Como é que se resolve isso? Um interpolador vai entrar em João 3:22 “ Depois disto foi Jesus com seus discípulos para o território da Judéia e permaneceu ali com eles e batizava”. Jesus batizava está dito. Vamos para o capítulo quatro versículo 1 e 2 de João “Quando Jesus soube que os fariseus tinha ouvido dizer que ele fazia mais discípulo e batizava mais que João – ainda que de fato Jesus mesmo não batizasse mais os seus discípulos”. A imensa maioria dos que querem trabalhar com Jesus histórico não consegue ver essa contradição em 3:22. Jesus batiza, em Jo 4:1, mas em 4:2 “ainda que ele não batizasse” Então eu digo para os meus alunos: vejam aqui, há duas camadas redacionais. A mais antiga é aquela que informa que Jesus batiza, a comunidade está discutindo a figura de Jesus, e o que é a discussão? Se ele batiza, o Espírito Santo se faz presente. Alguém entrou na discussão posteriormente e disse não, Jesus não batiza. E parece que isso é que saiu vitorioso, porque essa mesma camada antiga vai se reproduzir no capítulo 7 de João a partir do versículo 37, quando esse interpolador de 4:2 fala assim “no último dia da festa e a mais solene Jesus de pé disse em alta voz: “se alguém tem sede venha mim e beba, quem crê em mim como diz a escritura dos seus seios jorraram rios de água viva”. Ele falava do espírito que deviam receber os que nele cressem pois não havia ainda espírito porque Jesus não fora ainda glorificado. Implica dizer, para a camada posterior, que está em 4:2, e que saiu vitoriosa desse embate, enquanto Jesus não ressuscitar e subir aos céus o espírito não se fará presente. Isso tem haver com Jesus histórico? Tem, porque essa comunidade joanina, que gradativamente vai sendo constituída ao longo de um processo histórico, nos seus primeiros passos admite com toda segurança que João, cognominado Batista, é o mentor de Jesus e que, esse último aprende com o primeiro a batizar. Jesus agrega novos elementos neste batismo. Pode-se afirmar com uma certa segurança: Jesus batizava e esse dado provém mesmo de Jesus. Ele não é uma invenção tardia. Olha o que está sendo dito em 3:22 em 4:1 o indivíduo ao ser batizado tem dentro de si um ente, quando a gente abre o mapa das comunidades judaicas, nos diferentes judaísmos dessa primeira metade do século I, só essa comunidade faz isso, todas as outras fazem diferente, é Jesus quem agregou esse dado. Mas isso gerou um problema, conforme essa comunidade foi recebendo mais gente via conversões; os debates continuaram, idéias continuaram a ser produzidas sobre quem era esse Jesus. O Jesus da história está sendo pensado nos ismos, se ele batizava ou não já não era a questão chave; a questão é que idéia eu tenho a cerca do que foi o batismo, e o que é o batismo na minha comunidade e de como eu vou fazer esse diálogo com Jesus. Se você, enquanto um pesquisador do Jesus histórico ou dessas comunidades cristãs, não está suficientemente educado, do ponto de vista da pesquisa, como você espera perceber esses embates? Como você poderá identificar essas camadas mais antigas e as mais recentes em termos de redação de um texto? Como você espera identificar essas contradições? Porque as igrejas não nos ensinam a ver as contradições, mas, ao contrário, elas buscam sempre harmonizar o texto bíblico. Tudo é pensado em termos relacionais, como se estivéssemos diante de um grande grupo de amigos que sentaram para produzir os textos sagrados. A gente harmoniza toda a leitura; isso é fruto da nossa educação. Isso precisa ser desconstruído para que uma nova metodologia de leitura apareça. Agrega-se a essa nova metodologia uma questão que não é acadêmica mais que precisa ser resolvida. Ao se desconstruir uma educação marcadamente de escola dominical, de escola catequética, e se reconstruir uma educação acadêmica para essa pesquisa. Porque o indivíduo pode estudar sobre outras coisas, aí ele não vai precisar aprender a reconstruir. Ele precisa entender que ao fazer isso ele não vai par o céu, nem para o inferno, vai apenas fazer pesquisa. Sua fé continuará preservada porque ela é altamente subjetiva, é dele e nada tem haver com a pesquisa. Meus alunos, em dois anos, estão aptos para essas pesquisas e, se são religiosos, continuam em suas denominações, sem problemas. Eu os oriento a não falar muito em suas igrejas, porque se eles começam a falar lá em suas igrejas sobre as pesquisas, eles estarão fora de contexto. Numa igreja as pessoas buscam reparações, consolo, o ombro amigo de seu Deus. As pessoas não estão buscando história, nem arqueologia. Mas a recíproca é verdadeira, a academia não é o lugar para se resolver essas questões de ordem mais interna, porque ela está conectada com pesquisa. Então a dificuldade em pensar o Jesus histórico, Jesus da fé ou Jesus mito é ter mais ou menos pressa em começar o trabalho de pesquisa. Quanto mais lento, melhor educado for o indivíduo em termos de orientação, menos problema e mais seriedade naquilo que ele vai produzir. Quer dizer, para dar gosto de ler o que ele está produzindo. Normalmente o que eu leio é uma certa confusão entre fé e história, e isso não tem nada haver com o indivíduo ser mais inteligente ou menos inteligente, tem haver com estar mais ou menos preparado para pesquisa.

6) Como o senhor vê o ensino da história antiga no quadro de horário das universidades?
A carga horária é suficiente ou não? Eu diria que sim, pelo menos nas realidades que eu conheço: UFRJ, UNICAMP, UFF, UNIRIO, UERJ e Rural. Essa carga horária é absolutamente suficiente. O problema é se os nossos professores estão suficientemente preparados, capacitados para lecionar História antiga. Porque sobre muitos aspectos, boa parte deles (e a realidade a que me refiro é bem maior que o Rio de Janeiro) trabalha história antiga ainda com livros do tipo “História das Sociedades”. Os dados pesquisados por Emanuel Rolf V. Cabeceiras, da UFF, os quais foram apresentados mais ou menos, há uns dez anos atrás, na Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, mostravam que em um número significativamente grande de universidades públicas e privadas das capitais norte, nordeste, sudeste, centro este e sul, as aulas de história antiga eram dadas por professores que não eram especialistas em Antiga, que não dominavam minimamente uma bibliografia e que reproduziam barbaridades para os seus alunos. Então, o problema, não é tanto carga horária, mas a capacidade do docente de aproveitar bem o pouco ou muito de carga horária que se tem para trabalhar essa tal história antiga.

7) Professor como o senhor identifica fonte histórica nos escritos bíblicos?
Eu identifico muitas fontes disponíveis para o pesquisador pensar a sua pesquisa. O teólogo dificilmente abre mão do material bíblico para redigir um trabalho monográfico, uma dissertação de mestrado, uma tese de doutorado. Ao contrário, ele pensa o texto bíblico, a bíblia como um todo, como estando profundamente interligada e auto-explicativa, por si mesmo. Então, para resolver uma questão de Marcos, uma questão de ordem conceitual, o teólogo pode lançar mão de Jeremias, já que os textos tendem a se auto-completarem. Porque a Bíblia é pensada como um documento, um único documento e não o nominativo plural grega Ta Biblia, livros. Mas isso é um método da Teologia que eu respeito. Entretanto, o fato de eu respeitar não significa que esse método me basta, me seja suficiente, afinal não sou teólogo, mas historiador. Então eu agrego outros materiais, outros elementos, outros documentos. E o que é legal que nesses grupos de pesquisas que eu freqüento, e que são transdisciplinares por essência, os meus pares da teologia, apesar de gostarem ou detestarem o que eu produzo, prestam muito atenção no que eu falo. Eu sinto e vejo produzir diferenças, tanto é que, nos encontros posteriores, eu vejo aquele meu colega agregar ao documento bíblico (que ele entende ser o documento por excelência) outros documentos. Isso é bacana porque é a pesquisa andando, é a pesquisa fluindo. Eu publiquei recentemente um trabalho sobre a questão de como no judaísmo helenístico e romano o sacrifício de Isaac sofre algumas alterações em termos de leituras, tanto do ponto de vista textual como imagético. Em Josefo (Antiguidade Judaica) Isaac não é um menino como no livro de Gênesis, é um homem de vinte cinco anos, que é informado por Abraão que ele vai ser sacrificado. Ele fica radiante, feliz mesmo por saber que vai ser sacrificado, já que ele vai voltar pra casa do verdadeiro Pai dele. Da onde veio isso? Da onde Josefo tirou isso? É de um contexto de martírio. Josefo viveu a primeira grande guerra judaica contra os romanos, e tem a informação, ao vivo e a cores, porque ele foi testemunha ocular dos mártires judeus. Ele mesmo não quis ser um, mas ele viu os mártires lá. Ele tem a leitura de macabeus tanto primeiro como segundo livros; ele tem o dado da viúva e seus sete filhos sem medo de morrerem porque crêem na ressurreição. Todo material imagético datado do final do século II e início do III EC, Isaac também é um homem adulto. A patrística vai ler Jesus como um novo Isaac, da mesma forma que Isaac carregou a lenha, Jesus carregou a sua cruz. Mas, eles têm suas diferenças também: Isaac morreu e não ressuscitou e Jesus morreu e ressuscitou. Então você amplia o seu corpo documental, e aí você vai ter grande surpresas na pesquisa, sem sombras de dúvidas.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Efeitos do Helenismo sobre os Judeus

INTRODUÇÃO

A uns dois ou três séculos antes de Cristo, muitos judeus já experimentavam uma grande influência da cultura helenística. Especialmente a população judaica da diáspora, como, por exemplo, os judeus que residiram em Alexandria, que por sinal foi a cidade modelo desse banho cultural [Paul, André, pág. 47]. Assim, Já desde o tempo de Alexandre, a influência grega começava a minar o judaísmo, embora encontrasse continua resistência por parte dos fariseus e seus simpatizantes. Tal influência helenística sobre os judeus, envolvia, principalmente o aspecto cultural, que por sua vez, era alimentado pelas filosofias existente da época. E os efeitos da filosofia eclética de Filo, por exemplo, incontestavelmente encontram-se no fundo cultural de grande parte da vida e literatura do Novo Testamento [Dana, H. E. pág. 113].

Portanto, procuraremos destacar aqui alguns exemplos do Novo Testamento nos quais podemos observar alguns efeitos do helenismo sobre os judeus. Vale lembrar que alguns destes exemplos não se encontram de maneira explicita em alguns dos textos, no entanto poderão demonstrar tais influências de modo implícito.

Influência Filosófica:

Uma das maiores influências do helenismo sobre os judeus que podemos destacar no Novo Testamento é a filosofia grega, a qual gerou muitas mudanças no pensamento judaico, causando, dessa forma, muitos efeitos no modo de se compreender a vida.

Dentre essas influências, podemos observar, de modo positivo, os efeitos da filosofia que tratava da necessidade de se livrar dos padrões tradicionais de comportamento herdados dos antepassados, o que levou a sociedade a adotar certa ênfase no individualismo. Esta influência pode ser observada no fato de que tal ênfase individualista contribuiu, ou facilitou, na época do Novo Testamento, a adoção do conceito de religião pessoal. Assim, quando Jesus desafiava seus ouvintes a deixarem pai e mãe a fim de segui-lo (Lc. 14.26;Mat. 10.37), não encontrava, por parte do conceito tradicional, nenhuma barreira que dificultasse sua mensagem. Assim, podemos observar, a partir desta passagem, que os judeus nos tempos do Novo Testamento, já haviam aderido muitos elementos da filosofia grega. E neste sentido podemos apontar, no Novo Testamento, outro exemplo dessa influência helênica sobre os judeus. Trata-se da declaração do apóstolo Pedro, a qual este fez diante do sinédrio judaico em certa ocasião (Atos 5.29). Após serem, os apóstolos, advertidos a não pregarem o evangelho de Cristo, encontramos Pedro e os demais respondendo ao sinédrio; Antes importa obedecer a Deus do que aos homens [ARA]. 

Esta era uma frase já conhecida desde os tempos de Sócrates. Este acreditava em princípios universais de verdade e de direito, os quais encontravam em Deus, o qual ele considerava supremo em conduta e caráter, sua forma ultima de expressão pessoal. Aos seus perseguidores atenienses ele dissera; “importa mais obedecer a Deus do que a vós” [Dana, H. E. pág.159]. Ao expressar-se desta maneira, não somente o apóstolo Pedro mas também o sinédrio judaico que não retrucara a tal declaração, parece demonstrar certa familiaridade com alguns conceitos filosóficos. E não apenas isto, mas também demonstram concordarem com tais conceitos que refletem alguns princípios universais de verdade e de direito. 

No entanto, quando se trata da influência que os gregos causaram no mundo de então, precisamos reconhecer que isso não se deu de maneira limitada. Tal influência abarcara todos os aspectos da sociedade. E o próximo aspecto que destacamos é a questão do idioma. 

Influência Lingüística:

Como já observamos, desde o tempo de Alexandre, a influência grega espalhara-se por todas as partes. E o principal instrumento que contribuirá grandemente para esse evento foi o idioma grego. Através de uma língua comum, utilizada pela maioria em geral na comunicação popular. Sendo assim, todo o mundo greco-romano do primeiro século usava o idioma grego (koinê) como principal meio de comunicação [Dana, H. E. pág. 146]. No entanto, embora houvesse, por parte de alguns judeus, certa resistência quanto à cultura helênica, o que incluía o uso do idioma grego, muitos judeus, principalmente alguns estudiosos, o aderiram sem problemas At. 21.37-39. Além disso, deve-se levar em consideração que os escritores do Novo Testamento utilizaram o grego koinê para escreverem.
O fato de que muitos judeus usavam o grego para se comunicarem pode ser visto também em outras passagens como At. 11.20; 17.4; 19.10. Destas referências podemos observar também que, evidentemente, foram os cristãos judaicos de língua grega que pregaram o evangelho aos gregos pela primeira vez [Coenen, L. pág. 924].
Contudo, além da influência filosófica e Lingüística que os judeus experimentaram, existe um outro fator digno de nota. Ao estudar o Novo Testamento, nos deparamos também com a questão do costume que os envolveu. 

Costumes:

Outra situação, em que podemos ver que o helenismo era predominante na sociedade, no tempo do Novo Testamento, é o fato de que se utilizavam dos costumes gregos de maneira natural. O apóstolo Paulo, por exemplo, comumente utilizava-se de termos e exemplos provenientes da cultura grega para falar à igreja. Podemos observar que ao escrever suas cartas, o apóstolo costumava usar termos provenientes da cultura helênica. Em Filemom 4, encontramo-lo fazendo a seguinte declaração; Dou graças ao meu Deus, lembrando-me sempre de ti nas minhas orações [ARA]. Devemos observar que, era um aspecto comum nas cartas helenísticas que o remetente louvasse os deuses pela saúde e bem-estar de seus destinatários, e os assegurasse de suas orações por eles. Paulo (como Judeu) dá um conteúdo distintamente cristão à fórmula ao dar a razão de seu agradecimento [Fritz, 488].

Os judeus já estavam tão acostumados com a (ou influenciados pela) cultura grega que em Atos 6.1 encontramos uma referência a um grupo de crentes judeus helenistas. Ora, naquele tempo, multiplicando-se o numero dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária [ARA]. Desta passagem podemos concluir que a influência helênica sobre os judeus era tão grande que podia até distinguir-se entre um grupo e outro (judeus de fala hebraica e os de fala grega), e, percebe-se, pela passagem, que havia uma certa discriminação até entre os judeus cristãos, o que logo refletiria em um problema, ou uma ameaça à unidade da igreja. No entanto, sob a direção do Espírito Santo, os apóstolos logo solucionam o problema, designando pessoas para tratarem da questão da distribuição (At.6.3-7). Vale observar aqui, ainda falando de costumes, que todos os irmãos (os sete) escolhidos tinham nomes gregos e não judaico, embora fossem judeus. Isso mais uma vez mostra o fato de que para os judeus era coisa normal aderir elementos da cultura grega em seu meio. 

E tal influência estende-se um pouco mais na vida da sociedade judaica. Observando com mais cuidado o livro de Atos, percebemos outra vez a evidência dos efeitos do helenismo sobre a vida dos judeus. Como já foi observado acima, as influências do helenismo na sociedade judaica era muito forte. E, de fato, os judeus e os gregos viviam, em todos os lugares, lado a lado, e por conta disto surgiam muitos casamentos mistos. Exemplo disto, observamos que um destes casamentos teve como filho Timóteo, filho de uma judia crente, mas de pai grego, como podemos ver em Atos 16.1.

Um outro caso que queremos destacar aqui é a questão da circuncisão judaica. Como sabemos, a circuncisão era de extrema importância na vida religiosa dos judeus. No entanto, já desde ha muito os judeus vinham experimentando forte influência do helenismo, tanto na maneira de pensar como na maneira de viver em sociedade. Menelau, por exemplo, que comprara de Antioco IV o oficio de sumo sacerdote, ignorou as leis judaicas, construindo uma praça de esportes em Jerusalém onde atletas nus se reuniam para disputas esportivas gregas. Menelau e seus amigos restabeleceram seus prepúcios, de modo que viessem parecer gregos quando entrassem em banhos públicos [Packer, J. I. pág. 86].

Esta prática parece repetir-se posteriormente, e isso em uma ocasião bem interessante. Em I Corintios 7.18 encontramos a orientação de Paulo; Foi alguém chamado estando circunciso? Não desfaça a circuncisão [ARA]. Paulo foi o apóstolo que mais falou à igreja com respeito a justificação do pecador. E quando tocava neste assunto, geralmente argumentava que a circuncisão, ou incircuncisão física não significava nada com respeito à salvação. Portanto, em decorrência disto, alguns judeus helenistas que abraçara a fé cristã não viam mais sentido no fato de serem circuncidados. Como sabemos, na igreja de Corinto havia alguns membros judeus (I Co.1.14 cf. At. 18.8), e é de nos chamar a atenção aqui o fato de que um grupo de crentes em Corinto parece que desejavam, por algum motivo, desfazer sua circuncisão. O que nos parece provável é que a exemplo de outros como Menelau e seus amigos, alguns ali, judeus helenistas, estivessem desfazendo sua circuncisão.

Com certeza estes são apenas uns poucos exemplos de muitos outros que podemos encontrar no Novo Testamento com respeito aos efeitos do helenismo sobre a vida dos judeus. Também reconhecemos que tal influência helênica fora muito mais abrangente do que os pontos apresentados aqui, ou seja; a filosofia, o idioma, os costumes são apenas alguns aspectos do helenismo. Certamente a cultura helênica teve expressão em muitas outras áreas como; na política, economia, e provavelmente na religião.

(PDF) O Diabo: Uma Exploração Bíblica - Livro Completo

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sábado, 12 de dezembro de 2015

Egito, magia revelada


O LIVRO MÁGICO DO ANTIGO EGITO

INTRODUÇÃO À MAGIA ETERNA

As bibliotecas são cavernas cheias de tesouros onde, graças aos trabalhos dos antecessores, é possível reconhecer os caminhos que conduzirão à descoberta. Mas toda essa erudição, por mais indispensável que seja, não substitui um contacto vivo com o Egito.

Um egiptólogo que não creia na religião egípcia, que não partilhe uma simpatia total com a civilização que estuda, não poderia, na nossa opinião, pronunciar mais do que palavras sem vida. 

O intelectualismo, por mais brilhante que seja, nunca substituiu o sentimento vivido, mesmo numa disciplina científica. Os maiores sábios são aqueles que participam no mistério do universo e tentam exprimi-lo por meio da sua visão do Conhecimento, amadurecida ano após ano.

Sendo isto verdade para ciências tais como a Física, como demonstraram Eisenberg, Einstein e tantos outros, será fácil compreender que o Antigo Egito reclame, da parte de quem o estuda, uma atitude bem diversa do raciocínio glacial e do ”distanciamento” histórico.

Uma noite de Natal, em Lucsor, foi-me oferecido um presente suntuoso: um convite para jantar em casa de uma família de encantadores de serpentes. O avô, amigo da França, falava admiravelmente a nossa língua. Deu-me o lugar de honra, a seu lado, durante a refeição, na presença da mulher e dos seus quatro filhos e três filhas. 

No exterior, a noite era suave. Ao crepúsculo, ao desaparecer, o sol tinha-se estilhaçado em dezenas de cores, aniquilando-se pouco a pouco num último raio luminoso que veio morrer nas paredes do templo de Lucsor, a obra-prima do faraó Aménofis III(imagem abaixo) e do seu genial arquiteto, Amen-hotep, filho de Apu (imagem abaixo).



A casa do meu hospedeiro nada tinha de régio. Mobiliada pobremente, com um desejo de galanteria, era no entanto um templo da amizade. Pombos grelhados, arroz, tostas, bolos... todo um festim elaborado para o viajante.

Nesta festa cristã de Natal, no decurso de uma longa refeição que só terminou pouco antes da aurora, a nossa conversa versou sobre um único assunto: a magia. O meu anfitrião e o seu filho preenchiam uma função extraordinária: apanhar serpentes e escorpiões. 

Aos jornalistas que de longe a longe os vinham questionar acerca da bizarra profissão, apresentavam-se como pessoas simples, cuidadosas, herdeiras de uma antiga tradição familiar, mercadores de venenos ligados a uma função lucrativa. Tais declarações não me satisfaziam. 

No decorrer das minhas pesquisas, eu tinha, como qualquer egiptólogo, deparado com a magia. Muitos ”sábios” tentaram separá-la da religião egípcia, como se fosse uma tara incompatível com a grandeza das concepções metafísicas expostas nos grandes textos.

Mas a magia é resistente. No Egito, está presente em toda a parte, na sinuosidade de um conto que se acredita ”literário”, como no interior de um túmulo ou nas paredes de um templo. Na época dos faraós, aqueles que se ocupavam dos animais venenosos eram mágicos que tinham recebido uma iniciação, tinham conhecimentos, utilizavam fórmulas específicas cuja manipulação requeria qualificações excepcionais.

Lembrei ao meu anfitrião estes conhecimentos. Sorriu, admitindo: ”Temos de reconhecer que ser irmão de uma serpente não está ao alcance de um qualquer... Talvez, efetivamente, uma certa magia seja útil...”.

Segundo as regras da delicadeza oriental, a verdadeira conversa estava lançada. Persuadido de que o meu anfitrião ainda conheceria e praticaria as regras da antiga magia egípcia, confrontei a experiência dele e os meus conhecimentos de egiptólogo. Foi assim que nasceu este livro acerca do mundo mágico da civilização faraônica. Dos textos antigos até à experiência vivida, não há lacunas. Eis a razão por que hoje é possível abordar um assunto outrora tabu.

Hermópolis, a antiga cidade santa do deus Tot, patrono dos mágicos egípcios, o Hermes dos Gregos, não passa hoje de uma cidade em ruínas. No entanto, aqui e além subsistem vestígios da grandeza passada. 


Uma das mais impressionantes é o túmulo de Pet Osíris (Pady-usir ), sumo sacerdote de Tot, iniciado nos mistérios. Esse túmulo não é consagrado à morte, mas sim à vida na eternidade.

A entrada dirige ao pronaos, a (primeira câmara), ou a antecâmara cujo teto está repousando sobre 4 pilares. As paredes do pronaos estão decoradas de cenas lindas que mostram as atividades cotidianas do Egito antigo. Entre as cenas fascinantes do pronaos destacam-se: A cena do parto da vaca, enquanto o artista era muito sensibilizado com a dor da vaca que dá luz.

Dali se chega ao naos (a câmara interna) em cujo chão se abre um poço de 8 m de profundidade que dirige à câmara mortuária onde foi achado o corpo de Pet-Osiris dentro de um sarcófago. O naos está decorado de cenas impressionantes da agricultura, a colheita, o pastoreio , e atividades de Pet-Osiris na sua fazenda, a armazenagem nos celeiros, cenas dos artesanatos diferentes e das obras dos carpinteiros, os ourives, oleiros, e tapeteiros…etc. Segue algumas figuras encontradas nas paredes do túmulo:





Os seus admiráveis textos foram redigidos para ajudar o homem a realizar-se, a encontrar a verdade profunda do seu ser, sem a qual nenhuma felicidade poderá ser vivida na Terra. Numa das paredes do túmulo de Pet Osíris leem-se estas frases:

”Aquele que se coloca na via do deus, passa toda a sua vida na alegria, cumulado de riquezas, mais do que os seus pares, envelhece na sua cidade, é um homem venerado na sua província, os seus membros mantêm-se jovens como os de uma criança. Os filhos estão diante dele, numerosos e considerados os primeiros da cidade; esses filhos sucedem-se de geração em geração... Chega enfim à necrópole em alegria, no belo embalsamamento do trabalho de Anúbis”.

Para atingir a sabedoria evocada pelo grande sacerdote PetOsíris, não basta a boa vontade. Torna-se indispensável uma certa ciência a que os Egípcios chamavam ”magia”. Esta noção-chave, hoje confundida com a magia negra, com a feitiçaria, com os poderes psíquicos e outros fenômenos mais ou menos inquietantes, tinha, na época dos faraós, um significado preciso.

Religião e magia não podem ser separadas uma da outra. Pode-se imaginar um ritual sem irradiação mágica? Não é verdade que as religiões do livro (Cristianismo, Judaísmo, Islamismo), embora por vezes se defendam disso, exercem uma magia sobre a alma humana, a fim de a fazer aceder a realidades que os nossos sentidos se revelam incapazes de registrar?

Em notas, o leitor será remetido para os textos egípcios, a maior parte dos quais apenas acessíveis aos especialistas.

O aspecto fundamental da documentação escrita, completada pela informação oral, é que várias vezes desvendam as chaves. 

Os escribas egípcios redigiram milhares de páginas, reunidas em recolhas que os egiptólogos classificam de ”mágico-religiosas”. 

Uma leitura rápida, necessariamente superficial, desses escritos leva-nos à conclusão de que os Egípcios formulavam votos: 

“viver uma vida longa sobre a Terra, não ser privado de alimentos no Além, não morrer da mordedura de uma serpente, manter-se saudável na Terra, gozar de todas as capacidades físicas, entrar e sair pelas portas orientais do Céu (isto é, ter um espírito suficientemente formado para ”circular” no Cosmos), conhecer as almas dos ocidentais (quer dizer, aceder aos mistérios dos Antigos)”. 

Como se vê, misturam-se esperanças materiais e esperanças espirituais. Essa é uma das características essenciais do pensamento egípcio. Há um Céu, há uma Terra, ambos agem um sobre o outro. 

A nossa vida terrestre, nos seus aspectos mais vulgares, está impregnada de uma força espiritual a que os sábios do Egito chamam heka, ”magia”. Este termo, de etimologia incerta, significa provavelmente ”reger os poderes”, o que efetivamente constitui o cume da arte do mágico.

Quem deseja praticar a magia deve adquirir a consciência dos poderes que regem qualquer vida, manipulando-os experimentalmente. Não há lugar para qualquer experiência estritamente individual: como veremos, o aprendiz mágico forma-se nas escolas especializadas dos templos, sob a vigilância de mestres que não o deixam agir à sua vontade nem ao sabor da sua fantasia.

Revelação essencial dos sábios: a Magia, concebida como força criadora, foi criada antes da criação que conhecemos. É filha do deus do Sol cujos raios de luz são uma manifestação mágica, porque portadores de vida.

Para o egípcio antigo, tudo vive. Pensar que alguma coisa é inanimada, prova que o nosso olhar não se abriu corretamente para a realidade. O homem, tal como qualquer outra parcela viva, é o resultado de um jogo de forças. Poderá suportá-las passivamente ou poderá tentar identificá-las.

A qualidade do seu destino irá depender da resposta que der a estas questões. As forças mágicas parecem-nos hostis na medida em que o nosso grau de conhecimentos é insuficiente. O cientista contemporâneo critica facilmente o primitivo que se extasia ou se assusta perante fenômenos naturais que julga sobrenaturais. Mas esse mesmo cientista, apesar de todo o seu saber, mantém-se escravo de zonas de sombra que por vezes tornam falso o raciocínio mais seguro de si.

Isto quer dizer que o homem de hoje, tal como o de ontem, se confronta com o desconhecido, fonte e finalidade da sua existência. Nesse domínio, os mágicos do Antigo Egito têm muito para nos ensinar. A força sobrenatural que mantém a vida não está fora do alcance da inteligência humana. Reside no coração do ser, no seu templo interior. Ao descobri-la e ao utilizá-la depois, o mágico constatava que a sua ação tinha repercussões neste mundo e no outro, como se não existisse qualquer barreira real entre eles. 

Conhecer Heka,o deus da magia (imagem abaixo), é descobrir o poder dos poderes, penetrar no jogo harmonioso das divindades. E também o morto, aquele que passa para o outro lado do espelho, deve conservar o seu poder mágico para atingir a última realidade. Esta magia pode ser definida como a energia essencial que circula no universo, tanto dos deuses como dos humanos. 


Não existem ”vivos” e ”mortos”, mas sim seres mais ou menos capazes de captar essa energia contida no nome secreto dos deuses. Estudando os hieróglifos, isto é, ”as palavras dos deuses”, progride-se no conhecimento desses nomes carregados de energia. No Egito, nada se mantém intelectual no mau sentido do termo, quer dizer, cortado do real. Eis por que qualquer objeto animado mágica e ritualmente por exemplo, as coroas reais - registra um segredo vital. 

Espírito e matéria tecem-se na mesma substância. O importante, na prática da magia, é identificar o laço que une todas as coisas, que reúne o conjunto das criaturas numa cadeia de união cósmica.

As linhas precedentes provam suficientemente que não se deve reduzir a magia do Antigo Egito a uma feitiçaria de baixo estofo. Na realidade, encontramo-nos perante uma ciência sagrada que exige especialistas com boa formação, capazes de apreender as forças mais secretas do universo.

Segundo um texto magnífico, intitulado Ensinamento para Merikaré, ”o Criador deu ao homem a magia para repelir o efeito fulgurante do que acontece inesperadamente”. 

Dito de outro modo, todos somos escravos de um certo determinismo. A maior parte das vezes, os acontecimentos felizes ou infelizes apanham-nos desprevenidos. Não somos donos do nosso destino. 

O Egito não nega esse determinismo, mas considera que é possível escapar-lhe utilizando a magia. Pela prática dessa arte, podemos modificar o nosso destino, lutar contra as tendências negativas da aventura humana, quer esta seja coletiva ou individual, afastar os perigos de que tomamos consciência.

No Egito, a magia era considerada uma ciência exata. Embora certos amadores, como os feiticeiros de aldeia, utilizassem algumas receitas mágicas elementares, a grande magia de Estado era revelada apenas a uma elite de escribas, que se devem comparar aos físicos contemporâneos da energia atômica. 

Com efeito, essa magia é destinada a preservar a ordem do mundo. Um ato como esse não é fruto de uma improvisação ou de um qualquer ilusionismo. Repousa sobre uma linha contínua de experiências controladas pelo mágico.

A existência humana repousa sobre um equilíbrio precário. Muitos perigos a ameaçam: gênios malignos, forças negativas, mortos errantes, múltiplas manifestações do ”mau-olhado”, quer dizer, de uma energia negativa que, pelo seu simples poder, destrói tudo o que existe. 

O primeiro dever do mágico é travar essa negatividade, preservar aquilo que existe. Mas deve igualmente velar para que os momentos de ”passagem” se desenrolem corretamente. O nascimento, o casamento, a morte, o fim de um ano e o início do seguinte, são outros tantos exemplos de situações muito delicadas em que a intervenção mágica é indispensável.

Os mágicos afirmam que os seus segredos remontam à mais alta Antiguidade. Não é a referência a uma convenção, mas sim o cuidado de se referir aos modelos primordiais, aos mitos da Criação. 

De uma certa maneira, o mágico está em contacto direto com o Arquiteto dos mundos. Qualquer ato mágico é, por definição, um ato criador enraizado nas profundezas da origem. O mágico ”refaz tal como foi feito no começo”, coloca no presente ”a primeira vez”, restitui o mundo ”àquele tempo”. O tempo mágico é um tempo primordial. Pelo estudo da magia chegamos à centelha de onde jorrou toda a Criação.

O deus da magia, Heka, é uma criação da Luz. (Heka foi companheiro de Rá no momento da criação, juntamente com Sia e Hu. Esses três deuses eram essenciais em qualquer forma de magia: Sia significando o Conhecimento, e Hu significando a Sabedoria. Heka significa literalmente Magia, do encanto ou do poder da expressao criadora. Os sacerdotes de Mênfis associavam esses três deuses com a criação do mundo por meio da palavra divina de Ptah).


Falar de magia ”negra” e de magia ”branca” é considerado uma decadência. Na realidade, existe apenas uma magia solar, portadora da Luz, que favorece a iluminação do mágico. O resto é somente ilusionismo, feitiçaria ou busca de poderes.

No mundo das divindades, o deus da magia tem uma função precisa: afastar o que deve ser afastado, evitar que o mal e a falta de harmonia perturbem a ordem das coisas. 

Quando é realmente habitado pela força divina, o mágico preenche igualmente essa função. É Hórus. A magia da sua mãe Ísis está nos seus membros. É Rei de nomes misteriosos, é aquele que se encontrava no oceano de energia das primeiras idades. Identifica-se com os maiores deuses do panteão, sentindo a magia no próprio corpo como força viva: circula-lhe nos pés, nas mãos, na cabeça, no corpo inteiro. 

É sabido que a força mágica emite uma luz, e que em certas ocasiões irradia um cheiro característico.

”E eis que recolhi esse poder mágico em todo o lugar onde se encontra, em todo o homem no qual se encontra”, diz o mágico no capítulo 4 do ”Livro dos Mortos”. ”É mais rápido que o galgo, mais pronto que a luz”.

O mágico enche o seu ventre de poder mágico; estanca a sede graças a ela. Essa magia no ventre sobe seguidamente ao espírito, como um fluido que circula nos canais secretos do corpo. Dessa maneira, o mágico, filho de Ré, senhor da Luz e do Sol, e de Tot, encarnado pela Lua, descobre a extensão das suas percepções. O seu saber está consignado num escrito que vem da moradia do deus do Sol, depois de ter sido selado no palácio de Tot.

Sem magia, a sobrevivência é impossível. As fórmulas apropriadas fornecem àquele que se apresenta perante as portas da morte a coragem e a ciência adequadas para franquear o obstáculo sem ser aniquilado.

O mágico viaja no céu. Diante da estrela Orion afirma ter comido as potências vitais e ter-se nutrido dos espíritos dos antigos deuses cujos nomes secretos conhece. 


Orion escuta o viajante do Além. Reconhece que ele adquiriu efetivamente todos os poderes, que nenhum foi esquecido. Eis por que o ressuscitado, identificado com uma estrela, brilhará nas alturas celestes. 

Esse é o destino do mágico: tornar-se uma luz no Cosmos, para iluminar o caminho dos outros homens. A magia é um assunto de percepção. Ora, o centro das mais subtis percepções é o coração. Não o órgão de carne, mas sim o centro imaterial do ser. Esse coração, na concepção do Egito, é o testemunho da vida do homem. É impossível mentir-lhe ou enganá-lo. 

O coração consciência concebe, pensa, dá ordens aos nervos, aos músculos, aos membros. É ele que permite que os sentidos funcionem corretamente. Tudo parte do coração e tudo a ele volta, ele é emissor e receptor. Sensações e impressões são a ele conduzidas para que faça delas a síntese e extraia a lição dessas informações vindas do mundo exterior.

Segundo a mitologia da cidade de Mênfis, o deus Ptah (imagem abaixo) concebeu o mundo no próprio coração antes de o exprimir pela língua. Em cada ser consciente desperta um coração herdeiro do coração divino. 


Receptáculo da força divina, o coração responde pela retidão do mágico perante os seus juízes, aqui e no Além. 

A qualidade da prática mágica está estreitamente ligada à qualidade do coração. Ao mágico compete desenvolver essas faculdades intuitivas que lhe permitirão descobrir o cofre misterioso do Conhecimento, prefiguração do Graal. O coração lhe ditará o meio de o abrir de modo a descobrir a essência da magia.

Um amuleto especial, o escaravelho do coração, detém um papel determinante no momento da passagem da morte terrestre para a vida eterna. O escaravelho (abaixo) é o símbolo das metamorfoses e das mutações. Colocando-o no coração da múmia, o mágico confere ao morto o poder de atravessar as zonas mais obscuras onde o ser se arrisca a sofrer graves atentados. 


No momento da abordagem feliz das margens dos paraísos, o coração do homem justo ser-lhe-á restituído. Esse dom é preparado na Terra durante a vida do indivíduo. 

A atitude mágica consiste em fazer com que pulse em si um coração de origem celeste que venha a despertar a percepção do invisível.

A magia era considerada no Estado egípcio como atividade primordial. Os livros mágicos não são escritos por autores que os redigem segundo a sua fantasia, sendo antes obra de instituições oficiais como a Casa de Vida, e fazem parte dos arquivos reais. Um dos primeiros objetivos da magia é, com efeito, proteger o faraó de qualquer influência negativa. 

Como escreveu Jean Yoyotte, ”a visão egípcia do mundo procede de uma alta magia de Estado, coerente, raciocinada, admiravelmente perceptível e serena”.

Estaríamos bem enganados se acreditássemos que a magia, na época dos faraós, era uma atividade individual. Essa foi a expressão mais decadente e a menos rica de significado. 

Os Egípcios utilizaram sobretudo os rituais dos templos, celebrados em todo o país. Todo o ato cultual é mágico. 

Pensemos, por exemplo, no fato de o faraó ser o único habilitado a dirigir os ritos necessários para manter a presença dos deuses na Terra. A imagem do rei, gravada na parede de cada templo, anima-se magicamente para entrar na alma do sacerdote que efetivamente dirigirá a cerimônia.

O maior centro mágico do Egito era provavelmente a cidade santa de Heliópolis, a cidade do Sol (à altura do Cairo), onde se elaborava a mais antiga teologia. Ali eram conservados numerosos papiros ”mágicos”, no sentido amplo do termo, incluindo textos médicos, botânicos, zoológicos ou matemáticos. 


A maior parte dos sábios e dos filósofos gregos dirigiram-se a Heliópolis para aí receberem comunicação de uma parte dessa ciência acumulada durante séculos. Foi ali, nomeadamente, que Platão foi informado da lenda da Atlântida que fez correr tanta tinta e cujo verdadeiro significado ainda hoje nos é ignoto, e só pode ser deduzido dos textos egípcios.

O primeiro princípio mágico é a necessidade da oferenda aos deuses. Graças a esse ato, a Criação continua. 


(Papiro Ramses fazendo oferendas de vinho a Horus) 

”Darmaet (a harmonia universal) ao mestre de maet (o Criador)”, segundo a fórmula ritual, é permitir que a vida se prolongue.

O que o Antigo Egito mais temia era o caos, esse estado de negatividade oposto a maet, a ordem das coisas. Não basta a boa vontade para evitar a desordem que, a prazo, condena toda a civilização. 

A magia é uma arma de valor excepcional, graças à qual as barcas solares circulam corretamente nos céus, os mortos recebem o alimento que lhes é devido, o Estado funciona e celebram-se as festividades. Sem a intervenção mágica do Estado, as importantes cheias do Nilo não teriam lugar, as culturas não seriam irrigadas, os caçadores não poderiam matar caça, os pescadores não pescariam peixes, os artesãos não acabariam as suas obras, os templos não poderiam cumprir a sua missão.

Uma visão como esta surpreende-nos. Tantos fenômenos nos parecem hoje tão ”naturais” que já não conseguimos discernir o seu significado recôndito.A caça, por exemplo, era para o egípcio uma aventura muito especial que consistia em entrar no mundo das forças obscuras, não dominadas pelo homem. O perigo poderia acontecer a cada instante, quer tomasse a forma de um animal do deserto ou de um crocodilo furioso. O caçador considerava que o seu papel era afrontar as forças do mal. Para as dominar, também se utilizavam fórmulas mágicas.


O rei mágico, ‘O faraó do Egito’, não tem pai nem mãe. Vive a vida e não morre a morte. É o grande mágico por excelência, porque nele se encarna a força da vida. 

No Império Antigo só o faraó está apto a comunicar com o princípio divino para que a humanidade subsista. É pois o rei, mestre das forças naturais e sobrenaturais, que detém o poder real, que adquiriu comendo as forças mágicas quando de um banquete extraordinário, duplicado de uma perturbação cósmica a acompanhar a vinda do rei aos espaços celestes. 

As estrelas escurecem. A luz rarefaz-se. O céu e a terra tremem. Um personagem aterrador provoca esses acontecimentos: o faraó em pessoa. Ele é aquele que se nutre dos seus pais e mães. É um mestre de sageza do qual a mão não conhece o nome. A sua glória está no céu, o seu poder está no horizonte como o de Atum, o Criador que o engendrou. 


O rei tornou-se mais poderoso que ele. Touro do céu, ele assimila o ser de cada divindade. Come homens e deuses. Khonsu(abaixo), um deus temível, mata os seres de que o rei tem necessidade e extrai, para si, o que há nos seus corpos. Outro gênio, Chesemu, cozinha-os.


O faraó, protegido por Ísis, avança para Osíris. A deusa ostenta no penteado o signo hieroglífico do trono que define a sua natureza simbólica. Ela é a deusa-trono de onde nascem os reis.

Com a mão direita emite um fluido que atinge a nuca do faraó, um dos centros vitais da sua Pessoa. Com a mão esquerda segura o braço direito do monarca: ato mágico necessário, porque o faraó aperta no punho os dois cetros que lhe permitem exercer a soberania sobre a terra dos homens. 

O rei veste-se segundo a sua função: coroa dupla (juntando em uma só a coroa branca do Alto Egito e a coroa vermelha do
Baixo Egito), a peruca nemes e o grande saiote de cerimônia.

Diante de Osíris é deposto um pequeno altar no qual se encontram flores e um queimador de perfume. O rei oferece ao deus da ressurreição a essência sutil de todas as coisas (As capelas de Tutankhamon) para ele nas pedras de um lar.

“O rei come-lhes a magia, engole-lhes os espíritos. Os gordos são para a refeição da manhã, os médios para a refeição do dia, os pequenos para a ceia.”

“O faraó apanha os corações dos deuses, come a coroa vermelha, engole a verde. Todo o Cosmos reconhece o seu domínio. Nutre-se dos pulmões dos sages e da sua magia. O seu tempo de vida é a eternidade.”

Este texto foi classificado de ”hino canibal”, supondo que aludia a rituais muito arcaicos. Na realidade, era um modo de invocar a captação do poder mágico pela ingestão direta da vitalidade divina considerada como alimento. Cheio de magia, o faraó está protegido. O ser maléfico que o mordesse só conseguiria envenenar-se a si mesmo. Cada parte do corpo real está divinizada.

O ventre do faraó, por exemplo, é Nut, a deusa do Céu. Ora, a força mágica encontra-se precisamente nesse ”ventre celeste”.


Face aos deuses, o faraó manifesta a sua autoridade. Ordena-lhes que construam uma escada para ele subir ao céu. Se não obedecem, não terão alimentos nem oferendas. Mas o rei toma uma precaução. Não é ele, enquanto indivíduo, que se exprime, mas sim o poder divino: ”Não sou eu que vos digo isso, a vós, deuses, é a Magia que vos diz isso”.

Quando o faraó completa a sua ascensão, a magia está aos seus pés. ”O céu treme”, afirma ele, ”a terra estremece diante de mim, porque eu sou um mágico, possuo a magia”. É ele, de resto, que instala os deuses nos seus tronos, provando desse modo o seu máximo poderio reconhecido pelo Cosmos.

No Egito do Império Antigo, tudo o que diz respeito à pessoa real é de ordem mágica. Como o faraó é o único sacerdote, tem por função ”carregar” magicamente os rituais do Estado. 

O nome real está contido numa ”carteia”, cujo nome egípcio, chenit, significa ”o que cerca” (ou seja o contentor do universo sobre o qual reina o faraó). Segundo o princípio do jogo de palavras, capital para a compreensão do funcionamento da língua hieroglífica, esse termo implica também a ideia de ”conjura”. O nome real está protegido magicamente pela carteia. Atributos, insígnias, roupagens reais, estão carregados de magia. 

A coroa vem em primeiro lugar na lista desses objetos. É considerada como um ser vivo, como uma deusa, a um tempo leoa agressiva e serpente que ataca os inimigos do rei. Cantam-se-lhe hinos. Só o faraó é capaz de usá-la e de utilizar as suas virtudes secretas.

Abaixo, a Coroa branca longa, ‘hedjet’ , usada pelos Faraós do Alto Egito. Mencionada nos Textos das Pirâmides, num episodio que narra o rei a devorá-la com o objetivo de se impregnar com o seu poder: 


Aproveito para demonstrar alguns tipos de coras usadas no Egito:

Coroas: Antes de serem unificados, Alto e Baixo Egito tinham formas de governo diferentes, consequentemente, coroas diferentes. Esta representação apresenta a coroa branca, também chamada de hedjet, especifica para o faraó do Alto Egito; a coroa vermelha, deshert, do Baixo Egito; a coroa dupla, simbolizando a união das duas terras; e a coroa azul, usada em guerra. 


Segundo Maneton, o sacerdote de Sebennitos que na época grega consagrou uma obra célebre à história dos reis do Egito, o faraó Athotis (I dinastia, imagem abaixo) era um médico que redigia livros de anatomia. Praticou portanto uma arte mágica, abrindo o caminho para os seus sucessores. Nessa perspectiva, considera-se que todos os faraós foram mágicos institucionais.


No Império Antigo, Imhotep (imagem abaixo) foi o mais célebre dos mágicos. A sua nomeada era tal que, séculos mais tarde, os Gregos o identificaram com o seu deus da medicina, Asclépio. 

No Império Novo, os escribas prestavam culto ao ”deus” Imhotep; antes de escrever, deitavam na terra um pouco de água em memória do seu ilustre patrono. 


A personalidade de Imhotep era de resto essencial para perceber a extensão do ”campo mágico” no Antigo Egito. Esse personagem não era um pequeno feiticeiro de aldeia, mas sim o Primeiro Ministro do todo-poderoso faraó Djoser e o inventor da arquitetura de pedra cuja primeira obra-prima foi a pirâmide de degraus de Sakara. Por outras palavras, um homem de Estado de primeiro plano cujas competências mágicas eram julgadas indispensáveis para levar corretamente a cabo a sua função. 

Certas ”receitas”, atribuídas a Imhotep, foram transmitidas à posteridade. Como esta: ”Tomar uma mesa de madeira de oliveira de quatro pés. Colocá-la num sítio puro, no meio; cobri-la completamente com um tecido. Meter quatro tijolos debaixo da mesa, uns em cima dos outros. Diante da mesa, um turíbulo de argila... 

Colocar carvão de madeira de oliveira no turíbulo, uma gansa selvagem gorda triturada com mirra, fazendo bolinhas e colocando-as no braseiro, pronunciar uma fórmula, passar a noite sem falar a quem quer que seja, na terra. Ver-se-á o deus sob a forma de um sacerdote vestido de linho. O mágico evoca então aquele que está sentado nas trevas, mas no meio dos grandes deuses, buscando e recebendo os raios do Sol”.

Hordjedef (abaixo), um dos filhos de Khéops, era notado pelos seus extensos conhecimentos e as suas sábias palavras. Descobriu diversos livros antigos de magia, cujas fórmulas foram integradas nos escritos rituais. 


Khaemuaset, quarto filho de outro faraó célebre, Ramsés II, era sumo sacerdote de Ptah em Mênfis. 


Construiu e restaurou numerosos monumentos. Tinha uma paixão pela arqueologia e pelo estudo dos documentos antigos. Passava por ser um grande sábio e inspirou duas histórias de magia acerca das quais voltaremos a falar.

Hórus, filho de Panéchi, era um mágico que viveu na Época Baixa. Teve de combater um mago etíope que ameaçava a segurança do Estado. Este Hórus tinha vivido quinze séculos antes e tinha reencarnado para vir em socorro do seu país. 

É ao mágico Esatum(abaixo), sacerdote que viveu na época de Nectanebo II (359-341), que se deve a salvaguarda da famosa Estela de Metternich. 



Esatum constatara que uma inscrição num templo da cidade santa de Heliópolis tinha sido retirada. Para que esse precioso testemunho não se perdesse, mandou copiar o texto numa esteia que chegou até a nós. Esta pequena galeria de retratos tinha como simples objetivo ilustrar a continuidade do estatuto de mágico no decurso dos séculos que viram desenrolar-se a aventura egípcia. Seria possível, evidentemente, citar dezenas de outras figuras. 

Pensemos ainda em Harnuphis (abaixo), o último mágico egípcio de grande renome. Estava presente nos campos de batalha da Mordávia, em 172, no lugar em que guerreava o exército de Marco Aurélio. 


Faltou a água e os gregos, privados de aprovisionamento, arriscavam-se a morrer de sede. O mágico egípcio provocou a chuva, apavorando os bárbaros e salvando os soldados de Marco Aurélio. 

A velha ciência da terra do Egito provava assim que nada tinha perdido da sua eficácia.