Os mitos bíblicos anteriores a Moisés
A Bíblia não fala apenas da história dos judeus (Velho Testamento) e do começo do cristianismo (Novo Testamento), mas também das origens da Terra e do Universo. A idéia de “início” dos tempos está contida na etimologia do primeiro livro: Gênesis tem como radical o termo “gene” (= nascimento), que deu origem a uma família de palavras pertencentes a línguas antigas e modernas do Oriente Médio e do Ocidente: genética, gineceu, ginecológico, genealogia etc. Enquanto o livro do Êxodo pode ser considerado uma teofania (a “fala” de Deus ao homem), o Gênesis é uma Cosmogonia (a “luta” entre os elementos do Universo). Podemos dividir o Gênesis em duas partes: a Criação do Mundo e de seus primeiros habitantes (1-11) e a História dos Patriarcas (12-50).
A fábula da criação do mundo
“No princípio, Deus criou os céus e a terra. A terra era informe e vazia. As trevas cobriam o abismo, e o Espírito de Deus movia-se sobre a superfície das águas. Deus disse: “Faça-se a luz”. E a luz foi feita... Façamos o homem a nossa imagem...Concluída toda a obra, no sétimo dia Deus repousou”.
A concepção de Deus que aparece no Gênesis é de um Construtor que edifica uma obra grandiosa no prazo de uma semana. Os hebreus, como outros povos primitivos, imaginavam a terra, moradia do homem e dos outros seres vivos, como um disco plano e circular a boiar sobre as águas salgadas do abismo e em baixo do firmamento, acima do qual existia um mar de água doce, de onde derramava a chuva. No subsolo habitavam os defuntos, enquanto o andar superior era a residência dos deuses. Tal descrição está de acordo com as aparências, anterior ao conhecimento científico da natureza. Como dizia um filósofo pré-socrático, “o homem é a medida de todas as coisas”: só podemos expressar o que está dentro de nós ou ao alcanço da nossa percepção.
Se é assim, cabe inverter a expressão bíblica de que Deus fez o homem a sua semelhança. A verdade é exatamente o contrário: é o homem que cria os deuses conforme a imagem que ele tem das coisas. Se o Deus do Velho Testamento é apresentado como um ser prepotente, excludente, injusto, ciumento, vingativo, é porque os hebreus daquela época eram assim. Na medida em que o povo judeu vai evoluindo, sua concepção de Deus irá adquirir feições cada vez mais espirituais e universais. Tal “evolução” é um fato inegável, admitido por todos os estudiosos e exegetas dos livros considerados sagrados, sejam eles católicos, protestantes, rabinos ou muçulmanos. E aqui cabe a pergunta: se os crentes admitem a evolução do espírito humano, por que rejeitam a teoria da evolução da matéria biológica?
Ao estudarmos Darwin, o princípio universal da evolução da vida, seja ela orgânica ou inorgânica, material ou espiritual, é o grande achado da ciência moderna, a única resposta racionalmente possível face ao mistério do Universo. A teoria evolucionista, apoiada no princípio de que natura non facit saltus (a natureza não dá pulos), irá substituir definitivamente a teoria do criacionismo bíblico, regido pelo fiat lux (a luz apareceu de repente, apenas por ato da vontade divina). Mas é evidente que não se trata de vontade divina. Se Ele realmente existisse e tivesse criado o mundo nos moldes descritos no Gênesis, seria um Arquiteto bem ruim.
Apenas dois exemplos: como explicar a existência das plantas antes da criação do sol? Como criar o Universo todo em apenas seis dias, quando a ciência nos ensina que a passagem do caos para o cosmo levou bilhões de anos? Estas e tantas outras inverdades e contradições, não apenas cosmológicas, mas também éticas (ordenar o genocídio de crianças!), só podem ser atribuídas à ignorância e à maldade humana. Um deus nunca poderia cometer tamanhas monstruosidades.
Os “profetas” de todos os tempos e de qualquer lugar, líderes que, numa altura de sua vida, se sentiram imbuídos de um espírito divino, devem ser considerados como visionários que se serviram do nome de Deus para dar credibilidade à sua concepção do mundo e impor sua doutrina e suas leis. Quem comete erros só pode ser o homem, pois Deus, por definição, é o ser perfeitíssimo, onividente, onipotente, sumamente misericordioso. Em todos os trechos bíblicos, portanto, por justiça, deveríamos substituir “Deus disse” por Moisés, Salomão, Paulo de Tarso... disse. O mesmo diga-se com relação ao Corão: quem afirma coisas é o homem Maomé e não o deus Alá!
A justificativa costumeira é que a Bíblia não deve ser lida ao pé da letra, pois ela contém sentidos simbólicos e didáticos, expressos através de imagens poéticas, que relatam realidades peculiares de tempos e lugares. Tudo bem, de acordo. Mas, então, perguntamos, qual é a diferença entre os escritos dos dois Testamentos e os poemas épicos que a tradição nos legou? A inspiração divina? Mas o poeta grego Homero, ao escrever a Ilíada e a Odisseia, também ele se sentiu inspirados pela divindade:
“Canta, o deusa, a cólera de Aquiles, filho de Peleu....”
Este primeiro verso do poema A Ilíada deixa claro que o poeta se considera um intermediário entre a divindade e a humanidade, um “vate”, um profeta que revela um saber proveniente de uma esfera superior. O mesmo diga-se com relação ao romano Virgílio, autor da Eneida, e do italiano Dante Alighieri, que escreveu a Divina Comédia. O grandíssimo poeta florentino é o enviado de Deus que, acompanhado pelo pagão Virgílio e pela sua angelical amada Beatriz, revela aos homens o que se passa no Inferno, no Purgatório e no Paraíso, conforme a doutrina católica medieval e a realidade histórica da Florença da época do Autor. Por que considerar, então, os escritos de Moisés “inspirados” por uma divindade e os dos outros poetas épicos desprovidos de sacralidade, se, do ponto de vista imaginativo e educativo, Homero e Dante são de longe bem superiores a qualquer autor de textos da Bíblia ou do Alcorão? A única figura humana verdadeiramente sublime é Jesus Cristo, mas, infelizmente, ele não escreveu nada. O que sabemos dele foi redigido por intermediários, muito tempo depois de sua morte.
O pecado original: é proibido conhecer a verdade
Voltando à leitura do Gênesis, estamos no Éden, o Paraíso primordial, onde nossos ancestrais, Adão e Eva, viviam felizes, gozando dos dons preternaturais, que lhes conferiam as imunidades do trabalho, da dor e da morte. Mas o homem perdeu esses benefícios por cometer o pecado do orgulho: comeu da fruta da árvore que lhe daria o conhecimento do bem e do mal, igualando-se, assim, a Deus. Esta forma de soberba era chamada pelos gregos de Híbris, a presunção de poder ultrapassar, impunemente, os limites impostos por uma força superior. A figura mitológica de Prometeu está bem próxima da descrição bíblica: enviado por Júpiter na terra para fazer um ser diferente dos animais, o Titã pegou do barro e esculpiu uma massa em que colocou a fidelidade do cavalo, a força do touro, a esperteza da raposa e a avidez do lobo. Mas lhe faltava vida espiritual. Prometeu, então, roubou uma centelha do fogo divino para animar sua criatura. E Júpiter se vingou enviando Pandora com sua caixa de desgraças que se espalharam pelo mundo.
As duas narrativas, bem semelhantes, tentam explicar a origem da insatisfação humana, que não se contenta com sua condição precária, querendo sempre saber e obter mais. O que causa espécie, quer no mito bíblico de Adão, quer nas lendas gregas de Prometeu e de Édipo, é a transmissão da culpa de pai para filho, de geração para geração. Conforme a justiça humana, nenhuma culpa é transferível de uma pessoa para outra. Os filhos podem herdar a “pena”, ser vítimas de ações desastrosas feitas pelos pais, mas nunca a “culpa”. Porque Adão e Eva comeram a maça nas origens da criação da raça humana, ainda hoje, após milhões de anos, uma criança e sua mãe herdam não só a conseqüência desse pecado, a dor do parto, mas também a culpa, necessitando da água batismal para lavar a alma. E quem não receber a água benta na cabeça será um excluído do reino do céu. Coitados dos homens que tiveram a infelicidade de viver antes de Cristo ou de não encontrar um padre ou um pastor que os batizasse!
Na verdade, o mito da “queda” de Adão é, por si só, um absurdo, algo que ofende a inteligência humana. Se Deus criara o homem livre, feliz e imortal, por que o sufocou com uma proibição impossível de obedecer? Se é próprio da natureza humana o “querer saber”, pois o suposto Criador fez o homem com um cérebro dotado de neurônios, as células do pensamento, por que, então, a ordem de manter o homem na ignorância? E se Ele, como ser onividente e onipotente, sabia de antemão que Adão não teria resistido ao sabor da fruta, por que o submeteu ao fracasso? Algum pai humano assistiria indiferente à desgraça de um filho, se pudesse evitá-la, apenas para salvaguardar seu livre arbítrio?
Pior é que o culto à ignorância, a proibição do querer saber, ainda persiste na sociedade moderna. Se há algo em comum em todas as religiões é a recusa de aceitar o raciocínio lógico, o bom senso, a realidade histórica, a verdade científica. Mandam simplesmente acreditar no que alguns exaltados, achando-se inspirados por uma divindade, disseram milhares de anos atrás. E alguns homens, que tiveram a ousadia de refletir por conta própria, diferenciando-se do que Nelson Rodrigues chamou de “unanimidade burra”, foram considerados loucos e castigados. A literatura tem páginas admiráveis sobre este tema: O elogio da loucura, do humanista holandês Erasmo de Roterdam; O alienista, de Machado de Assis; Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietsche; Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago.
A Arca de Noé
Adão, que tinha desobedecido a Deus, gera o filho Caim, que acaba matando o irmão Abel por ciúme, pois o Senhor gostava mais do churrasco do rebanho de Abel do que dos legumes oferecidos por Caim. Com tais ancestrais invejosos e fratricidas, não temos porque estranhar a continuada matança dos homens entre si, ao longo dos séculos! Talvez as lendas sobre Caim e Abel estejam ligadas à passagem da agricultura para a pecuária, ao longo da evolução da civilização hebraica.
Adão, que morreu com 930 anos, teve outros filhos. A linhagem de Set deu origem à série dos dez Patriarcas, anteriores ao Dilúvio, que constituem a ponte, sustentada por dez largos arcos, que liga Adão a Noé. Destaque para o patriarca Matusalém, que viveu 969 anos, vindo a ser o avô de Noé que, com 500 anos (e sem Viagra!) gerou Sem, Cam e Jafet. Essa cronologia bíblica gera muita suspeita, visto que os povos primitivos têm uma média de vida bem inferior à dos civilizados. Veja-se a grande mortalidade no meio das povoações indígenas, desprovidas de assistência médica, odontológica e hospitalar.
Sempre conforme a Bíblia, depois de uma época de heroísmo e grandiosidade, a humanidade se corrompeu e Deus se arrependeu de ter criado o mundo, determinando sua destruição. Quis salvar apenas o único homem justo, Noé, a quem deu a ordem de construir um enorme barco, onde pudesse abrigar sua família e um casal de cada espécie de animais e de plantas. Aí, abriu as torneiras do céu e mandou chover torrencialmente durante quarenta dias. As águas cresceram e levantaram a arca, fazendo-a flutuar, enquanto todas as outras criaturas desapareceram. Passado o dilúvio, Noé construiu um altar ao Senhor e ofereceu holocaustos. E Deus estabeleceu um Pacto de Aliança com Noé e sua descendência, prometendo nunca mais castigar a humanidade. E selou este acordo com a criação do Arco Íris.
Também o episódio bíblico do Dilúvio não é original. Nas mitologias antigas há várias formas de dilúvio descritas como castigo de Deus. Essa lenda mesopotâmica deve ter tido origem em inundações do rio Tigre ou Eufrates. Provavelmente, foi aproveitada por Moisés ou outro escritor bíblico para explicar a desordem cósmica: primeiro, Adão revolta-se contra Deus (humanidade vs divindade); depois, Caim contra Abel ( homem vs homem); enfim, as águas contra Noé (força da natureza vs homem). O Dilúvio é um dos pontos centrais do Velho Testamento, porque representa a mediação das três Alianças que o Deus bíblico teria estabelecido com o povo hebreu, estando no meio entre a Aliança que Deus fez com Abraão (escolha do Povo) e a que fará com Moisés (conquista da Terra Prometida). Certo é que o episódio bíblico do dilúvio está ligado à memória mítica de povos primitivos assustados por imensas inundações ocorridas quando se formaram o Mar Negro e o Mediterrâneo.
A Torre de Babel
Após o dilúvio, os três filhos de Noé, Sem, Cam e Jafet, se dispersaram, dando origens a várias tribos, que acabaram falando dialetos diferentes. Para explicar a origem da diversidade de línguas, o narrador bíblico reporta a lenda da Torre de Babel: Deus teria punido o orgulho dos homens que, pela construção de uma torre altíssima, queriam alcançar o céu. O Senhor, simplesmente, confundiu a língua dos pedreiros. A aspiração humana para o alto se encontra também no mito grego de Ícaro, que alçou vôo por cima do mar com duas asas de cera, que o sol derreteu. O fato histórico que está por baixo da narração bíblica é que na cidade de Babel (outro nome de Babilônia, então centro comercial do Oriente), chegavam mercadores de vários países, que falavam diferentes idiomas.
A verdade é que os primeiros onze capítulos do Gênesis, que acabo de resumir, constituem a pré-história da cultura judaica. A língua hebraica, em que foi redigida o Velho Testamento (descontando alguns trechos em aramaico), pertence ao ramo cananeu do grupo semítico. Sua origem remonta ao séc. X a.C., época em que se encontram registrados os primeiros documentos históricos, poéticos e litúrgicos. Tudo o que aconteceu anteriormente foi transmitido pela tradição oral e, só bem mais tarde, pessoas alfabetizadas começaram a pôr por escrito histórias que ouviram de seus antepassados. Se a isso acrescentarmos o fato de que os livros bíblicos tiveram vários redatores e em épocas diferentes, não é difícil entender a causa de tantas repetições, contradições, inverdades.