sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Os Apócrifos da Bíblia






Por «apócrifos» entendem-se escritos antigos, redigidos em estilo muito semelhante ao da Sagrada Escritura e atribuídos a Patriarcas, Profetas ou Apóstolos… Apesar da sua aparente afinidade com a Bíblia, não foram, pela Tradição cristã, reconhecidos como obras de autoridade divina ou Escrituras inspiradas; em consequência, foram definitivamente banidos da leitura pública, podendo ficar reservados para o uso particular dos cristãos (caso não estivessem contaminados por erros doutrinários). É o que explica o seu título de apócrifos (em grego, livros ocultos ou livros dos quais não se faz uso nas públicas assembleias de culto).

Origem dos apócrifos

As Escrituras Sagradas são relativamente sóbrias nas suas narrativas do passado e nas suas predições do futuro. Compreende-se, pois, que essa sobriedade tenha excitado a curiosidade e a fantasia dos leitores antigos, os quais desejaram, nos últimos tempos antes de Cristo e nos primeiros séculos da era cristã, suprir as lacunas deixadas por essa parcimônia. Em consequência, forjaram-se artificialmente escritos dotados de títulos e vocabulário característicos dos tradicionais livros bíblicos: em parte, referiam dados históricos ou reais que os autores sagrados não haviam consignado na Bíblia; em grande parte, porém, exprimiam a imaginação popular e até mesmo ideias heréticas. Depois de haver sido objeto de controvérsia, foram definitivamente rejeitados do catálogo bíblico, tomando então o nome de «apócrifos» (como acima foi dito).

Os apócrifos distribuem-se naturalmente em dois grandes blocos: os do Antigo e os do Novo Testamento.

a) Apócrifos do Antigo Testamento

São geralmente de origem judaica; não poucos, porém, sofreram interpolações por parte de mãos cristãs. Devem-se ao desejo de exaltar as glórias do povo de Deus ou exprimem o sofrimento e a esperança dos israelitas oprimidos pelo jugo estrangeiro nas imediações da era cristã, assumindo assim a feição de profecias ou apocalipses (= revelações).

Eis a lista dos apócrifos do Antigo Testamento classificados segundo o seu tema predominante:

Apócrifos narrativos: Livros dos Jubileus, 3o de Esdras, 3o dos Macabeus, Vida de Adão e Eva, Testamento de Adão, Escritos armênios de Adão, Apocalipse de Moisés, Ascensão de Isaias, História dos Recabitas, Paralipômenos (ou Restantes escritos) de Jeremias, Oração de Aseneth, Testamento de Jó, Testamento de Salomão.

Apócrifos morais ou didáticos: Testamentos dos XII Patriarcas, Salmo idiográfico de Davi, Salmos de Salomão, Odes de Salomão, Oração de Manassés, 4o dos Macabeus.

Apócrifos proféticos e apocalípticos: Livro de Henoque (etíope, hebraico e eslavo), Assunção de Moisés, 4o de Esdras, Apocalipse de Baruque (sírio e grego), Apocalipse de Abraão, Apocalipse de Elias e Sofonias, Apocalipse de Ezequiel, Oráculos Sibilinos.

Esses escritos, em geral, apresentam exíguo valor doutrinário; contêm, porém, páginas de bela poesia e férvido ânimo religioso.

b) Apócrifos do Novo Testamento

São todos de origem cristã. Manifestam o desejo de completar as poucas noticias transmitidas pela Bíblia Sagrada a respeito da vida de Jesus, de Maria e dos Apóstolos; por isto os seus temas preferidos são a infância do Senhor, a história de sua Mãe Ssma. e os feitos missionários dos Apóstolos; descrevem também quadros proféticos e apocalípticos de índole assaz fantasista. Como dissemos, uma atitude de piedade misturada à curiosidade e à veneração para com os personagens sagrados inspirou essa literatura, que tem caráter eminentemente popular.

Assim Tertuliano (aproximadamente no ano de 200) refere que, havia trinta anos, começara a circular na província da Ásia Menor uma narrativa dita «Atos de Paulo»; nesse escrito o Apóstolo dos Gentios aparecia em companhia de uma jovem, Tecla, que ele convertera do paganismo e que logo, com eloquência admirável, se pusera a pregar o Evangelho. Tal opúsculo, porém, fôra tido como não histórico ou, ao menos, como suspeito aos olhos dos cristãos; puseram-se então ao encalço do seu autor, averiguando finalmente ter sido um sacerdote da Ásia… Este, interrogado sobre os motivos por que forjara tal obra, confessou que o fizera por admiração e devotamento a São Paulo,… cheio portanto de boas intenções, mas destituído de prudência. As autoridades eclesiásticas então o removeram de suas funções (o que é sinal do apreço com que a Igreja sempre cuidou da transmissão incorrupta do depósito revelado). Cf. Tertuliano, De batismo 17.

Segundo o respectivo gênero literário, os apócrifos do Novo Testamento podem-se classificar do seguinte modo:

Evangelhos apócrifos: Evangelho dos Hebreus, E. dos Egípcios, E. dos Ebionitas, E. dos Doze Apóstolos, E. de Pedro, Proto-evangelho de Tiago, E. de Tomé, E. da Infância do Salvador (em árabe), E. do Pseudo-Mateus, História de José o Carpinteiro, E. de Nicodemos (consta dos Atos de Pilatos e da Descida de Jesus ao limbo), Trânsito de Maria, E. de Bartolomeu, E. de Filipe.

Atos apócrifos: Atos de Pedro, Pregação de Pedro, Atos de Paulo, Atos de Pedro e Paulo, Atos de João, Atos de André, Atos de Tomé, Atos de Filipe, Atos de Mateus, Atos de Barnabé.

Cartas apócrifas: Cartas de Jesus e Abgar rei de Edessa, Carta dos Apóstolos, Cartas de Paulo aos Laodicenses, aos Alexandrinos, aos Coríntios, Cartas de Paulo a Sêneca e de Sêneca a Paulo, a epístola do Pseudo-Barnabé.

Apocalipses apócrifos: Apocalipse de Pedro, A. de Paulo, A. de Tomé, A. de Estêvão, A. de João, A. da Virgem Maria, A. de Bartolomeu, A. de Zacarias, o Pastor de Hermas.

Não poucos desses escritos nos são conhecidos apenas pelo título ou por fragmentos ou por traduções, tendo-se perdido a íntegra do texto original. Nos últimos tempos, partes dos mesmos vêm sendo descobertas em papiros e bibliotecas de antigos mosteiros orientais; julga-se que ainda há, ocultos e dispersos, muitos documentos desse gênero.

É para os apócrifos do Novo Testamento que abaixo nos voltaremos com especial atenção. Os mais antigos datam do séc. II; contudo, por vezes referem tradições orais ainda anteriores, provenientes talvez de Cristo ou das testemunhas oculares da vida de Cristo; o número de apócrifos se foi aumentando pelo decorrer dos séculos III, IV e V (período de sua maior eflorescência) até o séc. X aproximadamente.

Alguns escritores antigos se deixaram iludir pela literatura apócrifa, atribuindo a um ou outro desses opúsculos (ao «Pastor» de Hermas, por exemplo, ou à epístola do Ps.-Barnabé) autoridade canônica ou bíblica. — Como se terá feito o discernimento entre os escritos bíblicos autênticos e os espúrios ou apócrifos?

— Não de maneira artificial, por decretos bruscos ou inovadores, mas pela própria vida da Igreja. Esta, aos poucos, em virtude de embates e choques doutrinários, foi refletindo sobre o depósito que Cristo lhe confiou, e viu-se obrigada a delimitá-lo ou defini-lo com precisão crescente, levando em. conta principalmente os pontos sujeitos a controvérsia. Ora entre estes estava justamente o catálogo das Escrituras Sagradas.

Com efeito, desde o século II, ao lado dos autores cristãos que de boa fé aceitavam um ou outro dos apócrifos, ouviam-se aqueles que os rejeitavam, admoestando os fiéis contra os perigos de acreditarem com demasiada facilidade em narrativas tão marcadas pelo «maravilhoso» e «fabuloso» (tais eram, por exemplo, São Justino, +165 aproximadamente, Sto. Ireneu, +202 aproximadamente, Tertuliano, + depois de 220). As autoridades da Igreja vigiavam assiduamente a fim de que a Palavra de Deus não sofresse contaminação por parte de curiosos levianos ou de astutos hereges.

A primeira tentativa de definir o cânon ou o catálogo das Escrituras Sagradas do Novo Testamento da qual tenhamos conhecimento é representada pelo «Cânon ou Fragmento de Muratori», documento que deve datar do ano de 200 aproximadamente e que foi publicado em 1740 pelo estudioso do mesmo nome, bibliotecário em Milão; contém a mesma lista até hoje assinalada (com exceção das epistolas de São Pedro e São Tiago), rejeitando explicitamente o «Pastor» de Hermas; os apócrifos ai são comparados ao fel que não se deve misturar com o mel («fel enim cum melle miscere non congruit»). Semelhantes catálogos se multiplicaram nos tempos seguintes; no decorrer do séc. IV, concílios reunidos na África, na Ásia menor, no Egito e em Roma os promulgaram, até que em 393 o concilio regional de Hipona (África setentrional) estabeleceu a lista definitiva dos livros sagrados tal como ela devia permanecer em uso na Igreja até hoje (confirmada, aliás, pelos concílios de Florença, 1439, Trento, 1543, e do Vaticano I, 1870). Ao lado de tal catálogo, encontra-se, também na antiguidade, um «índice» de livros apócrifos atribuído ao Papa Gelásio (491-496), Índice que acentua a distinção entre os livros bíblicos e os espúrios (ou apócrifos). — Assim se vê que não foram critérios de estilo, vocabulário, tema, autor, piedade que nortearam a definição do catálogo sagrado, mas foi algo de mais profundo: foi, sim, a própria vida da Igreja manifestada pelo seu magistério oficial, ao qual Cristo prometeu assistência infalível (cf. Mt 28,20).

Entre parênteses diga-se: ainda em nossos tempos, todas as vezes que em antigas bibliotecas do Oriente se descobre um documento cujo estilo, vocabulário e tema se assemelham aos da Bíblia Sagrada, põe-se a questão: será ou não um livro inspirado por Deus, pertencente à coleção dos escritos bíblicos?

Os críticos ponderam então a forma literária, a data e o lugar de origem da obra…, esperando por essa via dirimir a questão. — Tal trabalho, porém, não pode levar a resposta cabal; sempre deixa margem a hesitação e dúvida. O único critério que se deve auscultar em tais casos, é a consciência viva da Igreja manifestada pelo seu magistério oficial; somente um pronunciamento da Igreja pode dar ao cristão a certeza de que tal ou tal livro recém-descoberto é canônico (inspirado por Deus) ou apócrifo. Enquanto a Igreja não se pronuncia a respeito, não há critério capaz de induzir o fiel católico a reconhecer tal obra como bíblica ou canônica; cf. «P. R.» 5/1958, qu. 4.

A título de complemento, pode-se aqui notar que, no vocabulário protestante, o termo «apócrifo» não designa a mesma coisa que na nomenclatura católica: «apócrifos» vêm a ser, para os protestantes, os escritos que na antiga Igreja estiveram sujeitos a controvérsia e só aos poucos foram unanimemente reconhecidos peia Tradição cristã; tais seriam os livros de Tobias, Judite, Baruque, da Sabedoria, do Eclesiástico e 1/2 dos Macabeus; os protestantes não os reconhecem como livros bíblicos, ao passo que os católicos os têm como escritos canônicos (também ditos «deuterocanônicos», para se distinguirem dos escritos que nunca estiveram sujeitos a controvérsia, ou escritos «protocanônicos»). Quanto aos apócrifos dos católicos (livros que nunca entraram no cânon oficial da Igreja), os protestantes os chamam pseudo-epígrafos {«falsamente intitulados»). Donde decorre a tabela seguinte:

Nomenclatura católica —Nomenclatura protestante

livros canônicos protocanônicos — livros canônicos

livros canônicos deuterocanônicos — livros apócrifos

livros apócrifos —livros pseudo-epígrafos

Faz-se mister agora analisar

Tendências e traços característicos dos apócrifos do Novo Testamento

Os livros apócrifos apresentam suas notas marcantes, que se podem assim discriminar:

Alguns foram redigidos em círculos heréticos e, por conseguinte, contêm erros doutrinários, ora mais, ora menos acentuados. Ê esta, aliás, a nota que (nem sempre com real fundamento) costuma vir à mente do público quando se mencionam «apócrifos».

Tenha-se em vista, por exemplo, o caso do Ps.-Evangelho de Pedro, um dos apócrifos mais antigos (redigido por volta de 120/130): Além de referir erros de história (apresenta Jesus condenado à morte por Herodes), ressente-se de docetismo, isto é, da doutrina que negava a autêntica Encarnação, atribuindo ao Senhor um corpo aparente apenas (pregado à cruz, o Jesus do Ps.-Evangelho de Pedro parece não padecer, IV 10; ressuscitado, tem aspecto fantástico, X 40). Serapião, bispo de Antioquia (Síria) por volta do ano 200, desaconselhava aos seus fiéis a leitura dessa obra.

O Evangelho dos Egípcios, oriundo no Egito em meados do séc. II, é arauto de ideias encratistas, isto é, de um pessimismo que condena a matéria e particularmente o corpo humano como entidades más, preconizando por conseguinte a continência (enkratéia, em grego) ou a abstenção de vida matrimonial.

O Evangelho dos Hebreus afirma que Jesus foi levado ao Tabor por sua Mãe, que era o Espírito Santo (ruach, espírito, é substantivo feminino em hebraico).

Os Evangelhos de Tomé e de Filipe compartilham ideias gnósticas, concebendo Jesus como um “eón”, ou substância emanada da Divindade e intermediária entre o céu e a terra

Outros apócrifos não professam propriamente heresias, mas são fruto da curiosidade popular ou infantil dos antigos cristãos, que queriam reconstituir com o maior número possível de minúcias os acontecimentos da vida de Jesus. Sem dúvida, os relatos bíblicos deixavam margem a que a imaginação dos leitores elaborasse variadas suposições no tocante à infância de Jesus, à sua vida entre os doze e trinta anos de idade, aos seus parentes ou «irmãos», etc.

As explicações fornecidas pelos apócrifos trazem geralmente o cunho do «fabuloso». Os críticos, porém, admitem que certo número das mais sóbrias correspondam a acontecimentos reais que jamais foram consignados nos escritos canônicos, mas iam sendo transmitidos por via oral, de geração a geração. Dado o exíguo senso crítico dos antigos, tais «histórias» eram bem aceitas e amplamente propagadas, com grande deleite para o povo.

Assim pode-se avaliar o prazer com que os fiéis da Ásia menor ouviam, por exemplo, um negociante recém-vindo do Egito a narrar com minúcias como naquele país ainda se mostrava a casa em que José e Maria haviam recolhido o Menino Jesus por ocasião da fuga para o Egito,… como se mostravam estátuas de ídolos as quais (segundo narra o Evangelho do Ps.-Mateus c. 22) haviam caído quando Jesus passara por elas,… como se mostrava a árvore que (conforme o mesmo Ps.-Mateus) havia milagrosamente alimentado o Menino…

Uma terceira corrente de apócrifos (já mais teológica) tende a apresentar os episódios da vida do Salvador de modo bem acomodado aos textos e vaticínios do Antigo Testamento (principalmente à tradução grega desses textos, dita «dos LXX Intérpretes») .

Levem-se em conta os seguintes exemplos:

No texto dos LXX lê-se: «Ele habitará a gruta cavada na rocha» (Is 33,16). Em consequência, a literatura apócrifa (Proto-Evangelho de Tiago c. 18) apresentou a natividade de Jesus como se tivesse tido lugar em uma gruta (traço este que ainda hoje caracteriza as nossas representações do presépio).

A cena da anunciação do anjo a Maria é, pelo Proto-Evangelho de Tiago c. 11, colocada junto a uma fonte de água… Por que? — Provavelmente a fim de evocar a cena do Antigo Testamento em que o servo de Abraão, enviado por seu amo à procura de esposa para Isaque, encontrou Rebeca junto a uma fonte (cf. Gên 24, 10-27).

Ainda o Evangelho do Ps.-Mateus c. 14 menciona dois animais (o boi e o asno) junto ao presépio do Senhor, muito possivelmente para fazer eco ao texto do profeta Isaias: «O boi reconhece o seu dono, e o asno o presépio do seu senhor» (1,3), assim como às palavras de Habacuque: «Manifestar-te-ás em meio a dois animais» (3,2, texto dos LXX).

A estada de Maria no Templo, em seus anos de infância, parece descrita nos apócrifos por sugestão do texto de Eclo 24,14, em que a Sabedoria personificada afirma: «Servi na presença do Senhor, em seu santuário». Cf. Proto-Evangelho de Tiago c. 7.

A titulo de ilustração, transcrevemos aqui um dos mais vivos episódios dos apócrifos:

José e Maria, levando o Menino Jesus em fuga, «alegres e exultantes, chegaram ao território de Hermópolis e penetraram em uma das cidades do Egito chamada Sotinen. Visto que lá não conheciam morador algum em cuja casa se pudessem hospedar, entraram em um templo tido como o Capitólio do Egito. Nesse templo achavam-se 365 ídolos, aos quais diariamente eram prestadas honras divinas em cerimônias sacrílegas.

Ora aconteceu que, quando a bem-aventurada Virgem Maria penetrou no templo com o Menino Jesus, todos os ídolos foram derrubados, desfazendo-se em frangalhos, com o semblante partido; assim se comprovou que nada eram. Destarte também se cumpriu o que fôra dito pelo profeta Isaias: ‘Eis que o Senhor vem sobre uma nuvem tênue e entra no Egito, e todas as obras fabricadas pelas mãos dos egípcios estremecerão perante a sua face’ (Is 19,1).

Então Afrodísio, governador da cidade, tendo tomado conhecimento do fato, foi ao templo com toda a sua milícia. Os pontífices do templo, tendo-o visto chegar com os milicianos, julgavam que estava para se vingar daqueles que haviam causado a queda dos deuses. Entrando, porém, no templo, e vendo todos os ídolos por terra, aproximou-se de Maria e adorou o Menino que ela trazia nos braços. E, tendo-o adorado, disse a toda a sua milícia e aos seus amigos… : «Se esse não fosse o Deus dos nossos deuses, nossos deuses não se teriam prostrado diante dele; caindo, reconheceram tacitamente que ele é o senhor de todos. Quanto a nós, se não procedermos prudentemente como os nossos deuses, corremos o risco de provocar a sua ira e de perecer todos como aconteceu ao Faraó, rei dos egípcios, o qual, não tendo dado fé a tão grandes prodígios, foi tragado pelo mar com todo o seu exército. Então o povo inteiro da cidade acreditou no Senhor Deus por Jesus Cristo» (Ev. do Ps. Mateus cc. 22s).

Além dos traços particulares das correntes de apócrifos assinaladas, nota-se em todos esses escritos um traço comum, já mencionado neste artigo: o gosto do maravilhoso, que se pode exprimir tanto em cenas graciosas e delicadas como em episódios grotescos ou mesmo ridículos.

Graciosa (embora fantástica) é, por exemplo, a narrativa segundo a qual o Menino Jesus modelava passarinhos de barro, os quais, uma vez terminados, logo esvoaçavam, vivos, das suas mãos divinas.

Podem-se referir sob a mesma rubrica ainda os seguintes traços:

«Maria permanecia no Templo do Senhor, semelhante a uma pomba, e a mão de um anjo a alimentava» (Proto-Evangelho de Tiago c. 8).

As núpcias de Maria são assim preparadas e realizadas: quando a donzela no Templo atingiu a idade de doze anos, os sacerdotes se reuniram para deliberar a respeito do seu futuro; um deles, a seguir, orou, merecendo ser visitado por um anjo, que lhe mandou providenciasse um esposo para Maria mediante o seguinte recurso: devia convocar todos os varões do povo que não tivessem esposa; cada um haveria de levar um cajado; ora aquele em cujo cajado se desse um prodígio, seria o esposo de Maria designado pelo Senhor Deus. — A convocação então foi feita; José acorreu junto com outros filhos de Israel, cada qual portador de seu bastão; o Sumo Sacerdote tomou os diversos cajados, entrou no Templo, orou; a seguir, saiu e pôs-se a devolver os bastões, sem que milagre algum se verificasse; José devia ser o último a receber o bastão; quando lhe chegou a vez, uma pomba saiu da sua haste e pousou sobre a sua cabeça; então disse-lhe o Sumo Sacerdote : «É a ti que toca tomar sob a tua proteção a Virgem do Senhor».

José, porém, formulou sua hesitação : «Sou ancião e já tenho filhos, ao passo que ela é jovem; é preciso que eu não caia em ridículo perante os filhos de Israel», visto, porém, que o Sumo Sacerdote insistia, o santo varão acabou aquiescendo; tomou Maria sob a sua tutela e lhe disse; «Eis que te recebi do Templo do Senhor; agora deixo-te em minha casa, e vou-me construir casas alhures; mais tarde voltarei para junto de ti. O Senhor te guardará» (Proto-Evangelho de Tiago cc. 8s).

Não deixa de ter sua beleza majestosa o episódio da natividade do Senhor: todas as criaturas ou a natureza inteira se terão detido de repente ,diz o Proto-Evangelho de Tiago, como que estarrecidas diante desse acontecimento inédito:

«Eu, José, levantei os olhos e percebi que a atmosfera estava como que cheia de estupor. Levantei-os para o mais alto dos céus, e vi-o imóvel, e os pássaros detidos em pleno voo. Baixei o olhar para a terra; vi um depósito de farinha e trabalhadores inclinados, com as mãos dentro do depósito; aqueles que nessa posição amassavam o pão, haviam deixado de o amassar; e aqueles que faziam fermentar a massa, haviam deixado de a fazer fermentar; aqueles que a levavam à boca, haviam deixado de a levar; todos tinham o olhar erguido para o alto. E eis que carneiros, postos em marcha, haviam deixado de caminhar; o pastor que levantara a mão para os percutir com o báculo, ficou com a mão suspensa no ar. Olhando para o rio, vi cabritos que estavam a beber e cuja boca ficava aberta, embora tivessem deixado de beber. A seguir, num instante tudo retomou seu curso normal» (c. 18).

Grotescos, porém, e pouco dignos são outros traços:

No Evangelho do Ps.-Mateus, Jesus, ao brincar com amiguinhos, vinga-se de um ou outro deles, fazendo-os morrer ou transformando-os em bodes, porque implicavam com Jesus… O Senhor fez secar a mão do professor na escola, porque este tentou aplicar-lhe a palmatória… Uma parteira foi assistir a Maria quando estava para dar à luz; quis então verificar experimentalmente o milagre do nascimento virginal de Jesus, tocando o seio de Maria; em consequência, teve a mão imediatamente ressequida…

São por vezes tão despropositadas as narrativas dos apócrifos que o racionalista Renan observava : «Faria injúria à literatura cristã quem pusesse no mesmo plano essas toscas histórias e as obras-primas de Marcos, Lucas, Mateus… Quanto aos pormenores, é impossível conceber algo de mais vazio e desprezível. Tem-se a impressão de ouvir a tagarelice cansativa de uma velha comadre ou o tom abusivamente familiar de uma literatura de ama de leite ou de ama seca».

Tais palavras de Renan podem ser tidas como um tanto exageradas; em seu teor geral, porém, não deixam de corresponder à realidade.

Esta verificação encaminha naturalmente para o terceiro parágrafo do presente estudo.

Significado o importância dos apócrifos

Se os traços marcantes dos apócrifos são os que acabamos de apontar, pergunta-se : que interesse pode haver em ler esses escritos?

Paira uma aura de mistério e de atração em torno dos apócrifos, precisamente por causa da marca de «maravilhoso» que tanto os caracteriza. Pensadores ecléticos e sistemas esotéricos muito os têm explorado, como se fossem expressão de sabedoria antiquíssima.

Um autor inglês, conceituado em seu tempo, E. Bunsen, chegou a asseverar que os apócrifos referem doutrinas provenientes do paraíso terrestre pela Pérsia ou a Bactriana, recolhidas pelos judeus durante o exílio na Babilônia e finalmente transmitidas a Cristo e aos Apóstolos (cf. «The hidden Wisdom of Christ and the key of knowledge, or History of the Apocrypha» London 1876).

Hoje em dia tal asserção só provocaria sorrisos de desdém.

O motivo pelo qual muitos apócrifos gozam de prestígio nos tempos atuais, é, em grande parte, o simples fato de terem ficado ocultos ou desconhecidos durante séculos. Novos e novos manuscritos de apócrifos vão sendo descobertos; em consequência, os estudiosos se veem obrigados a lhes dar atenção especial.

A consideração de tais documentos não carece de interesse e vantagem, porque, apesar dos seus muitos aspectos negativos, os apócrifos têm certamente valor positivo; refletem, sim, algo do que se dava na Igreja antiquíssima: por eles se percebem as ideias que mais estavam em curso, os embates em torno delas travados e o fervor da alma popular; além disto, bem se pode crer que, entre as suas narrativas, haja não somente lendas, mas também elementos históricos e doutrinários correspondentes à verdade, elementos que os autores bíblicos não consignaram nos Evangelhos e nas epístolas e que ficaram na Tradição oral dos cristãos.

Certos dados, referidos pelos apócrifos, até hoje são afirmados pelo povo cristão,… em alguns casos com o consentimento tácito das autoridades da Igreja, em outros casos com o apoio ora mais, ora menos explícito das mesmas. Ê o que vamos ver de mais perto:

a) Passaram para a piedade popular, a Liturgia e a arte sacra alguns traços que os Evangelhos não consignam, mas que a literatura apócrifa menciona:

Tais seriam, por exemplo os nomes dos genitores de Maria Santíssima : Joaquim e Ana, celebrados pela Liturgia respectivamente aos 16 de agosto e 26 de julho;
os nomes dos magos adoradores: Gaspar, Melquior, Baltasar, e a sua qualidade de reis (coisas das quais S. Mateus c. 2 nada refere);
a apresentação de Maria no Templo, celebrada pela Liturgia aos 21 de novembro;
o boi e o asno junto ao presépio, o qual, por sua vez, costuma ser colocado dentro de uma gruta (aliás, observam os estudiosos que cerca de doze elementos que acompanham o presépio na iconografia cristã, são consignados pelos apócrifos);
textos do Oficio e da Missa de Sto. André Apóstolo (30 de novembro) ; narram como o santo aceitou a cruz com a máxima alegria e nela ficou pendente, de cabeça para baixo, durante dois dias, ensinando e exortando o povo;
algumas estações da Via Sacra; em particular, o encontro de Jesus com Verônica, em cujo véu o Senhor terá gravado a sua santa efígie.

Também entre os cristãos do Egito, da Etiópia e do Oriente muitos elementos dos apócrifos são comumente afirmados pela piedade popular.

Note-se bem que a Igreja, ao permitir ou mesmo, de certo modo, fomentar tais afirmações (mediante inclusão no calendário litúrgico) de maneira nenhuma entende defini-las como proposições dogmáticas. Enquanto não há argumentos contra a historicidade de tais dados e enquanto a piedade dos fiéis se beneficia ao contemplá-los, a Igreja não condena tais afirmações; antes, favorece o que nelas diz respeito à devoção do povo de Deus.

b) Há mesmo casos em que verdades da fé cristã se encontram explicitamente atestadas pelos apócrifos, ao passo que os livros canônicos simplesmente as silenciam (o que não quer dizer que lhes contradigam).

Isto está longe de significar que o magistério da Igreja tenha tirado dos apócrifos as suas doutrinas dogmáticas. A Igreja contudo admite (por indicação da S. Escritura mesma; cf. 2 Tim 2,ls; 1,12-14; 2 Tes 2,15; 1 Cor 11,2; Hebr 2,3) que genuínos ensinamentos de Cristo e dos Apóstolos hajam ficado na Tradição meramente oral, sem entrar nas Escrituras canônicas. Sendo assim, pode-se crer que um ou outro dos autores de apócrifos se tenha feito porta-voz desses ensinamentos, tomando, porém, a liberdade de os enquadrar dentro de narrativas imaginárias ou de os ornamentar com traços de ficção. Em tais casos, embora a ambientação e a ornamentação não mereçam crédito, o cerne dos episódios conserva genuíno valor, podendo muitas vezes ser autêntica mensagem comunicada por Cristo ou pelos Apóstolos. Caso isto se dê, as narrativas dos apócrifos “não são as fontes da doutrina, mas apenas testemunhos que fazem eco a testemunhos anteriores.E como se pode verificar se realmente esses testemunhos se reduzem à palavra de Cristo e dos Apóstolos?
Não há outro critério senão a própria Tradição autêntica e contínua da Igreja, Tradição que o magistério oficial da Esposa de Cristo está encarregado por Cristo de exprimir infalivelmente (cf. Mt 28, 20); é, em última análise, em função do magistério vivo da Igreja que o leitor tem que julgar os apócrifos (e não vice-versa :… em função dos apócrifos julgar o magistério da Igreja). Tal é a conclusão que decorre logicamente do fato de que o ensinamento meramente oral é anterior ao ensinamento escrito e mais amplo do que este, no Cristianismo.

Pergunta-se então: quais seriam as verdades da fé explicitamente transmitidas pela Tradição meramente oral e os apócrifos? — Ei-las:a perpétua virgindade de Maria (antes do parto, no parto e após o parto); mais de uma passagem dessa literatura a inculca categoricamente. Tenham-se em vista o Proto-Evangeiho de Tiago cc. 19s; o Evangelho do Ps.-Mateus c. 13, assim como a referência feita a esses escritos em «P. R.» 6/1958, qu. 8;
a assunção corporal de Maria aos céus, a respeito da qual se encontra amplo artigo em «P. R.» 35/1960, qu. 2 (aliás, pode-se observar o seguinte: a Bula pontifícia de Pio XII que, a 1 de novembro de 1950, definiu a Assunção de Maria, não alude aos apócrifos; apoia-se sobre a Tradição da Igreja expressa pela Liturgia, pelos Padres e Doutores antigos, pelos teólogos e pela sentença comum dos bispos e dos fiéis);
a estada de Jesus Cristo no limbo dos Pais durante o tríduo de sua morte. Esta proposição, ligeiramente insinuada por São Pedro em sua 1a epistola (3,19; 4,6), foi longamente exposta pelo «Evangelho de Nicodemos», o «Evangelho de Pedro» e as «Odes de Salomão». Veja-se o texto do Evangelho de Pedro em «P. R.» 54/1962, qu. 4 (os pormenores são evidentemente imaginários; não resta, porém, dúvida de que é autêntica a mensagem assim transmitida).

Estas considerações dão suficientemente a ver em que medida se pode tomar útil o estudo dos apócrifos para o conhecimento da história do Cristianismo, contanto que tais documentos sejam analisados dentro do seu quadro autêntico, isto é, à luz da corrente doutrinária que os antecedeu e que hoje se manifesta.


segunda-feira, 3 de junho de 2024

Centuriões romanos e os animais de estimação

 


Arqueólogos poloneses em Berenike descobriram papiros listando centuriões romanos estacionados no Egito, encontrados ao lado de cerâmica da Itália, moedas romanas e uma fivela de casaco distinta, possivelmente dentro dos restos do escritório de um centurião! Além disso, descobriram mais de 200 sepulturas adicionais de macacos, cães e gatos num “cemitério de animais de estimação” que remonta aos séculos I e II, que revelou uma variedade de cerâmicas exclusivas da Itália, do Mediterrâneo, da África e da Índia.

Além disso, havia também várias moedas romanas e uma fíbula – um fecho de manto comum usado pelos legionários. O local rendeu óstracos (fragmentos de texto em cerâmica) e, mais significativamente, vários papiros.

Berenike: um encontro com o domínio romano

“Para os egiptólogos e outros estudiosos da Antiguidade, esta é uma descoberta extremamente rara e significativa. Existem muito poucos sítios do período romano nesta parte do mundo. Os egípcios não promovem esta época da história, entre outros motivos, porque é a época em que foram conquistados. Por outro lado, o alcance destas descobertas é verdadeiramente fenomenal”, explicou a Dra. Marta Osypińska, do Instituto de Arqueologia da Universidade de Wrocław, à Revista LBV . 

Os papiros foram descobertos em Berenice Troglodytica , um antigo porto marítimo na costa ocidental do Mar Vermelho. A cidade foi fundada por Ptolomeu II Filadelfo (285–246 aC) e recebeu o nome de sua mãe, Berenice I do Egito. Durante o período romano, Berenice Troglodytica serviu como um ponto de passagem importante para o comércio de elefantes de guerra e produtos exóticos importados da Índia, Sri Lanka, Arábia e Alto Egito.

“Para os egiptólogos e outros estudiosos da antiguidade, esta é uma descoberta extremamente rara e de alto calibre. Existem muito poucos sítios do período romano nesta parte do mundo. Por outro lado, a classificação destas descobertas é verdadeiramente fenomenal”, afirma a professora Marta Osypińska, do Instituto de Arqueologia da Universidade de Wrocław.

O antigo porto foi estabelecido pelo imperador Tibério logo após o Império Romano anexar o Egito. Os arqueólogos há muito suspeitam que a Terceira Legião Cirenaica, conhecida por pacificar a famosa revolta em Jerusalém em 70 d.C., estava estacionada em Berenike.

Os papiros encontrados no local incluem cartas de centuriões ou comandantes de legiões romanas . Centuriões eram soldados promovidos para comandar uma centúria ou "século", unidade militar composta por 80 a 100 homens. A correspondência apresenta nomes como Haosus, Lucinius e Petronius, relata o The Heritage Daily .

“Nesta correspondência, Petrônio pergunta a Lucinius, estacionado em Berenice, sobre os preços de certos bens exclusivos. Há também um comunicado: eu te dou o dinheiro, mando com dromedário (tropa de legionários que se desloca em dromedários). Cuide deles, para que recebam bezerros e varas de barraca”, explicou Dra. Marta.

Protegendo os papiros

Os papiros já foram protegidos, enquanto a equipe aguardava a chegada do professor Rodney Asta, chefe do Instituto de Papirologia da Universidade de Heidelberg, junto com sua esposa. Ao chegarem, eles trabalharam juntos para montar um quebra-cabeça medindo meio metro (1,64 pés) de comprimento e 30 cm (11,81 pol.) de largura a partir desses pequenos rolos. Depois de cobri-los com vidro para facilitar a expansão, eles juntaram várias letras com sucesso . Atualmente, os textos estão passando por um exame minucioso!

cemitério de animais onde os papiros foram descobertos está situado na periferia oeste de Berenike. Anteriormente, o local produzia principalmente óstracos, que o Dr. Osypińska descreve como muito procurados por filólogos e epígrafes. Segundo os pesquisadores, as descobertas provavelmente têm origem no escritório ou residência do centurião, que provavelmente ficava perto do cemitério. Com o passar dos anos, à medida que esta área foi sendo nivelada, vestígios da presença legionária foram incorporados mecanicamente ao cemitério de animais.

As Origens das Fadas: Codificadas nas Culturas


As fadas aparecem no folclore de todo o mundo como seres metafísicos, que, dadas as condições adequadas, são capazes de interagir com o mundo físico. São conhecidos por muitos nomes, mas há uma conformidade com o que representam e talvez também com as suas origens. Dos Huldufólk na Islândia aos Tuatha Dé Danann na Irlanda, e aos Manitou dos nativos americanos, estas são entidades aparentemente inteligentes que vivem invisíveis ao nosso lado, até que as suas manifestações ocasionais neste mundo sejam codificadas nas nossas culturas através de contos populares, anedotas e testemunhos. 

Em seu tratado de 1691 sobre as fadas de Aberfoyle, na Escócia, o reverendo Robert Kirk sugeriu que elas representavam uma Comunidade Secreta , vivendo em uma realidade paralela à nossa, com uma civilização e moral próprias, visíveis apenas para videntes e clarividentes. Sua avaliação se ajusta bem tanto aos motivos dos contos populares quanto a algumas teorias modernas sobre suas origens antigas e como elas permearam a consciência humana coletiva. Então, quem são as fadas, de onde elas vêm... e o que elas querem?

Contos de fadas

“O mito é uma história que implica uma certa forma de interpretar a realidade consensual para extrair significado e carga efetiva de suas imagens e interações. Como tal, pode assumir muitas formas: fábulas, religião e folclore, mas também sistemas filosóficos formais e teorias científicas.”

 - Bernardo Kastrup, Mais que Alegoria: Sobre mito religioso, verdade e crença (2016).

Os contos de fadas são um tipo de mitologia; explicações de fenômenos humanos e ambientais, geralmente ambientadas em um momento indeterminado no passado. A maioria dos contos de fadas nunca são isolados, mas parecem agrupar-se como uma forma única a partir de muitas fontes, que estão dispersas geográfica e cronologicamente. Na Europa e na América, foram recolhidos principalmente por folcloristas no século XIX e início do século XX, a partir de fontes orais e escritas, e depois disseminados a partir daí. Muitos foram incorporados à bíblia dos folcloristas, os catálogos de tipos e motivos de contos populares de Aarne-Thompson, que foram reunidos pela primeira vez em 1910 pelo folclorista finlandês Antti Aarne e concluídos por Stith Thompson em 1958. Eles consistem em vários volumes de batente de porta, que indexe todos os tipos de histórias e motivos concebíveis de todo o mundo.

Tem sido sugerido que os catálogos realmente codificam todas as experiências humanas, destiladas em histórias; um índice de nossa memória coletiva como espécie, realizada por meio da mitologia. Em meio aos catálogos estão os tipos de histórias classificados como contos de fadas, cada um contendo centenas de temas separados; eles são os descritores de uma vasta gama de mitos. Não são simples contos contados para passar as longas noites de inverno (embora essa sempre tenha sido uma utilidade para eles), mas sim ferramentas sofisticadas que podem ser usadas para interpretar a experiência humana e para ajudar a compreender a realidade em que nos encontramos.

Um motivo comum em contos de fadas, por exemplo, é a suspensão do tempo quando um mortal visita o país das fadas. Um bom exemplo é a história irlandesa de Oisín, um poeta dos Feinn. Depois de adormecer sob um freixo, ele acorda e encontra Niamh, a rainha metamorfa de Tir na n'Og, a terra da juventude perpétua, convocando-o para se juntar a ela em seu reino como seu marido. Ele concorda e se vê vivendo num paraíso de verão perpétuo, onde abundam todas as coisas boas e onde o tempo e a morte não têm influência.

Mas logo ele quebra o tabu de ficar em pé sobre uma pedra larga e plana, de onde é capaz de ver a Irlanda que deixou para trás. A situação mudou para pior e ele implora a Niamh que lhe dê permissão para retornar. Ela concorda relutantemente, mas pede que ele retorne depois de apenas um dia com os mortais. Ela lhe fornece um cavalo preto, do qual ele não deve desmontar, e 'o presenteou com sabedoria e conhecimento que superam em muito os dos homens'.

De volta à Irlanda, ele percebe que décadas se passaram e que ele não é mais reconhecido ou conhecido. Inevitavelmente, ele desmonta do cavalo e imediatamente sua juventude desaparece e ele se torna um velho debilitado, com nada além de sua sabedoria imortal. Não há como retornar ao país das fadas de Tir na n'Og. Em outras variações da história, o herói vira pó assim que seus pés tocam o chão da realidade consensual.

Este tema importante e difundido do conto popular parece sugerir que a terra das fadas é o mundo dos mortos, imune à passagem do tempo, e que o retorno ao mundo dos vivos não é possível, pois o corpo mortal envelheceu e decaiu de acordo com o corpo físico. leis deste mundo. No conto japonês de Urashima Taro , o herói, ao voltar para casa, recebe até um caixão de sua noiva fada, no qual seus anos estão trancados. Quando ele abre, seu tempo acabou.

Essas histórias articulam uma crença em um outro mundo que nunca é o céu, mas é aparentemente governado por uma raça de imortais que podem exercer controle sobre a consciência de um indivíduo, que pode acreditar que ainda está na forma humana, mas na verdade já está morto. e existente em forma imaterial. Em última análise, é o lugar de onde vêm as fadas; um lugar intocado pela passagem do tempo e pela morte física. Poderia até representar a consciência coletiva da humanidade transformada em uma forma compreensível nas histórias, de natureza imortal e contendo toda a sabedoria e conhecimento, como sugerido no conto de Oisín.

Isso pode ser explicado ao vermos contos populares desse tipo como representando um sistema de crenças pagão sobrevivente da vida após a morte. Esta vida após a morte não seguiu as restrições do Cristianismo ou de outras religiões mundiais e forneceu uma visão alternativa do que acontece com a consciência após a morte. É uma visão que foi (no Ocidente) substituída pela teologia cristã, mas que pode estar a emergir nestes contos populares como remanescentes do sistema de crenças anterior (um sistema de crenças que permaneceu parcialmente intacto, mas que funcionou clandestinamente por medo de perseguição religiosa).

A presença de fadas neste outro mundo, e a sua capacidade de se materializarem na realidade padrão, sugere que elas eram um elemento essencial nas ideias pagãs sobre a consciência e que tinham um papel a desempenhar quando se tratava de morte. Nesta teoria, os personagens da história desempenham o papel de mensageiros, contando-nos sobre a verdadeira natureza de uma realidade atemporal que é distinta e separada da realidade consensual, e mostrando-nos que a consciência humana se dissocia do corpo físico para existir em uma realidade paralela. como Tir na n'Og, onde as fadas estão no comando. Esta mensagem está codificada nas histórias.

Fadas Reais e Espíritos Xamãs


Porém, não é possível reduzir a origem das fadas apenas a temas mitológicos abstratos. Sua aparição no folclore muitas vezes assume a forma de depoimentos de testemunhas ou anedotas, continuando até os dias atuais. Eles assumem uma infinidade de formas diferentes – duendes, silfos, brownies, duendes e até mesmo alienígenas em uma versão tecnologicamente atualizada de sua forma – mas são retratados como entidades reais, fazendo aparições neste mundo a partir de suas próprias formas.

Eles atraem pessoas para seus círculos de dança mágicos, sequestram crianças e adultos, pregam peças nos incautos, participam de cortejos fúnebres de fadas e geralmente se divertem com uma sensação de imoralidade travessa e às vezes malévola. São inúmeras as descrições da sua presença metafísica no nosso mundo, ao longo dos tempos, desempenhando um papel na cultura humana, sempre liminar, mas constantemente presente desde os tempos antigos do folclore.

As fadas aparecem no folclore de todo o mundo como seres metafísicos, que, dadas as condições adequadas, são capazes de interagir com o mundo físico. São conhecidos por muitos nomes, mas há uma conformidade com o que representam e talvez também com as suas origens.

Em seu livro Supernatural de 2005 , Graham Hancock apresenta a hipótese de que as culturas xamânicas da Idade da Pedra também interagiam com estes seres. Há cerca de 40.000 anos, houve uma explosão de simbolismo nas culturas humanas em todo o mundo, representada principalmente pela arte rupestre. Esta arte rupestre geralmente está localizada em espaços subterrâneos de difícil acesso que devem ter tido um significado significativo para os artistas e para aqueles que vivenciariam essas estranhas imagens à luz do fogo. E estranhos eles são. Grande parte da arte rupestre representa seres terantrópicos, isto é, metade humanos, metade animais que mudam de forma.

Existem também muitos seres que parecem ser humanos distorcidos, muitas vezes semelhantes às fadas do folclore. E isso chega ao cerne do assunto. Hancock apresenta o argumento convincente de que essas pinturas rupestres foram produzidas para representar a realidade percebida em um estado alterado de consciência. Há vinte anos esta ideia era um anátema para os antropólogos, mas desde o trabalho dos antropólogos David Lewis-Williams, Thomas Dowson e muitos outros, a teoria tombou para se tornar uma ortodoxia aceite. Existem centenas de motivos nas pinturas rupestres que se correlacionam com os estados visionários de pessoas em estado alterado de consciência, provocados principalmente pela ingestão de uma substância psicotrópica.

A premissa básica é que os xamãs destas culturas da Idade da Pedra se transportaram para estados alterados de consciência e depois pintaram os resultados das suas experiências – experiências que frequentemente incluíam os seres terantrópicos que encontravam. Estas obras de arte manifestam-se em todo o mundo durante um vasto período pré-histórico e demonstram uma universalidade de experiência, desde as imagens entópticas (pontos, espirais e padrões geométricos) frequentemente causadas por drogas psicotrópicas, até às imagens da percepção de lapso de tempo, frequentemente chamados de rastreadores. É uma evidência convincente de que os nossos antepassados ​​pré-históricos estavam a mexer com plantas psicotrópicas e cogumelos para adquirir um estado de consciência que era fundamentalmente importante para eles. As pinturas rupestres podem ser vistas como o folclore mais antigo, contado em imagens.

Investigações mais aprofundadas sobre as culturas das tribos indígenas modernas confirmam a importância das mudanças induzidas na percepção consciente, para aqueles que ainda são povos xamânicos. O melhor exemplo é o uso extensivo da substância Ayahausca pelas tribos amazônicas. Esta é uma mistura que revela uma realidade que inclui muitas inteligências não-humanas (normalmente chamadas simplesmente de “espíritos” pelos xamãs), com as quais se pode interagir diretamente. Geralmente há um elemento feminino altamente carregado na experiência da Ayahausca, mas os relatórios também descrevem consistentemente seres terantrópicos, répteis, a capacidade de voar e entidades humanóides. Isso nos traz de volta à fonte de todas essas experiências. Se os espíritos xamãs e as fadas fazem parte do mesmo fenômeno, qual é esse fenômeno? A evidência das culturas xamânicas modernas e arcaicas confirma que um estado alterado de consciência era/é necessário para aceder aos locais onde os “espíritos” residiam. É mais difícil provar que os contos de fadas foram gerados a partir de informações coletadas em um estado alterado, mas há uma predominância de imagens de cogumelos historicamente associadas às fadas, mais especialmente o altamente psicodélico cogumelo vermelho e branco Amanita Muscaria (fly agaric), e o cogumelo psilocibina, ambos prevalentes na Europa e na Ásia.

Estes podem ter sido responsáveis ​​por viagens psicodélicas propositais ou acidentais, mas há uma série de outros gatilhos para alterar estados de consciência (como privação de sono, trauma, doença, etc.) que também podem ter contribuído para que as pessoas viajassem para a terra das fadas e trouxessem de volta as experiências como contos de fadas. Muitos contos de fadas contêm situações semelhantes a sonhos, onde as leis da física são suspensas e a realidade vivenciada é diferente da realidade habitual dos cinco sentidos. Não é por acaso que os contos são frequentemente descritos como alucinantes. Eles podem ser vistos basicamente como descrições de eventos a partir de um estado alterado de consciência participativo, que então gestaram e se transformaram em contos de fadas orais, antes de serem fossilizados na literatura por folcloristas em vários momentos nos séculos XIX e XX.

A diversidade das origens das fadas


As origens das fadas no folclore e na cultura mundial são diversas e complexas. Embora a narrativa mitológica e os estados alterados de consciência xamânicos possam explicar o fenômeno em muitos níveis, as fadas não podem ser classificadas de maneira tão simples. Existe, por exemplo, uma hipótese coesa de que as fadas são espíritos da natureza ; uma força vital invisível responsável pela propagação da vegetação e até da própria biosfera terrestre.

O filósofo espiritual austríaco Rudolf Steiner (falecido em 1924) propôs esta interpenetração do mundo físico com o mundo espiritual e aponta para uma compreensão cósmica mais profunda dos detalhes básicos de como o mundo realmente funciona. Ele denomina a realidade consensual como o mundo dos sentidos , e o reino espiritual como o mundo supra-sensível. Para Steiner, o mundo supra-sensível existe como um campo de energia desprovido de matéria, mas que interage constantemente com o mundo dos sentidos físicos. O que existe no mundo supra-sensível é, na verdade, uma quinta dimensão da realidade da qual dependem as nossas quatro dimensões, e que é essencial para o bem-estar de toda a vida, mas só pode ser percebida pela clarividência. É esta faculdade especial que permite às pessoas reconhecer como os mundos da matéria e do espírito se entrelaçam e reconhecer as fadas em ação.

É uma teoria que foi atualizada recentemente pelo bioquímico Rupert Sheldrake, que propõe que os campos morfogenéticos são a causa formativa que permite a vida na Terra. A descrição de Sheldrake deste princípio organizador por trás do mundo natural é emitida na linguagem da bioquímica, mas, na verdade, o que ele postula é o mesmo que a visão de Steiner dos espíritos da natureza em ação. Existem forças invisíveis que são essenciais para ordenar a vida na Terra, algo que a ciência convencional aceita no caso das ondas gravitacionais ou do magnetismo, mas tem dificuldades quando se trata da própria vida. A tese de Steiner é que os espíritos da natureza são representações antropogênicas desses campos morfogenéticos, que lhes são impostos através das formas-pensamento do observador, que os percebe clarividentemente. As fadas são, essencialmente, a memória da natureza.

Quaisquer que sejam as origens das fadas, elas têm estado sempre presentes no folclore mundial e têm grande importância na nossa mitologia cultural, que tenta explicar a ordem cósmica. Eles residem na consciência humana coletiva e parecem estar lá há milhares de anos. Talvez a maior questão seja como eles parecem ser capazes de transcender a consciência imaterial e fazer aparições dentro da nossa realidade material. A sua natureza metafísica é um segredo, e talvez deva permanecer assim.