quinta-feira, 19 de março de 2015

As Civilizações do Oriente Próximo na Construção da Religião dos Hebreus


A história das religiões e religiosidades da humanidade está profundamente ligada na necessidade de achar respostas para a complexidade de sua existência. Medo do desconhecido, anseios, sentimentos de perda, são terrenos férteis para a criação de crenças no sobrenatural, notadamente entre as pessoas com pouco conhecimento das leis que regem a natureza, onde estas crenças e rituais religiosos procuram preencher este vazio imanente presente em nosso consciente, e que na verdade nada mais são do que produções humanas intrinsecamente enraizadas na esfera da cultura e que propõem estabelecer um conceito e uma filosofia histórica.
Nesse aspecto, de acordo com Fustel de Coulanges[1], foi diante da morte que o homem, pela primeira vez, teve a ideia do sobrenatural e tentou vislumbrar mais do que seus olhos humanos podiam mostrar-lhe. A morte foi, pois, o seu primeiro mistério, colocando-o no caminho de outros mistérios, elevando seu pensamento do visível para o invisível, do transitório para o eterno, do humano para o divino.
Essas criações humanas do sobrenatural começaram a pender para o ostracismo, sobretudo pelo avanço da ciência a partir do século XIX. A História como ciência, eivada pelas descobertas da arqueologia nos estudos dos fósseis, da antropologia, da geografia, da filosofia, do estudo das religiões comparadas, bem como das demais ciências humanas, nos proporcionaram enxergar a raiz destas manifestações.
Infere-se, portanto, que as primeiras civilizações, sobretudo as mesopotâmicas, de onde vimos nascer a escrita, os códigos de leis, a arte da guerra e as instituições, bem como rivalidades e modos de vida que até hoje ainda existem em algumas partes do mundo, nos legaram também a religião, influenciando, no caso das civilizações do Oriente Próximo, todo o mundo ocidental.
Essa religiosidade perpassa milênios e inúmeras civilizações dentre Sumérios, Acádios, Hititas, Babilônios, Assírios, Persas, Egípcios, Romanos, entre outros, que ao longo do tempo foram se transformando e evoluindo, mas que não ficaram alheias a diferentes interpretações e enxertos ao longo desse processo.
Muito embora a Bíblia hebraica nos encaminhe para uma religião com características originais, dentre as quais a de ser monoteísta desde a sua essência, uma análise mais acurada e despida de preconceitos nos permite entender que tais características começaram a delinear-se somente a partir do século VII AEC e que, por conseguinte, ajudaram a esculpir os futuros pilares do Cristianismo.      
 2 ELEMENTOS DA RELIGIOSIDADE DAS PRIMEIRAS CIVILIZAÇÕES DA MESOPOTÂMIA E EGITO ANTIGO
 Os alicerces de nossa sociedade atual, sobretudo dos ocidentais, remontam as primeiras civilizações que habitavam a região entre os rios Tigre e Eufrates no Oriente Próximo a cerca de pelo menos 6.000 anos atrás. Ali, em meio a diversas sociedades que existiram uma após a outra, travando guerras de conquistas, suas culturas também foram sendo assimiladas umas após a outra, acrescentando um ou outro elemento de suas próprias características, não sendo diferente no aspecto da religião.
Por muito tempo, as histórias sociais e políticas, bem como as do aspecto da religiosidade dessas antigas civilizações, permaneceram quase desconhecidas, sendo a Bíblia a única forma de se conhecer algumas características dessas sociedades, tratando do tema quase sempre por olhares etnocêntricos. Entretanto, os avanços científicos na área das ciências humanas, permitiram que historiadores e especialistas no estudo dessas sociedades desenvolvessem pesquisas o que nos possibilitou conhecer e compreender melhor como elas viviam e como tratavam seus problemas de aspecto moral, o que vestiam, bem como suas preferências, entre muitas outras.
Os estudos que o pesquisador Federico A. Arbório Mella[2], dentre outros historiadores e arqueólogos, desenvolveu com base em escavações empreendidas nas cidades antigas da Mesopotâmia, permitiu concluirmos que todos os povos da antiguidade, incluindo os hebreus, tinham práticas religiosas politeístas, ou seja, conservavam uma variedade de deuses o que se denominou chamar de Panteão e que representavam os elementos da natureza (água, ar, Sol, terra, etc), bem como apresentavam outras inúmeras características mitológicas semelhantes.
Dentre essas civilizações, os Sumérios, reconhecidos pelo desenvolvimento da primeira forma de escrita no mundo pela introdução de caracteres cuneiformes em tabuas de argila, ocuparam a região da Mesopotâmia por volta do quarto milênio AEC. Deslocando-se do planalto do Irã estabelece-se na região da Caldeia, que compreende a Baixa e a Média Mesopotâmia, tendo Quish como primeira cidade fundada, seguida por Eridu, Nipur, Ur, Uruk e Lagash.
 Desenvolveram uma civilização grandiosa em feitos e descobertas que serviram de base para outros povos da Antigüidade. Desde a chegada dos Sumérios até a formação do primeiro Império Babilônico (em 2003 a.C.), uma série de outros povos ocuparam a região e contribuíram para a composição do que hoje conhecemos da história mesopotâmica.[3]

A religião dos Sumérios se constituía de mitos que correspondiam a suas especificidades, algumas das quais tratavam de narrativas sobre a criação do mundo e do homem precedidas pela criação do cosmos (cosmogonia), exercendo forte influencia nas civilizações posteriores.
A despeito das divindades dos povos Mesopotâmicos, cada cidade tinha seu próprio deus. Marduk, na época de Hamurabi era o deus protetor da cidade da Babilônia e passou a ser o mais importante na região. Ishtar simbolizava a fertilidade, Baal dos fenícios era também cultuado pelos israelitas como Baal-Peor durante o período do reinado de Acabe e talvez sendo o deus oficial das dez tribos, (I Reis 18 – Bíblia hebraica). Os antigos mesopotâmicos também acreditavam na existência de heróis, demônios e gênios. Construíram diversos Zigurates, templos erguidos onde se acreditava eram habitados pelos deuses, os quais foram símbolos de uma arquitetura grandiosa dos tempos antigos. Neles os sacerdotes exerciam papel de elo entre os deuses e os homens. Uma enorme variedade de outros deuses fazia parte do Panteão mesopotâmico, dentre eles Enlil deus do vento e das chuvas, Shamach do sol, Anu do céu.
Os Persas, outra civilização que constituiu um império grandioso, acreditavam na imortalidade da alma e na existência do bem e do mal (dualidade) e sua religião denominava-se Zoroastrismo, em homenagem ao profeta Zoroastro ou Zaratrusta, líder espiritual que a criou. Não se sabe com precisão o período em que viveu Zoroastro, mas os historiadores situam sua vida entre o século XVIII e X AEC. Existe uma lenda que atribui o nascimento do profeta por intermédio de uma virgem e que desde sua adolescência possuía uma grande sabedoria. A religião zoroastrista é considerada por muitos especialistas no estudo das religiões, tais como Bart Ehrman, como a primeira manifestação religiosa de caráter monoteísta. De acordo com os textos do Avesta, uma coleção de livros sagrados dessa religião, a ideia de ressurreição fazia parte de um de seus fundamentos. Zoroastro também ensinou que o fim do mundo seria precedido por um grande acontecimento, a ser predito por profetas[4]. Os persas tiveram os seus profetas, que foram Ascedermani e Ascerdemat, os quais se acredita, correspondem aos personagens da Bíblia sob os novos nomes de Enock Elias.
Concernente aos Egípcios, esses também possuíam inúmeros deuses dentre os quais Rá, Anúbis, Osíris, Ísis, Hórus. Mas em dado momento, por volta do século XIV AEC, sem colocar em discussão neste trabalho as causas políticas deste feito, o faraó Amenófis IV promoveu uma reforma religiosa que constituiu Aton, representado pelo disco solar, como o único deus do Egito, abolindo a adoração milenar aos demais deuses e instalando o monoteísmo em seu país. Não obstante, devemos considerar o fato que por algum tempo a região de Canaã tenha sido uma colônia egípcia, bem como um grupo de hebreus tenha migrado para o Egito, possibilitando que houvesse um sincretismo religioso entre as duas culturas, conforme as pesquisas apontam[5].
Os sacrifícios de animais, bem como em certos momentos de seres humanos, também faziam parte do cenário religioso dos antigos povos mesopotâmicos como forma de apagar a “ira dos deuses”. Em diversos lugares tais como Ur, Mári, Assíria, Ugarit, Amou, por volta do século XXIV AEC era prestado um culto ao deus Molok. Nele, crianças eram queimadas vivas. Esse culto foi introduzido na história de Israel pelas mãos do Rei Salomão. “Da tua semente não darás para a fazer passar pelo fogo perante Molok, e não profanarás o nome do teu deus” (Levítico 18:21-Bíblia hebraica). Salomão construiu altares para o deus Camos dos Moabitas e para Molok dos Amonitas. (I Reis 11:1-7). Outros reis de Israel fizeram seus filhos passar pelo fogo à Molok. O rei Acaz (II Reis 16:1-3), Manassés (II Reis 21:1-6). De acordo com a Bíblia hebraica esse culto parece ter se tornado uma prática entre o povo. (II Reis 17:16-17). Escavações em sítios nos arredores de Israel também encontraram restos de recém-nascidos sob fundações de habitações de Cananeus e Hebreus, parecendo significar uma espécie de oferenda para edificação da casa aos deuses.
Em um regime político teocrático, tanto na Babilônia como na Assíria e demais povos da antiguidade, o poder emanava de um Deus dos deuses sendo que o representante político era considerado um deus na terra. De acordo com o historiador Emerson Borges[6], o sacrifício tem por objetivo ser substituto do fiel para expiação e salvação conforme se depreende de um poema antigo citado pelo mesmo autor: “Ele entregou o cordeiro pela sua vida. Ele entregou a cabeça de cordeiro por cabeça de homem”. Todas essas práticas de imolação são consequências ocidentais do sacrifício caldeu. É razoável, portanto, sugerir que esses mitos foram assimilados pelos hebreus que os transcreveram para o Talmud[7], sendo consequentemente retransmitido para os Evangelhos do Novo Testamento, demonstrando que, em religião, as ideias nem sempre são originais.

2.1 A origem e religiosidade do povo hebreu na história
Os hebreus descendem de grupos nômades de origem semita que habitavam o noroeste da Mesopotâmia e que migraram para a região da Palestina por volta do século XX AEC, buscando terras mais favoráveis à agricultura. Diferente de sua origem descrita na Bíblia hebraica, estudos arqueológicos demonstraram haver bases culturais semelhantes com os Cananeus, merecendo destaque para concluirmos que se trata, provavelmente, do mesmo grupo que originou-se daqueles semitas nômades. 
No que diz respeito as suas origens religiosas as quais compõe sua construção a partir das histórias contidas na Bíblia, notadamente as que mencionam a criação do homem através do barro, dilúvio global, torre de babel, um salvador sendo gerado por uma virgem, dicotomia céu e inferno, dentre outras, foram influenciadas por diversas civilizações que habitavam a região do crescente fértil com as quais conviveram e que os colonizaram e escravizaram ao longo de sua existência como bem discorre Emerson Borges:
Pesquisas demonstraram diversas provas de que a Bíblia hebraica foi sobremaneira influenciada por mitos tais como o Enuma Elish (babilônico), o Livro dos Mortos (egípcio), o código de Ur-Nammu (sumério), o código de Hamurabi (babilônico), a Epopéia de Gilgamesh (acadiano), a Batalha dos Titãs gregos e a origem do Hades (inferno), o culto persa depois assimilado pelos romanos ao Deus Sol Invictus (nascimento, morte e adoração do Deus sol entre as doze constelações do zodíaco) entre outros.

Quando do exílio dos hebreus para a Babilônia no século VI AEC, até este momento o politeísmo era uma realidade cultural dentre esse povo. Só depois, quando o rei persa Ciro conquistou a região e os libertou é que o culto de adoração exclusiva a YAHWEH[8] (Javé ou Jeová) foi tomando forma, tornando-se universalmente aceito como um culto monoteísta, provavelmente a partir do reinado dos Macabeus no século II AEC (BORGES, 2014).
Analisando a crença dos povos do antigo Oriente Próximo que tiveram proximidade com os hebreus acreditamos ser possível que o Deus bíblico do Antigo Testamento seria provavelmente uma compilação de deuses pagãos de civilizações vizinhas. Arqueólogos e especialistas em estudos das civilizações do Oriente Próximo tais como Finkelstein e Silberman estão escavando sítios nos arredores de Israel desde muitos anos tendo encontrado antigas inscrições, artefatos e esculturas que permitem concluir existir uma grande influência e junção de diversos deuses com personalidades correlatas. O deus El dos Cananeus, bem como Baal e Asherah são deidades personificadas na figura bíblica de Yahweh dos hebreus, concluem esses historiadores e arqueólogos[9]. Nesse aspecto, Haroldo Raimer[10] também acrescenta que:
O monoteísmo hebraico, apesar de ser uma expressão identitária de um grupamento social e cultural específico de hebreus ou judeus, não surgiu de forma estanque a partir do depósito de bens simbólicos de uma só cultura semítica. Sua construção se deu em diálogo e em intercâmbio com expressões simbólicas de outros grupos presentes no antigo Oriente Próximo no período em questão.

Existem inúmeros indícios de que Yahweh dos hebreus seja uma fusão entre o deus idoso e paternal El, o deus guerreiro Baal e a deusa Asherah dos Cananeus, tendo em vista existir uma base cultural comum entre esse povo e o antigo povo hebreu. A Bíblia hebraica os trata como culturas distintas, mas os achados arqueológicos apontam para uma profunda semelhança de língua, costumes e cultura material. Com relação à língua, poucas são as diferenças entre a dos cananeus com o hebraico bíblico. Embora Ugarit, principal cidade-estado Cananéia ter sido completamente destruída pelos bárbaros em 1200 AEC, os arqueólogos conseguiram recuperar diversas inscrições da cidade que permitiram observar uma mitologia com incríveis semelhanças com as narrativas da Bíblia. A palavra El, significando deus, é encontrada repetidas vezes na versão original em hebraico nos textos do Antigo Testamento da Bíblia hebraica. El também se refere a uma divindade singular, como patriarca ou chefe de família dos deuses. Na cidade Cananéia de Ugarit, El tem simbolismo com a figura de Deus no período patriarcal mencionado no livro do Gênesis e personificado pelos ancestrais dos hebreus, Abraão, Isaac e Jacó. Conforme Emerson Borges (2014):
El Shadday (literalmente “El da Montanha”, embora a expressão normalmente seja traduzida como “Deus Todo-Poderoso”), El Elyon (“Deus Altíssimo”) e El Olam (“Deus Eterno”). O curioso é que, na mitologia Cananéia, El também é imaginado vivendo no alto de uma montanha e visto como um ancião sábio de vida eterna.

Ainda de acordo com Emerson Borges “El é um nômade, vivendo numa tenda dos beduínos e tem uma relação especial com os chefes dos clãs e tal como Abraão, Isaac e Jacó, ele os protege e lhes promete uma descendência numerosa”.
Outros estudos apontam que Yahweh era uma divindade originária do Sinai, onde a própria Bíblia nos oferece tal indício mencionando que Moisés teve contato com os povos desta região por meio de seu sogro Jetro, o qual era Quenita. “E Moisés tornou-se pastor do rebanho de Jetro, sacerdote de Midiã, de quem era genro” (Êxodo 3:1). “E os filhos do queneu, de quem Moisés era genro” (Juízes 1:16). É plausível sustentar que os hebreus tinham uma conexão com os Quenitas e Midianitas que viviam no deserto ao sul de Israel, sendo perfeitamente coerente dizer também que a origem de Moisés pode ser uma construção literária de tribos nômades como os primeiros hebreus e cananeus que adoravam a divindade El. Outros textos bíblicos também confirmam que a habitação original de Yahweh (Jeová) se estabelecia no deserto do Sinai:
E ele passou a dizer: “Jeová de Sinai ele veio, e raiou sobre eles desde Seir, reluziu desde a região montanhosa de Parã, e com ele havia santas miríades, à sua direita, guerreiros pertencentes a eles (Deuteronômio 33:02). Jeová, quando saíste de Seir, quando marchaste desde o campo de Edom, tremeu a terra... Montes fluíram de diante da face de Jeová, este Sinai, de diante da face de Jeová, Deus de Israel (Juízes 5:4-5). O próprio Deus passou a chegar de Temã, sim, um Santo desde o monte Parã. Sua dignidade cobriu os céus. e do seu louvor encheu-se a terra (Habacuque 3:3)[11].

Em relação ao politeísmo dos hebreus também é na própria Bíblia que encontramos as evidencias. “Pequei. Agora, por favor, honra-me diante dos anciãos do meu povo e diante de Israel, e volta comigo, e eu certamente me prostrarei diante de Jeová, teu Deus” (I Samuel 15:30). Nesta passagem o Rei Saul implora ao profeta Samuel perdão por não ter cumprido sua ordem em exterminar toda a nação dos Amalequitas, incluindo animais, mulheres e crianças recém-nascidas, bem como o próprio Rei Aguague que foi poupado por Saul assim como o melhor do seu rebanho. Samuel então diz que Yahweh havia rejeitado Saul. A expressão usada por Saul, “teu Deus”, nos remete concluir que Yahweh era Deus apenas de Samuel e que Saul reverenciava outro Deus, pois Saul pertencia a uma tribo diferente da tribo do profeta Samuel. As evidencias arqueológicas indicam que cada tribo tinha seu próprio Deus antes da reforma religiosa empreendida pelo Rei Josias.
Existiam profetas de diferentes deuses no Antigo Israel: de Jeová, de Baal, de Asherah, entre muitos outros. Diversas cidades de Israel contemplam Baal em sua formação, tais como Baal-Gad, Baal-Hammon, Baal-Thamar, entre outras[12]. Vejamos outras referencias bíblicas que nos permite inferir que os antigos israelitas, a exemplo das demais civilizações da antiguidade, cultuavam diversos deuses:
Certo dia, Acazias caiu da sacada do seu quarto no palácio de Samaria e ficou muito ferido. Então enviou mensageiros para consultar Baal-Zebube, deus de Ecrom, para saber se ele se recuperaria (2 Reis 1:2). Quem entre os deuses é semelhante a ti, ó Jeová?.  (Êxodo 15:11). Não há nenhum igual a ti entre os deuses, ó Jeová, nem há quaisquer trabalhos iguais aos teus. (Salmos 86:8). Agora sei deveras que Jeová é maior do que todos os deuses.  (Êxodo 18:11). Pois, Jeová, vosso Deus, é o Deus dos deuses.  (Deuteronômio 10:17). O Deus dos deuses, o Deus dos deuses, bem o sabe, e Israel deve sabê-lo: se houve de nossa parte rebelião ou infidelidade para com Deus, que ele deixe de nos salvar neste dia. (Josué 22:22).
  
Portanto, expressões como “demais deuses”, “entre os deuses” e “Deus dos deuses” encontradas na Bíblia hebraica, apontam que o antigo Israel, a exemplo das demais civilizações da antiguidade, era politeísta e só após o exílio na Babilônia, sob o comando do Rei Josias que implantou a reforma Deuteronomista, os hebreus passaram a cultuar apenas um deus.

2.2 Semelhanças entre as religiões da antiguidade com a dos hebreus
O mito da criação babilônico é descrito no poema Enuma Elish[13], descoberto nas ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive, atual Iraque, no final do século XIX sendo sua composição no período da Idade do Bronze nos tempos de Hamurabi. Esse achado é bem anterior ao descrito no livro do Gênesis da Bíblia hebraica, e contém profundas semelhanças. É impossível não reconhecer as similaridades entre a história da criação no Enuma Elish e a história da criação no Livro do Gênesis, com a mesma temática entre o Caos e a Ordem.
Conforme discorre o historiador Emerson Borges, divindades transformando caos em ordem eram muito antigas e comuns aos povos dessas antigas sociedades. Tanto no relato do Gênesis como no descrito no mito da criação babilônico, a criação é feita pela mesma ordem, começando na Luz e acabando no Homem[14]. A deusa Tiamat do Enuma Elish é comparável ao abismo (água das profundezas) no Gênesis 1:2, sendo que a palavra hebraica para abismo (Tehom) tem a mesma raiz etimológica que Tiamat. (L.W. King, Épico da Criação).
O dilúvio mundial do Gênesis bíblico é descrito na Epopeia de Gilgamesh, um antigo poema mesopotâmico considerado uma das primeiras obras da literatura mundial também encontrado sob as ruínas da Biblioteca de Assurbanipal em Nínive (atual Iraque) com seu registro em uma tábua de argila escrito em Acádio datando do século VIII AEC, sendo ainda proveniente de escritos do século XX AEC e que remontam tradições orais ainda bem mais antigas.[15] Esse poema descreve uma grande inundação enviada pelos deuses com objetivo de exterminar toda a vida na terra, sendo escolhido o herói Utnapishtim para sobreviver dando-lhe instruções sobre como construir uma embarcação e congregar um casal de cada espécie de animal. 
Sobre a Lei Mosaica, contida na Torá da Bíblia original, existem elementos de grande similaridade com o Código de Hamurabi, Livro Egípcio do Mortos e Código de Manu dos Indus. Vejamos algumas semelhanças entre o Código de Hamurabi e a Bíblia hebraica dentre muitas outras: 
Lei Mosaica lemos: “Fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver desfigurado a algum homem, assim se lhe fará” (Levítico 24:20). No Código de Hamurabi lemos “Se um cidadão destruiu o olho de um (outro) cidadão, destruirão o seu olho” (Artigo 196); Se quebrou o osso de um cidadão, quebrarão o seu osso” (Artigo 197); “Se um cidadão arrancou um dente de um cidadão igual a ele, arrancarão o seu dente”. Lei Mosaica: “E caso homens cheguem a altercar, e um golpeie outro com uma pedra ou com uma enxada e ele não morra, mas caia de cama, se ele se levantar e deveras andar em volta, portas afora, com algo em que se apóie, então aquele que o golpeou terá de ficar livre de punição; somente dará compensação pelo tempo de trabalho que o outro perder, até que o faça completamente são” (Êxodo 21:18, 19). Código de Hamurabi: “Se um cidadão, em uma briga bateu em um (outro) cidadão e lhe infligiu um ferimento, esse cidadão deverá jurar ‘não bati nele deliberadamente’, e pagará o médico” (Art. 206).

No tocante a religião persa, é impossível não perceber as características religiosas dessa religião presentes na religião do povo hebreu, tais como imortalidade da alma, uma crença que já existia muito antes de serem levados cativos para a Babilônia, bem como a crença no livre arbítrio, produto da criação persa, a qual levaria o homem a escolha entre o bem e o mal. Do mesmo modo, na Ciropédia[16], bem anterior a Zoroastro, se lê que Ciro, moribundo, disse: 
Não creio que a alma que vive em um corpo mortal se extinga desde que saia dele, e que a capacidade de pensar desapareça apenas porque deixou o corpo que não tem como pensar por si mesmo.

Sendo assim, depreende-se que as histórias das religiões do mundo antigo, notadamente as da região do Oriente Próximo, foram sendo assimiladas pelo povo hebreu desde o tempo dos patriarcas, as quais foram compiladas e ordenadas pelos escribas “principalmente, no tempo do rei hebreu Josias (640-609 a.C.), para oferecer uma legitimação ideológica para ambições políticas e reformas religiosas específicas[17].
  
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se pode afirmar com precisão a influência do Épico de Gilgamesh com o Dilúvio bíblico, tendo em vista que tanto um quanto o outro podem ter sido influenciados por tradições orais ainda mais antigas que ao longo da história foram sendo transmitidos para gerações futuras, tendo em vista haver naquela época intensa circulação de mercadores das mais diversas etnias e religiões situados na região do Mediterrâneo, bem como em relação às demais crenças mitológicas que existiam entre as civilizações antigas.
Ao analisarmos a história do povo hebreu, percebemos que ele estabeleceu contato com os mitos e lendas sumério-acadianos, ora tomando por empréstimo e juntando às suas lendas e mitos, ora criando novos. Desta forma, os hebreus começaram a escrever sua própria história, ora compilando fatos de seu próprio povo em grandiosas lendas, ora adaptando mitos antigos à sua realidade e aos seus propósitos.
Além das mencionadas nessa pesquisa, existem inúmeros outros elementos que constituem claras evidências a despeito das influências que ocorreram entre as religiões da antiguidade. À medida que as pesquisas avançarem ainda mais na região do Oriente Próximo, elas poderão suscitar fatos ainda mais reveladores. Entretanto, já existe um consenso entre a maioria da comunidade acadêmica sobre a similaridade da religiosidade entre os povos da antiguidade os quais insistem que um pensamento religioso de uma determinada sociedade não é isolado sem as características de um pensamento que o antecedeu.
Portanto, ao estudarmos o contexto histórico em que o livro do Gênesis foi pensado e escrito, de acordo com Finkelstein e Silberman, nota-se que “a saga histórica contida na Bíblia não foi uma revelação miraculosa, mas um brilhante produto da imaginação humana”.
Desse modo, podemos discorrer que toda a cultura humana de uma determinada sociedade assume características e influências de culturas de sociedades anteriores e contemporâneas com as quais tiveram alguma proximidade. Esses fenômenos culturais estão presentes em todo o processo da trajetória humana, o que nestes termos tendemos a ser condescendentes com Fernand Braudel quando diz que: “O passado das civilizações nada mais é que a história dos empréstimos que elas fizeram umas às outras ao longo dos séculos[18].



terça-feira, 17 de março de 2015

Curso: História das Religiões Mediúnicas no Brasil

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ATENÇÃO! A Disciplina começará dia 26/03/2015 (Quinta) na sala 303D do Campus Largo de São Francisco da UFRJ. Os interessados devem enviarNome Completo e DRE (Caso sejam alunos da UFRJ) para o e-mail contato@klineeditora.com

PLANO DE CURSO

 DISCIPLINA: História das Religiões Mediúnicas no Brasil CÓD.: PROFESSOR: André Chevitarese / José Henrique M. Oliveira / Nicolas Theodoridis CARGA HORÁRIA: 45 Horas/Aula DIA DA AULA: 5ª Feira (Tarde) HORÁRIO: 14 h. às 17 h. SEMESTRE: 1º Semestre de 2015 TURMA: SALA:

EMENTA: Estudo da História das Religiões Mediúnicas no Brasil (espiritismo e umbanda), enfatizando as múltiplas relações tecidas entre elas e os demais componentes do campo religioso brasileiro.

 OBJETIVOS DA DISCIPLINA: 
 Possibilitar a compreensão da historicidade das Religiões Mediúnicas e sua inserção no campo religioso brasileiro.
  Discutir as relações entre as religiões mediúnicas e os principais componentes do campo religioso brasileiro.
  Oportunizar situações onde o aluno desenvolva a aplicação dos conhecimentos obtidos na disciplina em sua futura vivência profissional, como docente ou pesquisador. 


CONTEÚDO PROGRAMÁTICO: 
1. Religiões Mediúnicas 
1.1 Contexto histórico 
1.2 Caracterização do campo mediúnico brasileiro
 1.2.1 O Espiritismo
 1.2.2 A Umbanda

2. Religiões Mediúnicas: Historiografia e Ciências Sociais

3. Religiões Mediúnicas e Campo Religioso Brasileiro
 3.1 Religiões mediúnicas e religiões afro-brasileiras
3.2 Religiões mediúnicas e catolicismo 
3.3 Religiões mediúnicas e religiões pentecostais 

4. Discurso Religioso e Lutas de Representação

 ESTRATÉGIAS DE ENSINO-APRENDIZAGEM: 
Aulas expositivas dialogadas, atividades em grupo, apresentação de filmes.

AVALIAÇÃO:
 Provas, seminários, trabalhos em grupo, resenhas. 


BIBLIOGRAFIA BÁSICA:

 GEERTZ, Clinfford. In: A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. GIUMBELLI, Emerson. O Cuidado dos Mortos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997. ______. O Fim da Religião. São Paulo: Attar, 2002.

FERRETTI, Sérgio. Notas sobre o sincretismo religioso no Brasil: modelos, limitações, possibilidades. In: Revista Tempo. Niterói (RJ): UFF, nº 11, 2001; p. 13-26.

 ISAIA, Artur C. Hierarquia católica e religiões mediúnicas no Brasil da primeira metade do século XX. In: Revista de Ciências Humanas. Florianópolis: Edufsc, nº 30, 2001; p. 67-80.

 MONTERO, Paula. Religião, Pluralismo e Esfera Pública no Brasil. In:Novos Estudos (74), Mar. 2006; p.47-65. 

NEGRÃO, Lísia Nogueira. Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. In: Revista Tempo Social. São Paulo: USP, Ano 5, v. 1-2, 1994; p. 113-122. ______. Magia e Religião na Umbanda. In: Revista USP. V. 31, 1996; p. 76-89. 


OLIVEIRA, José Henrique M. Entre a Macumba e o Espiritismo: uma análise do discurso dos intelectuais de umbanda durante o Estado Novo. In: Revista CAOS, nº 14. João Pessoa: UFPB, 2009; p. 60-85.

 ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. São Paulo: Brasiliense, 1999. 

QUEIROZ, Maria Isaura P. Identidade nacional, religião e expressões culturais: a criação religiosa no Brasil. In: Viola Sachs. Brasil & EUA: religião e identidade nacional. Rio de janeiro: Graal, 1988; p. 59-83. 

STOLL, Sandra Jaqueline. Espiritismo à Brasileira. São Paulo: Edusp, 2003. 

THEODORIDIS, Nicolas. Diálogo com o espiritismo. In: Arquitetura das Ideias: a dessacralização da sociedade ocidental e o advento da fé raciocinada no contexto europeu da 2ª metade do XIX. Rio de Janeiro: UFRJ (Dissertação de Mestrado, 2014.

 VASCONCELOS, Sérgio Sezino D. Sincretismo e construção de identidade. In: Religião & Cultura. PUC-SP, v. 5, nº 10. Paulo: Paulinas-Educ, 2006; 21-32.



"Quem vos ouve, ouve a mim": Oralidade e Memória nos Cristianismos Originários Lair Amaro dos Santos Faria

"Quem vos ouve, ouve a mim": Oralidade e Memória nos Cristianismos Originários
Lair Amaro dos Santos Faria
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segunda-feira, 16 de março de 2015

Calvino e as epístolas de Inácio de Antioquia

Embora atualmente a maioria dos protestantes aceite a genuinidade das epístolas de Santo Inácio de Antioquia e até queiram utilizá-la em sua apologética anti-católica, o mesmo não acontecia com um dos pais do protestantismo: Calvino. Calvino ao ler as epístolas de Santo Inácio via que ela não se enquadrava em seu corpo doutrinário, por isto as rejeitava com a alegação de que elas eram totalmente espúrias. Não é de se estranhar que ele rejeitasse os principais documentos primitivos que minavam a ideologia protestante.
A Enciclopédia católica (Verbete: Santo Inácio de Antioquia) provê um sumário geral, com o qual nós podemos nosso exame:
Em intervalos durante os últimos séculos uma controvérsia quente tem sido exercida por patrólogos quanto à autenticidade das cartas de Santo Inácio. Cada recensão, teve seus defensores e seus opositores. Cada um tem sido favorecida com a exclusão de todas as outras, e todas, por sua vez, foram rejeitadas em massa, especialmente pelos correligionários de Calvino. O próprio reformador, em linguagem tão violenta quanto acrítica (Institutas, 1-3), repudia in globo as cartas que desacreditam completamente suas próprias visões peculiares sobre o governo eclesiástico. A evidência convincente de que as cartas suportam a origem divina da doutrina católica não é propícia para as predisponentes críticas não-católicas em seu favor, de fato, isso acrescentou não pouco ao calor da controvérsia. Em geral, os estudiosos católicos e anglicanos se mostram ao lado das cartas escritas aos Efésios, Magnesians, tralianos, romanos, Filadelfios, esmirniotas, e Policarpo; enquanto presbiterianos, como regra, e talvez a priori, repudiam tudo reivindicando a autoria inaciana.
Calvino exclama em suas institutas:
Com relação ao que eles fingem como de Inácio, se eles tivessem como se fossem de menor importância, que eles provem que os apóstolos promulgaram leis relativas a Quaresma, e outras corrupções. Nada pode ser mais repugnante do que os absurdos que foram publicados sob o nome de Inácio; e, portanto, a conduta daqueles que se oferecem com essas máscaras para decepção tem o menor direito à tolerância. (Livro I, Capítulo 13, Seção 29)
E mais uma vez em seu comentário a Filipenses 4, 3:
Aqueles que manter isso, citam Clemente e Inácio como suas autoridades. Se eles citaram corretamente, eu não iria certamente desprezar homens de tal eminência. Mas, como os escritos são apresentados a partir de Eusébio, que são falsas, e foram inventados por monges ignorantes, eles não são merecedores de muito crédito entre os leitores de bom senso. Vamos, portanto, interrogar-se sobre a própria coisa, sem tomar qualquer falsa impressão das opiniões dos homens.
O presbiteriano W.D. Killen escreveu um livro em 1886, intitulado, The Ignatian Epistles Entirely Spurious. [As Epístolas Inacianas Totalmente falsas]. Aqui está um trecho, onde ele menciona Calvino:
A questão da autenticidade das epístolas atribuídas a Inácio de Antioquia continuou a despertar o interesse desde o período da Reforma. Essa grande revolução religiosa deu um imenso impulso ao espírito crítico; e quando trouxe à luz do seu exame não poucos documentos e alegações que tinha passado por muito tempo incontestadas foram sumariamente declaradas espúrias. Eusébio escrevendo no quarto século nomeia apenas sete cartas atribuídas ao Inácio; mas muito antes dos dias de Lutero mais do que o dobro, estavam em circulação. Muitos destas foram rapidamente condenadas pelos críticos do século XVI. Mesmo as sete reconhecidas por Eusébio eram vistas com grave suspeita; e Calvino - que então estava à frente de teólogos protestantes - não hesitou em denunciar todas elas como falsificações. O longo trabalho empregado como um livro-texto em Cambridge e Oxford foi as Institutas do reformador de Genebra; [Nota de rodapé 2: 1] e, com seus pontos de vista sobre este assunto são há muito proclamados enfaticamente [2: 2]podemos presumir que todo o corpo da literatura inaciana era naquele momento visto com desconfiança pelos líderes de pensamento nas universidades inglesas.
Em outra parte do livro, ele exaltou grandemente Calvino por suas (agora completamente desacreditadas) opiniões:
Isto é prova da sagacidade do grande Calvino que mais de três séculos atrás, passou uma condenação arrebatadora sobre estas epístolas de St. Inácio... Calvino sabia que um homem apostólico deveria estar familiarizado com a doutrina apostólica, e ele viu que essas cartas deveriam ter sido produção de uma época em que a pura luz do cristianismo foi muito obscurecida. Por isso, ele denunciou-os de forma tão enfática; e o tempo verificou sua libertação.” (Citado na Enciclopédia de Literatuda bíblica, teológica e eclesiástica, John McClintock, pp. 492-493)
Apesar dos estudos de Zahn (1873) & Harnack (1878), ambos estudiosos protestantes, e Lightfoot (1885,1889), bispo anglicano, refutarem totalmente a teoria infundada de Calvino, de que as Epistolas de Santo Inácio teriam sido falsificadas, ainda houve quem acreditasse na palavra infundada dele, e rejeitasse os estudos destes proeminentes teólogos do meio protestante.
Robert Ellis Thompson (Presbiteriano) observa:
Em 1557 Valentin Pacaeus publicou em grego doze epístolas com o nome de Inácio de Antioquia. Sua autenticidade foi imediatamente posta em causa por Calvino e outros bons estudiosos, mas elas foram tratadas como uma autoridade para episcopado primitivo pelos Drs. Whitgift, Hooker, Andrews, Hall e outros que favorecia essa forma de governo” (The Historic Episcopate, Philadelphia: The Westminster Press, 1910, p. 76).
Historiador protestante Philip Schaff concorda:
A Recenssão grega maior de sete epístolas com oito outras adicionais. Quatro delas foram publicadas em latim em Paris, em 1495, como um apêndice de outro livro; mais onze por Faber Stapulensis, também em latim, em Paris, em 1498; em seguida, todas as quinze em grego por Valentine Hartung (chamado Paceus ou Irineu) em Dillingen, 1557; e doze por Andreas Gesner em Zurique, em 1560. Os católicos no início aceitaram como verdadeiros todos os trabalhos de Inácio; e Hartung, Baronius, Bellarmin defendiam pelo menos doze; mas Calvino e os centuriões de Magdeburgo rejeitaram todas elas, e os católicos mais tarde reconheceram pelo menos oito como absolutamente insustentáveis.” (History of the Christian Church, Vol. II: Ante-Nicene Christianity: A.D. 100-325, chapter 13, § 165. The Ignatian Controversy)
William Cureton, um estudioso inaciano importante e fundamental, também confirma essa avaliação:
...outros, com J. Calvino, não hesitaram em denunciar o todo como uma falsificação descarada e estúpida.” .(Corpus Ignatianum: A Complete Collection of the Ignatian Epistles, London: Francis & John Rivington, 1849, p. xvii)
Um recente livro sobre os Padres Apostólicos reitera não só de a posição de Calvino, mas a oposição protestante geral sobre a autenticidade das sete cartas inacianas, agora geralmente aceitas:
Estudiosos católicos geralmente defenderam a autenticidade das cartas por causa do valor polêmico óbvio da data de início de Inácio e a ênfase na forma monopiscopal da estrutura da igreja, enquanto os protestantes geralmente negaram a sua autenticidade, por razões semelhante...  Não até que o trabalho independente de Theodor Zahn (1873) e J.B Lightfoot (1885) reconheceu mundialmente a autenticidade das sete cartas contidas na recensão média alcançada. Desafios recentes ao consenso atual, não alteraram a situação.(Os Padres Apostólicos, segunda edição, traduzida por JB Lightfoot e JR Harmer, editado e revisado por Michael W. Holmes, Grand Rapids, MI:. Baker Book House, 1989, p 83)
Assim, Calvino não só aceitou o que Santo Inácio ensinou em suas epístolas; ele nem sequer aceitou as como genuínas. Assim, ele dificilmente pode ter incorporado os dados dele em sua apologética anti-católica. Para ele, o corpus inaciano era completamente fora da equação da disputa entre protestantes e católicos.
A questão que surge é: Se Calvino inventor do Calvinismo e pai da “reforma” protestante, via que as Epístolas de Santo Inácio não eram compatíveis com a teologia calvinista, como podem hoje os calvinistas e outros protestantes, quererem fazer uso destas epístolas para justificarem suas posições? Como pode o próprio Calvino rejeitar as epistolas como contrárias a doutrina cavinista e os calvinistas quererem utiliza-las para justificar as posições calvinistas e outras doutrinas protestantes? Há alguma coerência nisto?
Por fim, como diria o teólogo protestante alemão Adolf Harnack: “Quem considera as cartas inacianas como espúria, não estudou-as bem”.
PARA CITAR

ARMSTRONG, Dave. A rejeição de Calvino as Epistolas de Santo Inácio de Antioquia (110 d.C).  Disponível em: <http://apologistascatolicos.com.br/index.php/patristica/controversias/778-a-rejeicao-de-calvino-as-epistolas-de-santo-inacio-de-antioquia-110-d-c>. Desde: 04/03/2015. Traduzido por: Rafael Rodrigues

Download. Patrística: São João Damasceno: Apologia contra os que condenam as imagens sagradas


São João Damasceno foi um monge árabe cristão e sacerdote que viveu entre no final dos anos 600 até o final dos anos 700 d.C Ele era um homem de muitos talentosfez  trabalhos nas áreas da música, teologia, direito e filosofia. Quando a controvérsia iconoclasta ( heresia que acredita que os ícones se tornaram ídolos e deve ser removido do culto) veio à tona no século VIIISão João defendeu bravamente o uso dos ícones no culto, contrariando o imperador e escreveu esta apologia a qual traduzimos para o público de língua portuguesa, em uma tradução livre.
Esta obra magistral deve ser lida por todos os católicos e aqueles que desejam conhecer a história do uso dos ícones e imagens no culto Cristão, bem como as bases bíblicas, filosóficas e teológicas para tal.
Acesse o Link

Os Pais da Igreja e a doutrina do Inferno.

INTRODUÇÃO

Frequentemente escutamos membros de algumas seitas, como adventistas e testemunhas de Jeová,  negando a existência do inferno. Para os católicos contudo, o inferno é dogma de fé.
A este respeito o ensinamento do Catecismo da Igreja Católica Ensina:
1033 Não podemos estar unidos a Deus se não fizermos livremente a opção de amá-lo. Mas não podemos amar a Deus se pecamos gravemente contra Ele, contra nosso próximo ou contra nós mesmos: “Aquele que não ama permanece na morte. Todo aquele que odeia seu irmão é homicida; e sabeis que nenhum homicida tem a vida eterna permanecendo nele" (1 Jo 3,14-15). Nosso Senhor adverte-nos de que seremos separados dele se deixarmos de ir ao encontro das necessidades graves dos pobres e dos pequenos que são seus irmãos morrer em pecado mortal sem ter-se arrependido dele e sem acolher o amor misericordioso de Deus significa ficar separado do Todo-Poderoso para sempre, por nossa própria opção livre. E é este estado de autoexclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa com a palavra "inferno".
Mais adiante continua o catecismo:
1035 O ensinamento da Igreja afirma a existência e a eternidade do inferno. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente após a morte aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, "o fogo eterno". A pena principal do Inferno consiste na separação eterna de Deus, o Único em quem o homem pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira.”.

FUNDAMENTO BÍBLICO DO INFERNO

Igualmente a doutrina da imortalidade da Alma, a revelação da existência do inferno ao povo de Deus, foi progressiva.
Durante os oito primeiros séculos de redação da bíblia, o termo hebreu Sheol designava a morada das pessoas que morreram, bons e maus igualmente, mas em seus livros mais recentes se encontra uma clara diferença entre o castigo dos ímpios em contraposição a recompensa dos justos, tal como assinala o livro de Daniel em seu capítulo 12.
 E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno. Os que forem sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que a muitos ensinam a justiça, como as estrelas sempre e eternamente.” (Daniel 12,2-3)
E sairão, e verão os cadáveres dos homens que prevaricaram contra mim; porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagará; e serão um horror a toda a carne.” (Isaías 66, 24)
Depois disso serão cadáveres sem honra, desterrados entre os mortos, numa eterna ignomínia, porque ele os ferirá, e os precipitará sem voz, abatê-los-á nas suas bases e os mergulhará na última desolação. Eles serão entregues à dor, e a memória deles perecerá. Comparecerão aterrorizados com a lembrança de seus pecados, e suas iniqüidades se levantarão contra eles para os confundir.” (Sabedoria 4,19-20.)
Já na doutrina do Novo Testamento do inferno é muito mais clara, especialmente na pregação de Jesus, que ameaça os pecadores com castigo do inferno usando a figura do Gena.
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado na Gena.” (Mateus 5,29)
E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.” (Mateus 10,28)
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós.” (Mateus 23,15)
Serpentes, raça de víboras! Como escapareis da condenação do inferno?”(Mateus 23,33)
E, se o teu pé te escandalizar, corta-o; melhor é para ti entrares coxo na vida do que, tendo dois pés, seres lançado no inferno, no fogo que nunca se apaga, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga. E, se o teu olho te escandalizar, lança-o fora; melhor é para ti entrares no reino de Deus com um só olho do que, tendo dois olhos, seres lançado no fogo do inferno, Onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga. Porque cada um será salgado com fogo, e cada sacrifício será salgado com sal.” (Marcos 9,45-49)
É abundante também o uso de expressões como “fogo que não se apaga”, “forno de fogo”, “ Suplício Eterno”, “ser lançados nas trevas”, “ranger de dentes” para referir-se as penas do inferno.
"Em sua mão tem a pá, e limpará a sua eira, e recolherá no celeiro o seu trigo, e queimará a palha com fogo que nunca se apagará.” (Mateus 3, 12)
E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes.” (Mateus 8, 12)
e os lançarão na fornalha acesa; ali haverá choro e ranger de dentes.” (Mateus 13,42.50)
Disse, então, o rei aos servos: Amarrai-o de pés e mãos, levai-o, e lançai-o nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes”(Mateus 22,13)
 Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos;” (Mateus 25, 41)
 E, se a tua mão te escandalizar, corta-a; melhor é para ti entrares na vida aleijado do que, tendo duas mãos, ires para o inferno, para o fogo que nunca se apaga,” (Marcos 9, 43)
Se de fato é justo diante de Deus que dê em paga tribulação aos que vos atribulam, E a vós, que sois atribulados, descanso conosco, quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder, Como labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo; Os quais, por castigo, padecerão eterna perdição, ante a face do Senhor e a glória do seu poder,” (II Tessalonicenses 1, 6-9)
 Porque, se pecarmos voluntariamente, depois de termos recebido o conhecimento da verdade, já não resta mais sacrifício pelos pecados, Mas uma certa expectação horrível de juízo, e ardor de fogo, que há de devorar os adversários.” (Hebreus 10, 26-27)
Mas, quanto aos tímidos, e aos incrédulos, e aos abomináveis, e aos homicidas, e aos fornicadores, e aos feiticeiros, e aos idólatras e a todos os mentirosos, a sua parte será no lago que arde com fogo e enxofre; o que é a segunda morte.” (Apocalipse 21, 8)
E o diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde está a besta e o falso profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre.”  (Apocalipse 20, 10)
A parábola de Lázaro e o rico (Lucas 16) ensina como aqueles que foram reprovados sofriam o tormento de forma eterna e irrevogável.
As penas do inferno. Pena de dano e de sentido.
O catecismo da Igreja católica ensina que “a pena principal do inferno consiste na separação eterna de Deus no qual o homem unicamente pode ter a vida e a felicidade para que foi criado e as que aspira”.  Esta separação eterna de Deus ou suplício de privação, que é causada pela separação voluntário de Deus que se realiza pela morte em pecado mortal, se chama “pena de dano”.
É a principal pena do inferno por que implica na perca definitiva da visão beatifica. Os condenados estão irrevogavelmente separados de Deus, e a esta separação é a que fazem referência textos como Mateus 25, 41: “Apartai-vos de mim, malditos...”, ou II Tessalonicenses 1, 9 “Estes sofrerão a pena de uma ruina eterna, diante da presença do Senhor e da glória de seu poder
pena de sentido se refere a mudança do tormento dos condenados causado externamente por meios sensíveis. A este tormento se referem textos bíblicos como Apocalipse 20, 10: “serão atormentados de dia e de noite por todos os séculos dos séculos”. E “ali haverá choro e ranger de dentes”.
A Igreja ensina que este suplício sensível atormenta agora todos os demônios e as almas dos condenados e atormentará também aos corpos dos condenados logo depois da ressurreição dos corpos.
INFERNO NO ENSINAMENTO DOS PAIS DA IGREJA

A Igreja primitiva e os pais da Igreja acreditavam não só na doutrina da imortalidade da alma, mas também na condenação eterna dos condenados, com exceção de Orígenes e alguns de seus seguidores que erroneamente pensavam que as penas do inferno eram temporárias e de alguns hereges gnósticos que afirmavam que os que não se salvassem seria aniquilados (curiosamente o que hoje creem dos testemunhas de Jeová e Adventistas).
Já os primeiros símbolos de fé afirmavam a existência da condenação eterna, como o símbolo de Atanásio, também chamado Quicumque, no qual disse: “Os que fizeram o bem, irão para a vida eterna, os que fizeram o mal, o fogo eterno”. (Dz 40/76)

Apocalipse de Pedro
Dos textos apócrifos primitivos é um dos mais importantes, por sua antiguidade (foi escrito entre o ano 125 e 150, o que é o mesmo que 25 ou 50 anos após a morte do último apóstolo), e foi tido com grande estima pelos escritores eclesiásticos da antiguidade. Clemente de Alexandria o considerava como um escrito canônico (ver Eusébio de Cesaréa. HE 6, 14, 1). Figura também no fragmento muratoriano (a lista mais antiga do cânon do Novo Testamento), mas com a adição: “Alguns não que seja lido na Igreja”. Outros padres como Eusébio e Jerônimo o rejeitaram.
Um fragmento grego importante do Apocalipse foi encontrado em Akhmin em 1886 – 1887 e seu conteúdo descreve visões que incluem a beleza do céu e o horror do inferno e o castigo aos que são submetidos os condenados:
E havia um grande lago, cheio de lama quente, onde havia alguns homens que haviam se separado da justiça; e os anjos que eram responsáveis por atormentá-los  estavam em cima deles.”
Inácio de Antioquia
Discípulo de Pedro e Paulo, segundo bispo de Antioquia e mártir durante o reinado de Trajano por volta de 107 d.C. Quando ele foi condenado à morte foi ordenado ir da Síria para Roma para ser martirizado. No caminho de Roma escreveu sete epístolas às igrejas de Éfeso, Magnésia, Trália, Filadélfia, Esmirna, Roma e uma carta a São Policarpo. Ao escrever para aos Efésios testemunha como aqueles que morreram na impureza irão ao fogo eterno:
"Não vos iludais, meus irmãos, os corruptores da família não herdarão o Reino de Deus. Pois, se pereceram os que praticavam tais coisas segundo a carne, quanto mais os que perverterem a fé em Deus, ensinando doutrina má, fé pela qual Jesus Cristo foi crucificado? Um tal, tornando-se impuro, marchará para o fogo inextinguível, como também marchará aquele que o escuta. Por isso, recebeu o Senhor unção sobre a cabeça para exalar em favor da Igreja o perfume da incorrupção. Não vos deixeis ungir pelo mau odor da doutrina do príncipe deste mundo, de forma que vos leve cativos para longe da vida que vos espera. Por que não nos tornamos prudentes, aceitando o conhecimento de Deus, isto é, Jesus Cristo? Por que morrermos tolamente, desconhecendo o dom que o Senhor nos enviou de verdade?” (Inácio de Antioquia, Carta aos efésios, 16-17)

Justino Mártir
Mártir da fé cristã, viveu até o ano 165, quando foi decapitado, é considerado o maior apologista do século II.
"E disse mais: “Não temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais podem fazer; temei antes aquele que, depois da morte, pode lançar alma e corpo no inferno”. Deve-se saber que o inferno é o lugar onde serão castigados os que tiverem vivido iniquamente e não acreditaram que acontecerão essas coisas ensinadas por Deus, através de Cristo.” (I Apologia 19, 7)
Quanto a alcançar a imortalidade, nos foi ensinado que só a alcançam aqueles que vivem santa e virtuosamente perto de Deus, assim como cremos que serão castigados com fogo eterno aqueles que viveram injustamente e não se converteram.” (I Apologia 21, 6)
Porque entre nós, o príncipe dos demônios do mal chamado Satanás, diabo, serpente ou caluniador, como você pode saber, se você descobrir, por nossas escrituras, e que ele e todo o seu exército junto com os homens que o seguem serão enviados para o fogo para serem punido por toda a eternidade sem fim, que é o que de antemão foi anunciado por Cristo” (I Apologia 28)
E se também vós ledes como inimigos estas nossas palavras, além de matar-nos, como já dissemos antes, nada podeis fazer. A nós, isso nenhum dano causará; a vós, porém, e a todos os que injustamente nos odeiam e não se convertem, trazer-vos-á castigo de fogo eterno.” (I Apologia 45, 6)
Assim é que os profetas anunciaram duas vindas de Cristo: uma, já cumprida, como homem desonrado e passível; a segunda, quando virá dos céus acompanhado de seu exército de anjos, quando ressuscitará também os corpos de todos os homens que existiram; revestirá de incorruptibilidade os que forem dignos, e enviará os iníquos, com percepção eterna, ao fogo eterno, junto com os perversos demônios. Vamos mostrar como foi profetizado que isso deverá acontecer.” (I Apologia, 52)
O fato é que em todas as partes há gente disposta a nos levar à morte. Exceto os que estão persuadidos de que os iníquos e intemperantes serão castigados com o fogo eterno e que os virtuosos e que viveram de modo semelhante a Cristo, viverão impassíveis com Deus...” (II Apologia 1, 2)
Todavia, logo que conheceu os ensinamentos de Cristo, não só se tornou casta, como procurava também persuadir seu marido à castidade, referindo-lhe os mesmos ensinamentos e anunciando-lhe o castigo do fogo eterno, preparado para os que não vivem castamente e conforme a reta razão.” (II Apologia 2, 2)
No princípio, Deus criou livres tanto os anjos como o gênero humano e, por isso, receberam com justiça o castigo de seus pecados no fogo eterno.” (II Apologia 6, 4)
Eles receberam merecido tormento e castigo, aprisionados no fogo eterno. Se eles agora são vencidos pelos homens em nome de Jesus Cristo, isso é aviso do futuro castigo no fogo eterno que os espera, juntamente com aqueles que os servem. Todos os profetas anunciaram isso de antemão e isso também nos ensinou o nosso mestre Jesus.” (II Apologia 7, 4-5)
"E não se oponham  a que costumam dizer os que se têm por filósofos, que não são mais que apenas ruído e espantalhos o que afirmamos sobre a punição que os ímpios devem sofrer no fogo eterno” (II Apologia 9)
 “...mas Deus poderosamente as tirará de nós, quando ressuscitar a todos, tornando uns incorruptíveis, imortais, isentos de dor e colocando-os em seu reino eterno e indestrutível, e enviando outros para o suplício do fogo eterno.” (Diálogo Com Trifão 117)
Martirio de Policarpo
É uma carta da Igreja de Esmirna a comunidade de Filomenio de onde se narra o martírio de São Policarpo de Esmirna, discípulo direto do apóstolo São João e bispo de Esmirna.
Quem não admiraria a generosidade deles, a perseverança e o amor ao Senhor? Dilacerados pelos flagelos a ponto de ser ver a constituição do corpo até as veias e artérias, permaneciam firmes, enquanto os presentes choravam de compaixão. A sua coragem chegou a tal ponto que nenhum deles disse uma palavra ou emitiu um gemido. Eles mortravam em seus corpos, mas que o Senhor, aí presente, conservava com eles. Atentos à graça de Cristo, eles desprezavam as torturas deste mundo e adquiriram, em uma hora, a vida eterna. O fogo dos torturadores desumanos era frio para eles. De fato, tinham diante dos olhos escapar do (fogo) eterno, que jamais se extingue; com os olhos do coração olhavam os bens reservados à perseverança, bens que o ouvido não ouviu, nem o olho viu, nem o coração do homem sonhou, mostrados pelo Senhor àqueles que não que não eram mais homens, mas que já eram anjos.” (Martirio de Policarpo, 2, 3-4)
Discurso a Diogneto
É um breve tratado apologético dirigido a alguém chamado Diogneto o qual aparentemente havia perguntado algumas coisas que chamaram a atenção sobre as crenças e modo de vida cristãos: É de um autor desconhecido e se estima que foi composto no fim do século II. 
Então, ainda estando na terra, contemplarás porque Deus reina nos céus. Aí começarás a falar dos mistérios de Deus, amarás e admirarás aqueles que são castigados por não querer negar a Deus. Condenarás o engano e o erro do mundo, quando realmente conheceres a vida no céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte e temeres a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues. Se conheceres esse fogo, ficarás admirado, e chamarás de felizes aqueles que, pela justiça, suportaram o fogo passageiro.” (Discurso a Diogneto, 10, 7-8)
Atenágoras
Reconhecido como apologista cristão primitivo do século II:
Sei que com o que eu disse estou defendido diante de vós. De fato, superando a todos por vossa inteligência, sabeis que aqueles que tomam a Deus como regra de vida, para que cada um de nós esteja sem culpa e sem mancha em sua presença, não podem ter, em pensamento, o mais leve pecado, e acreditássemos que nada existe além desta vida presente, poder-se-ia suspeitar que pecássemos, submetendo-nos à servidão da carne e do sangue ou sendo dominados pelo lucro e pelo desejo. Sabendo, porém, como sabemos, que Deus vigia nossos pensamentos e nossas palavras, tanto de dia como de noite, e que ele é todo luz e vê até dentro do nosso coração; acreditando, como cremos, que, ao sair desta vida, viveremos outra melhor, contando que permaneçamos com Deus e por Deus inquebrantáveis e superiores às paixões, com alma não carnal, mas com espírito celeste, embora na carne; ou acreditando que, se cairmos como os demais, espera-nos uma vida pior no fogo (porque Deus não nos criou como rebanhos ou bestas de carga, de passagem, só para morrer e desaparecer); crendo nisso, dizíamos, não é lógico que nos entreguemos voluntariamente ao mal e nos joguemos a nós mesmos nas mãos do grande juiz para sermos castigados.” (Atenágoras, Petição a favor dos Cristãos, 31)
 Ireneu de Lião
Santo Irineu (bispo e Mártir). Foi discípulo de São Policarpo que por sua vez foi discípulo do apóstolo São João. Conhecido por seu tratado “Contra as Heresias” onde combate as heresias de seu tempo, em especial a dos gnósticos.
No Novo Testamento, [1062] cresceufé dos homensemDeus, ao receberemo Filho de Deuscomo um bemadicionadoa fim de que os homens tivessem a participação de Deus.Da mesma formaaumentoua perfeiçãodo comportamento humano, pois somos instruídos aabster-senão só demás ações, mas tambémdos maus pensamentos(Mt 15,19)depalavras ociosas, expressões vãs (Mt 1236elicenciososdiscursos (Ef 5, 04):deste modotambém ampliou apunição daquelesque não acreditamna Palavrade Deus,que desprezamsua vindaerecusamporque não vaiser mais temporária, maseterna.Paratais pessoas,o Senhordirá: ‘Apartai-vos de mim, malditospara o fogo eterno’ (Mateus 25:41), e serápara semprecondenado.Mas aos outros vaidizer:Vinde, benditos de meu Pai, recebam por herança o reinopreparado para vós desdesempre’(Mt 25, 34),ereceberão o reinoonde eles terãoumprogressoperpétuo.Isso mostra queum e o mesmoDeus, o Paie que a SuaPalavra estásempre do ladoda humanidade,comeconomias diferentes, realizando vários trabalhos, poupando aqueles queforam salvosdesde o inícioisto é, paraaquelesque amam a Deuse de acordo coma sua capacidade deseguir a suapalavrae, a julgaraqueles que estãocondenadosou quese esquecem de Deus,blasfemame violama sua palavra.” (Santo Ireneu, contra as heresias IV, 28,2)
 Tertuliano
Estritamente falando, Tertuliano não é considerado um pai da Igreja, mas um apologista e escritor eclesiástico, já que no final de sua vida cai em heresia abraçando o montanismo. Porém foi lido antes de seu abandono da Igreja Católica. Tanto em seu período ortodoxo quanto em seu período herético temos em Tertuliano um testemunho sem igual que nos informa sobre a prática primitiva da penitência na Igreja.
Quando escreve De Paenitentia (aproximadamente no ano de 203 d.C. sendo todavia católico), fala aqui de uma segunda penitência que Deus ‘há colocado no vestíbulo para abrir a porta aos que chamam, mas somente uma vez, por que esta já é a segunda’, mas para quem rejeita esta penitência descreve a condenação eterna do inferno, castigo de quem não quis se arrepender e confessar seus pecados.
Se recusas a penitência pública, medita em teu coração acerca da gena que para ti há de ser extinguida mediante a penitência. Imagina-te antes de tudo a gravidade da pena, a fim de que não vaciles em assumir o remédio. Como devemos considerar esta caverna do fogo eterno, quando através de algumas suas lareiras se produzem tais erupções  de vigorosas chamas, que fizeram desaparecer as cidades próximas ou estão a espera de que isto lhes ocorra a qualquer dia? Montes altíssimos saltam feito pedaços por causa do fogo que encontram, e como resultado para nós um indício da perpetuidade deste fogo o fato de que, por mais que estas erupções quebrem e destruam as montanhas, nunca cessa esta atividade. Quem diante dos choques dos montes poderá deixar de considerá-los como um sinal de iminente juízo? Quem poderá pensar que tais chamas não sejam uma espécie de armas de arremesso que provém de um fogo colossal e indescritível?" (Tertuliano, De la penitencia, 12: PL 1,1247)
 Cipriano de Cartago
São Cipriano nasceu em torno do ano 200, provavelmente em Cartago, de família rica e culta. Dedicou-se, em sua juventude, à retórica. O desgosto que sentia diante da imoralidade dos ambientes pagãos contrastados com a pureza de costumes dos cristãos o induziu a abraçar o Cristianismo por volta do ano 246. Pouco depois, em 248, foi eleito bispo de Cartago. Durante a perseguição de Décio, em 250, julgou melhor afastar-se para outro lugar, para continuar a se ocupar com seu rebanho de fiéis. Dele conservamos uma dezena de opúsculos sobre diversos temas de então e, particularmente, uma coleção de 81 cartas.
Que glória para os fiéis haverá então, que castigo para os não crentes, que dor para os infiéis por não haver querido crer em outro tempo neste mundo e não poder agora voltar atrás e crer. A gena sempre em chamas e um fogo devorador abrasará aos que ali irem, e não terão descanso seus tormentos nem fim em nenhum momento. Serão conservadas as almas com os corpos para sofrer com inacabáveis suplícios. Ali veremos sempre ao que aqui não olhamos por um tempo, e o breve prazer que tiveram os olhos cruéis nas perseguições será contrapesado pelo espetáculo sem fim, segundo o testemunho da Sagrada Escritura, quando disse “Seu verme não morrerá, e seu fogo não se extinguirá, e servirão de espetáculo a todos os homens... Então será em vazio o arrependimento, vãos os gemidos e sem eficácia os rogos. Tarde crêem na pena eterna os que não quiseram crer na vida eterna.” (Cipriano, A Demetriano, 24)
 Basilio de Cesárea
Nasceu por volta do ano 330, do seio de uma família profundamente cristã. No ano 364 foi ordenado sacerdote e, 6 anos depois, sucedeu a Eusébio, bispo de Cesaréia, metropolita da Capadócia e exarca da diocese do Ponto. Faleceu no ano 379.
É evidente que as obras são a causa de que alguém acabe por ser condenado ao suplício, uma vez que somos nós mesmos os que não nos dispomos para ser merecedores do queimamento, de modo que os vícios da alma são como faíscas de fogo que produzimos para acender as chamas da gena, como no caso daquele rico que se queimava no fogo de seus próprios prazeres que o abrasavam. Contudo, a intensidade do fogo devorador será maior ou menor, segundo sejam os dardos lançados sobre cada um pelo maligno.” (Basílio de Cesárea, Comentário sobre Isaías 1,64)
“... não está presente no inferno quem louva, nem no sepulcro quem se lembra de Deus, porque tampouco está presente o auxílio do Espírito Santo. Como se pode, pois, pensar que o juízo se efetua sem o Espírito Santo, enquanto que a Palavra mostra que Ele mesmo será também a recompensa dos justos, em vez do penhor, entregue a todos, e que será a primeira condenação dos pecadores quando se lhes despojar a mesma coisa que pareciam ter?” (Basílio de Cesárea, O Espírito Santo, 16,40)
 Gregorio Nazianzeno
Arcebispo de Constantinopla e doutor da Igreja, nascido em Nazianzo, Capadócia no ano de 329 d.C, e morreu em 389. Celebre por sua eloquência e por sua luta em sua colaboração na luta contra o arianismo, junto com são Basílio e são Gregório de Nissa. É conhecido com um dos 4 grande doutores da Igreja Grega.
Conheço o temor, a agitação, a inquietude e o quebramento do coração, a vacilação dos joelhos e outras penas semelhantes com que são castigados os ímpios. Vou dizer, todavia, que os ímpios são entregues aos tribunais da outra vida pela justiça parcimoniosa deste mundo, de modo que se mostra preferível ser castigados e purificados agora, que ser encaminhados aos suplícios da vida após a morte, quando já será o tempo de castigo e não da purificação.” (Gregório Nazianzeno, Discursos, 16,7)
Gregório de Nissa
Nasceu entre os anos 331 e 335. Era irmão de São Basílio Magno, que o consagrou bispo de Nissa em 371. Faleceu no ano 394. Gregório de Nissa também fala repetidas vezes do “fogo inextinguível” e da imortalidade do “verme” de uma pena eterna e ameaça o pecador com sofrimentos eternos e eterno castigo, no entanto, igualmente a Orígenes cai no erro de pensar que as penas do inferno não eram eternas.
E a vida dolorosa dos pecadores não são comparáveis com as sensações dos que sofrem aqui. Mas ainda neste caso de que se aplique algum castigo além do nome com que se lhe conhece aqui, a diferença não é pequena. Efetivamente, ao escutar a palavra fogo, aprendi a pensar algo distinto do fogo daqui, porque nele se encontra uma qualidade que não há neste: aquele, de fato, não se extingue, enquanto que este daqui pode ser extinguido por múltiplos meios que ensina a experiência e a diferença é grande entre um fogo que se extingue e outro que é inextinguível. Portanto, é outro, e não o mesmo que o daqui. E também quando um ouve a palavra verme, que por a semelhança do nome não se deixe levado a pensar que este animalito terrestre, porque o acréscimo da qualidade “eterno” supõe que se deve pensar em outra natureza diferente da que conhecemos.” (Gregorio de Nissa, A grande Catequese, 40, 7-8)
 Jerônimo
Reconhecido como um dos quatro doutores originais da Igreja Latina. Padre das ciências bíblicas e tradutor da Bíblia em Latim. Presbítero, homem de vida ascética, eminente literato. Nasceu no ano de 347 d.C e morreu em 420.
São muitos os que dizem que no futuro não haverá suplício pelos pecados nem se lhes aplicará castigos que venham do exterior, mas que a penas consistirá no pecado mesmo, e em ter consciência do delito, não morrendo o verme no coração e ardendo o fogo na alam de um modo semelhante a febre, que não atormenta o enfermo por fora, mas que, apoderando-se dos corpos, castiga sem usar qualquer instrumento externo de tortura. Estas persuasões são laços fraudulentos, palavras vazias e sem valor, que deleitam como flores aos pecadores, mas que lhes infundem uma confiança que lhes conduz aos suplícios eternos” (Jerônimo, Comentário a Carta a los Efésios, 3,5,6)
 João Crisóstomo
São João Crisóstomo é o representante mais importante da Escola de Antioquia e um dos quatro grandes Padres da Igreja no Oriente. Nascido por volta do ano 350, talvez antes, foi ordenado sacerdote no ano 386 e em 397 foi consagrado bispo de Constantinopla. Morreu em 407.
São João Crisóstomo da uma explicação detalhada da diferença entre a pena de dando e de sentido, e de como a primeira é a principal pela do inferno por implicar a separação definitiva de Deus.
 A dupla pena do inferno: o fogo e a privação de Deus. Aparentemente não há aqui mais que um só castigo, que é o ser queimado pelo fogo, porém, se cuidadosamente o examinamos, veremos que são dois, pois o que é queimado é ao mesmo tempo banido para sempre do reino de Deus. E este castigo é mais grave que o primeiro. Já sei que muitos só temem o fogo do inferno, mas eu não vacilo em afirmar que a perda da glória eterna é mais amarga que o próprio fogo. Agora que eu não possa expressar com palavras, não há o que se estranhar, pois tampouco sabemos a natureza dos bens eternos para podermos se dar conta da desgraça que é nos vermos privados deles... Certo é que insuportável é o inferno e o castigo que ali se padece. Contudo, ainda quando me ponha mil infernos diante de mim, nada me dirás comparável com a perda da glória da bem-aventurança, com a desgraça de ser odiado por Cristo, de ter que ouvir por sua boca “não te conheço”. De que nos acuse de que lhe vimos faminto e não o demos de comer. Mais valerá que mil raios nos abrasem do que não ver aquele manso rosto que nos rejeita e aqueles olhos serenos que não podem suportar nos olhar. ” (João Crisóstomo, Homilías sobre Mateus 23,8)
Agostinho de Hipona
Doutor da Igreja nascido em Tagaste (África) no ano 354, filho de Santa Mônica. Após uma vida ímpia, converteu-se no ano 387 e, posteriormente, foi eleito bispo de Hipona, ministério que exerceu durante 34 anos. É considerado um dos Padres mais influentes do Ocidente e seus escritos são de grande atualidade. Morreu no ano 430.
Tens, ouvido, pois, no Evangelho que há duas vidas: uma presente, outra futura. A presente a possuímos: na futura cremos. Encontramo-nos na presente; a futura ainda não temos chegado. Enquanto vivemos a presente realizamos méritos para adquirir a futura, pois ainda não estamos mortos. Acaso se lê o Evangelho nos infernos? Se de fato fosse assim, em vão lhe ouviria o rico aquele, porque não poderia haver penitência frutuosa. A nós se nos é lido aqui e aqui o ouvimos, donde, enquanto vivemos, podemos ser corrigidos, para não chegar naqueles tormentos.” (Agostinho de Hipona, Sermão, 113-A, 3)
Por isto o que sucede aqui, o entendimento humano poderia ter uma ideia do que nos está reservado no que há de vir. No entanto, que grande desproporção! Vive, não quer morrer; daqui o amor a vida inacabável, ao querer viver, ao não querer morrer nunca. Com tudo isso, os que irão as tortuosas penas do inferno desejarão morrer e não poderão.” (Agostinho de Hipona, Sermón 127, 2)
Gregorio Magno
Papa e doutor da Igreja, é o quarto e último dos originais Doutores da Igreja latina. Defendeu a supremacia do Papa e trabalhou pela reforma do clero e da vida monástica. Nasceu em Roma por volta do ano 540 e faleceu em 604.
 Se aos bons lhes ocorre mal e aos maus bem, talvez se deva por os bons, se pecaram em algo, recebem aqui o castigo para ser plenamente livres da condenação eterna, enquanto que os maus encontram aqui a recompensa pelo bem feito nesta vida afim de que na futura só sofram tormentos.” (Gregório Magno, Moral em Jó, V)
 DEFINIÇÕES DO MAGISTÉRIO DA IGREJA

No concílio Lateranense IV (ano 1215) se define a existência do inferno e a eternidade das penas. O mesmo nos concílio de Lião II (ano de 1274), e Florença (ano de 1439) onde se declara que a condenação eterna começa imediatamente depois da morte.
Na Bula Benedictus Deus o papa Bento XVI (ano de 1336) lemos:

Definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as almas dos que morreram no pecado mortal atual descendem, depois de sua morte, ao inferno, onde são atormentados com penas infernais”. (Dz 531; cf. Dz 429, 464, 693, 835, 840)
O magistério recente confirma a doutrina da Igreja sobre o inferno expressamente no concílio Vaticano II em suaConstituição Dogmática sobre a Igreja, nos exorta a velar para entrar na vida e apartamos do castigo eterno:

E como não sabemos nem o dia nem a hora, por aviso do senhor, devemos vigiar constantemente para que, terminado o único prazo de nossa vida eterna (cf. Hb 9, 27), se queremos entrar com Ele nas núpcias mereçamos ser contados entre os escolhidos (cf. Mt 25, 31-46); não seja como aqueles servos maus e preguiçosos (cf. Mateus 25, 26), sejamos jogados ao fogo eterno (cf. Mateus 25, 41), as trevas exteriores onde ‘haverá pranto e ranger de dentes’ (Mateus 22, 13-25, 30).
O mesmo o papa Paulo VI:
Os que os rejeitaram (o amor e a piedade de Deus) até o final, serão destinados ao fogo que nunca cessará” (Paulo VI, Profissão de fé, AAS 60 (1968) 444.)