André Leonardo Chevitarese possui Graduação em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – 1986), Mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ – 1989), Doutorado em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP – 1997) e Pós-Doutorado em História e Arqueologia, pela Universidade de Campinas (UNICAMP – 2003). Atualmente é Professor Associado I da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor do Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual de Campinas. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga Grega, Romana, Judaísmo Helenístico e Paleocristianismo.
1) Quais as perspectivas no Brasil, a cerca das investigações do Jesus histórico?
Há várias perspectivas em andamento. A primeira delas é o fato de que nos últimos dez anos, em diferentes universidades brasileiras, independentes de serem elas públicas ou privadas, grupos de pesquisas estão se consolidando no sentido de buscarem, por meios estritamente acadêmicos e científicos, um conjunto de resposta sobre a figura de Jesus, sobre os primeiros seguidores de Jesus, bem como a forma como essas comunidades cristãs foram constituídas. Esse é o primeiro aspecto que eu acho fundamental. O segundo é que esses grupos de pesquisas, pelo menos boa parte dos que eu conheço, adotam uma postura extremamente rica, na medida em que se colocam campos de experimentação transdisciplinar, isto é, historiadores, filósofos, teólogos, antropólogos se reúnem para debater essas questões em torno de um cristianismo original. Então as idéias tendem a ser muito mais ricas e plurais. O terceiro ponto, associado ao enorme esforço de um grande número de pessoas nesse país, diz respeito a ampliar de forma extremamente significativa o leque fundamental para se entender e estudar esse cristianismo originário, no geral, e o Jesus Histórico, no particular. Quer dizer os textos neotestamentários continuam decisivos, porém outros documentos passam a interagir advindos da cultura material e da epigrafia ganham relevâncias. Documentos imagéticos também ganham importância nesses grupos de pesquisas. Em suma, na última década, no Brasil, tem-se ajudado a consolidar e a formar grupos que eu diria que estão extremamente antenados com o que se trata nas pesquisas mundiais, mais que aqui trazem algumas novidades, já que rompem com determinados ranços ou panelinhas, a coisa não é mais o historiador, o teólogo, o filósofo; são campos mais transdisciplinares. Os intelectuais estão mesmos dispostos a avançar nas pesquisas e não demarcar seus respectivos territórios.
2) Sabendo da sua experiência em Arqueologia, quais são as principais contribuições da Arqueologia para historicização da figura de Jesus?
Eu vou dar um exemplo que pode sistematizar bem essa questão. Há uma passagem em João 5:1-9 bastante conhecida porque ela diz respeito a um individuo com problemas de saúde, de movimento, que está há anos com esse problema, tentando entrar na piscina de Betesda. Jesus se aproximar dele e o cura, sem que ele precise entrar nessa piscina. Isso é a leitura (teológica) do texto. Mas, essa piscina, descoberta quando da ampliação de uma casa no contexto de Jerusalém no final do século XIX, foi escavada em meados do século XX. Para surpresa dos arqueólogos, alguns dados vieram à tona: o primeiro deles é que essa piscina faz parte de um complexo ligado ao santuário de Serápis (Asclépio) que era o deus associado à cura. Ela tem muito pouco (pelo menos o que foi escavado) haver com o ambiente estritamente judaico. Talvez, por isso, Jesus não mandou o homem mergulhar na piscina; ele o curou ali mesmo na borda. Este era um santuário do deus da cura, Asclépio, e parece ter muito mais relação com as guarnições multiétnicas romanas estacionadas em Jerusalém, o que não quer dizer que ele também não possa ter atendido a judeus helenizados. Segundo dado é que João fala na passagem em questão que essa piscina tinha cinco pórticos, contudo os arqueólogos verificaram que os tais cinco pórticos são resultados de uma ampliação da piscina realizada no século II, pelas estruturas arquitetônicas aplicadas, pelo tipo de cimento, pela argamassa. Eles associaram os tais cinco pórticos a uma realidade do século II, do que propriamente a do século I. Neste sentido, os dados arqueológicos permitem ao pesquisador pensar para essa passagem uma possível “interpolação”, isto é, o redator final, pelo menos nesta passagem específica, está longe de ser alguém do século I. Trata-se de alguém preso ao século II, que olha aquela realidade que lhe é dada e a projeta como sendo a de Jesus. Mas, na verdade, aquele complexo já tinha sido ampliado e o redator final não tinha conhecimento disso. Fica, então, nessa passagem, um vestígio, uma pista para nós de que a mão que produziu esse texto é a de um interpolador tardio, que intervém no texto, ampliando-o. Essa intervenção nos ajuda a datar a própria passagem. Terceiro, e ai já é um problema relacionado aos manuscritos. Os mais antigos não falam de um anjo que movimenta as águas. Essa ação que faz com que a água se movimente, onde o primeiro homem a pular dentro da piscina ficaria curado, parece ter muito pouco haver com o judaísmo e mais com os rituais de cura de Serápis / Asclépio, onde todos ficavam deitados, esperando o deus passar; e, ao passar, ele produz um movimento, fazendo as pessoas crerem que estavam sendo curadas pelo deus. Vê-se, então, que uma simples passagem abre um enorme espectro de análise. A arqueologia mostra que os dados relativos à piscina de Betesda se inserem num contexto de tempo de Serapis, o qual nada tem haver com o Judaísmo e sim com o politeísmo. Os tais cinco pórticos seriam o resultado de uma expansão do complexo no século II; e, terceiro “o anjo se mexer” está associado a manuscritos mais tardios, já que os mais antigos não mencionam isso. São pequenos detalhes, pequenas pistas, que, as vezes, estão claros, não precisando muito da Arqueologia. Tem uma passagem onde Marcos (2:1-12) menciona quatro amigos carregando um colega paralítico. Eles tentam chegar até Jesus, mas não consegue. Há uma multidão em torno da casa e eles organizam um estratagema, qual seja, o de colocar o amigo no interior da casa, onde estava Jesus. Assim, eles abrem um buraco no teto da casa e descem a maca. Ora, a mesma passagem em Lucas (5:17-20) fala que os amigos ao chegarem na parte de cima da casa, a destelharam. Essa pequena diferença tem levado muitos a pensar que Marcos estava mais próximo de um ambiente de uma Galiléia judaica, onde a imensa maioria das casas eram simples e pobres, onde quase todas não deixaram vestígios (os materiais utilizados nas construções eram altamente perecíveis). O tempo se encarregou de levá-los. Ao mesmo tempo, a realidade de Lucas, um autor, cujo grego era absolutamente diferenciado, faria parte de uma “classe média e / ou abastada”, que não viveria em casas de barros e tetos de palha, mas que teriam, o que as aproximaria de um contexto grego urbano. Em tais áreas, o uso de telhas era bastante comum. Uma simples passagem parece mostrar que esse nosso autor Lucas já projeta uma realidade de uma Galiléia ou mesmo de uma Judéia que era muito mais grega que propriamente judaica. Arqueologia, sobre muitos aspectos, nos dá ótimas pistas, não para dizer que uma passagem bíblica está errada. É claro que a Arqueologia não existe pra isso, mas ela projeta luzes sobre essas passagens, de modo que a gente possa ver toda uma série de outras questões que a superfície do texto não nos permite ver. Porque o olhar arqueológico é muito mais profundo do que uma leitura chapada, como normalmente a gente faz.
3) Como relacionar Arqueologia e História nas pesquisas acadêmicas brasileiras?
Isso é uma questão absolutamente interessante porque fala de duas disciplinas que, para as pesquisas relacionadas tanto a judaísmo quanto a cristianismo, precisam comparecer. É BM insistir nesse tema, logo de início: tratam-se de duas disciplinas. É extremamente importante que quem se interessa em agregar dados arqueológicos à sua pesquisa tenha a clareza que a Arqueologia não é ama da História, ela não é aquela ama de leite que coloca o seio para fora de forma que o historiador vá beber dessa fonte. Ao contrário, a Arqueologia, enquanto disciplina, possui métodos e teorias claros e definidos. O historiador, ao ir ao texto arqueológico, precisa compreender que esse texto vai produzir informações que podem: primeiro, confirmar o que a História tem a dizer; segundo, contradizer o que o texto está dizendo; e terceiro, a Arqueologia pode, em parte, sustentar um argumento do historiador e em parte, negá-lo. Portanto, o historiador compreendendo e respeitando a disciplina arqueológica saberá estabelecer, se bem preparado, todos os contrapontos, elucidar todas as questões levantadas a partir do encontro que ele próprio tomou iniciativa de fazer.
Incomoda-me, muitas vezes no mercado editorial, a existência de publicações onde há muito mais ignorância do que propriamente compreensão. Há livros do tipo “e a Bíblia tinha razão” ou “a bíblia não tinha razão” a partir de relatos arqueológicos. Para mim, todos eles são uma grande bobagem, já que, em ambos os casos, o cerne desses trabalhos é lançar mão da cultura material apenas e tão somente para ilustrar e / ou confirmar ou não um relato bíblico. Como se um arqueólogo, quando faz uma escavação, tivesse em mente que com esse dado ele queria confirmar que a bíblia tinha razão ou prová-la a sua falta de razão. Um arqueólogo sério não trabalha assim. Portanto quando se pensa num diálogo entre história e arqueologia é indispensável que o historiador entenda a arqueologia como uma ciência com todas as suas especificidades, caso contrário é melhor não usá-la porque ela será uma ama de leite a amamentar o historiador que quer simplesmente ilustrar o seu grande saber.
4) De que forma, você como profissional da área de História antiga, acredita que seja possível levar a antiguidade para além dos bancos da academia?
Eu acho que é possível sim. Primeiro é preciso romper com a idéia de que haja um especialista em antiguidade Não há um professor de história antiga. Essa é uma questão base se formos capazes de entender. Nós que trabalhamos com pesquisas relacionadas ao mundo antigo, se nos formos capazes de entender que não somos pesquisadores da antiguidade, mas pesquisadores do tempo presente, os quais se voltam a um período histórico específico, a fim de compreender o seu próprio tempo, a sua própria realidade. Fora desse princípio, reina uma grande confusão. Como a história antiga não está lá, mas está sendo reelaborada, reescrita e resignificada em termos desse tempo presente, tudo que nós fazemos, em grande parte, é dar conta dessa experiência presente e não a do tempo passado. Não existe o pesquisador da antiguidade, não existe o pesquisador medieval; as suas demandas, enquanto pesquisas, são demandas do tempo presente, não do tempo passado. O tempo passado não está lá. Ao contrário, ele está sendo reconstruído. Se eu perco de vista, por exemplo, que helenismo é um conceito altamente contaminado de uma ideologia que me prende ao século XIX, eu vou achar que eu sou um pesquisador da antiguidade, pesquisando o período helenístico. Isso é uma criação do século XIX, já que o que está por detrás do período chamado helenístico, senão o pressuposto de que foi graças a Deus interferindo na história, ou seja, Deus intervindo na história, que levou Alexandre a expandir o seu império em direção ao Oriente mais longínquo, de modo que toda essa população oriental pudesse aprender o grego. Com isso, eles puderam ler os evangelhos. É isso o que está por detrás do conceito de Helenismo. Então, se eu acho que sou um pesquisador da antiguidade dando conta do período de Alexandre com sua helenização, eu preciso mesmo acreditar que Alexandre estava helenizando alguma coisa. Esse é um conceito absolutamente encravado no século XIX, marcadamente eurocêntrico. Certamente, por essa perspectiva, acaba-se por sentir saudade de Alexandre, já que, foi por meio de sua ação, que os evangelhos puderam ser lidos por esses tais árabes e indus. Hoje, essa leitura se complica, ela ganha um ar surreal. Mas, eu me interesso, entre outros aspectos, de uma região chamada Bactria, que seria hoje um grande território dominado por países contemporâneos como Afeganistão, Paquistão, e principalmente noroeste da Índia. O embate historiográfico que ainda se sustenta para essa área é se os gregos situados na Bactria foram indianizados ou se eles helenizaram a Índia. No fundo, ainda se vê o resultado de uma aplicação que nos costumamos fazer, de colocar nas nossas salas de aula sem a devida reflexão: assumimos que houve um momento de helenização do oriente, mas nunca o contrário, isto é, que os tais orientais reagiram, ocorrendo, com isso, uma orientalização dos gregos. Ora, essas questões não têm nada haver com antigo, como também não tem nada de antigo projetarmos para antiguidade grega ou romana os indivíduos serem todos brancos, já que ali haviam muitos negros. Mas, até a noção de negro e de branco passa por um crivo racial que não estava lá, nesta tal antiguidade, mas no século XIX. Então eu acho que a gente vai dar um grande passo quando nos convencermos que todos são pesquisadores do tempo presente, que optam por um determinado recorte temporal e espacial para pensar em suas próprias realidades.
5) Qual o limite entre o Jesus histórico, Jesus mito, e Jesus profeta?
Essa é uma linha muito tênue. Eu diria o seguinte: para quase a totalidade dos pesquisadores é mais fácil definir o Jesus numa perspectiva estritamente religiosa de fé, principalmente num contexto cultural brasileiro, onde as possibilidades de escolha de uma criança que nasce no Brasil de não ser cristão tende a quase zero. Portanto, desde muito cedo os dados advindos sobre Jesus são todos eles mediados por percepções marcadamente envoltas num contexto religioso, demarcado por um ambiente de fé. Jesus, então, antes de qualquer coisa, adquire essa leitura de divino, de Deus. Olha quanta teologia tem aí, desde o indivíduo que começa perambular pela Galiléia até ele chegar a ser Deus. E essa percepção teológica, ao invés de ser lida assim, é assumida como verdade. Se eu falo de Jesus, eu falo de fé, e ao falar de um Jesus de fé, eu não leio essa percepção como sendo teológica, mas histórica. Tem-se aí uma inversão: o retrato de Jesus que eu tenho é um retrato histórico de Jesus Deus, como se isso fosse História, e não profissão de fé. O Jesus histórico é um grande estranhamento, porque, se desde criança somos ensinados a ver o Jesus da fé e o Jesus da História com um só pessoa, então o Jesus histórico da academia nada tem de histórico, nada tem de verdadeiro, porque lhe falta o elemento fé. Com isso eu não quero dizer se essa inversão é boa ou ruim, mas é assim que começa. Em muitos casos os pesquisadores sentem uma enorme dificuldade em pensar o Jesus histórico descontextualizado de toda a fé que ele atribui a Jesus. Então como é que se pode pensar uma pesquisa nestes termos. Eu acho que o exercício maior, antes de se buscar uma pesquisa direta, pelo menos eu faço assim com os meus alunos, é trabalhar dois, três, quatro semestres com esses alunos, por meio de muita disciplina e orientação acadêmica; discutir muitos textos com eles, de modo que eles compreendam que a sua experiência de fé, ao ser deslocada da pesquisa do Jesus histórico, não os colocará no inferno. Para que suas pesquisas ganhem credibilidade acadêmica, essa separação precisa se impor. Eles precisam ousar, eles precisam ter certa coragem de pegar, por exemplo, o evangelho de João, para a gente se manter em João, e perceber interpoladores agindo. Se perguntar: Jesus foi batizado por João? Saber que por detrás dessa questão, há muita teologia, há muito debate teológico. E Jesus, ele batizou alguém? Se batizou, no ato do batismo, havia ou não a presença do Espírito Santo? Isto está em João, não sou eu quem estou dizendo, este é o embate que está lá. Como é que se resolve isso? Um interpolador vai entrar em João 3:22 “ Depois disto foi Jesus com seus discípulos para o território da Judéia e permaneceu ali com eles e batizava”. Jesus batizava está dito. Vamos para o capítulo quatro versículo 1 e 2 de João “Quando Jesus soube que os fariseus tinha ouvido dizer que ele fazia mais discípulo e batizava mais que João – ainda que de fato Jesus mesmo não batizasse mais os seus discípulos”. A imensa maioria dos que querem trabalhar com Jesus histórico não consegue ver essa contradição em 3:22. Jesus batiza, em Jo 4:1, mas em 4:2 “ainda que ele não batizasse” Então eu digo para os meus alunos: vejam aqui, há duas camadas redacionais. A mais antiga é aquela que informa que Jesus batiza, a comunidade está discutindo a figura de Jesus, e o que é a discussão? Se ele batiza, o Espírito Santo se faz presente. Alguém entrou na discussão posteriormente e disse não, Jesus não batiza. E parece que isso é que saiu vitorioso, porque essa mesma camada antiga vai se reproduzir no capítulo 7 de João a partir do versículo 37, quando esse interpolador de 4:2 fala assim “no último dia da festa e a mais solene Jesus de pé disse em alta voz: “se alguém tem sede venha mim e beba, quem crê em mim como diz a escritura dos seus seios jorraram rios de água viva”. Ele falava do espírito que deviam receber os que nele cressem pois não havia ainda espírito porque Jesus não fora ainda glorificado. Implica dizer, para a camada posterior, que está em 4:2, e que saiu vitoriosa desse embate, enquanto Jesus não ressuscitar e subir aos céus o espírito não se fará presente. Isso tem haver com Jesus histórico? Tem, porque essa comunidade joanina, que gradativamente vai sendo constituída ao longo de um processo histórico, nos seus primeiros passos admite com toda segurança que João, cognominado Batista, é o mentor de Jesus e que, esse último aprende com o primeiro a batizar. Jesus agrega novos elementos neste batismo. Pode-se afirmar com uma certa segurança: Jesus batizava e esse dado provém mesmo de Jesus. Ele não é uma invenção tardia. Olha o que está sendo dito em 3:22 em 4:1 o indivíduo ao ser batizado tem dentro de si um ente, quando a gente abre o mapa das comunidades judaicas, nos diferentes judaísmos dessa primeira metade do século I, só essa comunidade faz isso, todas as outras fazem diferente, é Jesus quem agregou esse dado. Mas isso gerou um problema, conforme essa comunidade foi recebendo mais gente via conversões; os debates continuaram, idéias continuaram a ser produzidas sobre quem era esse Jesus. O Jesus da história está sendo pensado nos ismos, se ele batizava ou não já não era a questão chave; a questão é que idéia eu tenho a cerca do que foi o batismo, e o que é o batismo na minha comunidade e de como eu vou fazer esse diálogo com Jesus. Se você, enquanto um pesquisador do Jesus histórico ou dessas comunidades cristãs, não está suficientemente educado, do ponto de vista da pesquisa, como você espera perceber esses embates? Como você poderá identificar essas camadas mais antigas e as mais recentes em termos de redação de um texto? Como você espera identificar essas contradições? Porque as igrejas não nos ensinam a ver as contradições, mas, ao contrário, elas buscam sempre harmonizar o texto bíblico. Tudo é pensado em termos relacionais, como se estivéssemos diante de um grande grupo de amigos que sentaram para produzir os textos sagrados. A gente harmoniza toda a leitura; isso é fruto da nossa educação. Isso precisa ser desconstruído para que uma nova metodologia de leitura apareça. Agrega-se a essa nova metodologia uma questão que não é acadêmica mais que precisa ser resolvida. Ao se desconstruir uma educação marcadamente de escola dominical, de escola catequética, e se reconstruir uma educação acadêmica para essa pesquisa. Porque o indivíduo pode estudar sobre outras coisas, aí ele não vai precisar aprender a reconstruir. Ele precisa entender que ao fazer isso ele não vai par o céu, nem para o inferno, vai apenas fazer pesquisa. Sua fé continuará preservada porque ela é altamente subjetiva, é dele e nada tem haver com a pesquisa. Meus alunos, em dois anos, estão aptos para essas pesquisas e, se são religiosos, continuam em suas denominações, sem problemas. Eu os oriento a não falar muito em suas igrejas, porque se eles começam a falar lá em suas igrejas sobre as pesquisas, eles estarão fora de contexto. Numa igreja as pessoas buscam reparações, consolo, o ombro amigo de seu Deus. As pessoas não estão buscando história, nem arqueologia. Mas a recíproca é verdadeira, a academia não é o lugar para se resolver essas questões de ordem mais interna, porque ela está conectada com pesquisa. Então a dificuldade em pensar o Jesus histórico, Jesus da fé ou Jesus mito é ter mais ou menos pressa em começar o trabalho de pesquisa. Quanto mais lento, melhor educado for o indivíduo em termos de orientação, menos problema e mais seriedade naquilo que ele vai produzir. Quer dizer, para dar gosto de ler o que ele está produzindo. Normalmente o que eu leio é uma certa confusão entre fé e história, e isso não tem nada haver com o indivíduo ser mais inteligente ou menos inteligente, tem haver com estar mais ou menos preparado para pesquisa.
6) Como o senhor vê o ensino da história antiga no quadro de horário das universidades?
A carga horária é suficiente ou não? Eu diria que sim, pelo menos nas realidades que eu conheço: UFRJ, UNICAMP, UFF, UNIRIO, UERJ e Rural. Essa carga horária é absolutamente suficiente. O problema é se os nossos professores estão suficientemente preparados, capacitados para lecionar História antiga. Porque sobre muitos aspectos, boa parte deles (e a realidade a que me refiro é bem maior que o Rio de Janeiro) trabalha história antiga ainda com livros do tipo “História das Sociedades”. Os dados pesquisados por Emanuel Rolf V. Cabeceiras, da UFF, os quais foram apresentados mais ou menos, há uns dez anos atrás, na Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, mostravam que em um número significativamente grande de universidades públicas e privadas das capitais norte, nordeste, sudeste, centro este e sul, as aulas de história antiga eram dadas por professores que não eram especialistas em Antiga, que não dominavam minimamente uma bibliografia e que reproduziam barbaridades para os seus alunos. Então, o problema, não é tanto carga horária, mas a capacidade do docente de aproveitar bem o pouco ou muito de carga horária que se tem para trabalhar essa tal história antiga.
7) Professor como o senhor identifica fonte histórica nos escritos bíblicos?
Eu identifico muitas fontes disponíveis para o pesquisador pensar a sua pesquisa. O teólogo dificilmente abre mão do material bíblico para redigir um trabalho monográfico, uma dissertação de mestrado, uma tese de doutorado. Ao contrário, ele pensa o texto bíblico, a bíblia como um todo, como estando profundamente interligada e auto-explicativa, por si mesmo. Então, para resolver uma questão de Marcos, uma questão de ordem conceitual, o teólogo pode lançar mão de Jeremias, já que os textos tendem a se auto-completarem. Porque a Bíblia é pensada como um documento, um único documento e não o nominativo plural grega Ta Biblia, livros. Mas isso é um método da Teologia que eu respeito. Entretanto, o fato de eu respeitar não significa que esse método me basta, me seja suficiente, afinal não sou teólogo, mas historiador. Então eu agrego outros materiais, outros elementos, outros documentos. E o que é legal que nesses grupos de pesquisas que eu freqüento, e que são transdisciplinares por essência, os meus pares da teologia, apesar de gostarem ou detestarem o que eu produzo, prestam muito atenção no que eu falo. Eu sinto e vejo produzir diferenças, tanto é que, nos encontros posteriores, eu vejo aquele meu colega agregar ao documento bíblico (que ele entende ser o documento por excelência) outros documentos. Isso é bacana porque é a pesquisa andando, é a pesquisa fluindo. Eu publiquei recentemente um trabalho sobre a questão de como no judaísmo helenístico e romano o sacrifício de Isaac sofre algumas alterações em termos de leituras, tanto do ponto de vista textual como imagético. Em Josefo (Antiguidade Judaica) Isaac não é um menino como no livro de Gênesis, é um homem de vinte cinco anos, que é informado por Abraão que ele vai ser sacrificado. Ele fica radiante, feliz mesmo por saber que vai ser sacrificado, já que ele vai voltar pra casa do verdadeiro Pai dele. Da onde veio isso? Da onde Josefo tirou isso? É de um contexto de martírio. Josefo viveu a primeira grande guerra judaica contra os romanos, e tem a informação, ao vivo e a cores, porque ele foi testemunha ocular dos mártires judeus. Ele mesmo não quis ser um, mas ele viu os mártires lá. Ele tem a leitura de macabeus tanto primeiro como segundo livros; ele tem o dado da viúva e seus sete filhos sem medo de morrerem porque crêem na ressurreição. Todo material imagético datado do final do século II e início do III EC, Isaac também é um homem adulto. A patrística vai ler Jesus como um novo Isaac, da mesma forma que Isaac carregou a lenha, Jesus carregou a sua cruz. Mas, eles têm suas diferenças também: Isaac morreu e não ressuscitou e Jesus morreu e ressuscitou. Então você amplia o seu corpo documental, e aí você vai ter grande surpresas na pesquisa, sem sombras de dúvidas.