Craig Blomberg é considerado uma das  autoridades mais importantes do país nas biografias de Jesus, os quatro  evangelhos. Doutorou-se em Novo Testamento pela Aberdeeen University, Escócia,  tornando-se posteriormente pesquisador sênior da Tyndale House, na Universidade  de Cambridge, Inglaterra, onde integrou um grupo de elite formado por estudiosos  internacionais responsáveis por uma série de trabalhos muito elogiados sobre  Jesus. Há 12 anos leciona Novo Testamento no prestigioso seminário de  Denver.
Dentre os livros que escreveu, podemos citar Jesus and the  gospels: interpreting the parables [Jesus e os evangelhos: a interpretação das  parábolas]; How wide the divide? [Qual o tamanho da divisão?], além de  comentários sobre o evangelho de Mateus e 1Coríntios. Participou também da  edição do sexto volume de Gospel perspectives [Perspectivas dos evangelhos], que  trata exaustivamente dos milagres de Jesus. E co-autor ainda de Introductíon to  biblical interpretation [Introdução à interpretação bíblica]. Contribuiu com  alguns capítulos sobre a historicidade dos evangelhos para o livro Reasonable  faith [Fé racional] e escreveu o elogiado Jesus under fire [Jesus sob cerco].  Blomberg é membro da Sociedade para o Estudo do Novo Testamento, da Sociedade de  Literatura Bíblica e do Instituto de Pesquisas Bíblicas.
É  possível ser inteligente e crítico e ainda assim acreditar que os quatro  evangelhos foram escritos pelas pessoas que dão nome a eles?
A resposta é  sim — disse convicto. O que importa é reconhecer que, rigorosamente falando, os  evangelhos são anônimos. Mas o testemunho uniforme da igreja primitiva é que  Mateus, também conhecido por Levi, o coletor de impostos, e um dos 12  discípulos, escreveu o primeiro evangelho do Novo Testamento; João Marcos,  companheiro de Pedro, é autor do evangelho que chamamos de Marcos; Lucas, o  "médico amado" segundo Paulo, escreveu tanto o evangelho que leva seu nome  quanto os Atos dos Apóstolos.
Em que medida a crença de serem eles os  autores era consensual? 
Não se sabe de ninguém mais que pudesse tê-los  escrito. Pelo que tudo indica, a autoria desses três evangelhos não era motivo  de disputa.
Perdoe meu ceticismo — eu disse. — Será que alguém não  teria algum motivo para mentir, dizendo que aquelas pessoas escreveram os  evangelhos, quando na verdade não o fizeram?
Blomberg fez que não com a  cabeça.
Não acho provável. Lembre-se de que aquelas personagens eram. Marcos  e Lucas nem sequer pertenciam ao grupo dos 12. Mateus sim, mas era odiado porque  fora coletor de impostos; portanto, depois de Judas Iscariotes (que traiu  Jesus!), seria ele a figura mais abominável. Compare isso com o que aconteceu  quando os fantasiosos evangelhos apócrifos foram escritos muito depois. As  pessoas atribuíram sua autoria a personagens conhecidos e exemplares: Filipe,  Pedro, Maria, Tiago. Esses nomes tinham muito mais prestígio que os de Mateus,  Marcos e Lucas. Respondendo então à sua pergunta, não haveria por que conferir a  autoria a esses três indivíduos menos respeitáveis se não fossem de fato os  verdadeiros autores.
E João? Ele era muito importante; na verdade,  João não era tão-somente um dos 12 discípulos, ele era um dos três apóstolos  mais íntimos de Jesus, juntamente com Tiago e Pedro.
Sim, ele é uma  exceção. E o mais interessante é que o evangelho de João é o único sobre o qual  paira uma certa dúvida quanto à autoria.
E qual é exatamente a  objeção?
Não há dúvida quanto ao nome do autor: era João mesmo —  respondeu Blomberg. — A questão é que não se sabe se foi João, o apóstolo, ou se  foi outro. Segundo o testemunho de um escritor cristão chamado Papias, em  aproximadamente 125 d.C, havia João, o apóstolo, e João, o ancião, mas o  contexto não deixa claro se ele se referia a uma única pessoa de duas  perspectivas distintas ou a pessoas diferentes. Fora essa exceção, todos os  demais testemunhos afirmam unanimemente que foi João, o apóstolo, o filho de  Zebedeu, quem escreveu o evangelho.
Mas você acha que foi ele mesmo  quem escreveu?
Sim, creio que grande parte do material remonta ao  apóstolo — disse ele. — Todavia, se você ler com bastante atenção o evangelho,  observará nos últimos versículos indícios de que eles talvez tenham sido  finalizados por um editor. Eu, pessoalmente, não vejo problema algum no fato de  que alguém próximo a João tenha dado aos versículos finais uma formulação tal  que fosse capaz de conferir ao documento inteiro uma uniformidade estilística.  Seja como for — sublinhou — o evangelho de João baseou-se sem dúvida alguma no  testemunho ocular, a exemplo dos outros três.
Vamos voltar a Marcos,  Mateus e Lucas — eu disse. — Que provas específicas o senhor tem de que são eles  os autores dos evangelhos?
Uma vez mais, o testemunho mais antigo e  possivelmente mais significativo é o de Papias, que, por volta de 125 d.C,  afirmou especificamente que Marcos havia registrado com muito cuidado e precisão  o que Pedro testemunhara pessoalmente. Na verdade, ele disse que Marcos "não  cometeu erro nenhum" e não acrescentou "nenhuma falsa declaração". Ele disse que  Mateus preservara também os escritos sobre Jesus. Depois, Ireneu, escrevendo  aproximadamente em 180 d.C, confirmou a autoria tradicional. Vejamos o que ele  diz — disse ele pegando um livro e abrindo-o nas palavras de Ireneu:
...  Mateus publicou entre os hebreus, na língua deles, o escrito dos Evangelhos,  quando Pedro e Paulo evangelizavam em Roma e aí fundaram a Igreja. Depois da  morte deles, também Marcos, o discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu  por escrito o que pedro anunciava. Por sua parte, Lucas, o companheiro de Paulo,  punha num livro o evangelho pregado por ele. E depois, João, o discípulo do  Senhor, aquele que tinha recostado a cabeça ao peito dele, também publicou o seu  Evangelho, quando morava em Éfeso, na Ásia.
Muito bem, deixe-me ver  se entendi direito. Sabendo-se com certeza que os evangelhos foram escritos  pelos apóstolos Mateus e João, por Marcos, companheiro do apóstolo Pedro, e por  Lucas, o historiador, companheiro de Paulo e um tipo de jornalista do século 1,  podemos afirmar que os acontecimentos por eles registrados baseiam-se em  testemunhos diretos e indiretos.
Exatamente.
Quando vou à  livraria, não encontro na seção de biografias o mesmo tipo de literatura com que  deparo nos evangelhos — eu disse. —Quando, atualmente, alguém escreve uma  biografia, vasculha a vida inteira do biografado. Mas veja o caso de Marcos —  ele não fala do nascimento de Jesus e não diz absolutamente nada sobre a  mocidade do Salvador. Em vez disso, concentra-se em um período de três anos e  passa metade de seu evangelho tratando dos eventos que culminaram na última  semana de Cristo. Como o senhor explica isso?
Existem aí dois motivos —  disse Blomberg, erguendo ao ar uma das mãos e reproduzindo num gesto com os  dedos o número mencionado. O primeiro é literário, e o segundo é teológico. Com  relação ao primeiro motivo, era assim que as pessoas escreviam biografias no  mundo antigo. Eles não tinham essa percepção que temos hoje de que deviam dar  igual importância a todas as fases da vida do indivíduo; ou que deviam contar a  história em seqüência estritamente cronológica; tampouco achavam que tinham de  citar literalmente o que dissera o biografado, bastava que a essência do que ele  havia dito ficasse preservada. Os antigos gregos e hebreus nem sequer tinham um  sinal para denotar a interrogação. Para eles, o registro da história só valia a  pena porque as suas personagens tinham lições a ensinar. O biógrafo, portanto,  se demorava nas partes da vida do biografado que considerava exemplares,  paradigmáticas, que pudessem servir de ajuda a outras pessoas e que dessem  sentido a determinado período da história.
E qual seria o motivo  teológico?
É uma decorrência do que acabei de dizer. Para os cristãos,  embora a vida de Jesus, seus ensinamentos e milagres sejam maravilhosos, não  teriam sentido algum se Cristo não tivesse de fato morrido e ressuscitado dos  mortos, para expiação e perdão dos pecados da humanidade. Marcos, portanto,  autor do evangelho que é provavelmente o mais antigo, dedica quase metade de sua  narrativa aos eventos que levarão àquele período de uma semana cujo clímax será  a morte e ressurreição de Cristo. Dada a importância da crucificação — concluiu  — a composição do evangelho está perfeitamente de acordo com a literatura  antiga.
Além dos quatro evangelhos, os especialistas sempre se referem  ao que chamam Q, inicial da palavra alemã Quelle, que significa "fonte".
Pelas semelhanças de linguagem e conteúdo, supõe-se que Mateus e Lucas  tenham se baseado em Marcos para escrever seu evangelho. Além disso, os  estudiosos acham também que Mateus e Lucas teriam igualmente absorvido material  desse Q misterioso, ausente do livro de Marcos.
Como se pode definir  exatamente esse Q? 
Não passa de uma hipótese. Com poucas exceções,  seriam apenas dizeres e ensinamentos de Jesus que teriam formado talvez um  documento independente. Um gênero literário muito em voga na época consistia em  agrupar os dizeres de professores proeminentes. É mais ou menos o que se faz com  os grandes sucessos de um cantor ou cantora quando são reunidos em um único  disco e chamados O melhor de... Isso é que deve ter sido o Q. Pelo menos, a  teoria é essa.
Todavia, se Q for anterior a Mateus e a Lucas, talvez  contenha material mais antigo sobre Jesus. Quem sabe então, pensei, pudesse  lançar nova luz sobre quem foi Jesus realmente.
Escute — eu disse — se  isolássemos o material de Q, que retrato de Jesus teríamos?
Bem, não se  esqueça de que o documento Q era uma coleção de citações e, portanto, não tinha  material de narrativa capaz de fornecer uma imagem muito ampla de  Jesus.
Seja como for, Jesus faz ali algumas declarações de peso, por  exemplo, a de que era a personificação da sabedoria e que, por seu intermédio,  Deus julgaria toda a humanidade, fosse aceito ou rejeitado por ela.  Recentemente, um livro acadêmico defendeu a seguinte tese: se todos os dizeres  de Q fossem isoladas, seria obtida a mesma imagem de Jesus que se encontra  disseminada nos evangelhos: a de alguém que fazia afirmações audaciosas sobre si  mesmo.
Ele é visto como fazedor de milagres?
Lembre-se, repito, de que  as histórias de milagres não figuram isoladamente, já que são encontradas  normalmente em meio à narrativa, e Q é essencialmente uma lista de  citações.
Blomberg fez uma pausa, pegou uma Bíblia de capa de couro de cima  da escrivaninha e folheou ruidosamente suas páginas gastas.
Mas, por exemplo,  em Lucas 7.18-23 e Mateus 11.2-6, lemos que João Batista enviou seus mensageiros  a Jesus para que lhe perguntassem se era realmente o Cristo, o Messias que  esperavam. Jesus respondeu-lhes basicamente o seguinte: "Digam-lhe que reflita  sobre meus milagres; digam-lhe o que vocês viram: os cegos vêem, os surdos  ouvem, os paralíticos andam e aos pobres foram pregadas as boas  novas".
Portanto, mesmo em Q — concluiu —, há claramente a consciência do  ministério de miraculoso de Jesus.
Por que Mateus, supostamente uma  testemunha ocular dos feitos de Jesus, teria acrescentado ao seu evangelho parte  do que Marcos escrevera, quando todos sabem que Marcos não testemunhou  pessoalmente o ministério de Jesus? 
Se o evangelho de Mateus tivesse  sido escrito de fato por uma testemunha ocular, é de se supor que ele confiasse  em suas observações.
É algo que só faz sentido se Marcos estivesse  realmente baseando seu relato nas lembranças de Pedro, que foi testemunha ocular  — disse ele. — Como você mesmo disse, Pedro pertencia ao círculo íntimo de  Jesus. Ele ouviu e viu coisas que os outros discípulos não puderam ver nem  ouvir. Portanto, seria lógico que Mateus, embora testemunha ocular, confiasse na  versão dos fatos que Pedro transmitira a Marcos.
Satisfeito com as  observações iniciais de Blomberg relativas aos três primeiros evangelhos —  chamados sinóticos, palavra que significa "ver ao mesmo tempo", por causa da  semelhança de suas linhas gerais e do modo como se inter-relacionam — passei a  me preocupar em seguida com o evangelho de João. Quem quer que leia os quatro  evangelhos perceberá prontamente que existem diferenças óbvias entre os  sinóticos e o evangelho de João. Será que isso implica a existência de  contradições irreconciliáveis entre eles?
O senhor poderia me explicar as  diferenças entre os evangelhos sinóticos e o evangelho de João? 
Que  pergunta extraordinária! Um dia espero escrever um livro inteiro só sobre esse  tópico.
Bem, é verdade que João é mais diferente do que semelhante aos  sinóticos — disse ele inicialmente. —Apenas umas poucas histórias mais  importantes que aparecem nos outros três evangelhos surgem novamente em João,  muito embora haja uma diferença bastante significativa com relação à última  semana de Cristo. Daquele ponto em diante, os paralelos são muito mais próximos.  O estilo lingüístico parece também sofrer uma modificação muito significativa.  Em João, Jesus emprega uma terminologia diferente. Ele faz longos sermões, a  cristologia parece ser de qualidade superior — isto é, afirma mais diretamente e  com mais ênfase que Jesus é um com o Pai, que é o próprio Deus, o Caminho, a  Verdade, a Vida, a Ressurreição e a Vida.
A que se devem as  diferenças?
Durante muitos anos, supôs-se que João soubesse tudo o que  Mateus, Marcos e Lucas tinham escrito, portanto achava desnecessária a repetição  e por isso optou por complementá-los. Mais recentemente, prevalece a opinião de  que João é em grande parte independente dos outros três evangelhos, o que  explicaria não somente as escolhas diferentes de material como também as  diferentes perspectivas de Jesus.
Existem algumas particularidades  teológicas em João?
Sem dúvida, mas será que merecem ser chamadas de  contradições? Creio que a resposta é não, porque grande parte dos temas mais  importantes ou específicos de João têm paralelos em Mateus, Marcos e Lucas,  embora sejam bem menos desenvolvidos.
João afirma muito explicitamente  que Jesus é Deus, o que alguns atribuem ao fato de ter ele escrito depois dos  demais e de ter começado a dar um colorido às coisas — eu disse. — Será possível  encontrar nos sinóticos o tema da divindade?
Sim, é possível — disse ele.  — É mais implícito, mas pode-se encontrá-lo ali também. Lembra-se de quando  Jesus caminhou sobre as águas? Está lá em Mateus 14.22-33 e Marcos 6.45-52. A  maior parte das traduções em inglês ocultam o grego ao verter da seguinte forma  as palavras de Cristo: "Não temam, sou eu". Na verdade, o grego diz  literalmente: "Não temam, eu sou". Essas duas últimas palavras são idênticas às  que Jesus pronuncia em João 8.58, quando toma sobre si o nome divino Eu Sou, que  é como Deus se revelou a Moisés na sarça ardente, em Êxodo 3.14. Portanto, Jesus  se revela como aquele que tem o mesmo poder divino sobre a natureza que tem  IAVÉ, o Deus do Antigo Testamento. Balancei a cabeça concordando.
Esse  é um exemplo — eu disse. — O senhor teria outros?
Sim, os outros são do  mesmo tipo — disse Blomberg. — Por exemplo, o título que Jesus mais aplica a si  mesmo nos primeiros três evangelhos é "Filho do Homem" e ...
Ergui a  mão pedindo-lhe que esperasse um pouco.
Um momento — eu disse. Abri minha  valise e peguei um livro. Folheei-o até localizar o que estava procurando. —  Segundo Karen Armstrong, a ex-freira autora do best-seller A history of God [Uma  história de Deus], o termo "Filho do Homem", ao que parece, servia simplesmente  para "enfatizar a fraqueza e a mortalidade da condição humana"; portanto, ao  empregá-lo, Jesus nada mais fazia que chamar a atenção para o fato de que "ele  era um ser humano frágil que um dia haveria de sofrer e morrer". Se isso for  verdade — eu disse —, não me parece que a expressão seja uma declaração de  divindade muito convincente.
Olhe — disse ele peremptório —, ao contrário  da crença popular, "Filho do Homem" não se refere originariamente à humanidade  de Jesus. Pelo contrário, trata-se de uma alusão direta a Daniel  7.13,14.
Dito isso, abriu o Antigo Testamento e leu as palavras do profeta  Daniel:
Em minha visão à noite, vi alguém semelhante a um filho de homem,  vindo com as nuvens dos céus. Ele se aproximou do ancião e foi conduzido à sua  presença. Ele recebeu autoridade, glória e o reino; todos os povos, nações e  homens de todas as línguas o adoraram. Seu domínio é um domínio eterno que não  acabará, e seu reino jamais será destruído.
Veja, portanto, o que Jesus  faz quando aplica a si mesmo a expressão "Filho do Homem" — prosseguiu. —  Estamos diante de alguém que se aproxima de Deus, na sala do trono celestial,  alguém a quem é concedida autoridade e domínio universais. Isso faz de "Filho do  Homem" um título de grande exaltação, e não de mera humanidade.
Mais  tarde, deparei com um comentário de outro erudito, William Lane Craig, que eu  viria a entrevistar para este livro, e que fazia a mesma observação.
É  muito comum a idéia de a expressão "Filho do Homem" ser usada em referência à  humanidade de Jesus, assim como a expressão contrária, Filho de Deus, remeter à  sua divindade. Acontece que a realidade é o oposto.
O Filho do Homem era uma  figura divina do livro de Daniel, no Antigo Testamento, que surgiria no final do  mundo para julgar a humanidade e reinar para todo o sempre. Portanto,  autodenominar-se Filho do Homem seria, na verdade, reivindicar para si a  divindade. 
Blomberg prosseguiu:
Além disso, Jesus se diz capaz de  perdoar pecados nos evangelhos sinóticos, algo que só Deus pode fazer. Jesus  aceita que lhe dirijam orações e adoração. Ele diz: "Quem, pois, me confessar  diante dos homens, eu também o confessarei diante do meu Pai que está nos céus".  O julgamento final baseia-se na tomada de posição de um indivíduo perante quem?  Um simples ser humano? Não. Essa seria uma reivindicação muito arrogante. O  julgamento final baseia-se na tomada de posição do indivíduo perante Jesus por  este ser Deus. Como você pode ver, há todo tipo de material nos sinóticos  relacionado à divindade de Cristo, que em João se torna mais  explícito.
Será que o fato de João escrever com uma preocupação  teológica maior teria prejudicado o material histórico de seu evangelho,  tornando-o menos confiável?
Não creio que João seja mais teológico —  ressaltou Blomberg. — Simplesmente sua ênfase teológica gira em torno de outras  questões. Mateus, Marcos e Lucas têm, cada um, ângulos teológicos distintos que  desejam destacar. Lucas, o teólogo dos pobres, tem preocupações sociais; Mateus  é o teólogo que procura entender a relação do cristianismo com o judaísmo;  Marcos mostra Jesus como o servo sofredor. Uma lista que procurasse determinar  as diferenças entre as teologias de Mateus, Marcos e Lucas ficaria bem  comprida.
Muito bem, mas será que essas motivações teológicas não colocam  em dúvida a capacidade e disposição dos apóstolos de informar com precisão o que  aconteceu? Não é possível que a pauta teológica deles os levasse a dar um  colorido à história no momento de registrá-la, chegando mesmo a  distorcê-la?
Muita gente distorce a história para adequá-la aos seus  propósitos ideológicos. Infelizmente, as pessoas acham que isso sempre acontece,  o que é um erro. No mundo antigo, a idéia de uma história escrita sem paixão, de  maneira objetiva, com o único propósito de registrar os acontecimentos, sem que  houvesse algum objetivo ideológico, era algo inédito. Ninguém escrevia história  se não pudesse aprender algo com ela.
Suponho então que, diante disso,  tudo se torna muito suspeito — sugeri sorrindo.
Sob certo aspecto, sim —  disse ele. — Mas, se podemos reconstruir de modo razoavelmente seguro a história  com base em vários outros tipos de fontes antigas, poderemos igualmente fazê-lo  com os evangelhos, muito embora eles também sejam ideológicos.
Vamos tomar um  paralelo moderno colhido na experiência da comunidade judaica, que poderá ajudar  a esclarecer o que quero dizer. Algumas pessoas, normalmente movidas pelo  anti-semitismo, negam ou atenuam os horrores do Holocausto. Todavia, foram os  estudiosos judeus que fundaram museus, escrevei, a livros, preservaram artefatos  e registraram os depoimentos de testemunhas oculares sobre o Holocausto. Claro  que seu propósito é ideológico — a saber, certificar-se de que tal atrocidade  nunca mais se repita —, mas foram também extremamente fiéis e objetivos na  documentação dessa verdade histórica. O cristianismo baseou-se igualmente em  certas alegações históricas segundo as quais Deus teria entrado no espaço e no  tempo na pessoa de Jesus de Nazaré, portanto a ideologia que os cristãos  tentavam promover exigia um arcabouço histórico bastante  meticuloso.
Uma coisa é dizer que os evangelhos procedem direta ou  indiretamente do testemunho ocular; outra coisa é afirmar que a informação neles  contida ficou preservada de modo confiável até que fosse finalmente registrada  por escrito anos mais tarde. Eu sabia que esse era um dos principais pontos em  disputa, por isso queria desafiar Blomberg, o quanto antes, com essa  questão.
Peguei novamente o livro de Karen Armstrong, A history of God, e lhe  disse:
Ouça o que mais diz a autora:
Sabemos muito pouco sobre Jesus.  O primeiro relato mais abrangente sobre sua vida aparece no evangelho segundo  São Marcos, que só foi escrito por volta do ano 70, cerca de 40 anos depois de  sua morte. Àquela altura, os fatos históricos achavam-se misturados a elementos  míticos que expressavam o significado que Jesus havia adquirido para seus  seguidores. É esse significado, basicamente, que o evangelista nos apresenta, e  não uma descrição direta e confiável.
Alguns estudiosos dizem que os  evangelhos foram escritos muito depois dos acontecimentos por eles registrados.  Com isso, as lendas que se desenvolveram durante esse período acabaram por  contaminar sua redação, alçando Jesus de simples professor sábio ao mitológico  Filho de Deus. O senhor acha razoável essa hipótese ou será que existem indícios  suficientes de que a composição dos evangelhos é anterior a essa data, ou seja,  antes que a lenda pudesse corromper totalmente o que ficou  registrado?:
Temos duas questões distintas aqui, e é importante que as  conservemos assim. Estou certo que temos indícios suficientes para fixar a data  da redação dos evangelhos em um período mais antigo. Mas, mesmo que não  tivéssemos, o argumento de Armstrong seria falho do mesmo jeito.
Por  quê?
As datas estabelecidas no meio acadêmico, mesmo nos círculos mais  liberais, situam Marcos nos anos na década de 70, Mateus e Lucas na década de  80, e João na década de 90. Observe que essas datas ainda estão dentro do  período de vida de várias pessoas que foram testemunhas oculares da vida de  Jesus, inclusive daquelas que lhe foram hostis, e que por isso poderiam atuar  como parâmetro de correção caso houvesse em circulação algum ensinamento falso  sobre Jesus. Conseqüentemente, essas datas mais recentes para os evangelhos não  são assim tão recentes. Na verdade, é possível fazer uma comparação muito  instrutiva. As duas biografias mais antigas de Alexandre, o Grande, foram  escritas por Ariano e Plutarco depois de mais de 400 anos da morte de Alexandre,  ocorrida em 323 a.C, e mesmo assim os historiadores as consideram muito  confiáveis. É claro que surgiu um material lendário com o decorrer do tempo, mas  isso só aconteceu nos séculos posteriores aos dois autores. Por outras palavras,  nos primeiros 500 anos, a história de Alexandre ficou quase intacta. O material  lendário começou a aparecer nos 500 anos seguintes. Portanto, comparativamente,  é insignificante saber se os evangelhos foram escritos 60 ou 30 anos depois da  morte de Jesus. Na verdade, a questão praticamente inexiste.
Vamos  admitir, por enquanto, que seja isso mesmo, mas voltemos à data de registro dos  evangelhos — eu disse. — O senhor acredita que eles foram escritos possivelmente  antes da data mencionada?
Sim, antes — disse Blomberg. — Podemos  confirmar isso pelo livro de Atos, escrito por Lucas. Atos termina,  aparentemente, sem uma conclusão. Paulo é a personagem principal do livro, e se  encontra preso em Roma. É assim, abruptamente, que o livro acaba. O que acontece  com Paulo? Atos não nos diz, provavelmente porque o livro foi escrito antes da  morte dele.
Isso significa que o livro de Atos não pode ser posterior a 62  d.C. Assim, podemos recuar a partir desse ponto. Uma vez que Atos é o segundo  tomo de um volume duplo, sabemos que o primeiro tomo — o evangelho de Lucas —  deve ter sido escrito antes dessa data. E já que Lucas inclui parte do evangelho  de Marcos, isto significa que Marcos é ainda mais antigo. Se trabalharmos com a  margem aproximada de um ano para cada um, chegaremos à conclusão de que Marcos  foi escrito por volta de 60 d.C, talvez até mesmo em fins da década de 50. Se  Jesus foi morto em 30 ou 33 d.C, temos aí um intervalo de, no máximo, 30 anos  aproximadamente.
Vejamos se é possível recuar mais ainda no tempo —  disse, virando-me para Blomberg. De que época datam os primeiros testemunhos  mais importantes sobre a expiação, a ressurreição e a relação única de Jesus  Cristo com Deus?
É bom lembrar que os livros do Novo Testamento não estão  em ordem cronológica — disse Blomberg inicialmente. Os evangelhos foram escritos  praticamente depois das cartas de Paulo, cujo ministério epistolar começou por  volta do fim da década de 40. A maior parte de suas cartas mais importantes são  da década de 50. Para saber qual a informação mais antiga, vamos às cartas de  Paulo com a seguinte pergunta: "Existem sinais aqui de que fontes mais antigas  teriam sido usadas na redação dessas cartas?".
E o que  encontramos?
Descobrimos que Paulo havia abraçado alguns credos,  confissões de fé ou hinos da igreja cristã mais antiga. Esses elementos remontam  ao alvorecer da igreja pouco depois da ressurreição. Os credos mais famosos são  os de Filipenses 2.6-11, que fala de Jesus como tendo a mesma natureza de Deus,  e Colossenses 1.15-20, onde Jesus é descrito como a "imagem do Deus invisível",  que criou todas as coisas e por meio de quem todas as coisas foram reconciliadas  com Deus, "estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz". Essas  passagens sem dúvida são importantes porque mostram o tipo de crença que tinham  os primeiros cristãos em relação a Jesus. Todavia, talvez o credo mais  importante no que se refere ao Jesus histórico seja o de 1Coríntios 15, onde  Paulo usa uma linguagem técnica para indicar que estava transmitindo essa  tradição oral de uma forma relativamente fixa.
“Pois o que primeiramente  lhes transmiti foi o que recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo  as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as  Escrituras, e apareceu a Pedro e depois aos Doze. Depois disso apareceu a mais  de quinhentos irmãos de uma só vez, a maioria dos quais ainda vive, embora  alguns já tenham adormecido. Depois apareceu a Tiago e, então, a todos os  apóstolos. ”
Essa é a questão — disse Blomberg. — Se a crucificação  ocorreu em 30 d.C, a conversão de Paulo se deu aproximadamente em 32. Ele foi  então levado imediatamente para Damasco, onde se encontrou com um cristão  chamado Ananias e alguns outros discípulos. Seu primeiro encontro com os  apóstolos em Jerusalém teria ocorrido em 35 d.C. Em algum momento desse período,  Paulo recebeu esse credo, que fora formulado pela igreja primitiva e era usado  por ela. Temos aqui, portanto, os principais fatos sobre a morte de Jesus pelos  nossos pecados, além de uma lista detalhada daqueles para quem ele apareceu  ressuscitado — tudo isso se dá no intervalo de dois a cinco anos depois dos  eventos propriamente ditos! Não se trata aí de mitologia elaborada cerca de 40  anos ou mais depois, conforme pretende Armstrong. Pode-se perfeitamente  argumentar a favor da crença na ressurreição, muito embora não haja nenhum  registro escrito, que ela remonta aos dois anos posteriores ao evento. Isso é de  suma importância.
Não estamos comparando 30 ou 60 anos com os 500 anos  normalmente aceitos para outros dados — estamos falando de dois  anos!
.Será que esses autores do século 1 estavam preocupados em  registrar com precisão o que de fato aconteceu? 
Ele fez que sim com a  cabeça.
Sim, estavam — disse ele. — Pode-se ver isso no início do evangelho  de Lucas, que se parece muito com os prefácios de outras obras da Antigüidade,  biográficas ou históricas, dignas de confiança.
Blomberg abriu a Bíblia e leu  a introdução do evangelho de Lucas:
“Muitos já se dedicaram a elaborar um  relato dos fatos que se cumpriram entre nós, conforme nos foram transmitidos por  aqueles que desde o início foram testemunhas oculares e servos da palavra. Eu  mesmo investiguei tudo cuidadosamente, desde o começo, e decidi escrever-te um  relato ordenado, ó excelentíssimo Teófilo, para que tenhas certeza das coisas  que te foram ensinadas.”
Como podemos ver, Lucas diz claramente que ele  pretendia escrever com precisão sobre as coisas que havia investigado e que  comprovara com o respaldo extremamente confiável de testemunhas.
E quanto  aos outros evangelhos? Eles não começam com declarações desse tipo. Isso  significa então que os autores não tinham a mesma intenção?
É verdade que  Marcos e Mateus não afirmam isso explicitamente — disse Blomberg. — No entanto,  estão próximos de Lucas em termos de gênero, o que nos leva a crer que o  objetivo histórico de Lucas refletiria muito de perto o deles.
E  João?
A única afirmação do propósito dos evangelhos está em João 20.31:  "Mas estes foram escritos para que vocês creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de  Deus e, crendo, tenham vida em seu nome".
Isto me parece muito mais  uma declaração teológica que histórica — objetei.
Admito que sim — disse  Blomberg. — Mas se o indivíduo acha que primeiro precisa estar suficientemente  convencido para depois crer, é preciso que a teologia proceda de fatos  históricos exatos. Além do mais, há uma prova implícita que não pode passar  despercebida. Pense no modo como os evangelhos foram escritos — de maneira  sóbria e responsável, com detalhes incidentais apurados, com cuidado e precisão  óbvios. Não encontramos neles os rebuscamentos exóticos e a presença evidente da  mitologia que vemos em vários outros escritos antigos.
Mas será que  foi isso mesmo que aconteceu? Alguns críticos procuram fomentar um ambiente de  idéias contraditórias e concorrentes.
Na opinião deles, os primeiros cristãos  estavam convencidos de que presenciariam ainda em vida o retorno de Jesus para a  consumação da história, por isso não achavam que fosse necessário preservar  algum registro histórico sobre a vida de Jesus ou sobre seus ensinamentos.  Afinal de contas, por que se dar ao trabalho de escrever se ele em breve  voltaria para pôr fim ao mundo e consumar a história?
Portanto — eu disse —,  anos mais tarde, quando ficou evidente que Jesus não retornaria logo, os  cristãos se deram conta de que não possuíam nenhum material confiável em que  pudessem se basear para escrever os evangelhos. Nada fora registrado com  objetivos históricos. Não foi isso o que aconteceu de fato?
Existem ao  longo da história, sem dúvida nenhuma, seitas e grupos, inclusive religiosos,  para os quais esse argumento é válido, mas não para os primeiros cristãos —  disse Blomberg.
Por que não? — perguntei desafiando-o. — O que tornava  o cristianismo tão diferente?
Em primeiro lugar, acho que a premissa é um  tanto exagerada. A verdade é que a maior parte dos ensinamentos de Jesus  pressupõem um lapso significativo de tempo antes do fim do mundo. Em segundo  lugar, mesmo que alguns dos seguidores de Jesus acreditassem que ele fosse  voltar sem demora, lembre-se de que o cristianismo saiu do judaísmo. Durante  oito séculos, os judeus viveram entre a tensão dos freqüentes discursos dos  profetas de que o "Dia do Senhor" estava próximo e a marcha ininterrupta da  história de Israel. E, mesmo assim, os seguidores daqueles profetas registraram,  preservaram as palavras deles e as tinham em alta conta. Uma vez que os  seguidores de Jesus o consideravam muito superior a um profeta, parece bastante  lógico supor que tenham feito a mesma coisa.
Alguns eruditos dizem que  era crença comum entre os primeiros cristãos que o Cristo fisicamente ausente  dirigia-se à sua igreja por meio de mensagens, ou "profecias". Uma vez que essas  profecias gozavam da mesma autoridade que tinham as palavras de Jesus durante  sua existência terrena, os cristãos primitivos não faziam distinção entre os  novos discursos e os que o Jesus histórico proferira. Conseqüentemente, esses  dois materiais distintos aparecem juntos nos evangelhos, portanto não sabemos  qual deles procede de fato do Jesus histórico. Esse é o tipo de crítica que  atormenta muita gente. O que o senhor tem a dizer a esse respeito?
Esse  argumento tem menos fundamento histórico que o anterior — disse Blomberg com um  sorriso. — Na verdade, o próprio Novo Testamento desmente essa hipótese. Existem  algumas passagens que fazem referência a profecias primitivas, mas elas nunca se  confundem com as palavras de Cristo. Em 1Coríntios 7, por exemplo, Paulo  distingue claramente a palavra que transmite do Senhor e a que procede do Jesus  histórico. No livro de Apocalipse, pode-se distinguir perfeitamente todas as  vezes em que Jesus fala diretamente com o profeta, o apóstolo João, conforme  supõe a tradição, e as vezes em que João relata suas visões inspiradas. E, em  1Coríntios 14, quando Paulo discute os critérios da verdadeira profecia, ele  fala da responsabilidade que tem a igreja local de testar os profetas. Com base  em seus antecedentes judaicos, sabemos que, entre os critérios da verdadeira  profecia de que fala o apóstolo, estava o seu cumprimento ou não, além do fato  de que ela deveria estar de acordo com as palavras anteriormente reveladas pelo  Senhor. O argumento mais forte, porém, é o que não encontramos nos evangelhos.  Depois da ascensão de Cristo, diversas controvérsias rondaram ameaçadoramente a  igreja primitiva: os crentes deveriam ou não ser circuncida-dos? Como  disciplinar o falar em línguas? Como conservar unidos judeus e gentios? Quais as  funções mais adequadas às mulheres no ministério? Os crentes podiam se divorciar  de seus cônjuges não-cristãos? Essas questões poderiam ter sido muito bem  resolvidas se os cristãos primitivos simplesmente lessem nos evangelhos o que  Jesus lhes havia dito sobre o mundo. Isso, porém, nunca aconteceu. A  persistência dessas controvérsias é sinal de que os cristãos estavam  interessados em distinguir o que acontecera durante a vida de Jesus e o que fora  debatido posteriormente nas igrejas.
O senhor não concorda que  lapsos de memória, o desejo de as coisas serem de determinada maneira e o  desenvolvimento de material lendário poderiam ter contaminado de modo  irreparável a tradição vinculada a Jesus antes que os evangelhos fossem  escritos?
Temos de nos lembrar de que estamos em terra estrangeira, num  tempo e lugar remotos, em uma cultura que não havia inventado ainda o computador  e nem mesmo a máquina impressora. Os livros — ou melhor, os pergaminhos de  papiro — eram relativamente raros. Portanto, a educação, o aprendizado, a  adoração e o ensino nas comunidades religiosas eram ministrados oralmente.  Alguns rabinos ficaram famosos porque sabiam de cor todo o Antigo Testamento.  Logo, os discípulos seriam perfeitamente capazes de guardar na memória — e  passar adiante com precisão — muito mais do que aparece nos quatro evangelhos  somados.
Espere um pouco — objetei. — Esse tipo de memorização parece  realmente incrível. Como isso é possível?
Sim, é difícil para nós hoje  conseguirmos imaginar como isso podia ser possível — admitiu Blomberg —, mas  aquela cultura era oral e enfatizava muito a memorização. Lembre-se de que 80 a  90% das palavras de Jesus estavam originaria-mente em forma poética. Isso não  significa que havia rimas, mas havia métrica, com versos harmônicos,  paralelismos, e assim por diante — o que teria facilitado muito a memorização.  Outra coisa que precisa ser dita é que a definição de memorização era mais  flexível naquele tempo. Os estudos de culturas com tradição oral mostram que era  possível introduzir variações em partes da história conforme a ocasião — incluir  ou excluir detalhes, parafrasear este ou aquele trecho, explicar esta ou aquela  parte, e assim por diante. De acordo com um estudo, cerca de 30 a 40% de toda  tradição sagrada transmitida oralmente no antigo Oriente Médio apresenta  variações de uma ocasião para a outra. Todavia, certos pontos nunca se  alteravam, e a comunidade podia intervir para corrigir o narrador caso ele  reproduzisse erroneamente os aspectos importantes da história. É...
É uma  coincidência interessante: essa variação de 10 a 40% é praticamente a mesma que  constatamos em qualquer passagem dos sinóticos.
O que o senhor está  querendo dizer?
Estou querendo dizer que, provavelmente, muitas das  semelhanças e das diferenças entre os sinóticos podem ser atribuídas ao fato de  que os discípulos e outros cristãos primitivos devem ter memorizado muito do que  Jesus disse e fez, mas sentiam-se à vontade para relatar aqueles episódios de  diferentes maneiras, embora preservassem sempre a importância dos ensinamentos e  dos atos originais de Jesus.
Você provavelmente já brincou de  telefone-sem-fio: alguém cochicha alguma coisa no seu ouvido — por exemplo:  "Você é o meu melhor amigo" —, depois, você cochicha a mesma coisa no ouvido do  vizinho e assim por diante até completar a volta por todo o círculo de  participantes. No fim, a mensagem sai completamente distorcida, por exemplo:  "Você é o meu pior amigo".
Simplificando bastante — eu disse a Blomberg —,  essa não é uma boa analogia para o que provavelmente aconteceu com a tradição  oral sobre Jesus?
Não, de maneira alguma — ele disse. — Eu explico por  quê. Quem procura memorizar com atenção alguma coisa e só resolve passá-la  adiante depois de ter certeza que a sabe de cor faz algo bem diferente do que a  brincadeira do telefone-sem-fio propõe. Na brincadeira, boa parte da diversão se  deve ao fato de que a pessoa talvez não tenha entendido direito a mensagem que  lhe cochicharam, e a regra não lhe permite pedir à pessoa que repita a frase.  Logo em seguida, a mensagem é passada adiante, sempre sussurrada, o que aumenta  mais ainda a possibilidade de distorções pelo caminho. No fim das contas, depois  de passar por todo o círculo, o resultado será engraçado, sem dúvida  nenhuma.
Por que então — perguntei a Blomberg — não podemos aplicar  essa analogia à transmissão da tradição oral?
Se fôssemos transportar a  brincadeira para o contexto da comunidade do século I, teríamos de submetê-la  aos seus critérios. Isso significa que cada pessoa repetiria em alto e bom som o  que ouvira do vizinho e em seguida pediria ao primeiro que passara a informação  que a confirmasse: "Está correto o que eu disse?". Se não estivesse, ele se  corrigiria. A comunidade monitoraria constantemente a reprodução da mensagem e  interferiria sempre que fosse preciso fazer alguma correção. Isso preservaria a  integridade da mensagem. E o resultado seria muito diferente do da brincadeira  infantil.
Será que havia algum indício de desonestidade ou de  imoralidade que pudesse macular sua capacidade ou sua disposição de transmitir  com precisão a história?
Simplesmente não existem provas de que aqueles  homens não fossem pessoas de muito caráter — disse ele. Observamos como narram  as palavras e ações do homem que exigiu deles um nível de integridade tão severo  quanto o de qualquer outra religião de que se tem notícia. Aqueles homens  estavam tão determinados a viver sua fé que dez deles, do grupo de 11 apóstolos,  tiveram mortes terríveis, o que demonstra sua grandeza de caráter. Em termos de  honestidade, verdade, virtude e moralidade, essas pessoas tinham uma bagagem de  dar inveja.
Eis aqui um teste no qual, dizem os céticos, os evangelhos  sempre são reprovados. Afinal, eles não se contradizem? Não há discrepâncias  inconciliáveis entre os vários relatos evangélicos? E, se há, como é que podemos  confiar no que dizem?
Blomberg concordou que os evangelhos parecem estar  em contradição em inúmeros pontos.
As incongruências vão de pequenas  variações no fraseado até as contradições aparentes mais famosas — disse ele. —  Na minha opinião, se você admite os elementos que mencionei anteriormente, ou  seja, a paráfrase, a abreviação, os acréscimos explicativos, a seleção e a  omissão, os evangelhos se mostram muito harmoniosos entre si pelos padrões  antigos, que são os únicos pelos quais devemos julgá-los.
Ironicamente  — ressaltei —, se os evangelhos fossem exatamente idênticos, palavra por  palavra, os críticos acusariam seus autores de estar mancomunados, para que suas  histórias saíssem exatamente iguais, o que os colocaria sob  suspeita.
Exatamente — concordou Blomberg. — Se os evangelhos fossem 100%  harmoniosos, isso os impossibilitaria de ser testemunhos independentes. As  pessoas diriam então só haver um testemunho, os demais seriam só  imitação.
Lembrei-me instantaneamente das palavras de Simon Greenleaf,  da Faculdade de Direito de Harvard, uma das personagens mais importantes da  história do direito e autor de um tratado muito influente sobre a prova. Depois  de estudar o nível de harmonia dos quatro evangelistas, ele deu seu  parecer:
Existe um volume significativo de discrepância, o que aponta  para o fato de os autores não poderem ter estabelecido nenhum tipo de acordo  entre si; por outro lado, há também uma harmonia de tal magnitude que demonstra  sua condição de narradores independentes de uma transação de grande importância.
Para Hans Stier, estudioso alemão da escola historiográfica clássica, a  harmonia dos dados básicos e a divergência de detalhes são sinais de  credibilidade, uma vez que as narrativas fabricadas costumam ser integralmente  consistentes e harmônicas. "Todo historiador", diz ele, "torna-se muito cético  no momento em que algo extraordinário só aparece relatado em narrativas  completamente isentas de contradições".
Em Mateus, lemos que um  centurião foi pessoalmente a Jesus e lhe pediu que curasse seu servo. Lucas,  porém, nos diz que o centurião mandou que os anciãos fossem até Jesus.  Naturalmente trata-se de uma contradição, não é verdade?
Acho que não —  respondeu Blomberg. — Pense da seguinte forma: no mundo atual, ouvimos no  noticiário "que o presidente declarou hoje...", quando na verdade o discurso foi  redigido por alguém encarregado de escrevê-lo e lido pelo secretário de imprensa  — e, com um pouco de sorte, talvez o presidente tivesse a oportunidade de vê-lo  em um certo momento entre a primeira e a segunda etapa. Nem por isso podemos  dizer que a reportagem estava errada.
Da mesma forma, no mundo antigo,  era perfeitamente compreensível e aceitável que se atribuíssem às pessoas ações  que, na verdade, foram praticadas por seus subordinados ou emissários — no  presente caso, pelos anciãos do povo judeu.
Então, em outras palavras,  o senhor está dizendo que tanto Mateus quanto Lucas têm razão?
Exatamente  — disse ele.
E quanto à afirmação de Marcos e Lucas, segundo a qual  Jesus enviara alguns demônios para uma vara de porcos em Gerasa, enquanto Mateus  refere-se a Gadara. As pessoas dizem que a contradição é óbvia nesse caso e que  não há como resolvê-la: trata-se de dois lugares diferentes. Caso  encerrado.
É melhor não dar o caso por encerrado tão cedo — disse  Blomberg com um sorriso sutil. — Uma possível solução para isso é que um dos  lugares mencionados era uma cidade, e o outro, uma província.
Acho que  a coisa é um pouco mais complicada — eu disse. — A cidade de Gerasa nem sequer  ficava perto do mar da Galiléia. Mas foi exatamente para lá que os demônios se  dirigiram depois de entrar nos porcos, precipitando-os para a morte de cima de  um penhasco.
Muito bem, boa questão — disse Blomberg. — Mas existem  ruínas de uma cidade cujo sítio de escavação fica exatamente na margem oriental  do mar da Galiléia. A forma que o nome da cidade geralmente toma (em inglês) é  "Khersa". No entanto, como toda palavra hebraica traduzida ou transliterada para  o grego, é provável que soasse bem próxima de "Gerasa". Portanto, o episódio  pode ter ocorrido em Khersa (cuja grafia em grego acabou dando "Gerasa"), na  província de Gadara.
Ponto seu. Mas há um problema que não é nada  fácil de resolver: as discrepâncias entre as genealogias de Jesus em Mateus e  Lucas? Os céticos normalmente as consideram totalmente  inconciliáveis.
Trata-se de um outro caso de múltiplas opções — disse  Blomberg.
E que opções são essas?
Segundo as duas mais  comumente aceitas, Mateus refletiria a linhagem de José, já que a maior parte do  primeiro capítulo adota a perspectiva de José que, como pai adotivo, seria o  antepassado legal por meio de quem a linhagem real de Jesus seria traçada. São  esses os temas que importam a Mateus. Lucas, por sua vez, teria traçado a  genealogia de Jesus com base na linhagem de Maria. E, já que ambos são  descendentes de Davi, basta recuar mais um pouco para ver que ambas as linhagens  acabam convergindo. A outra opção postula que ambas as genealogias refletem a  linhagem de José, porque têm como objetivo o estabelecimento de rotinas legais  necessárias. Uma delas, porém, seria a linhagem humana de José (evangelho de  Lucas), ao passo que a outra seria a linhagem legal de José, sendo que ambas  divergem nos pontos em que determinam antepassados que não tiveram descendentes  diretos. Estes eram obrigados a suscitar descendência por meio de várias  práticas previstas no Antigo Testamento. O problema torna-se maior porque alguns  nomes são omitidos, o que era perfeitamente aceitável pelos padrões do mundo  antigo. Existem ainda variantes textuais: nomes que, traduzidos de uma língua  para outra, geralmente recebiam grafias diferentes e eram facilmente confundidos  com os de outros indivíduos.
Não podemos subestimar o fato de essas  pessoas amarem Jesus — eu disse enfaticamente. — Não eram observadores neutros;  eram seguidores fiéis a Cristo. Será que isso não poderia levá-los a fazer  certas modificações para que Jesus parecesse bom?
Admitamos que a  situação possibilite isso — disse Blomberg. — Mas também as pessoas são capazes  de honrar e respeitar alguém a tal ponto que se sintam impelidas a registrar sua  vida com a maior integridade possível. Essa seria a forma de demonstrar seu amor  por tal pessoa. E é o que eu acho que aconteceu aqui. Além disso, esses  discípulos nada tinham a ganhar exceto críticas, o ostracismo e o martírio. Com  certeza nada lucraram financeiramente. Na verdade, foram pressionados a ficar  quietos, a negar a Jesus, a diminuí-lo, e até mesmo a esquecer que um dia o  conheceram.
No entanto, por causa de sua integridade, proclamaram o que  viram, ainda que com isso tivessem de sofrer e morrer.
Os autores dos  evangelhos registraram algum tipo de material que poderia ser fonte de embaraço  ou o acobertaram para que parecesse decente? Será que inseriram em seu relato  alguma coisa incômoda ou de difícil explicação?
Há de fato muito o que  dizer a esse respeito — ele respondeu. — Grande parte dos ensinamentos de Jesus  consiste em palavras duras. Alguns ensinamentos exigem muito no plano ético. Se  eu tivesse de inventar uma religião para satisfazer minha fantasia,  provavelmente não cobraria de mim mesmo perfeição igual à do meu Pai celestial,  tampouco diria que a lascívia que sinto no coração já é, por si mesma,  adultério.
Porém — objetei —, outras religiões também fazem exigências  muito duras.
Sim, é verdade, por isso mesmo as exigências mais duras eram  as que colocavam as maiores dificuldades para o que a igreja se propunha a  ensinar sobre Jesus.
Dê-me alguns exemplos, por favor — pedi. 
Por exemplo, em Marcos 6.5, lemos que Jesus não pôde fazer muitos  milagres em Nazaré porque as pessoas dali eram incrédulas, o que parecia limitar  seu poder. Jesus disse em Marcos 13.32 que não sabia a hora de seu retorno, o  que parece limitar sua onisciência. Atualmente, essas declarações não são mais  problema para a teologia, porque Paulo, em Filipenses 2.5-8, nos diz que Deus,  em Cristo, quis, de maneira espontânea e consciente, limitar o exercício  independente de seus atributos divinos. Mas, se pudesse passar pela história dos  evangelhos sem lhe dar muita atenção, seria muito mais conveniente deixar de  fora todo esse material, o que me pouparia o trabalho de ter de explicá-lo. O  batismo de Jesus é outro exemplo. Existe uma explicação para que Jesus, que não  tinha pecados, se deixasse batizar, mas por que não facilitar as coisas e deixar  esse episódio de fora? Na cruz, Jesus gritou: "Meu Deus! Meu Deus! Por que me  abandonaste?". Teria sido muito melhor para os evangelistas omitir essa  passagem, já que ela dá margem a tantas perguntas.
Também há muito  material constrangedor sobre os discípulos — acrescentei.
Sem dúvida —  disse Blomberg. — Sempre que Marcos fala de Pedro, o tom é bem pouco elogioso. E  olhe que Pedro era o líder! Os discípulos quase sempre entendiam mal o que Jesus  queria dizer. Tiago e João queriam os lugares à direita e à esquerda de Jesus,  por isso Cristo lhes deu lições muito duras para mostrar-lhes que o líder é quem  deve servir primeiro. Eles se comportavam como um bando de egoístas,  interesseiros e tolos na maior parte das vezes.
Quando os evangelhos  falam de pessoas, lugares e acontecimentos, é possível confirmar as informações  dos evangelistas por meio de fontes independentes? Normalmente, esse tipo de  corroboração é inestimável sempre que se quer avaliar se um autor tem ou não  comprometimento com a precisão.
Sim, é possível, e quanto mais exploramos  esse tópico, tanto mais os detalhes se confirmam — respondeu Blomberg. — Nos  últimos séculos, a arqueologia trouxe à luz, inúmeras vezes, descobertas que  confirmaram referências específicas dos evangelhos, principalmente de João —  ironicamente, o que desperta mais desconfianças!
Claro que existem algumas  questões que ainda não foram resolvidas; por vezes, a arqueologia surgiu com  novos problemas, mas que são pouquíssimos se comparados com o número de exemplos  que corroboram as informações dos evangelistas. Além disso, sabemos por meio de  fontes não-cristãs muitos fatos sobre Jesus que confirmam os principais  ensinamentos e ocorrências de sua vida. E, se considerarmos que os historiadores  antigos lidavam, na maior parte das vezes, só com legisladores políticos,  imperadores, reis, batalhas militares, autoridades religiosas e movimentos  filosóficos de grande importância, é notável o quanto podemos aprender sobre  Jesus e seus seguidores, ainda que não se encaixem em nenhuma dessas categorias  na época em que os historiadores escreveram seus livros.
Esse teste  faz a seguinte pergunta: Haveria outras pessoas presentes que poderiam  contradizer ou corrigir os evangelhos, caso apresentassem alguma distorção ou  erro? Em outras palavras, temos algum exemplo de contemporâneos de Jesus que  teriam se queixado dos relatos evangélicos por conterem erros?
Muitas  pessoas tinham motivos para querer desacreditar o movimento e, se tivessem mais  competência para escrever a história, certamente o fariam — disse Blomberg. — No  entanto, veja o que disseram seus adversários. Nos escritos judeus tardios,  Jesus é chamado de o feiticeiro que desviou Israel, o reconhecimento de que ele  fez de fato obras maravilhosas, embora os autores coloquem em dúvida a fonte de  seu poder. Essa seria a oportunidade perfeita para dizer alguma coisa do tipo:  "Os cristãos vão lhe dizer que ele fez milagres, mas nós estamos de prova que  ele não fez". Nunca vemos, porém, seus opositores dizer esse tipo de coisa. Em  vez disso, eles admitem implicitamente que é verdade o que lemos nos evangelhos,  ou seja, que Jesus fez milagres.
Será que esse movimento cristão teria  fincado raízes precisamente em Jerusalém, no lugar exato onde Jesus passou a  maior parte de seu ministério, foi crucificado, morreu e ressurgiu, se as  pessoas que o conheceram soubessem que os discípulos estavam exagerando ou  distorcendo as coisas que ele fez?
Creio que não — respondeu Blomberg. —  Sabemos que o movimento foi inicialmente muito vulnerável, frágil e perseguido.  Os críticos poderiam ter-se aproveitado dessa situação para atacá-lo, acusando-o  de falsidades e distorções. Mas — concluiu Blomberg com ênfase — não é isso o  que acontece.
E quanto à sua fé pessoal? De que modo as suas pesquisas  afetaram as coisas em que o senhor crê?
Elas a fortaleceram, sem dúvida  nenhuma. Sei pelos meus estudos que são muitos os indícios que apontam para a  confiabilidade do relato evangélico. Sabe, é irônico: a Bíblia louva a fé que  dispensa as provas. Lembre-se da resposta de Jesus a Tome: "Porque me viu, você  creu? Felizes os que não viram e creram". Sei que as provas nunca podem compelir  ou coagir a fé. Não podemos tomar o lugar do Espírito Santo, o que é sempre uma  preocupação dos cristãos quando ouvem discussões desse tipo. Sabe, há muitas  histórias de estudiosos especializados no Novo Testamento que não eram cristãos,  mas pelo estudo dessas mesmas questões chegaram a Cristo pela fé. Muitos outros  eruditos, que eram cristãos, tiveram sua fé fortalecida, mais solidificada e  mais bem fundamentada por causa das provas: é nessa categoria que eu me  encaixo.
ENTREVISTA DO REPÓRTER LEE STROBEL AO  HISTORIADOR E ARQUEÓLOGO EDWIN YAMAUCHI