quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O Segundo Concílio de Constantinopla e a Doutrina da Reencarnação



"O erro não se torna verdade por multiplicar-se na crença de muitos, nem a verdade de torna erro por ninguém a ver...". (GANDHI).

Introdução


Estaremos aqui mais preocupados em levantar os dados sobre a alegada crença na reencarnação no cristianismo primitivo, mais especificamente em relação a Orígenes, considerado um dos “Pais da Igreja”. O motivo que nos leva a isso é porque ele é sempre citado pelos reencarnacionistas, incluindo aqui vários espíritas, como alguém que aceitava a ideia da reencarnação, no que são, prontamente, rebatidos pelos antirreencarnacionistas, que dizem não ser verdadeira tal ideia.

Muitas pessoas buscam argumentos bíblicos para justificar ou para refutar a reencarnação, dependendo de que lado elas estão. Somos partidários da reencarnação, porém, não traremos nenhum argumento bíblico, para justificá-la, pois, para nós, é irrelevante ela estar ou não na Bíblia, porquanto a temos com fazendo parte das leis divinas, ou seja, como uma lei natural, com boas possibilidade de, mais dia menos dia, as ciências Biologia e a Psicologia, que têm como foco o ser humano, passarem a vê-la desse modo. É certo que nós próprio, temos alguns textos que são baseados nos textos bíblicos; entretanto, nós só os fizemos no sentido de nos defender da acusação dos dogmáticos, que os utilizam para “provar” que a reencarnação não existe por não constar da Bíblia. Se a Bíblia fosse considerada como um repositório da Ciência aí, sim estaríamos preocupados em estar acreditando em fábulas.

Os dados atuais das pesquisas sobre reencarnação, quer os do âmbito de crianças que se lembraram espontaneamente de outras vidas, quer os da regressão a vidas passadas pela TRVP – Terapia Regressiva a Vivências Passadas, cujo resultado, na cura de alguns “sintomas”, está sendo, cada vez mais, comprovado no dia a dia dos profissionais que se utilizam dessa técnica como ferramenta de trabalho. O interessante é que muitos deles, quer sejam os profissionais, quer sejam os seus pacientes, não acreditam na reencarnação e mesmo assim a cura acontece. Isso, para nós, é a comprovação de que nada tem a ver com a crença das pessoas ou que seja uma ação consciente do inconsciente (ou inconsciente do consciente?), se isso for possível!

Nesse estudo, dois outros nomes surgirão, por serem constantemente citados e por estarem, de alguma forma, ligados a Orígenes, que são os do imperador Justiniano e sua esposa Teodora, que se encontravam, na época, à frente do Império Bizantino.

A nossa proposta é ver se, com as fontes disponíveis, conseguiremos saber qual dos lados pode ter razão e faremos de tudo para agir com imparcialidade; prevalecendo para nós o que se encontra na letra de uma linda canção: “E o que tiver de ser será” (Marjorie Estiano).

Acatando a sugestão de um amigo, que julgamo-la procedente, queremos que, logo de início, um ponto fique bem claro: é que as citações como de caráter meramente informativo, não lhas damos como autênticas, ficando, portanto, os seus autores responsáveis por comprová-las, até que fontes fidedignas sejam apresentadas confirmando as suas alegações. Portanto, se a nossa conclusão estiver equivocada, por conta de dados de fontes duvidosas, nós a transferimos a esses autores.

Aproveitamos, também, para informar que, em se comparando o texto atual com o anterior, ver-se-á uma mudança radical em nossa argumentação e conclusão. Isso foi motivado pelo estudo que consta no site “Falhas do Espiritismo” ([1]), que acabou nos levando a um outro caminho, diferente do anteriormente tomado.

O que vários autores falam


Vamos ver, neste item, o que vários autores falam sobre o assunto, dos quais temos as obras em mãos, em nossa biblioteca, sem ter preferência a nenhum deles.

1. José Reis Chaves (1935- ) (Escritor e bacharel em Comunicação e Expressão, espírita)

A preexistência do espírito é uma teoria que prega a existência do espírito, antes da existência do corpo. Foi – como veremos em outro capítulo – uma das teses defendidas pelo grande sábio Orígenes, e que foi condenada pelo polêmico V Concílio Ecumênico de Constantinopla II (553).

[...]

A preexistência do espírito com relação ao corpo vivificado por ele, é a base fundamental para a Teoria da Reencarnação, pois que, ao admitirmos o reencarne de um espírito, automaticamente estamos admitindo que ele já encarnou antes, pelo menos uma vez que seja.

Seria por isso que ela foi condenada pelo V Concílio Ecumênico de Constantinopla II, em 553? É possível, pois as pressões do imperador Justiniano e de sua mulher Teodora, como veremos num outro capítulo, foram muito sérias, para não dizer um caso de polícia, como se diz hoje. Aliás, veremos que, na realidade, ela nem foi condenada por esse tal concílio. (CHAVES, 2002, p. 139-140).

Orígenes é conhecido como um dos maiores sábios do cristianismo de todos os tempos. Foi praticamente o criador da nossa teologia cristã.

[...]

Porém, perante Deus, a História do cristianismo e mesmo perante a Igreja de hoje, Orígenes é admirado e citado frequentemente por estudiosos e pesquisadores da Bíblia, da Filosofia e da Teologia.

Embora ele tenha tido algumas de suas ideias condenadas pela Igreja, duas delas continuam sendo atacadas normalmente, e não só por católicos, mas por protestantes também.

E foi o polêmico V Concílio Ecumênico de Constantinopla II, de 553, que condenou suas doutrinas célebres: a Preexistência do Espírito e a Apocatástase (restauração de todas as coisas), as quais a humanidade, hoje, está amadurecida para entendê-las, julgá-las e aceitá-las. (CHAVES, 2002, p. 162-163).

O V Concílio Ecumênico de Constantinopla II (553)

A Igreja teve alguns concílios tumultuados. Mas parece que o V Concílio de Constantinopla II (553) bateu o recorde em matéria de desordem e mesmo de desrespeito aos bispos e ao próprio Papa Vigílio, papa da época.

O imperador Justiniano tem seus méritos, inclusive o de ter construído, em 552, a famosa Igreja de Santa Sofia, obra-prima da arte bizantina, hoje uma mesquita muçulmana.

Era um teólogo que queria saber mais que teologia do que o papa. Sua mulher, a imperatrizTeodora, foi uma cortesã e se imiscuía nos assuntos do governo do seu marido, e até nos de teologia.

Contam alguns autores que, por ter sido ela uma prostituta, isso era motivo de muito orgulho por parte das suas ex-colegas. Ela sentia, por sua vez, uma grande revolta contra o fato de suas ex-colegas ficarem decantando tal honra, que, para Teodora, se constituía em desonra.

Para acabar com esta história, mandou eliminar todas as prostitutas da região de Constantinopla – cerca de quinhentas.

Como o povo naquela época era reencarcionista, apesar de ser em sua maioria cristão, passou a chamá-la de assassina, e a dizer que deveria ser assassinada, em vidas futuras, quinhentas vezes; que era seu carma por ter mandado assassinar as suas ex-colegas prostitutas.

O certo é que Teodora passou a odiar a doutrina da reencarnação. Como mandava e desmandava em meio mundo através de seu marido, resolveu partir para uma perseguição, sem tréguas contra essa doutrina e contra o seu maior defensor entre os cristãos, Orígenes, cuja fama de sábio era motivo de orgulho dos seguidores do cristianismo, apesar de ele ter vivido quase três séculos antes.

Como a doutrina da reencarnação pressupõe a da preexistência do espírito, Justiniano e Teodora partiram, primeiro, para desestruturar a da preexistência, com o que estariam, automaticamente, desestruturando a da reencarnação.

Em 543, Justiniano publicou um édito, em que expunha e condenava as principais ideias de Orígenes, sendo uma delas a da preexistência. (CHAVES, 2002, p. 185-186).

2. Edward Wriothesley Russel (Repórter norte americano)

Embora se esteja quebrando o tabu e o público cada vez mais se interesse pela reencarnação – como qualquer livraria ou jornaleiro o demonstram – os líderes cristãos, com algumas exceções notáveis, ainda consideram o assunto de grande importância potencial, mas inadequado para discussões.

Tudo isso é mais estranho ainda porque a reencarnação é realmente implícita no cristianismo. Porque os cristãos acreditavam que Cristo existiu, como o Filho de Deus,antes de se encarnar na forma humana. Acreditam que sua finalidade era levar os homens a se conduzirem como Ele; e que o seu poder permite que o consiga. Os homens, todavia, dificilmente poderiam fazer isto se as suas naturezas e origens fossem completamente diferentes. E se isto acontecesse, certamente Cristo iria mencioná-lo e não iria esperar que fossem como Ele.

Por uma das ironias mais divertidas da História, esta atitude estranha do clero do século vinte é parcialmente o resultado das intrigas desapiedadas de uma cortesã super libidinosa do Oriente Médio, que viveu acerca de 1400 anos atrás. Trata-se de Teodora, filha de um guardião de ursos, que se tornou amante e mais tarde a esposa do Imperador bizantino Justiniano.

Naquele tempo, muitos cristãos aceitavam a reencarnação como uma parte essencial do cristianismo. Seguiam os ensinamentos de Orígenes, um dos sábios mais brilhantes das Igrejas Cristãs primitivas, que uns 250 anos antes escreveu no seu Princípios: “cada alma... vem a este mundo fortificada pelas fraquezas ou vitórias da vida anterior. Seu lugar neste mundo, como um vaso escolhido para honrar ou desonrar, é determinado pelos seus méritos ou deméritos. Seu trabalho neste mundo determina a sua vida num mundo futuro”.

Esta filosofia enraiveceu Teodora, que queria acreditar – e que o público acreditasse – que sua atividade neste mundo lhe daria a certeza de uma posição, mais eminente no outro. Esperava, em outras palavras, um “céu” imediato, e naturalmente encarou com desagrado qualquer sugestão de que ela só obteria o “céu” em encarnações sucessivas nas quais expiaria seus crimes. Então esforçou-se por tirar tais noções do cristianismo.

Há suspeitas de que tenha sido a responsável pelo assassinato de dois Papas que a ela se opuseram, segundo o estudo fascinante de suas conspirações desonestas pelo romancista e teatrólogo Noel Langley. E, depois de sua morte, Justiniano, que também esperava um “céu” imediato, encerrou a discussão sobre a reencarnação convocando no ano de 553 o Quinto Concílio Ecumênico da Igreja que – em termos modernos – foi cuidadosamente organizado para declarar que a reencarnação era anátema.

Sem dúvida o Imperador e seus bobocas eclesiásticos ordenaram a destruição de qualquer escrito que desenvolvesse ideias sobre a reencarnação porque pretendiam liquidar as últimas reminiscências do ensino sobre esta matéria. E estes escritos poderiam conter algumas das “pérolas” sobre as quais Cristo admoestou seus discípulos que não as jogassem aos porcos – um caminho para segurança, de passagem, que suscitaria uma revolta épica sobre o direito do público de se manter informado se houvesse jornais naqueles tempos. Mas Justiniano e seus colaboradores não fizeram um serviço completo de censura e há ainda algumas referências na bíblia e Apócrifos que, pelo menos, sugerem que a reencarnação foi aceita naturalmente.

À primeira vista, é difícil entender por que as Igrejas Cristãs não questionaram a teologia do Imperador e da Imperatriz dissoluta e do falso concílio. Mas, provavelmente, há duas razões para isto:

Por muitos séculos a autoridade e os dogmas das Igrejas raramente foram contestados, em parte porque todos os que o tentaram receberam certamente um tratamento doloroso e pouco cristão. Mais importante, os líderes cristãos primitivos, que lutaram para aumentar o poder da Igreja, provavelmente julgaram as ideias de Teodora e Justiniano mais eficazes politicamente que o ensinamento da doutrina da reencarnação, porque prometer um “céu” e um “inferno” imediatos dava-lhes mais poder e autoridade que ensinar a doutrina da reencarnação, que promete não somente uma segunda chance mas também muitas outras.

Torna-se difícil rejeitar ou modificar um dogma uma vez cristalizado, como poderemos ver pelas angustiantes discussões teológicas de nossa época atual. Assim, devemos compreender nosso clero moderno que sem culpa própria está preso numa gaiola teológica fabricada - bastante estranhamente – pela filha do alimentador de ursos enjaulados, de 1400 anos atrás. (RUSSEL, E., 1972, p. 128-130).

3. Elizabeth Clare Prophet (1939-1999) (jornalista norte americana)


PREEXISTÊNCIA, REENCARNAÇÃO OU AMBOS?

Uma vez que muitos dos textos de Orígenes foram destruídos, e o restante profundamente alterado, os estudiosos discutem se ele realmente ensinou a reencarnação. Alguns afirmam que ele apenas fala sobre a preexistência: a existência da alma antes do corpo. Mas, no tempo de Orígenes, a preexistência e a reencarnação eram inseparáveis.

Algumas vezes Orígenes parece confirmar a reencarnação, em outras foge ao assunto e, numa certa ocasião, ele a nega. Para descobrirmos a verdadeira crença de Orígenes, precisamos avaliar essa sua única negação no contexto dos seus outros escritos, do tempo em que viveu e da sua prática deliberada do sigilo. Depois de examinarmos todos esses elementos, ficará claro que ele ensinou a reencarnação secretamente. Para Orígenes, a reencarnação fazia parte de um sistema de salvação – uma salvação baseada no esforço individual e no relacionamento da alma com o Deus interior que acabaria conduzindo à união com Deus.

Nos séculos II e III muitas pessoas cultas aceitavam a reencarnação. Sabemos que pelo menos cinco fontes que afirmavam a reencarnação [e a preexistência?] eram familiares a Orígenes:

1. As Escrituras cristãs e judaicas – Orígenes conhecia bem as tradições judaicas sobre a reencarnação e a divinização e, às vezes, parecia fazer eco às palavras de Filon, que escreveu sobre a reencarnação. Orígenes acreditava que os judeus ensinavam a reencarnação.[15]

2. Os clássicos gregos – Os textos de Platão e Pitágoras fizeram parte da educação de Orígenes.

3. O Gnosticismo – Orígenes absorveu este conceito através de um professor chamado Paulo de Antioquia.

4. O neoplatonismo – Orígenes estudou-o com o seu fundador, Amônio Sacas.

5. Clemente de Alexandria, um professor cristão que dirigiu a escola de catequese antes de Orígenes. – Diz-se que ele ensinava a reencarnação.[16]

Existe ainda uma possível sexta fonte para a crença de Orígenes na reencarnação. Ele pode tê-la aceito por ter-se convencido – através do estudo do Gnosticismo, dos escritos de Clemente ou de outras escrituras que se perderam – de que a reencarnação fazia parte dos ensinamentos secretos de Jesus.
Se Orígenes tivesse rejeitado a reencarnação, teria que ter sido coerente e defendido a sua posição diante das pessoas cultas da sua audiência, porque muitas, sendo neoplatônicas e gnósticas, acreditavam na reencarnação. Mas não existe qualquer registro disto. Ao contrário, perguntava constantemente se os atos das vidas anteriores não seriam a causa dos problemas que as pessoas enfrentavam.

Em sua obra Sobre os Primeiros Princípios Orígenes explica que as almas são enviadas para o seu “lugar, região ou condição” de acordo com os atos realizados “antes da vida atual”. Deus “organizou o universo de acordo com o princípio de uma retribuição totalmente imparcial”, diz ele[17]. Deus não criou “com favoritismos” mas deu corpos às almas “de acordo com os pecados de cada uma”. Orígenes pergunta: “Se as almas não existiam previamente, por que encontramos cegos de nascença que nunca pecaram, enquanto outros nascem sãos?”[18] Ele responde à sua própria pergunta: “É claro que alguns pecados existem [isto é, foram cometidos] antes das almas [terem corpos] e, como resultado, cada alma recebe a recompensa de acordo com o seu mérito”.[19] Em outras palavras, o destino das pessoas é determinado por suas ações anteriores.

Estas passagens demonstram que Orígenes ensinou a preexistência da alma. E, certamente, trazem implícito o conceito da reencarnação. Como observou o teólogo do século XII, Tomás de Aquino, quem quer que tenha afirmado a preexistência da alma afirmou implicitamente a reencarnação[20].

Ao dizer que o nosso destino resulta de nossas ações passadas, Orígenes dá a entender que tivemos alguma forma de existência anterior que precedeu o nosso corpo atual. Para Orígenes a conclusão óbvia é que esta existência anterior também foi vivida sob a forma humana.

UM MAR TEMPESTUOSO

A falta de referências explícitas sobre a reencarnação nos textos de Orígenes deve-se ao fato dele ter ocultado sua crença, por temer represálias de seus superiores, que já a haviam excluído de sua teologia. Quando escreveu Sobre os Primeiros Princípios, pretendia reservá-lo aos seus discípulos mais avançados. Mas cópias deste trabalho acabaram vindo a público e envolvendo-o em controvérsias. Mais tarde, comparou as atribulações causadas pela sua doutrina a um mar tempestuoso e passou a ser mais cauteloso com os seus escritos.

Demétrio, bispo de Orígenes, invejava seu crescente prestígio e irritava-se com as suas especulações filosóficas. Em 215, quando Orígenes já dirigia a escola de catequese há mais de 10 anos, Demétrio proibiu-o de pregar na igreja por nunca ter sido ordenado padre. Mas ele era muito requisitado em outros locais. Numa visita a Cesareia, na Palestina, Orígenes pregou a pedido do bispo local. Enfurecido, Demétrio exigiu que ele retornasse a Alexandria. Mas sua fama continuou a se espalhar pelo império, inclusive na Corte. Julia Mamea, mãe do Imperador Alexandre Severo e eminência parda do trono, convocou Orígenes para que lhe explicasse o Cristianismo.

No ano de 231, Orígenes deixou Alexandria e retornou a Cesareia, onde o bispo local o ordenou à revelia de Demétrio. Utilizando como pretexto a ordenação não autorizada de Orígenes e suas opiniões controversas, Demétrio iniciou então uma campanha contra ele. Acusando-o de dizer que o Demônio seria salvo, obteve o apoio dos outros bispos do Egito, que anularam a ordenação de Orígenes e o excomungaram.

Ele defendeu-se dizendo que somente havia afirmado que o Demônio poderia ser salvo. Como veremos, este argumento sobre o Demônio é muito importante nas doutrinas de Orígenes sobre o livre-arbítrio e a justiça divina que incluem a preexistência da alma.

Depois da morte de Demétrio, Orígenes teve um período de trégua. Estabeleceu-se em Cesareia, que se tornara a cidade mais importante da Palestina depois da destruição de Jerusalém nos anos 70. Sob a proteção dos bispos da Palestina, recebeu finalmente o respeito que merecia.

O conflito entre Orígenes e seu bispo, Demétrio, representa em menor escala os futuros conflitos entre a Igreja e os “hereges”. Orígenes, que estudara a filosofia grega, assim como as Escrituras judaicas e cristãs, seguiu a tradição dos sábios gregos e judeus – instrutores inspirados e solitários que buscavam a verdade onde pudessem encontrá-la. Ao tentar estruturar-se e consolidar sua autoridade, a Igreja não poderia permitir que tais instrutores se mantivessem independentes. Nos séculos seguintes, como veremos, a Igreja restringiu severamente a sua liberdade ao codificar a doutrina e definir as escrituras, substituindo a iluminação pela ordem.

Os ataques de Demétrio e de outros bispos reduziram o impacto das últimas obras de Orígenes. Como refugiado da Alexandria, sabia que a sua situação na Cesareia era precária. Em seu Comentário sobre João, trata da questão da reencarnação, mas não chega a oferecer uma resposta dizendo: “O assunto da alma é muito amplo e difícil de ser esclarecido... Exige, por isso, tratamento diferenciado”.[21].

Embora Orígenes tenha argumentado contra a reencarnação no Comentário sobre Mateusque escreveu quando já estava com mais de 60 anos (por volta dos anos 246-48), o seu contexto leva-nos a questionar se não a estaria negando como uma tentativa de despistar seus inimigos[22]. Pois Orígenes, assim como todos os iniciados nos mistérios gregos e gnósticos, praticava o sigilo.

O ENSINAMENTO SECRETO DE ORÍGENES

Clemente, precursor de Orígenes na escola de catequese de Alexandria, dizia possuir uma tradição secreta, reservada aos poucos que a podiam compreender, que lhe havia sido passada por Pedro, Tiago, João e Paulo. Clemente afirmava que os mistérios ocultos que Cristo revelara aos apóstolos eram diferentes dos ensinamentos dados aos cristãos comuns.

Orígenes também tinha um ensinamento secreto. Ao contrário de Clemente, não dizia tê-lo recebido dos apóstolos mas tê-lo encontrado nas próprias Escrituras. Afirmava possuir a inspiração, o conhecimento e a graça necessários para descobri-lo.

Isto não quer dizer que os revelasse a todos. Orígenes diz que o homem que encontrar o significado oculto das Escrituras, deve escondê-lo: “Um homem vem ao campo... e encontra um tesouro oculto de sabedoria... E, ao encontrá-lo, esconde-o, pois pensa ser perigoso revelar a todos o significado oculto das Escrituras, ou os tesouros de sabedoria e de conhecimento em Cristo”.[23]

Qual seria o conteúdo deste seu ensinamento secreto? Nos Primeiros Princípios Orígenes dá-nos uma pista. Numa lista das doutrinas mais importantes aponta a “questão das diferenças entre as almas e de como elas surgiram”.[24] O estudioso R.P.C. Hanson conclui que esta lista de doutrinas representa claramente “os pontos do ensinamento secreto de Orígenes”.[25] Se o ensinamento secreto de Orígenes inclui as razões pelas quais as almas são diferentes no nascimento, seria lógico que ele incluísse também a preexistência e a reencarnação.

Se ainda restam dúvidas sobre o fato de Orígenes ter se referido ou não à reencarnação, podemos confiar no Patriarca da Igreja do século IV, Jerônimo, que o acusou de fazê-lo. Jerônimo teve acesso aos seus textos originais em grego, e disse que uma das passagens de Primeiros Princípios prova que Orígenes “acreditava na transmigração das almas”.[26].
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[15] Veja Gerald Bostock, “The Sources of Origen's Doctrine of Pre-Existence” (A Origem da Doutrina de Orígenes Sobre a Preexistência) em Lothar Lies, ed., Origeniana Quarta (Innsbruck: Tyrolia-Verlag, 1987), p. 259-64.

Orígenes pode ter tido algo a acrescentar sobre a questão de se os judeus acreditavam ou não na reencarnação. Em seu comentário sobre as passagens João/Elias em seu Commentary on John (Comentário Sobre João), ele afirma que a pergunta dos judeus a João: “És tu Elias?” sugere “que eles acreditavam na metensomatose [transmigração], como uma doutrina herdada de seus ancestrais e que, por isso, não se chocava com o ensinamento secreto de seus mestres”. Ele afirma também que uma tradição judaica diz que Fineias, filho de Eleazar, “foi Elias”. Talvez Orígenes tenha tido acesso a ensinamentos secretos judaicos além dos Evangelhos. O Commentary on John (Comentário Sobre João) 6.7, citado por Jean Daniélou emGospel Message and Hellenistic Culture (A Mensagem do Evangelho e a Cultura Helênica), trad. John Austin Balier, vol. 2 de A History of Early Christian Doctrine before the Council of Nicaea (A História da Doutrina do Cristianismo Primitivo antes do Concílio de Niceia) (Londres: Darton, Longman and Todd, 1973), p. 493-94.

[16] Clemente não questiona a preexistência da alma, que é a base da reencarnação. Ele confirma o conceito da preexistência do Cristo e do homem em sua obra Exhortation to the Greeks (Exortação aos Gregos). EmStromateis, aborda a reencarnação, mas não faz nenhuma declaração explícita a seu Favor. Entretanto, o estudioso da Igreja do século IX, Photius, diz que Clemente ensinou sobre a reencarnação. Veja Henry Chadwick, Early Christian Thought: Studies in Justin, Clemene, and Origen (O Pensamento Cristão Primitivo: Estudos Sobre Justino, Clemente e Orígenes), (Oxford: Clarendon Press, 1966), p. 48-49. Veja também a introdução de Origen: On First Principles (Orígenes: Sobre os Primeiros Princípios) de Henri de Lubac, p. xxxi.

[17] Orígenes, On First Principles (Sobre os Primeiros Princípios) 2.9.8, Butterworth, p. 137, 136.

[18] Orígenes, On First Principles (Sobre os Primeiros Princípios) 1.8.1, citado em Gospel Message and Hellenistic Culture (A Mensagem dos Evangelhos e a Cultura Helênica) de Daniélou, p. 418-19.

[19] Orígenes, On First Principles (Sobre os Primeiros Princípios) 1.8.1, Butterworth, p. 67.

[20] Tomás de Aquino, On the Power of Cod (Quaestiones Disputatae De Potentia Dei) (Sobre o Poder de Deus/Quaestiones Disputatae De Potentia Dei), trad. Padres Dominicanos Ingleses (Londres: Burns, Oates and Washbourne, 1932), 1:165.

[21] Orígenes, Commentary on John (Comentário Sobre João) 6.7, em The Ante-Nicene Fathers, (Os Patriarcas Ante Niceia) 10:358.

[22] Orígenes nega a reencarnação quando se discute se João Batista era ou não Elias que voltara. Nessa discussão dirige-se claramente aos bispos. Eis a sua negação: “Aqui não me parece que por Elias se expressa a alma, ou cairei no dogma da transmigração, que é contrário à Igreja de Deus, que não foi transmitido pelos apóstolos nem é encontrado nas Escrituras” (ênfase do autor).

Aqui, Orígenes rejeita a reencarnação porque ela não se coaduna com a ideia cristã do julgamento final. Como poderia haver um fim, ele pergunta, se as almas estão continuamente cometendo atos que as obrigarão a retornar à terra para redimi-los? Ele conclui que o conceito de um final deveria “abolir a doutrina da transmigração”. Commentary on Matthew (Comentário Sobre Mateus) 13.1, em The Ante-Nicene Fathers (Os Patriarcas Ante Niceia) 10:474, 475.

Orígenes, entretanto, procurou conciliar a ideia de um final com a ideia de oportunidade contínua através da reencarnação. Mesmo afirmando que haveria um final quando o mundo for “tudo em todos” (1 Cor. 15:28), ele também previu que “depois da dissolução deste mundo haveria um outro”. On First Principles (Sobre Primeiros Princípios) 3.5.3, Butterworth, p. 239.

Depois de ler a pouco firme refutação de Orígenes sobre a reencarnação começamos a pensar se ele não estaria usando uma mensagem de sentido duplo com o intuito de se esquivar de seus inimigos. No mesmo comentário ele prossegue sugerindo novamente a preexistência como uma forma de defender a justiça divina. Ao comentar sobre a parábola da vinha em Mateus 20, na qual os trabalhadores contratados ao final do dia recebem o mesmo pagamento daqueles que trabalharam durante o dia inteiro, Orígenes sugere que a preexistência explicaria a aparente injustiça cometida por Deus. Os trabalhadores contratados ao final do dia podem ter merecido o seu salário numa vida anterior. Veja Commentary on Matthew (Comentário Sobre Mateus) 15:35, citado em Trigg, Origenp. 213. A conclusão mais lógica que podemos tirar da negação feita por Orígenes da reencarnação, contraditório à preexistência, é que a sua negação foi uma tentativa deliberada de enganar seus inimigos e que ele continuou a ensinar a reencarnação secretamente.

[23] Orígenes, Commentary on Matthew (Comentário Sobre Mateus) 10.6, em The Ante-Nicene Fathers (Os Patriarcas Ante Niceia) 10:416.

[24] Orígenes, On First Principles (Sobre os Primeiros Princípios) 4.2.7, Butterworth, p. 283.

[25] R. P. C. Hanson, Origen’s Doctrine of Tradition (A Doutrina da Tradição de Orígenes) (Londres: SPCK, 1954), p.79.

[26] Jerônimo, Ep. ad Avitum 14, citado em Origen: On First Principles (Orígenes: Sobre os Primeiros Princípios), p. 325 n° 1.

(PROPHET, 1999, p. 174-178).

JOGO DE PODER BIZANTINO

[...]

Justiniano, que reinou de 527 a 565, foi o imperador mais hábil depois de Constantino – e o que mais ativamente interferiu na teologia cristã. Emitiu éditos, que esperava que a Igreja endossasse sem questionar, nomeou bispos e mandou até mesmo prender o Papa. Sua esposa Teodora, antiga cortesã, manipulava os assuntos da Igreja nos bastidores.

Depois da queda do Império Romano no final do século V, Constantinopla permaneceu como capital do Império Oriental ou Bizantino. A história da rejeição ao origenismo inclui os jogos de poder que tornaram famosa a corte imperial.

Por volta de 543, Justiniano parecia ter tomado o partido dos antiorigenistas, porque promulgou um édito condenando dez princípios do origenismo, inclusive a preexistência. Decretou um “anátema para Orígenes... e para todos os que assim pensarem”.[12] Em outras palavras, Orígenes e qualquer um que acreditasse nestas ideias estaria eternamente condenado. O édito, que todos os bispos tiveram que assinar, foi ratificado por um concílio em Constantinopla.
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[12] “The Anathematisms of the Emperor Justinian against Origen” (Os Anátemas do Imperador Justiniano contra Orígenes) em Nicene and Post-Nicene Fathes (Patricarcas de Niceia e pós-Niceia), 2ª série, 14:320.

(PROPHET, 1999, p. 211).

As igrejas protestantes também rejeitam a preexistência e a reencarnação. Baseando-se, em primeiro lugar, nos anátemas de Justiniano. Martinho Lutero não aceitava Orígenes, em parte porque não gostava da prática de Orígenes de procurar alegorias nas Escrituras. Lutero escreveu: “Na obra de Orígenes não existe uma só palavra sobre Cristo”.[17]
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[17] Martinho Lutero,Table Talk (Conversa na Mesa), vol. 54 das Luther's Works (Obras de Lutero), ed. e trad. Theodore G. Tappert (Philadelphia: Fortress Press, 1967), p. 47.

(PROPHET, 1999, p. 213).

4. Holger Kersten (1951- ) (teólogo alemão)

Dentro dos moldes deste ideal budista, no seio dos incontáveis ciclos de reencarnação, o que importa é aperfeiçoar constantemente o Carma através de ações corretas, para que, finalmente, se possa atingir o plano divino. Quando abordei o tema da “Reencarnação no Novo Testamento” (pág. 128) tentei demonstrar que Jesus – e depois dele todas as comunidades cristãs primitivas – aceitavam sem problemas a ideia de metempsicose, tal como exposta pelas crenças orientais da reencarnação. Aqui é interessante esclarecer como foi que o princípio da reencarnação se converteu em um tremendo erro histórico em algum momento do século 4.

Até agora, quase todos os historiadores da Igreja acreditaram que a doutrina da reencarnação foi declarada herética durante o Concílio de Constantinopla em 553. No entanto, a condenação da doutrina se deve a uma ferrenha oposição pessoal do imperador Justiniano, que nunca esteve ligado aos protocolos do Concílio. Segundo Procópio, a ambiciosa esposa de Justiniano, que, na realidade, era quem manejava o poder, era filha de um guardador de ursos do anfiteatro de Bizâncio. Ela iniciou sua rápida ascensão ao poder como cortesã. Para se libertar de um passado que a envergonhava, ordenou, mais tarde, a morte de quinhentas antigas “colegas” e, para não sofrer as consequências dessa ordem cruel em uma outra vida como preconizava a lei do Carma, empenhou-se em abolir toda a magnífica doutrina da reencarnação. Estava confiante no sucesso dessa anulação, decretada por “ordem divina”!

Em 543 d.C. o imperador Justiniano, sem levar em conta o ponto de vista papal, declarou guerra frontal aos ensinamentos de Orígenes, condenando-os através de um sínodo especial. Em suas obras De Principiis e Contra Celsum, Orígenes (185-235 d.C.), o grande Padre da Igreja, tinha reconhecido, abertamente, a existência da alma antes do nascimento e sua dependência de ações passadas. Ele pensava que certas passagens do Novo Testamento poderiam ser explicadas somente à luz da reencarnação.

Do Concílio convocado pelo imperador Justiniano só participaram bispos do Oriente (ortodoxos). Nenhum de Roma. E o próprio Papa, que estava em Constantinopla naquela ocasião, deixou isso bem claro.
O Concílio de Constantinopla, o quinto dos Concílios, não passou de um encontro, mais ou menos em caráter privado, organizado por Justiniano, que, mancomunado com alguns vassalos, excomungou e maldisse a doutrina da preexistência da alma, apesar dos protestos do Papa Vigílio, com a publicação de seus Anathemata.

A conclusão oficial que o Concílio chegou após uma discussão de quatro semanas teve que ser submetida ao Papa para ratificação. Na verdade, os documentos que lhe foram apresentados (os assim chamados “Três Capítulos”) versavam apenas sobre a disputa a respeito de três eruditos que Justiniano, há quatro anos, havia por um edito declarado heréticos. Nada continham sobre Orígenes. Os Papas seguintes, Pelágio I (556-561), Pelágio II (579-590) e Gregório (590-604), quando se referiram ao quinto Concílio, nunca tocaram no nome de Orígenes.

A Igreja aceitou o edito de Justiniano – “Todo aquele que ensinar esta fantástica preexistência da alma e sua monstruosa renovação será condenado” – como parte das conclusões do Concílio. Portanto, a proibição da doutrina da reencarnação não passa de um erro histórico, sem qualquer validade eclesiástica. (KERSTEN, 1988, p. 239-241).

5. Hernani Guimarães Andrade (1913-2003) (parapsicólogo)

Atualmente, qualquer pessoa que saiba acessar a Internet, poderá obter informações, inclusive, de documentários históricos sobre diversos assuntos, até há pouco, interditados à análise devido à sua antiguidade e raridade com obras ou registros dos mesmos. Por exemplo: O Quinto Concílio Ecumênico Constantinopla II, 553 da nossa era; este Concílio é muito importante, porque foi nele que se lançaram os fundamentos do dogma anti reencarcionista que predomina nas religiões judaico-cristãs do Ocidente.

Por esse documentário, acessível a qualquer pessoa, fica-se sabendo que tal Concílio não deveria ter validade universal, pois não foi convocado pelo Papa Virgilius que, na ocasião, achava-se prisioneiro do Imperador Justiniano I.

Vamos, por curiosidade, transcrever o início da introdução histórica desse célebre Concílio, contida na obra “Hefele, History of the Councils, Vol. IV, p. 289”:

“In accordance with the imperial command but without the assent of the Pope, the synod was opened on the 5th of May A.D. 553, in the Secretarium of the Cathedral Church at Constantinople. Among those present were the Patriarchs, Eutychius of Constantinople, who presided, Apollinaris of Alexandria, Domninus of Antioch, three bishops as representatives of Patriarch Eustochius of Jesuralem, and 145 other metropolitans and bishops, of whom many came also in the place of a sent colleagues”.

(De acordo com ordens do Imperador mas sem o consentimento do Papa, o Sínodo foi aberto em 5 de maio de 553 da nossa era cristã, na Secretaria da Igreja Catedral em Constantinopla. Entre os presentes achavam-se os Patriarcas Eutichis de Constantinopla, quem presidiu, Apollinaris de Alexandria, Domninus de Antioquia, três bispos como representantes do Patriarca Eustochius de Jerusalém, e 145 outros bispos metropolitanos e bispos, dos quais vários vieram também em lugar de colegas ausentes.)

Um dos objetivos desse Concílio foi a condenação da heresia de Orígenes, entre cujas afirmativas encontra-se a asserção da preexistência das almas.

Devido à extensão das atas que compõem o documento em questão, permitimo-nos ficar nesse ponto, sugerindo aos demais interessados uma consulta ao site da Encyclopaedia Britânica. É importante que se diga ainda que a Encyclopaedia Britânica define Orígenes como “o mais distinto e ilustre entre todos os teólogos da antiga Igreja”. Orígenes ensinava a preexistência da alma, segundo a ideia Platônica. Os outros que tiveram a mesma ideia (de Platão e Hermes Trismegisto) foram Agostinho e Clemente, também Pais da Igreja.

Resumindo: no Século VI, o Imperador Justiniano I, chefe do Império do Oriente declarou guerra aos discípulos de Orígenes. No Sínodo de 553, em Constantinopla, os seus ensinos foram condenados. Em 553, foram também publicados os anátemas contra Orígenes e sua doutrina da preexistência da alma. Ficou claro que o V Concílio Ecumênico: Constantinopla II, 553 foi promovido pelo Imperador Justiniano e conduzido por bispos orientais manobrados pelo próprio Imperador Justiniano, sem nenhum representante de Roma.

É estranho que a Igreja católica e, mais tarde, a protestante hajam adotado as mesmas ideias, ao que parece, sem razões fortes para semelhante adoção.(ANDRADE, 2002, p. 221-223). (negrito nosso).

6. Giovanni Reale (1931- ) e Dario Antiseri (1940- ) (ambos doutores em filosofia, escritores e italianos)

De outra estatura e robustez é o pensamento de Orígenes, que representa a primeira e grandiosa tentativa de síntese entre filosofia e fé cristã: nele, as doutrinas dos gregos (particularmente dos platônicos, mas também de outros filósofos, como, por exemplo, os estoicos) são utilizadas como instrumentos conceituais aptos a expressar e interpretar racionalmente as verdades reveladas na Escritura. Orígenes nasceu por volta de 185, em Alexandria. Seu pai Leonídio morreu mártir, testemunhando a fé de Cristo. O patrimônio da família foi sequestrado e Orígenes passou a ganhar a vida ensinando. Ainda jovem, a partir de 203, assumiu a direção da escola catequética, tornando-se verdadeiro modelo, pela doutrina e pelas virtudes. Em 231, forçado a abandonar Alexandria pela aversão que lhe devotava o bispo Demétrio, Orígenes prosseguiu sua atividade em Cesareia, na Palestina, com grande sucesso. Atingido pela perseguição aos cristãos ordenada por Décio, foi preso e torturado. Morreu em 253[2] devido às consequências dessas torturas. O pensamento de Orígenes foi durante longo tempo objeto de debates e acesas polêmicas, que envenenaram os ânimos e alcançaram sua fase culminante no início do século VI, a ponto de provocarem a condenação de algumas teses de Orígenes até pelo imperador Justiniano, em 543, e depois por um concílio, em 553. Provocadas em larga medida pelos excessos a que haviam sido levados os origenistas, essas condenações causaram a perda de grande parte da enorme produção de Orígenes. Dentre as obras que nos chegaram, interessam à filosofia: Os princípios, que é a sua obra-prima doutrinária (infelizmente, porém, não nos chegou em sua redação original), Contra Celso eComentários a João. (REALE, e ANTISERI, 1990, p. 412-413). (negrito nosso).

A doutrina da criação de Orígenes é bastante complexa. Primeiro, Deus criou os seres racionais, livres, todos iguais entre si – e os criou à própria imagem (enquanto racionais). A natureza finita das criaturas e sua liberdade deram origem a uma diversidade no seu comportamento: algumas permaneceram unidas a Deus, outras se afastaram, pecando, por causa de um esfriamento do amor a Deus. E assim nasceu a distinção entre anjos, homens e demônios, conforme tenham permanecido fiéis a Deus, se afastado em certa medida ou se afastado muito de Deus. O corpo e o mundo corpóreo em geral nasceram como consequência do pecado. Deus revestiu de corpos as almas que se afastaram parcialmente dele. Mas o corpo não é algo negativo (como para os platônicos e, sobretudo, para os gnósticos): é o instrumento e o meio de expiação e purificação. A alma, portanto, preexistia ao corpo, ainda que não de modo platônico, porque criada do nada. E a diversidade dos homens e de suas condições remonta à diversidade de comportamento na vida anterior (maior ou menor afastamento de Deus).

Uma doutrina típica de Orígenes (derivada dos gregos, embora com notáveis correções) é aquela segundo a qual o "mundo" deve ser entendido como uma série de mundos, não contemporâneos, mas subsequentes um ao outro: "Deus não começou a agir pela primeira vez quando criou este mundo visível. Acreditamos que, como depois do fim deste mundo haverá outro, da mesma forma, antes deste houve outros". Essa visão relaciona-se estreitamente com a concepção origeniana segundo a qual, no fim, todos os espíritos se purificarão, resgatando as suas culpas, mas para purificarem-se inteiramente é necessário que sofram longa, gradual e progressiva expiação e correção, passando, portanto, por muitas reencarnações em mundos sucessivos.

Portanto, para Orígenes, o fim será exatamente igual ao princípio, isto é, tudo deverá tornar a ser como Deus criou. Essa é a célebre doutrina origeniana da apocatástase, ou seja, a reconstituição de todos os seres no estado original. Eis como o nosso filósofo se expressa a esse respeito:

“Consideramos (...) que a bondade de Deus, por obra de Cristo, chamará todas as criaturas a um único fim, depois de ter vencido e submetido também os adversários. (...) Observando tal fim, no qual todos os inimigos estarão sujeitos a Cristo e será destruído inclusive o último inimigo, a morte, e quando Cristo, ao qual tudo estará sujeitado, entregará o reino a Deus Pai, podemos por esse fim conhecer o início das coisas. Com efeito, o fim é sempre semelhante ao início. E como um só é o fim de tudo, assim também devemos entender como um só o início de tudo. E como um só é o fim de múltiplas coisas, assim também de um só início derivaram coisas muito variadas e diferentes, que novamente, pela bondade de Deus, a sujeição de Cristo e a unidade do Espírito Santo, são remetidas a um só fim, que é semelhante ao início”.

Então, se isso é verdade, diz Orígenes,

“devemos crer que toda esta nossa substância corpórea será retirada a tal condição quando toda coisa for reintegrada para ser uma coisa só e Deus for tudo em todos. Isso, porém, não acontecerá em um só momento, mas lenta e gradualmente, através de infinitos séculos, já que a correção e a purificação advirão pouco a pouco e singularmente: enquanto alguns com ritmo mais veloz se apressarão como primeiros na meta, outros os seguirão de perto e outros ainda ficarão muito para trás. E assim, através de inumeráveis ordens constituídas por aqueles que progridem e, de inimigos que eram, se reconciliam com Deus, chega-se ao último inimigo, a morte, para que também ela seja destruída e não haja mais inimigo”.

Nesse processo, porém, deve-se destacar que, para as criaturas, individualmente, pode-se verificar tanto o progresso como retrocesso, ou seja, tanto uma passagem de demônio a homem ou a anjo como, ao contrário, a passagem inversa, antes que tudo retorne ao estado original.

Cristo se encarnou uma só vez neste mundo. Sua encarnação está destinada a permanecer evento único e irrepetível.

Orígenes exaltou ao máximo o livre-arbítrio das criaturas, em todos os níveis de sua existência. No próprio estágio final, será o livre-arbítrio de cada uma e de todas as criaturas que, vencido pelo amor de Deus, continuará a aderir a Ele, agora, porém, sem mais recaídas. (REALE e ANTISERI, 1990, p. 415-416).

7. Léon Denis (1846-1927) (filósofo espírita)

Ao tempo de sua controvérsia com Celso, Orígenes defendeu energicamente o Cristianismo. Em sua vigorosa apologia, fala muitas vezes dos ensinos secretos da nova religião. Tendo-a Celso arguido de possuir um cunho misterioso, refuta Orígenes essas críticas, provando que, se em certos assuntos especiais só os iniciados recebiam um ensino completo, a doutrina cristã, por outro lado, em seu sentido geral era acessível a todos. E a prova — disse ele — é que o mundo inteiro (ou pouco falta) está mais familiarizado com essa doutrina que com as opiniões prediletas dos filósofos.

Esse duplo método de ensino — prossegue ele, em síntese — é, ao demais, adotado em todas as escolas. Por que fazer por isso uma censura unicamente à doutrina cristã? Os numerosos Mistérios, por toda parte celebrados na Grécia e noutros países, não são por todos geralmente admitidos?

O fundador do Cristianismo não separava a ideia religiosa da sua aplicação social. O “reino dos céus” era, para ele, essa perfeita sociedade dos espíritos, cuja imagem desejaria realizar na Terra. Mas ele devia ir de encontro aos interesses estabelecidos e suscitar em torno de si mil obstáculos, mil perigos. Daí, um motivo para ocultar no mito, no milagre, na parábola o que em sua doutrina ia ferir as ideias dominantes e ameaçar as instituições políticas ou religiosas. (DENIS, 1987, p. 39).

Dentre os padres da Igreja, Orígenes é um dos que mais eloquentemente se pronunciaram a favor da pluralidade das existências. Respeitável a sua autoridade. São Jerônimo o considera, “depois dos apóstolos, o grande mestre da Igreja, verdade, diz ele, que só a ignorância poderia negar”. São Jerônimo vota tal admiração a Orígenes que assumiria, escreve, todas as calúnias de que ele foi alvo, uma vez que, por esse preço, ele, Jerônimo, pudesse ter a sua profunda ciência das Escrituras.

Em seu livro célebre, “Dos Princípios”, Orígenes desenvolve os mais vigorosos argumentos que mostraram, na preexistência e sobrevivência das almas noutros corpos, em uma palavra, na sucessão das vidas, o corretivo necessário à aparente desigualdade das condições humanas, uma compensação ao mal físico, como ao sofrimento moral que parece reinarem no mundo, se não se admite mais que uma única existência terrestre para cada alma. Orígenes erra, todavia, num ponto. É quando supõe que a união do espírito ao corpo é sempre uma punição. Ele perde de vista a necessidade da educação das almas e a laboriosa realização do progresso.

Errônea opinião se introduziu em muitos centros, a respeito das doutrinas de Orígenes, em geral, e da pluralidade das existências em particular, que pretendem ter sido condenadas, primeiro pelo concílio de Constantinopla. Ora, se remontarmos às fontes [Ver Pezzani, A pluralidade das Existências, páginas 187 e 190[3]], reconheceremos que esses concílios repeliram, não a crença na pluralidade das existências, mas simplesmente a preexistência da alma, tal como a ensinava Orígenes, sob esta feição particular: que os homens eram anjos decaídos e que o ponto de partida tinha sido para todos a natureza Angélica.

Na realidade, a questão da pluralidade das existências da alma jamais foi resolvida pelos concílios. Permaneceu aberta às resoluções da Igreja no futuro, e é esse um ponto que se faz preciso estabelecer. (DENIS, 1987, p. 50-51).

De todos os padres da Igreja, foi Orígenes quem afirmou, do modo mais positivo, em numerosas passagens dos seus Princípios (livro 1º), a reencarnação ou renascimento das almas. É esta a sua tese: “A justiça do Criador deve patentear-se em todas as coisas.” Eis em que termos o abade Bérault-Bercastel resume a sua opinião:

“Segundo este doutor da Igreja, a desigualdade das criaturas humanas não representa senão o efeito do seu próprio merecimento, porque todas as almas foram criadas simples, livres, ingênuas e inocentes por sua própria ignorância, e todas, também por isso, absolutamente iguais. O maior número incorreu em pecado e, na conformidade de suas faltas, foram elas encerradas em corpos mais ou menos grosseiros, expressamente criados para lhes servir de prisão. Daí os procedimentos diversos da família humana. Por mais grave, porém, que seja a queda, jamais acarreta para o Espírito culpado a retrocessão à condição de bruto; apenas o obriga a recomeçar novas existências, quer neste, quer em outros mundos, até que, exausto de sofrer, se submeta à lei do progresso e se modifique para melhor. Todos os Espíritos estão sujeitos a passar do bem ao mal e do mal ao bem. Os sofrimentos impostos pelo Bom Deus são apenas medicinais, e ‘os próprios demônios cessarão um dia de ser os inimigos do bem e o objeto dos rigores do Eterno’”. (História da Igreja, pelo abade Bérault-Bercastel).

(DENIS, 1987, p. 275). (grifo nosso).

O Cristianismo primitivo possuía, pois, o verdadeiro sentido do destino. Mas, com as sutilezas da teologia bizantina, o sentido oculto desapareceu pouco a pouco; a virtude secreta dos ritos iniciáticos desvaneceu-se como um perfume sutil. A escolástica abafou a primeira revelação com o peso dos silogismos ou arruinou-a com sua argumentação especiosa.

Entretanto, os primeiros padres da Igreja e, entre todos, Orígenes e S. Clemente de Alexandria, pronunciaram-se em favor da transmigração das almas. S. Jerônimo e Ruffinus (“Carta a Anastácio”) afirmam que ela era ensinada como verdade tradicional a um certo número de iniciados.

Em sua obra capital, “Dos Princípios”, livro I, Orígenes passa em revista os numerosos argumentos que mostram, na preexistência e sobrevivência das almas em outros corpos, o corretivo necessário à desigualdade das condições humanas. De si mesmo inquire qual é a totalidade dos ciclos percorridos por sua alma em suas peregrinações através do Infinito, quais os progressos feitos em cada uma de suas estações, as circunstâncias da imensa viagem e a natureza particular de suas residências.

S. Gregório de Nysse diz “que há necessidade natural para a alma imortal de ser curada e purificada e que, se ela não o foi em sua vida terrestre, a cura se opera pelas vidas futuras e subsequentes”.

Todavia, esta alta doutrina, não podia conciliar-se com certos dogmas e artigos de fé, armas poderosas para a Igreja, tais como a predestinação, as penas eternas e o juízo final. Com ela, o Catolicismo teria dado lugar mais largo à liberdade do espírito humano, chamado em suas vidas sucessivas a elevar-se por seus próprios esforços e não somente por graça do alto.

Por isso, foi um ato fecundo de consequência funesta a condenação das opiniões de Orígenes e das teorias gnósticas pelo Concílio de Constantinopla em 553. Ela trouxe consigo o descrédito e a repulsa do princípio das reencarnações. Então, em vez de uma concepção simples e clara do destino, compreensível para as mais humildes inteligências, conciliando a Justiça Divina com a desigualdade das condições e do sofrimento humanos, vimos edificar-se todo um conjunto de dogmas, que lançaram a obscuridade no problema da vida, revoltaram a razão e, finalmente, afastaram o homem de Deus. (DENIS, 1989a, p. 273-274).

A doutrina das vidas sucessivas, que foi também doutrina de Platão e da Escola de Alexandria, impregnava inteiramente o Cristianismo primitivo. Todas as correntes do pensamento oriental se reuniam para inocular em a religião que surgia uma vida nova e ardente. Nessas fontes bebiam os cristãos mais ilustres os elementos da sua ciência e do seu gênio. Orígenes, Clemente, a maior parte dos padres gregos ensinavam a pluralidade das existências da alma. Ainda no século IV São Jerônimo, na sua controvérsia com Vigilantius, reconhecia que a crença nas vidas sucessivas era a da maioria dos cristãos do seu tempo. Orígenes, sobre esse ponto de doutrina, não foi condenado pela Igreja, como o supõe o padre Coubé. O Concílio de Calcedônia e o quinto de Constantinopla rejeitaram, não a crença na pluralidade das vidas da alma, mas simplesmente a opinião de Orígenes de que a união do espírito com o corpo é sempre uma punição e a de que a alma viveu primeiro no estado angélico. Este ilustre pensador, que São Jerônimo considerava como «o maior dos cristãos depois dos Apóstolos», não levava muito em conta a lei de educação e de evolução dos seres.

Na realidade, a Igreja nunca se pronunciou sobre a questão das existências sucessivas, que continua aberta às possibilidades do futuro. Em todas as épocas, membros eminentes do clero católico adotaram essa crença e a afirmaram publicamente.

No século décimo quinto, o cardeal Nicolau de Cusa sustentou, em pleno Vaticano, a teoria da pluralidade das existências da alma e a dos mundos habitados, não só com o assentimento, mas com os aplausos sucessivos de dois papas: Eugênio IV e Nicolau V. (Ver «Meditações sobre a lei do progresso; a estatística moral e a verdade religiosa», pelo coronel Dusaert - Paris, Didier, 1882.)

Eis aqui outros testemunhos mais recentes:

Em 1843, no seu mandamento, monsenhor de Montal, bispo de Chartres, falava nestes termos da preexistência e das reencarnações:

«Pois que não é defeso crer na preexistência das almas, quem pode saber o que se terá passado, nas idades longínquas, entre Inteligências?»

G. Calderone, diretor da «Filosofia della Scienza», de Palermo, que abriu um largo inquérito sobre as ideias dos nossos contemporâneos acerca da reencarnação, publicou algumas cartas trocadas entre monsenhor L. Passavalli, arcebispo vigário da basílica de S. Pedro, em Roma, e o Sr. Tancredi Canonico, senador do Reino, Guarda dos Selos, presidente da Suprema Corte de Cassação da Itália e católico convencido.

Citemos duas passagens de uma carta de monsenhor Passavalli:

«De meu espírito desapareceram para sempre as dificuldades que me perturbavam quando Estanislau, «de santa memória» (monsenhor Estanislau Fialokwsky, morto em Cracóvia a 18 de janeiro de 1885), a cujo espírito atribuo em grande parte esta nova luz que me ilumina, me anunciava pela primeira vez - a doutrina da pluralidade das vidas do homem. Sinto-me feliz por haver podido verificar o efeito salutar dessa verdade sobre a alma de meu irmão.»

Outra citação:

«Parece-me que se fosse possível propagar a ideia da pluralidade das existências da alma, quer neste mundo, quer no outro, como meio de realizar a expiação e a purificação do homem, com o objetivo de torná-lo finalmente digno de si e da vida imortal dos céus, já se teria dado um grande passo, pois isso bastaria para resolver os problemas mais intrincados e mais árduos que atualmente agitam as inteligências humanas. Quanto mais penso nessa verdade, mais ela se me mostra grande e fecunda de consequências práticas para a religião e para a sociedade.» (a) Luís, arcebispo.

Da correspondência inédita de T. Canônico, publicada ultimamente em Turim, resulta que ele próprio fora iniciado na crença da reencarnação por Towiansky, escritor católico muito conhecido. Numa extensa carta, que traz a data de 30 de dezembro de 1884, ele expõe as razões pelas quais acha que essa crença nada tem de contrária à Religião Católica, apoiando-se em muitas citações das Santas Escrituras. (*)

Poderíamos multiplicar as citações, se não temêssemos fatigar o leitor. Já dissemos bastante para demonstrar que, sobre a questão das reencarnações como sobre a dos fenômenos e suas causas, nos encontramos em face das mesmas contradições, das mesmas incertezas, para não dizer da incoerência, da Igreja Romana. Não obstante suas pretensões à unidade de vistas e à infalibilidade, as oposições e as divergências não faltam em seu seio. De modo que, causa espanto às vezes o tom imperioso em que falam seus representantes, quando entre eles há tantas dúvidas e hesitações no que concerne aos problemas mais essenciais, o da vida futura e o do destino humano.

O padre Coubé, segundo suas próprias expressões, faz que a reencarnação compareça perante o tríplice tribunal da Religião, da Moral e da Filosofia. É uma empresa temerária, porquanto o julgamento que assim provoca não pode vir a dar senão num completo revés para ele.
______
(*) Ver Annales des Sciences Psychiques, setembro de 1912.

(DENIS, 1989b, p. 104).

8. Mário Cavalcanti de Mello (?-?) (estudioso da Metapsíquica)

É, porém, em Orígenes que iremos encontrar, sobretudo, o ensinamento palingenésico.

Para atenuar a importância de sua palavra e desembaraçar a doutrina do Cristo de toda a relação com a doutrina dos Renascimentos, os escritores ortodoxos disseram que este grande Pai tirara os seus erros de Platão. Não é assim. Orígenes tinha essa doutrina de Clemente de Alexandria, que a recebeu de S. Pantène, discípulo dos primeiros cristãos. — (S. Pantène, foi o primeiro mestre da Escola de Alexandria, dito catequista. Morreu no ano 202 depois de Cristo. Desde 181, encontraram-no expondo e explicando o Cristianismo em Alexandria. Em 190, mais ou menos, fez, no interesse do Cristianismo, uma viagem à Índia, isto é, ao Sul da Arábia. O seu mais ilustre discípulo foi Clemente de Alexandria. Dos seus numerosos escritos não subsistem senão dois pequenos fragmentos) — (Encyc. de Berthelot, pág. 956, t. XXV). Ele protesta, com efeito, mais de uma vez, contra a concepção platônica da doutrina. Ouçamo-lo:

“Celso ignora completamente o objetivo de nossos escritos; a interpretação dada por ele é que os leva ao descrédito e não a sua verdadeira significação. Se ele houvesse refletido sobre o que é necessário a uma alma destinada à vida eterna, se ele houvesse pensado na natureza da sua essência e do seu princípio, não teria tornado ridícula a entrada do que é imortal em um corpo mortal, entrada que se efetua, não segundo o ensinamento platônico da metempsicose, mas segundo uma visão mais elevada deste fato”. (“Cont. Celso”, liv. IV, C. XVIII).

O ensinamento de Orígenes é difícil de ser apresentado com clareza, porque ele o envolveu em reticências e o expôs em uma língua cuja chave a filosofia atual nem sempre conhece; mas ele parece completo. Abarca a preexistência e a reencarnação, e mesmo estas associações particulares de certas almas humanas com almas animais, associações já anteriormente assinaladas e que, no dizer de Pascal, são fatos capitais na misteriosa metempsicose.

Ei-lo aqui explicando a preexistência das almas nos universos anteriores:

“A alma não tem começo nem fim (“De Principiis” — liv. III, C. V).

As criaturas razoáveis existiam desde o começo destes séculos que nós não vemos e que são eternos. Houve aí a descida de uma condição superior a uma condição inferior, não somente entre as almas que mereceram esta mudança por suas ações, mas também entre as que, para servirem o mundo, deixaram as altas esferas pela nossa...

O Sol, a Lua, as estrelas e os anjos servem o mundo, servem as almas cujos defeitos mentais as condenaram a encarnar-se em corpos grosseiros, e é, por interesse das almas que têm necessidade de corpos densos que o mundo foi criado... A variedade deste arranjo foi obra de Deus, que a estabeleceu segundo as causas que o livre arbítrio das almas criaram no passado.” (Ibidem, liv. III, C. V.)

Todas as almas atingirão o mesmo fim. (Ibid., liv. I, c. VI); as almas engrandecem-se pouco a pouco, atingem a Terra e aprendem as lições que ela lhes pode dar, depois sobem a um lugar melhor e chegam, finalmente, ao estado de perfeição (“De Principiis”, liv. I, c. VI). A vontade das almas faz delas anjos, homens ou demônios, e a queda pode ser de tal forma, que elas podem ser cativas em corpos de animais (“De Principiis”, liv. III, c. V); mediante vidas repetidas em diversas esferas onde elas tomam corpos em relação com o mundo que habitam, estas almas caídas reconquistarão a pureza e a bondade (“Cont. Celso”, C. IV e VIII). Certas almas chegadas ao repouso completo voltam em novos corpos, em mundos novos; umas conservam-se fiéis, as outras degeneram de tal forma, que se tornam demônios (“De Principiis”, liv. IV, c. IV).

E alhures:

“A alma sendo imaterial e invisível não pode existir em nenhum lugar material, sem revestir corpos apropriados a este lugar; ela rejeita, num dado momento, um corpo que era necessário até aí, mas do qual não tem mais necessidade, e ela o troca por um outro”. (“Cont. Celso” — liv. VII, c. XXXII).

Orígenes serviu-se muito da doutrina dos renascimentos para criticar e justificar os livros sagrados cristãos. Fazendo alusão a certas passagens da Bíblia, ele disse:

“Se o nosso destino atual não era determinado pelas obras de nossas existências passadas, como poderia Deus ser justo permitindo que o primogênito servisse ao mais jovem e fosse odiado, antes de haver cometido atos merecendo a servidão e o ódio?...

Só as vidas anteriores podem explicar a luta de Jacó e Esaú antes de seu nascimento, a eleição de Jeremias durante o tempo em que estava ainda no seio de sua mãe..., e tantos outros fatos que atirarão o descrédito sobre a justiça divina, se não forem justificados por atos bons ou maus, cometidos ou praticados em existência passadas”. (“Cont. Celso” —, I, III).

Bem que a “Metempsomatose”, isto é, a verdadeira doutrina de Orígenes, não fosse apresentada sob uma forma clara, a palingenesia não é motivo de dúvida para ele, que influenciou consideravelmente os filósofos cristãos dos primeiros séculos e foi acolhido com simpatia até a sua condenação pelo Sínodo de Constantinopla. As seitas da época, no dizer de Pascal, e as dos séculos consecutivos — simonistas, basilistas, valencianistas, marcionistas, gnósticos, maniqueus, priscilianos, cátaros, pátaros, albigenses, bogomilenses, etc. — eram todas reencarnacionistas.

E aí está às vistas do eminente teólogo e medíocre professor de História, tudo o que, por ora, podemos dizer da palingenesia na antiga Igreja. (MELLO, C., 1958, p. 151-153).

9. Hans Stefan Santesson (1914-1975) (escritor e editor norte-americano)

PODERÁ VOCÊ SER CRISTÃO E AINDA ACREDITAR NA REENCARNAÇÃO?

Poderá você ser cristão e ainda acreditar na Reencarnação?
Sim!

Se você acredita na Reencarnação, considera também o Homem como um eu espiritual imortal, nascido numerosas vezes em corpos físicos no decorrer de uma longa jornada evolutiva para a perfeição.

Não há aí, na realidade, conflito com os ensinamentos originais da Igreja!

O que devemos levar em conta neste ponto é que os Evangelhos que conhecemos não são os mesmos que os Santos Padres da Igreja conheceram e ensinaram e que estiveram prontos a defender com sacrifício da própria vida. Nossas versões “ortodoxas” do Velho e Novo Testamentos, ignorando no momento os erros e omissões (para não mencionar pecados e omissões) de “autoridades” ainda posteriores, retroagem a não mais do que o século VI, ou ao V Concílio Ecumênico de Constantinopla. A exclusão da fé cristã dos ensinamentos sobre a preexistência da alma e, por implicação, da Reencarnação, data desse Concílio. Os séculos seguintes praticamente santificaram como dogma irrefutável as decisões, puramente políticas, de Justiniano e do Concílio. Quando, por conseguinte, um autor popular nesse campo diz que “todas as suas inclinações intelectuais, emocionais e religiosas são contra a reencarnação”, isto é compreensível porque nossos tempos não exigem conhecimento do passado. Já é difícil demais conhecer o presente.

Não há, contudo, conflito algum a respeito do assunto. Os Santos Padres da Igreja, antes de Justiniano e mesmo antes de Constantino, aceitavam a reencarnação e nela acreditavam. Na verdade, os próprios apóstolos se referiram numerosas vezes ao conceito da preexistência como quando São Paulo citou Deus como tendo dito a Rebeca sobre as crianças por nascerem: “Amei a Jacó, porém me aborreci de Esaú” (Romanos, 9:13), ou quando São João disse no Apocalipse (3:12): “Ao vencedor, fá-lo-ei coluna do santuário de meu Deus e daí jamais sairá.” Encontra-se aí um conceito antiquíssimo, comum na época do judaísmo helenizado, bem como aos membros do novo movimento dentro do judaísmo, do exílio ordenado à alma e da necessidade de ela purificar-se antes de ser admitida como “coluna no santuário de Deus”. (SANTESSON, 1969, p. 120-121).

Temos, assim, testemunho dos Apóstolos, de Santo Agostinho, São Gregório, São Clemente de Alexandria e de incontáveis outros da aceitação geral pelos primeiros Santos Padres da Igreja da doutrina da preexistência da alma. Isto se deveu principalmente à influência dos ensinamentos de Orígenes (185-254) que São Jerônimo chamou certa vez de “o maior mestre da Igreja depois dos apóstolos”. Orígenes procurava correlacionar os ensinamentos cristãos tradicionais da época (cumpre recordar que isto ocorreu muito antes da tentativa de reconciliar as facções rivais no Concilio de Niceia) com os dogmas quase cristãos de Platão, Aristóteles, Numênio e Corruto. (Fatos mais estranhos do que estes aconteceriam com seus ensinamentos nos séculos seguintes.) Cristo era para Orígenes o Logos, ou o Pai, desde a eternidade, a quem, apenas, o cristão instruído dirigia seus pensamentos, precisando para isso apenas de um mestre divino. Orígenes explicava o estado de pecado atual dos homens com a hipótese teológica da preexistência e queda pré-mundana de todas as almas.

No seu De Principiis, escrevera:

“Todas as almas... chegam a este mundo fortalecidas pelas vitórias ou debilitadas pelas derrotas de sua vida pregressa. O seu lugar neste mundo, com um vaso destinado a honrar ou desonrar, é determinado pelos seus méritos ou deméritos prévios. O trabalho neste mundo determina seu lugar no mundo que se seguirá a este.”

No Contra Celsum, escrevera também:

“Não está mais de conformidade com a razão que todas as almas, por algumas razões misteriosas (falo agora de acordo com as opiniões de Pitágoras, Platão e Empédocles, que Celso frequentemente menciona), sejam introduzidas num corpo de acordo com seus méritos e antigos atos? Não é racional que as almas que usaram seus corpos para fazer o maior bem possível tenham direito a corpos dotados de qualidades superiores aos corpos dos demais? [Contra Celso, livro I, 32].

A alma, cuja natureza é imaterial e invisível, não existe em local material sem ter um corpo apropriado à natureza do lugar; consequentemente, deixa um corpo que lhe era necessário antes, mas que não é mais adequado ao seu status modificado e troca-o por outro.” [ib, livro VII, 32].

Consideravam-se os ensinamentos de Orígenes como solidamente alicerçados no que, naquela época, fora aceito como os verdadeiros Evangelhos. O próprio São Jerônimo, que ocasionalmente discordava dele (como, aliás, da maioria dos homens), concordava com a interpretação da frase “Quem nos escolheu antes da fundação do mundo?” (São Paulo, Efésios, 1:4), e declarou:

“Uma habitação divina, um verdadeiro repouso no alto, segundo penso, deve ser entendido como local onde criaturas racionais habitaram e onde, antes de sua descida a uma posição inferior e transferência do invisível para o visível, da queda à terra e da necessidade de corpos grosseiros, desfrutaram da antiga bem-aventurança, onde Deus, o Criador, para elas fez corpos apropriados às suas humildes posições, criou este mundo visível e enviou aqui ministros para sua salvação.”

O anátema pronunciado por este V Concílio, ou Sínodo, contra o que se chamou de origenismo, representou uma tentativa politicamente inspirada, e quase bem sucedida, de expungir das páginas da história, de fato e canonicamente, ensinamentos que gozavam de grande voga no Ocidente. Constituiu vitória do dogma monofisista ao qual o Imperador Justiniano e, mais importante, a Imperatriz Teodora se haviam convertido. Os monofisistas alegavam que o corpo físico de Jesus era totalmente divino e que nunca e em qualquer tempo havia combinado atributos divinos e humanos. Isto representava uma total rejeição dos ensinamentos de Orígenes, que não apenas acreditava na predestinação, mas ensinava também que Cristo, o Logos, ou o Verbo, habitara o corpo humano de Jesus, desta forma santificando-o. Os monofisistas continuaram a provocar conflitos e discórdias até o ano 451, quando um Concílio da Igreja, especialmente convocado, esmagadoramente leal como a maioria no Ocidente aos ensinamentos de Orígenes, dividiu, em certo sentido, Cristo em duas diferentes naturezas, humana e divina. Um dos primeiros atos públicos de Justiniano — isto antes de cair sob a influência de Teodora — foi fazer o Patriarca de Constantinopla proclamar inteira concordância com as decisões do Concilio, conhecidas como Decreto Calcedoniano. Apesar disso, alguns anos depois, permitiria que um sínodo local de bispos rejeitasse e condenasse oficialmente os escritos de Orígenes, seguindo-se, dez anos depois, as conclusões extremamente controvertidas do V Concilio, formalmente convocado não para tratar desse assunto, mas de outros.

Vale lembrar que não apenas uma série infindável de cismas abalavam a “solidariedade” da Igreja Cristã, mas que ela ainda enfrentava ativa resistência e forte concorrência de religiões pagãs, que nunca substituiu inteiramente. Os ramos Oriental e Ocidental da Igreja, cindidos pelo problema fundamental da divindade de Cristo, foram ainda mais dilacerados por pressões e problemas regionais, de natureza decididamente não teológica e que tornaram importante, do ponto de vista de Constantinopla, pelo menos em princípio, firmar a sua supremacia política sobre Roma. Justiniano, teólogo no fundo, dedicava seu tempo livre a questões religiosas por amor à controvérsia e ao puro prazer de dogmatizar. A maiscosmopolita Teodora consciente dos profundos problemas políticos subjacentesàs variáveis e mutáveis discussões dos teólogos, persistiu firme no seu caminho, desafiando ousadamente o Papado e levando atrelado a ela o indeciso Justiniano — mesmo após a sua morte. Foi devido à sua proteção que o “herético” Egito gozou de numerosos anos de tolerância, e foi por causa dela que a “herética” Síria pôde colocar sua perseguida igreja nacional sobre firmes alicerces. Ela sempre sentira simpatia pelos monges da Síria e do Egito, como Zooras e Jacobo Baradeu, recebendo-os em palácio e suplicando-lhes orações. Foi ela quem tornou possível aos dissidentes voltar ao favor e continuar livremente a propagar suas doutrinas e foi a ela, mais do que a Justiniano, que as missões monofisistas à Arábia, Núbia e Abissínia deveram seu sucesso. Antiga atriz, antiga amante de um governador provinciano (ela e Eutíquio, mais tarde Patriarca de Constantinopla, formaram uma relação prática nesses dias), Teodora interessava-se apenas por uma coisa — o fortalecimento do Estado. Coisa alguma podia opor-se aos seus planos, nem Deus, nem homem. A pequenina, bonita e extraordinariamente graciosa mulher — contemporâneos falam de seu rosto alvo e pálido, iluminado por olhos grandes, vivos e brilhantes — indubitavelmente nascera mil anos antes de sua época. Era uma personalidade da Renascença com a perícia propagandística de Madison Avenue.

O V Concilio foi realizado com a assembleia à cunha. Entre os cento e sessenta e cinco bispos presentes à reunião final no dia 2 de junho do ano 553, somente seis se podiam, com alguma fidelidade aos fatos, descrever como pertencentes à Igreja do Ocidente ― as linhas de separação estavam bem nítidas por essa ocasião — e suas dioceses se localizavam na África. O Papa Vigílio, embora tivesse sido originariamente um homem de Justiniano, se é que podemos usar tal expressão, permaneceu em Constantinopla durante todo o período, mas, resolutamente, recusou-se a comparecer às sessões. Na verdade, foi informado, em termos iniludíveis, de que sua presença não era bem-vinda.

Sabe-se agora que antes da abertura do Concilio, feita com atraso em virtude da resistência do Papa, os bispos que  se encontravam em Constantinopla foram solicitados a estudar, por ordem do Imperador, uma série de acusações contra o origenismo que coisa alguma tinham em comum com os ensinamentos originais de seu autor, mas que eram sustentados por uma das denominadas facções origenistas da Palestina. Nenhuma dúvida há de que os bispos presentes nessa sessão ex-conciliar subscreveram os quinze anátemas propostos pelo Imperador, o primeirodos quais era Se alguém afirmar a fabulosa preexistência das almas e a monstruosa restauração que dela se segue, que seja anatematizado! Nenhuma prova há de que tenha sido pedida a aprovação do Papa. É, por conseguinte, discutível, para dizer o mínimo, que os anátemas tenham sido formalmente adotados pelo V Concílio Ecumênico, mas é inegável que, num exercício muito bem feito de relações públicas bem modernas, o mundo em geral e a Igreja de Roma foram levados a crer que os ensinamentos de Orígenes haviam sido condenados. O próprio Papa Vigílio, Pelágio I (556-61), Pelágio II (579-90) e Gregório, o Grande (590-604), ao se referirem ao V Concílio, nenhuma menção fizeram ao origenismo e dele falaram como se lhe desconhecessem a condenação.

Os anátemas, que é preciso dizer não visavam exclusivamente ao origenismo, mas também outros cismas perigosos e essencialmente antimonofisistas (e potencialmente perigosos para os poderes constituídos) existentes na Igreja do Oriente, eram, contudo, um fait accompli. (SANTESSON, 1969, p. 125-130). (grifo nosso).

10. Fernando Guedes de Mello (teósofo)

Nesse clima de prepotência só Alexandria continuava a resistir. Para tentar submetê-la, Justiniano convoca o II Concílio de Constantinopla (545-553). De todos os concílios, foi o mais longo e estranho. Durou quase 9 anos. Para garantir a sua realização, o papa Vigílio foi virtualmente sequestrado em Roma e levado para Constantinopla.

A pretexto de sanar brechas produzidas pela heresia monofisista, o imperador preparou um “pacote” a ser aprovado pelos bispos e que incluía dois pontos principais:

- A condenação dos chamados “Três Capítulos” de autores nestorianos há muito falecidos. Tratava-se de uma manobra política para livrar os adversários dos alexandrinos da acusação de nestorianismo.

- A condenação da obra de Orígenes. Orígenes que, segundo Jerônimo, escreveu mais de 600 tratados, jamais foi condenado no seu tempo. Pelo contrário, foi considerado o maior teólogo da cristandade até o advento de Santo Agostinho. Acabou condenado, assim, 300 anos depois de sua morte.

O propósito político do conclave era mais do que evidente. Suas decisões visavam atingir a tradição neoplatônica, representada pela Escola de Alexandria. O racionalismo grego, que já opunha o divino e o humano, agora opõe a graça ao livre-arbítrio. Para os donos do poder as teses neoplatônicas colocavam uma ênfase insuportável no livre-arbítrio (vale dizer na consciência de cada um) para a salvação da alma, o que os orientais conheciam pelo nome de Lei do Karma (ver texto de Orígenes que citamos no título A Escola de Alexandria). Tais teses eram consideradas espiritualmente permissivas e politicamente subversivas. Na medida em que estimulavam a liberdade individual, poderiam causar embaraços ao exercício do poder e à manutenção da ordem pública, segundo o imperador. Assim pensando, proclamou-se a doutrina do céu ou inferno, após a morte; da salvação ou perdição definitiva da alma, ao cabo de uma só vida e que deveria ser vivida sob o olhar vigilante da Santa Madre Igreja, detentora dos canais da graça sobre a Terra... Um instrumento perfeito de controle social!

[...]

Em 553, o “pacote” imperial foi finalmente votado e aprovado pela assembleia dos bispos. O papa resistiu em aprovar a decisão e foi mantido prisioneiro por seis meses. Vencido pela idade – estava com 80 anos – e pela longa ausência de Roma, Vigílio capitulou e assinou a resolução contra a sua vontade. Pôde assim retornar à sua diocese, da qual estivera afastado por quase dez anos. A resolução ficou conhecida por “Edito de Justiniano” e reza:

Todo aquele que ensinar esta fantástica preexistência da alma e sua monstruosa renovação será condenado.
É nessas circunstâncias que a doutrina da reencarnação entrou para o rol das heresias, depois de mais de 500 anos de história da Igreja. O episódio lembra a resolução da câmara de vereadores daquela cidade do interior que revogou a Lei da Gravidade para levar água às partes mais altas da cidade. Para desespero do engenheiro da prefeitura que tentava mostrar a impossibilidade técnica do projeto, o presidente da câmara insistia: “Mas se num é lei federar nem estaduar, nóis revoga ela, uai!”. Da mesma forma, o II Concílio de Constantinopla revogou a Lei do Karma. (MELLO, F., 1997, p. 134-135).

11. Dr. John Algeo (Prof. universitário, mestre e doutor – norte americano)

O CRISTIANISMO, A TRADIÇÃO-SABEDORIA E A REENCARNAÇÃO

O teólogo e estudioso Geddes MacGregor argumentou que a reencarnação não é de modo algum incompatível com o Cristianismo. Segundo diz, ela oferece uma interpretação razoável da vida póstuma cristã e do conceito de purgatório - doutrina que diz que devemos, em algum mundo, nos libertar dos efeitos de nossos erros. Ele argumenta ainda que a reencarnação fazia parte da crença informal, não doutrinária de alguns cristãos do passado, e que não entra em choque com o cerne da doutrina cristã.

Os primeiros cristãos estavam preocupados com a necessidade de divulgar o Evangelho antes do fim do mundo, que eles esperavam a qualquer momento. Consequentemente, tinham pouco tempo para especular sobre a vida futura. No entanto, uma vez esclarecido que Cristo não voltaria durante a primeira geração dos cristãos, começaram a pensar no que poderia lhes reservar o futuro. O conhecimento sobre a reencarnação foi disseminado por todo o mundo mediterrâneo da época, de modo que os primeiros cristãos não podiam ignorá-lo. Essas ideias foram ensinadas por Pitágoras e Platão e defendidas por muitos filósofos gregos e romanos.

Os próprios Evangelhos evidenciam que a reencarnação era aceita como, no mínimo, uma possibilidade pelos primeiros cristãos. Uma das histórias narra a preocupação dos discípulos em saber se era justo um homem ter nascido cego. Perguntaram ao Cristo: “Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que ele nascesse cego?” Essa pergunta não faria sentido se os discípulos pensassem que cada alma humana havia sido criada com seu corpo terreno. Só faria sentido se eles julgassem possível ao homem viver uma vida anterior a esta, uma vida num mundo como este, onde podemos pecar e assim estabelecer as consequências que deveremos encontrar em uma próxima existência.

Um dos gigantes intelectuais dentre os Patriarcas da Igreja, Orígenes, do Século III d.C., certamente ensinava que as almas existem antes de nascer nesta vida, e é muito provável que tenha ensinado uma forma de reencarnação. Não estamos certos sobre a forma exata deste ensinamento, porque suas obras foram censuradas e expurgadas por seus inimigos e pelos amigos (que desejavam protegê-lo da perseguição). Os ensinamentos de Orígenes, que era um homem gentil e santo, foram alvo do rancor da política eclesiástica, tanto que, cento e cinquenta anos após a sua morte, a maioria de seus trabalhos receberam a condenação de um conselho católico. Os primitivos conselhos da Igreja e as maquinações políticas que os cercavam eram tão confusos que, não se sabe ao certo, entretanto, se a doutrina da reencarnação foi alguma vez declarada imprópria para os cristãos.

Alguns cristãos, ainda que perseguidos, certamente continuaram adeptos da crença na reencarnação. Os mais famosos foram os albigenses ou cátaros, um grupo do século XI estabelecido no sul da França e ao norte da Itália que também eram vegetarianos e se opunham à dominação dos leigos pela hierarquia eclesiástica. A devoção albigense à não-violência, ao pacifismo, à pureza e à libertação da tirania clerical conquistou-lhes a admiração das massas e a eterna inimizade do clero. Quando as tentativas de convencê-los de seus erros não foram bem sucedidas pela Igreja, esta começou a persegui-los por meio da Inquisição e, ao final do século XIV, eles haviam sido praticamente exterminados.

A comunidade albigense expressava a Tradição-Sabedoria, cujos primórdios se perdem nas brumas da época pré-histórica e que continuou sendo incorporada em outras formas através dos tempos. Os ensinamentos albigenses, incluindo a reencarnação, não se originaram nesse grupo nem tiveram fim com ele. Na verdade, doutrinas semelhantes são encontradas tanto no Judaísmo quanto no Islamismo religiões ocidentais também conhecidas como “Religiões do Livro”. No Judaísmo, a reencarnação se apresenta como um ensinamento dentro da tradição cabalista, em uma de suas expressões modernas, o Hasidismo. Nestas tradições judaicas, a reencarnação é expressa pelo termo hebraico gilgul. No Islã a reencarnação é ensinada para os sufis que afirmam conhecer o significado esotérico do Alcorão

Embora a reencarnação seja tipicamente defendida pelas correntes místicas e esotéricas das maiores religiões ocidentais — os albigenses, os cabalistas e os sufis - nem todos os clérigos a rejeitaram. Maud Gonne foi uma ativista da política irlandesa e serviu de inspiração para alguns dos melhores poemas de William Butler Yeats. Em sua autobiografia, ela relata que um padre francês certa vez lhe perguntou por que não era católica. Ela respondera: “Porque acredito na reencarnação; acredito que já vivi antes neste belo mundo. Algumas das pessoas que conheço, eu já conhecia tão bem que posso até adivinhar o que irão dizer.” O padre, que era um homem sábio e compreensivo, disse então: “A alma vem de Deus e retornará para Deus depois de purificar-se, quando todas as coisas serão esclarecidas; e quem poderá saber quais as etapas de sua purificação? É possível que certas almas realizem sua purificação neste mundo”.

Quincy Howe Jr. também escreveu um estudo profundo - Reincarnation for the Christian - no qual examina as noções sobre o assunto a partir das tradições hindu e platônica, defendendo-as à luz das concepções teológicas e metafísicas do Cristianismo ortodoxo. Sua obra e a de Geddes MacGregor, mencionada anteriormente, são provas de que alguns teólogos cristãos contemporâneos consideram com simpatia a ideia da reencarnação. (ALGEO, 1995, p. 27-30). (grifo nosso).

12. Francisco Cajazeiras (1954-) (médico e professor universitário)

A ideia da reencarnação, dissemos antes, integrava os princípios aceitos pelos protocristãos ou, pelo menos, por aqueles que o conseguiam entender. Dentre os chamados “Pais da Igreja”, muitos foram os que aceitaram ou, pelo menos, conjecturaram acerca desta questão, como Santo Agostinho, Clemente de Alexandria e Justino, o Mártir.

Mas, indubitavelmente, foi Orígenes, que viveu em Alexandria, considerado um dos maiores pensadores cristãos do seu tempo e também um dos maiores de todos os tempos, autor de cerca de dois mil livros doutrinários, aquele que mais defendeu e propagou o fenômeno da reencarnação.

Com ele surge uma corrente no seio da Igreja, que recebeu o nome de Origenismo, que defendia os seguintes princípios.

ORIGENISMO

a) Todos somos filhos de Deus e, dessa forma, somos iguais diante dEle.
b) Deus não usa de favoritismos com ninguém, mas trata a todos os Seus filhos de maneira semelhante.
c) Os Espíritos foram criados por Deus em condições de felicidade, mas em função de sua rebeldia, caíram e passaram a depender de um desenvolvimento no corpo de carne.[65]
d) Todos somos dotados de livre-arbítrio e, em assim sendo, somos responsáveis por nossa felicidade e nosso sofrimento.
e) Os Espíritos preexistem aos corpos.
f) A alma, com a ajuda de Deus, é responsável por sua própria salvação.
g) Os demônios são os Espíritos que mais se rebelaram, por isso, tiveram maior queda. No entanto, todos voltarão ao seio do Criador.

Nesse tempo, havia várias polêmicas, todas resultantes das diferentes maneiras de interpretar (ou mesmo de acomodar) os ensinamentos de Jesus.

Um dos temas mais discutidos era a divindade de Jesus. Uma ala afirmava ser Jesus um Espírito criado por Deus, a despeito de se haver tornado perfeito e, assim, uno com o Criador. Outros, não aceitavam esta teoria, elevando o Cristo à condição de Deus. Constantino resolveu interferir e convocar um concílio para a discussão do caso.

Destarte, em 325 d.C., realizou-se o Concílio de Niceia, onde se tratou principalmente sobre a Divindade de Jesus, criando-se a ideia da trindade (um só deus mas três pessoas distintas – Pai, Filho e Espírito Santo), importada, em verdade, da Índia e do Egito. A discussão, no entanto, persistiu por longo tempo.
Já no sexto século da nossa Era, Roma era governada por Justiniano e, como o Cristianismo havia sido declarado por Teodósio I (Edito de Constantinopla) a religião oficial do Estado, no ano de 391 d.C., o imperador afirmava-se cristão.

Conta-se que influenciado por sua esposa Teodora e aproveitando ainda a polêmica que se mantinha, a despeito do Concílio de Niceia, sobre a divindade crística, o imperador convocou um concílio a se realizar em Constantinopla, então capital do Império.

Dez anos antes, porém, preciso é saber, havia convocado um sínodo[66] para discutir (!?) sobre a questão das vidas sucessivas que tanto lhe incomodava, mas especialmente à sua esposa, haja vista não admitirem retornar a um corpo em condição social inferior, pois, assim, de deuses, como eram considerados seus antecessores, desceriam, conduzido por esta doutrina, à condição de simples Espíritos, podendo mesmo renascerem na condição de plebeus, por exemplo...

[...]

O resultado deste sínodo foi apresentado no Concílio de Constantinopla, como matéria secundária, de vez que o principal assunto a ser tratado dizia respeito, ainda, á discutida questão da divindade de Jesus.

Ao quinto concílio ecumênico – o II Concílio de Constantinopla [68] – realizado no ano de 553 d.C., compareceram praticamente membros da Igreja do Oriente, pois até mesmo o Papa Vigílio, de Roma, em decorrência de desentendimentos com o Imperador, foi impedido de comparecer, sendo mesmo mantido prisioneiro por sua ordem, quando viajava para Constantinopla.

[...]

Foi, portanto, desde este concílio que, aos poucos se foi deixando de aceitar a reencarnação no Movimento Cristão, portanto, a partir da anatematização do Origenismo, como se pode depreender dos anátemas que ali se fizeram, como reproduzido abaixo parcialmente[71]:

“Contra todo aquele que assevere a fábula da preexistência das almas e afirme que se segue monstruosa reconstrução: anátema seja”.

“Contra todo aquele que diga que, após a ressurreição, o corpo do Senhor era etéreo, e em forma de esfera, e que assim serão os corpos de todos depois da ressurreição; e que depois que o próprio Senhor tenha jogado seu corpo e os outros que surgem tenham jogado os seus, a natureza de seus corpos será destruída: anátema seja”.

Além destes, havia um anátema do próprio imperador[72]:

“Contra todo aquele que declare ou pense que a alma humana preexistia, ou seja, que foram primeiro espírito e sagrados poderes (...): anátema seja”.
______
[65] Os Espíritos Reveladores não concordam com esta ideia específica de Orígenes, de que os Espíritos reencarnam porque faliram, mas que Deus determinou a todos os Espíritos sem exceção passem pela fieira reencarnatória nas primeiras fases do seu desenvolvimento, até que atinjam a condição de Espíritos Puros. Ver as questões 132, 133 e 134 de “O Livro dos Espíritos”.

[66] Assembleia dos principais membros do clero de uma diocese para discutir assuntos necessários e de seu interesse. Presidida por um bispo, o único com poderes para legislar.

[68] Passaram-se vários anos até que a maioria dos dirigentes da Igreja viessem a aceitar as determinações do II Concílio de Constantinopla. Primeiro, porque não havia representatividade da Igreja, posto que nem mesmo o Papa pôde se fazer presente, impedido que fora pelo Imperador; depois, porque a questão indiscutivelmente dividia os cristãos. Aliás, até hoje há que rejeite as decisões tomadas naquele concílio, em decorrência das clamorosas irregularidades nele existentes.

[71] Apud POMPAS, Manuela. - “Reencarnação (A descoberta das Vidas Passadas)”. Trad. De Wally Constantino. Pág. 68, 69. Ed. Maltese, Ltda. São Paulo-SP: 1991).

[72] idem, ibidem.

(CAJAZEIRAS, 2002, p. 55-59). (grifos do próprio autor)

13. William Walker Atkinson (1862-1932) (advogado norte americano)

Parece certo que na primitiva Igreja Cristã havia uma Doutrina Esotérica, e que uma parte desta doutrina consistia no ensino da Preexistência da Alma; e parece que alguma forma de Renascimento ou Reencarnação era reconhecida como um dogma esotérico dos primeiros cristãos, como afirmam os que estudaram este assunto. Acha-se uma constante referência aos “Mistérios” e “Ensinos Íntimos” através das epístolas, principalmente nas de S. Paulo, e os escritos dos primitivos padres cristãos estão cheios de referências às Doutrinas Secretas. Nos primeiros séculos da Era Cristã falava-se frequentemente dos “Mistérios de Jesus”, e sabe-se que um Círculo Esotérico de Cristãos adiantados que se dedicavam ao misticismo e a doutrinas pouco conhecidas. Celso atacou a Igreja Cristã primitiva, alegando que era uma organização secreta, que ensinava a Verdade aos poucos eleitos, dando à multidão apenas as migalhas de meias-verdades, e que os ensinos populares velavam a Verdade. Orígenes, um discípulo de S. Clemente, respondeu a Celso, confirmando que era verdade que existia na Igreja Cristã uma Doutrina Esotérica, que não era revelada às massas do povo, mas defende a Igreja dizendo que ela seguia, neste método, o costume estabelecido de todas as filosofias e religiões, que davam as verdades esotéricas somente aos que estavam preparados para recebê-las, e ao mesmo tempo apresentavam às multidões comuns de seus adeptos as doutrinas exotéricas ou exteriores que todos podiam compreender ou assimilar. Entre outras coisas, diz Orígenes nesta réplica:

“Que existem certas doutrinas, que não se explicam à multidão e só se divulgam depois de terem sido ensinadas as exotéricas, não é uma peculiaridade, própria só do Cristianismo, mas é também o costume dos sistemas filosóficos onde certas verdades são exotéricas (i. é, para todos), e outras esotéricas (i. é, para os escolhidos.) Alguns dos adeptos de Pitágoras contentavam-se com a expressão “Ipse dixit” (“Ele o disse”), ao passo que outros eram instruídos secretamente naquelas doutrinas que não eram julgadas comunicáveis aos profanos e aos ouvidos insuficientemente preparados.

Além disso, todos os mistérios que se celebram em todas as partes da Grécia e em terras bárbaras (i. é, estrangeiras), embora conservados em segredo, não foram desacreditados; e assim, em vão ele (Celso) se esforça por caluniar as doutrinas secretas do Cristianismo, visto que não compreende corretamente a sua natureza.”

Nesta citação se vê que Orígenes não só admite positivamente a existência dos Ensinos Esotéricos, como também menciona Pitágoras e sua escola, e os outros mistérios da Grécia, dando a compreender que tinha conhecimento deles, e compara-os com os Mistérios Cristãos, o que não teria feito certamente, se os ensinos daqueles Mistérios estivessem em desacordo com os da Igreja. No mesmo escrito diz Orígenes: “Porém, sobre estes assuntos pode-se dizer muito bem, como sobre os que são de natureza mística, que — convém guardar cuidadosamente o segredo dum rei” —, e, portanto, não se deve falar da entrada das almas nos corpos diante dum intelecto comum.” Poderíamos apresentar dezenas de citações semelhantes.

Os escritos dos primeiros padres da Igreja Cristã estão repletos de muitas alusões à corrente doutrina esotérica da preexistência e do renascimento das almas. Orígenes principalmente escreveu muito sobre estas coisas. João Batista era geralmente reconhecido como a reencarnação de Elias, até pela massa popular que considerava isso como uma ocorrência milagrosa, ao passo que os eleitos o consideravam apenas como um exemplo de renascimento ocorrido conforme a lei. Os gnósticos, que constituíam uma ordem e escola na Igreja primitiva, ensinavam a Reencarnação clara e abertamente, sendo, por isso, muito perseguidos pelos mais conservadores. Outros aceitavam alguma forma da doutrina, disputando entre si sobre vários pontos e detalhes, mas admitindo a maior parte dos respectivos ensinos. Orígenes ensinou que as almas encarnadas haviam caído dum alto estado e estavam elaborando o seu caminho de regresso, para voltarem ao seu estado anterior e à glória perdida, servindo-se para este fim de repetidas reencarnações. Justino, o mártir, fala da alma que habita corpos sucessivos, perdendo a memória das vidas passadas. Durante alguns séculos a Igreja primitiva teve no seu seio muitos adeptos sérios da Reencarnação e esta doutrina era reconhecida como florescente até pelos que a combatiam.

Latino, pelo fim do terceiro século, opinava que a ideia da imortalidade da alma implicava sua preexistência. S. Agostinho, em suas “Confissões”, usa as seguintes notáveis palavras: “Não vivi eu em outro corpo antes de entrar no ventre da minha mãe?” Esta expressão é tanto mais notável, porque Agostinho se opunha a Orígenes em muitos pontos da doutrina, e porque foram escritas no ano de 415. Os vários Concílios Eclesiásticos, porém, pronunciaram-se contra a doutrina da Reencarnação, e a influência dos que atingiram o poder na Igreja se dirigiu contra ela, declarando-a uma “heresia.” Os ensinos foram censurados e condenados em diversos Concílios, até que finalmente no ano de 538, Justiniano publicou uma lei que declarava: “Quem sustentar a mítica crença na preexistência da alma e a opinião consequentemente estranha, de sua volta, seja anátema.” Falando dos cabalistas judaicos, diz um autor: “Como Orígenes e outros padres da Igreja, os cabalistas apresentavam como o maior argumento a favor da doutrina da Metempsicose, a justiça de Deus.”

Mas a doutrina da Reencarnação não morreu, entre os povos cristãos, às ordens dos Concílios da Igreja Cristã. Abafada debaixo da coberta da oposição e perseguição, conservou-se viva até poder novamente levantar sua chama ao céu. E até no tempo em que era suprimida, o estudante atencioso pode ver que cá e lá reluziam alguns dos seus vislumbres. Pode-se encontrar nos escritos desses séculos muitas alusões, veladas em frase mística, ou encobertas com figura poética. Durante os últimos duzentos anos, a renascença da ideia reencarnacionista foi constante; é assim que, pelo fim do século XIX e no começo do XX, encontramos a doutrina outra vez abertamente pregada e ensinada a milhares de ávidos ouvintes e secretamente sustentada até por muitos cristãos ortodoxos. (ATKINSON, s/d, p. 44-48).

14. Jean Prieur (1914- ) (filósofo e pesquisador, antirreencarnacionista - francês)

Como seu mestre Clemente, Orígenes (185-254 d.C.) apaixonou-se pela metafísica dos pitagóricos, estoicos, gnósticos, e, principalmente, pela dos neoplatônicos, cujas ideias básicas adotou. Em sua escola, em que se ensinava também a geometria, a aritmética, a literatura e a filosofia gregas, ele sustentava que, bem antes da união com corpos carnais, as almas preexistiam no Céu. Estas inteligências puras e santas eram substâncias espirituais livres, luminosas; pecaram e foram condenadas por Deus a sofrer a encarnação no baixo mundo.

Essa assimilação da encarnação a um estado inferior, do corpo a uma decadência, é realmente estranha, e muito característica. Do budismo aos cataristas, e do jansenismo ao velho cristianismo encontra-se, subjacente, a mesma aversão à carne e à individualidade — consequência da primeira —, a mesma desconfiança acerca da natureza e da vida; em resumo, o mesmo pessimismo.

Segundo o sistema de Orígenes, as penas do Inferno eram apenas provisórias; todas as almas purificadas deveriam alcançar um só e único Deus. Contra alguns teólogos que, sem esperar Constantino e Niceia, começavam a identificar Jesus com o Pai, ele afirmava que o homem de Nazaré só era filho de Deus por adoção:

Não há verdadeiro deus senão o próprio Deus; Deus, o Pai, criador de toda a eternidade e que possui sozinho a plenitude do Ser, O Filho participa da natureza divina e é mais a imagem da Divindade que Deus. Assim, ele não é o Bem absoluto, mas o Bom. O Verbo de Deus [o Filho] não é a causa, mas o instrumento da Criação.

Foi tanto por concepções desse gênero quanto pela teoria da preexistência das almas que Orígenes foi condenado.

Invocando ousadamente João, 14:2, “Há numerosas moradas na casa do Pai”, Orígenes fazia o seguinte comentário: “Senhor faz alusão às diferentes estações Que as almas devem ocupar depois de despojadas de seus corpos atuais, a fim de se investir dos novos”.

[...]

O grande mérito de Orígenes foi ter compreendido e ensinado a constituição tripartite do ser humano: entre o corpo físico e o espírito, ele descobrira o corpo aéreo. As almas conservavam tal corpo depois da morte, e era por essa razão, dizia ele, que se viam aparições em torno dos túmulos.

Nas pegadas de Orígenes alguns autores católicos contemporâneos seus, com simpatias reencarnacionistas gostavam de citar, sem, diga-se de passagem, fornecer referências, os padres da Igreja, grega ou latina, que levavam água a sua nora.

[...]

Em 529, fechamento da Escola de Atenas por Justiniano que, para apressar as conversões, dava a seguinte possibilidade de escolha a seus súditos: o batismo ou a morte. O imperador acertava sua dívida para com a reencarnação esperando o sínodo de 543 e o concilio de 553.

Foi muito tempo depois da morte de Orígenes, e particularmente no século 6, que a polêmica se inflamou contra ele e suas doutrinas. Em janeiro de 543 publicou-se um édito de Justiniano — o imperador e sua esposa Teodora gostavam muito de se imiscuir em questões teológicas —, em que estavam expostas as opiniões de Orígenes. Ao patriarca Menas foi dada a ordem de convocar um sínodo, com a presença de todos os bispos de passagem em Constantinopla, e de convidá-los a condenar as ditas opiniões. Foi o que eles fizeram em dez anátemas, dos quais apresentamos os mais característicos. É notável que não se trate aqui de metempsicose, mas somente de preexistência.

1 — Se alguém diz ou sustenta que as almas humanas preexistiram na condição de inteligências e de santos poderes; que, tendo-se enojado da contemplação divina, tendo-se corrompido e, através disso, tendo-se arrefecido no amor a Deus, elas foram, por essa razão, chamadas de almas e, para seu castigo, mergulhadas em corpos, que ele seja anatematizado!

O sínodo de 543 recusa-se a fazer o amálgama entre decadência e encarnação.

5— Se alguém diz ou sustenta que na ressurreição os corpos dos homens se revelarão sob a forma esférica, se nega que nos revelaremos na postura reta, que ele seja anatematizado!

O sínodo sabe que, numa outra vida, a forma humana é conservada.

9 — Se alguém diz ou sustenta que o castigo dos demônios e dos homens ímpios é temporário e que um dia terá fim, ou que haverá uma restauração dos demônios e dos homens ímpios, que ele seja anatematizado!

Restauração deve ser tomada no sentido de “regeneração”. O sínodo se pronuncia a favor do Inferno eterno.

10 — Anátema a Orígenes, apelidado de Adamantios, que emitiu essas proposições, e a seus dogmas abomináveis e criminosos, bem como a qualquer pessoa que os aprovasse, que os defendesse, ou que ousasse, em certa medida, torná-los seus.

Todo o episcopado oriental e o papa Vigílio assinaram. Contudo, dez anos depois, Justiniano convocou, com sua autoridade própria, o segundo Concílio de Constantinopla, quinto concilio ecumênico.

O papa Vigílio que, por essa época, encontrava-se em Constantinopla, recusou-se a assistir ao concilio, porque não conseguira obter do imperador uma representação dos bispos do Ocidente equivalente à dos bispos do Oriente.

Se alguma vez se falou de Orígenes e de origenistas, isso ocorreu em Constantinopla em 553, nos conciliábulos que os bispos travaram entre si, a mando do imperador, antes da abertura do concílio, convocado, na verdade, para tratar do caso dos três capítulos suspeitos de nestorianismo.

Só os atos concernentes a esses três famosos capítulos de Teodoro de Mopsueste foram submetidos à aprovação do papa Vigílio, que a concedeu em dezembro de 553.

É, portanto, errôneo querer ligar ao quinto concílio ecumênico os anátemas lançados contra Orígenes e contra sua doutrina. Foram obra do sínodo de 543, e foi para lhes conferir mais peso que eles foram reunidos numa coletânea dos cânones do segundo Concílio de Constantinopla. (PRIEUR, 1994, p. 122-128).

15. R. N. Champlin (1933- ) (prof. universitário, norte-americano) e J. M. Bentes (1932-)(autodidata, pastor, amazonense)

O Origenismo e os Séculos que se Seguiram

Vários teólogos do passado levaram avante as ideias de Orígenes, como Evágrio Pôntico e muitos outros elementos da Igreja Ortodoxa Oriental, onde a influência de Orígenes fez-se sentir mais forte. No entanto, outras figuras cristãs de nomeada opuseram-se a ele, como Epifânio, Jerônimo e Teófilo de Alexandria. Porém, a oposição mais virulenta contra Orígenes veio do Ocidente. O ataque foi intensificado no século VI, pelo imperador Justiniano, que condenou diversas doutrinas de Orígenes, em sua Carta a Mennas, patriarca de Constantinopla. Um concílio efetuado em Constantinopla, em 543 D.C. condenou vários dos ensinos de Orígenes. Isso foi reforçado pelo segundo concílio de Constantinopla, em 553 D.C. Mas, a despeito dessas condenações, as ideias de Orígenes, no todo ou em parte, sempre exerceram grande influência no Oriente. E o mesmo pode ser dito acerca de Clemente de Alexandria e de outros pais gregos da Igreja. Poderíamos dizer que Orígenes e Agostinho foram as influências mais fundamentais, respectivamente, sobre as teologias oriental e ocidental. (CHAMPLIN e BENTES, vol. 4, p. 628).

16. Hans Tendam (1943- ) (psicólogo e pedagogo, holandês)

Cristianismo

Várias passagens do Novo Testamento indicam a preexistência e algumas parecem indicar a reencarnação. O exemplo mais conhecido é o de João Batista, que é considerado como o retorno de Elias. Essas passagens são encontradas especialmente em Marcos, mas também em Mateus, Lucas e João. João 9: 1-3 e João 17: 24 são vistas como indicações da crença na reencarnação. Nos primórdios do cristianismo parece que houve uma divisão sobre o assunto. Muitos religiosos aceitavam pelo menos a preexistência. Justino, o Mártir, aceitava a reencarnação, mas considerava impossível recordar vidas passadas. De acordo com ele, as pessoas demasiadamente desvalorizadas para receber Cristo retornariam como animais selvagens.

Parece que Orígenes considerava relevantes os argumentos gnósticos a favor da reencarnação, e também apontava para o conhecido exemplo de Elias e João. Além disso, fez a preexistência da alma parecer plausível. Propagandistas posteriores da reencarnação viram essas exposições como argumentos a favor da reencarnação. Porque o Concílio de Constantinopla condenou a doutrina de Orígenes no ano 553, alguns gnósticos modernos apontam esse ano como a data em que a doutrina da reencarnação foi eliminada do pensamento cristão. Annie Besant e outros propuseram essa visão questionável.

O Segundo Concílio de Constantinopla em 553 estava principalmente preocupado com as dificuldades levantadas no Concílio de Chalcedon, em 451 em especial com a questão de Cristo ter uma ou duas naturezas. O Concílio de Constantinopla concorreria com a política imperial de Justiniano, que tentava ganhar controle sobre o oeste, e portanto achava necessário o arbítrio sobre o assunto, para diminuir a discórdia entre leste e oeste. Por essa razão ele pressionou o Concílio. Em 5 de maio de 553, os bispos reuniram-se sob a presidência de Eutícius, patriarca de Constantinopla. O então papa Vigílio estava na oposição e procurou refúgio numa igreja. Na ausência do papa, o Concilio condenou a dupla natureza de Cristo (uma das doutrinas de Orígenes), estabelecida pelo Concílio de Chalcedon. O papa continuou a resistir até 8 de dezembro de 553, mas finalmente rendeu-se e ratificou a resolução do Concílio em 23 de fevereiro de 554. Com isso, a unidade das duas naturezas de Cristo tornou-se a doutrina oficial da Igreja. Um assunto secundário da discussão no Concílio foi a ratificação das condenações iniciais de algumas das visões de Orígenes. É impossível dizer com certeza quais as visões que estavam em jogo, mas provavelmente a doutrina da preexistência estava entre elas. (TENDAM,1993, p. 65-66).

17. Hermínio C. Miranda (1920- ) (escritor e pesquisador espírita)

Estranha é a resistência irracional que oferecem certos setores ditos cristãos do pensamento religioso a essa doutrina eminentemente lúcida, consoladora, inteligente e lógica. Ainda que em tempos remotos grandes pensadores cristãos tenham aceito a doutrina das vidas sucessivas, como Orígenes, Agostinho, Francisco de Assis, Jerônimo, entre inúmeros outros pensadores religiosos ou leigos, antigos ou modernos, muitos mantêm-se na obstinada negativa de quem concluiu sem estudar como o que não viu e não gostou.

Segundo lembra o Rev. Leslie D. Weatherhead, da Igreja Anglicana de Londres [1], é estranho que aqueles que “tão pronta e amplamente aceitaram no Ocidente a ideia de uma vida após a morte, rejeitem a de uma vida antes do nascimento”.

[...]

Aliás, o conceito das vidas sucessivas foi rejeitado pela Igreja Católica, segundo o mesmo autor, no Concílio de Constantinopla, em 553, por votação, na qual a reencarnação perdeupor 3 a 2.

O sacerdote católico G. Nevin Drinkwater escreveu, na publicação The Liberal Catholic, que a reencarnação nunca foi declarada herética por um Concílio Ecumênico. - O que realmente aconteceu – diz ele textualmente – segundo Robertson e Hefele, foi que um sínodo local condenou os ensinamentos de Orígenes acerca da preexistência em 543, na Cidade de Constantinopla, mas isto não é, naturalmente, uma decisão a ser obrigatoriamente acatada pela Igreja Universal [2].    
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[1] Cf. The Case for Reincarnation, de Leslie D. Weatherhead; Londres, 1958.

[2] Cf. Church History, de Robertson, vol, I, p. 157 e History of the Councils of the Church, de Hefele, vol. IV, p. 223 ss.

(MIRANDA, 1990, p. 95-96).

18. Bhaktivedanta Swami Prabhupãda (1896-1977) (Hare Krisna, indiano)

Judaísmo, Cristianismo, Islamismo.

[...]

No terceiro século D.C., o teólogo Orígenes, um dos padres da primitiva Igreja Cristã, e seu mais reconhecido estudioso bíblico escreveu: “Devido a alguma inclinação para o mal, certas almas... vêm em corpos, primeiramente de homens; então, através de sua associação com paixões irracionais, após o período permitido de vida humana, transformaram-se em bestas, das quais deslizam até o nível de... plantas. Desta condição, sobem novamente, através dos mesmos estágios e são restauradas ao seu lugar celestial”[ 6].

[...]

A Idade média e o renascimento

Sob circunstâncias que até hoje permanecem encoberta de mistérios, o imperador bizantino Justiniano em 553 D.C. Baniu os ensinamentos da preexistência da alma, da Igreja Católica Romana. Durante essa era, numerosos escritos da Igreja foram destruídos, e muitos eruditos agora acreditam que as referências à reencarnação foram purgadas das escrituras. As seitas gnósticas, embora severamente perseguidas pela Igreja, conseguiram, entretanto, manter viva a doutrina da reencarnação no Ocidente. (A palavra gnóstico deriva-se do grego gnosis, significando “conhecimento”).
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[6] De Principiis, Livro III, Capítulo 5. Ante-Nicene Cristian Library, editores Alexander Roberts e James Donaldson, Edinburgh: Clark, 1867.

(PRABHPUÃDA, 1994, p. 3-4).

19. Swami Tilak (?-?) (monge indiano)

É fato muito conhecido que até 553 D.C. O Cristianismo nunca pronunciou-se contra a Doutrina da Reencarnação. Somente no ano 553 D.C., o Segundo Concílio de Constantinopla decidiu expressar-se contra a Doutrina da Reencarnação. Consequentemente, a aceitação da existência da alma antes do nascimento, tornava-se uma crença hostil à decisão daquele Concílio. Apesar disto, “a Igreja ocidental, que era devotada a Calcedônio, não pôde decidir-se a aceitar os decretos do Concílio de 553, ainda que o Papa os tivesse aceito” [9].
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[9] - “Encyclopaedia Britanica” (ed. 1965) vol. VI, p. 636, sob o título “Second Council of Constantinople (O Segundo Concílio de Constantinopla).

(TILAK, 1974, p.33).

20. Nair Lacerda (?-?) (escritora)

“Na verdade vos digo que entre os nascidos de mulher não se levantou outro maior do que João Batista. E se quiserdes bem compreender. ele é o mesmo Elias que havia de vir. Quem tem ouvidos de ouvir, ouça.” Foram palavras de Jesus aos discípulos, conforme está em Mateus 11: 11,14-15.

Orígenes, que viveu no segundo século da nossa era, e foi um dos mais ilustres padres da Igreja primitiva, diz que aquelas palavras afirmam a preexistência de João Batista antes de sua existência posterior, como precursor do Cristo.

São Paulo, em sua Epístola aos Efésios 1:4, diz: “Deus nos elegeu antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele.” E é Orígenes quem diz que isso sugere nossa preexistência, antes mesmo de existir o mundo. Também São Jerônimo diz de nossa permanência nas alturas, onde residem criaturas racionais antes de sua descida a este baixo mundo, e antes da retirada de sua vida invisível das esferas espirituais para esta vida visível da terra, e ensina a necessidade de terem novamente corpos materiais antes que, como santos, como homens que se tornaram “perfeitos como Nosso Pai que está no Céu é perfeito”, possam outra vez gozar no mundo angélico a sua “anterior” bem-aventurança.

[...]

Em sua obra célebre De Principiis, começa Orígenes com a declaração de que unicamente Deus é, fundamentalmente, e pela virtude de Sua Natureza, Bom. Deus é o único Bem, o Bem absolutamente perfeito. Quando consideramos os graus menores do Bem, achamos que a Bondade é derivada e adquirida, e não fundamental e essencial. Orígenes continua dizendo que Deus dá livre-arbítrio aos espíritos, que, não o empregando para o bem, descem para estados inferiores, cada qual sendo a causa de sua própria queda.

Diz ainda Orígenes que “Deus enche alguns indivíduos com Seu Espírito Santo e concede-lhes santificação, não por causa de seus justos merecimentos, mas imerecidamente”. E como seria isso compatível com a declaração de São Paulo de que em Deus não há respeito de pessoas, e que Ele não pode ser Injusto. E esta opinião não é negada pelos que opinam que as almas vêm existir com a formação dos corpos. Diz mais Orígenes:

“Os homens, alguns são bárbaros e outros gregos; e, dos bárbaros, alguns são ferozes e selvagens e, outros, de disposição mais suave. Alguns deles vivem sob leis aprovadas em sua totalidade e outros vivem sob leis imperfeitas ou severas. Outros, ainda, têm antes costumes de caráter desumano e selvagem do que leis; e alguns deles, à hora de seu nascimento, são reduzidos à humilhação e sujeição e feitos escravos, sendo colocados sob o domínio de senhores, príncipes ou tiranos. Alguns dos homens têm corpos sãos, outros são enfermos desde os mais verdes anos; alguns têm defeitos da visão, outros do movimento ou da fala; alguns já nascem nessa condição, outros foram privados do uso de seus sentidos imediatamente após o nascimento. Mas por que repetir e enumerar todos os horrores da miséria humana? Por que isso acontece?”

A seguir, Orígenes combate as ideias mantidas por alguns pensadores de seu tempo, segundo as quais as diferenças seriam causadas por diferenças essenciais na natureza e qualidade das almas dos indivíduos. E declara, com grande ênfase, que todas as almas são essencialmente iguais quanto à sua natureza e qualidade, e que as diferenças provêm da diversidade do uso que fazem do seu privilégio de livre-arbítrio. E assim se expressa:

“Se existe essa grande diversidade de circunstâncias, e esta diversa e variada condição do nascer, onde a faculdade de livre-arbítrio não tem alvo algum (porque ninguém escolhe para si onde, de quem, e em que condição deve nascer), se, pois, isto não é causado pela diferença da natureza das almas, isto é, se uma alma de má natureza é destinada a uma nação má, e uma alma boa a uma nação justa, que outra conclusão é possível tirar disso senão que essas coisas são regularizadas por acidente ou por acaso? Ao admitirmos isso não podemos crer que o mundo tenha sido feito por Deus, ou seja, governado pela Sua Providência.”

E continua o ilustre Padre da igreja:

“Deus, que julgou ser justo arranjar as Suas criaturas segundo o mérito que tivessem, deixa existir esses diferentes entendimentos na harmonia do mundo, para adornar, digamos, uma moradia, onde não deve haver só vasos de ouro e de prata, mas também de madeira e de barro — uns para provar honra e estima, outros para demonstrar desprezo — com os diferentes vasos, ou almas, ou entendimentos. E, assim, o Criador não pode aparecer como injusto, distribuindo, pelas causas já mencionadas, a cada um segundo as suas necessidades como também não é acidental a felicidade ou a desgraça de cada ente ao seu nascimento, ou qualquer condição da sua sorte.”

Através das citações acima não se pode duvidar de que a Metempsicose, a Reencarnação, ou Renascimento, e o Carma, eram professados e ensinados como verdadeira doutrina pelos padres da primitiva igreja Cristã. A doutrina da Reencarnação foi repelida por certas influências na Igreja do sexto século. O Segundo Concílio de Constantinopla condenou-a como heresia, e, desde aquele tempo, a cristandade renegou-a e exterminou-a, perseguindo-a com a espada, com as estacas e com a prisão. A luz foi conservada por muitos anos, contudo, pela seita dos albigenses, perseguida pela Igreja, o que valeu àquela seita centenas de mártires. Encoberta pela mortalha da superstição que, como densa nuvem, desceu sobre a Europa na Idade Média, a Verdade, não obstante, sobreviveu, e depois de várias tentativas recobrou a sua chama, neste glorioso século XX, para novamente dar ao mundo luz e calor, reconduzindo o cristianismo às concepções originais daquelas gloriosas mentalidades da Igreja primitiva. (LACERDA,1978, p. 44-47).

21. Dorothée Koechlin de Bizemont (? -?) (escritora e jornalista, francesa)

Entre os cristãos, durante os cinco primeiros séculos, nunca se pensou que a reencarnação pudesse ser contrária aos ensinamentos do Cristo.

[...]

Os Patronos da Igreja – dos quais alguns foram bela e devidamente canonizados! – quase todos admitem a reencarnação.

São Jerônimo (331-420) afirmou a necessidade das vidas sucessivas. Santo Agostinho escreve: “Não vivi eu num outro corpo antes de entrar no seio de minha mãe?” Quanto a Clemente de Alexandria, declara que a reencarnação (ou metempsicose) é uma verdade transmitida pela Tradição e autorizada por São Paulo. São Gregório de Nissa (340-400, mais ou menos) dirá que “a alma imortal deve ser curada e purificada; e que, se não o foi por sua vida terrestre, a cura se faz pelas sucessivas vidas futuras”. São Justino (+ 165) não só fala “das almas que habitam mais de uma vez um corpo humano”, como também ensina que “aquelas que se tornaram indignas de ver Deus em consequência de seus atos durante encarnações terrestres, retomam corpos de bichos inferiores!” (Opinião que, como vimos, não é unânime). Orígenes (185-254), de quem São Jerônimo foi admirador, é o mais célebre defensor cristão da reencarnação. Ele escreveu muito sobre o assunto, e influenciou fortemente seus contemporâneos. Desenvolve longamente o tema de que as desigualdades de condição entre os homens, assim como suas desigualdades de talento e de moralidade provêm das vidas anteriores. Analisa também a história dos gêmeos Esaú e Jacó, no Antigo Testamento. Com efeito, por que, desde o seio da mãe, Rebeca, um dos gêmeos é apresentado como bom e amado, e o outro como mau? Se era sua primeira encarnação, isso seria de uma injustiça revoltante. Orígenes pensa que esses gêmeos, antes de se encarnarem no seio de Rebeca, tinham um passado cheio de obras boas, no caso de um, e de crimes, no caso do outro. Orígenes estima, portanto, que o “Purgatório” se faz aqui embaixo, por sucessivas existências, e que Deus, em sua bondade, não nos poupa o tempo para melhorarmos. (Mas ele não crê nas encarnações animais.) Muito próximo ainda, no tempo, dos primeiríssimos apóstolos, ele escreve: “Não está em conformidade com a Razão que toda alma, por razões misteriosas (segundo a opinião de Pitágoras, de Platão e de Empédocles), seja introduzida num corpo segundo seus méritos e ações passadas? Não é racional que as almas que empregaram seu corpo em fazer o bem tenham direito, depois, a corpos superiores aos dos outros em qualidade? (ContraCelsium.)

E, num outro livro, De Principiis: “Toda alma, [...] vem a este mundo reforçada pelas vitórias ou enfraquecida pelas derrotas de suas vidas anteriores.”... Não se pode ser mais claro!

[...]

COMO O OCIDENTE ESQUECEU A REENCARNAÇÃO?

Como terá doutrina tão largamente difundida sido “apagada” pelos séculos seguintes?

Historicamente, é bem provável que a reencarnação tenha levado as sobras das ambições da imperatriz Teodora. Esta última esperava mais ou menos ser divinizada após sua morte, e não apreciava as teorias de Orígenes sobre as reencarnações sucessivas. Persuadiu seu marido imperador, o fraco Justiniano, de que Orígenes era herege, e se encarregou de desacreditá-lo. Tanto fez que, no 2º Concílio de Constantinopla, em 553, Justiniano mandou que fossem condenadas as teses origenistas por bispos obedientes... e aterrorizados, pois o casal imperial era bastante temível: Teodora chegara mesmo a mandar assassinar dois papas!

Esse Concílio de Constantinopla inaugura séculos de obscurantismo, durante os quais a Inquisição vai condenar certos cristãos por suas “heresias”, com uma crueldade e uma mentalidade reacionária totalmente oposta ao espírito do Cristo. (BIZEMONT, 1990, p. 28-30).

22. Manuela Pompas (?-?) (jornalista e escritora, italiana)

ORÍGENES E OS ANÁTEMAS CONTRA A PREEXISTÊNCIA

Os primeiros padres da Igreja, entre os quais Agostinho, Clemente e Orígenes, sustentaram em sua obra a doutrina do renascimento, retomando a tradição hermética (isto é, de Hermes Trismegisto, a quem foi atribuído o Livro dos Mortos), que citaram em abundânciaem seu trabalho. Orígenes (184-254), definido na Enciclopédia Britânica como “o mais distinto e influente entre todos os teólogos da antiga Igreja”, ensinou a preexistência da alma, segundo a ideia platônica:

A alma não tem princípio nem fim. Cada alma entra neste mundo fortificada pelas vitórias da vida ou então enfraquecida pelos defeitos anteriores. Seu lugar neste mundo, quase como uma morada destinada à honra ou à desonra, é determinado pelos seus méritos precedentes. Sua obra neste mundo determina o lugar que ela terá no mundo seguinte.

Não será talvez mais de acordo com a razão que cada alma, por certas misteriosas razões, seja introduzida em um corpo e que isto ocorra segundo seus méritos e suas ações anteriores?

Além disso, não somente Orígenes retoma o ensinamento hermético e o platônico. Também Santo Agostinho (354-430) escreve: “A mensagem de Platão, o mais puro, o mais luminoso de toda a filosofia, finalmente dissipou as trevas do erro e agora transparece sobretudo através de Plotino, tão semelhante ao seu mestre que acreditara que Platão tenha renascido em sua pessoa” (Contra Acadêmicos). E depois: “Diga-me, Senhor, diga-me se à minha infância sucedeu outra minha idade, morta antes desta? E antes ainda daquela vida, Deus, minha alegria, estive eu talvez em algum lugar ou em algum corpo?” (Confissões.)

Obviamente, nem todos os padres da Igreja defendem a reencarnação: Tertuliano a rejeita, porque é “inconsistente”. Um dos argumentos que ele traz como motivo da sua refutação (uma questão que ainda inquieta muitas pessoas) é que a preexistência parece incompatível com o contínuo aumento do número de pessoas no mundo. Esta pergunta é colocada com frequência por todo aquele que entra em contato pela primeira vez com a doutrina do renascimento: de onde vêm todas estas almas “novas”, se o mundo partiu com poucos indivíduos e agora estamos superpovoados? Mas a criação não é questão de “número”: não existe o dia da criação, esta é contínua, à parte o fato de que muitas criaturas poderiam ter adquirido experiência em outros estados de vida ou em outros planetas. Como é possível julgar esta doutrina, baseando-se no número de presenças atuais e comparando-as com aquelas do passado?

De qualquer forma, os primeiros padres da Igreja sustentaram a reencarnação como uma crença lógica, difundida tanto no Ocidente como no Oriente. Justamente por estas constantes influências externas, nos primeiros séculos da história cristã, foram travadas muitas batalhas em torno de alguns artigos da doutrina, e os primeiros concílios se reuniram para decidir sobre estas disputas. No século VI o imperador Justiniano, chefe do Império do Oriente inteiro, declarou guerra aos discípulos de Orígenes. Em primeiro lugar seus ensinamentos foram condenados no sínodo de 543, em Constantinopla; depois, em 553 foram publicados os anátemas contra Orígenes e a doutrina da preexistência da alma. Em tudo isso não houve nenhuma intervenção eclesiástica. O quinto Concílio foi promovido por Justiniano e conduzido por bispos orientais manobrados pelo próprio imperador; nenhum representante de Roma estava presente. Aliás, ao que parece, entre o Imperador e o Papa (que na época era Vigílio) houvera um conflito violento e este último fora prisioneiro de Justiniano por oito anos. Parece até mesmo que, segundo o que foi relatado em alguns textos, os anátemas contra Orígenes não foram lançados durante o Concílio, que se ocupou de outras questões, mas sim posteriores e foram aprovados em uma sessão extraconciliar, por sugestão do Imperador. Aliás, os decretos do Concílio foram acolhidos no Oriente, mas contestados por muito tempo pela Igreja ocidental, onde surgiu um cisma que durou setenta anos.

Os anátemas contra Orígenes (que implicam a excomunhão por parte da Igreja contra qualquer um que afirme suas ideias) são:

I) Contra todo aquele que assevere a fábula da preexistência das almas e afirme que se segue monstruosa reconstrução: anátema seja.

II) Contra todo aquele que diga que a criação de todas as coisas racionais compreende somente inteligências desprovidas de corpo e totalmente imateriais, sem número ou nome, de modo que estejam entre si unidas por identidade de substância, força e energia, e pela sua união com o conhecimento de Deus, o Verbo. E que, não mais desejosas da visão de Deus, elas se deram a coisas piores, cada uma seguindo a própria inclinação, e assumiram corpos mais ou menos sutis, e receberam nomes, uma vez que entre as Potências celestes existe diferença de nomes como diversidade de corpos; onde algumas transformaram-se e são chamadas Querubins, outras Serafins, e Principados e Potências e Dominações e Tronos e Anjos e outras tantas ordens celestes quanto possa existir: anátema seja.

III) Contra todo aquele que afirme que o sol, a lua, e as estrelas são também coisas racionais, assim transformadas unicamente porque se voltaram para o mal: anátema seja.

IV) Contra todo aquele que diga que as criaturas racionais em que o amor divino veio menos foram ocultas em corpos brutos como os nossos, assumindo o nome de homens, enquanto que aquelas que desceram ao grau mais baixo de maldade se uniram a corpos frios e obscuros, tornando-se demônios e espíritos malignos, que é este o seu nome: anátema seja.

V) Contra todo aquele que afirme que uma condição psíquica provém de um estado angélico ou arcangélico, e acrescente além disso que uma condição demoníaca e humana provém de uma condição psíquica, e que de estado humano é possível tornar-se novamente anjos e demônios, e que cada ordem de celestes virtudes provém ou daqueles em baixo ou daqueles acima e embaixo: anátema seja.

(...)

X) Contra todo aquele que diga que, após a ressurreição, o corpo do Senhor era etéreo, e em forma de esfera, e que assim serão os corpos de todos depois da ressurreição; e que depois que o próprio Senhor tenha jogado seu corpo e os outros que surgem tenham jogado os seus, a natureza de seus corpos será destruída: anátema seja.

XI) Contra todo aquele que diga que o juízo futuro significa a destruição do corpo e que o final da história será uma (falsa aparência?) imaterial e que depois não haverá mais matéria, mas apenas espírito: anátema seja.

(...)

XV) Contra todo aquele que afirme que a vida dos espíritos será semelhante à vida que foi no princípio, quando ainda aqueles espíritos não haviam descido ou caído, de forma que o fim e o princípio serão similares, e que o fim será a verdadeira medida do princípio: anátema seja.

A estes anátemas do Concílio se acrescentam os do próprio Justiniano, que reafirma: “Contra todo aquele que declare ou pense que a alma humana preexistia, ou seja, que foram primeiro espíritos e sagrados poderes, mas que, saciados da visão de Deus, se voltaram para o mal, e deste modo o divino amor neles morreu e portanto se tornaram almas e condenados ao castigo dentro de corpos, anátema seja”.

Lendo estes anátemas tem-se a impressão de que tenha sido condenada justamente a verdade, por uma razão que aqui parece obscura (talvez o receio de acreditar nas crenças orientais, de aderir a formas religiosas que nada têm a ver com o cristianismo). Tudo o que era ensinado esotericamente, tudo aquilo que pode ser confirmado no nível sutil (por exemplo, a visão da alma depois da morte, “esférica”, o fato de que o destino do espírito, que se separou de Deus no início dos tempos, deverá reunir-se a Ele no final dos tempos) torna-se anátema.

[...] Um dos motivos pelo qual esta doutrina foi contestada pela Igreja é o fato de que a crença na reencarnação diminuía o seu poder: com efeito, ela responsabiliza o indivíduo, o qual se torna realmente dono do próprio destino e não tem necessidade de prestar contas a ninguém, senão a si mesmo, das próprias ações. O perdão não vem mais do sacerdote, investido de autoridade divina, mas é obtido diretamente através da expiação do carma nas vidas seguintes, até que alcance, vida após vida, a perfeição, e portanto Deus. A Igreja perde assim toda a autoridade e permanece simplesmente como um intermediário entre o homem e Deus, de quem, uma vez adquirida a consciência de si e a autonomia, pode-se dispensar. Nos séculos sucessivos não houve uma condenação explícita à crença no renascimento, a não ser a afirmação, no Concílio de Lyon de 1274 e no de Florença de 1439, de que as almas depois da morte vão para o céu, o purgatório ou o inferno. (POMPAS, 1991, p. 66-71).

23. Phitotheus Boehner (1901-1955) padre e escritor alemão, Etienne Gilson (1884-1978) escritor e filósofo francês.

(...) A controvérsia acerca de Orígenes, sinceramente admirado também por muitos varões de grande santidade, levou à ruptura das relações amistosas entre S. Jerônimo e Rufino, e, finalmente, à solene condenação de Orígenes no 5º Concílio Ecumênico de Constantinopla, no ano de 553. (p. 49).

(...) A doutrina da preexistência da alma faz parte integrante do sistema de Orígenes, que, para prová-la, recorre inclusivamente à Sagrada Escritura [88] (p. 70).

(...) Deus não castiga por castigar, mas para emendar.[100] Por isso, não agrilhoou os espíritos à matéria com o intuito exclusivo de castigá-los, mas também, e principalmente, para corrigi-los. (p. 72).

Portanto, o extermínio do mundo constitui, no fundo, um verdadeiro benefício para a criação; é comparável a um processo terapêutico radical, que, embora extremamente doloroso, é contudo salutar ao organismo doentio. De sorte que a história do nosso mundo vem a ser uma simples fase da grande história supercósmica, abrangendo todos os mundos passados e futuros. Cada mundo particular representa apenas uma quadra dentro desta história onicompreensiva. Deus semeia eras e colhe idades.[104] Em cada novo mundo faz-se a sementeira dos espíritos, e é dos seus méritos ou deméritos que depende o destino da semente. Os que no mundo anterior pertenceram ao número dos justos entrarão para as fileiras dos anjos; os que foram maus terão de submeter-se, mais uma vez, às tribulações terrenas, numa nova tentativa de salvação.[105] (p. 73-74). (grifo nosso).

(...) Os espíritos serão purificados de toda malícia e a sordidez do pecado será totalmente eliminada. Quando Deus for tudo em todas as coisas, as criaturas já não desejarão comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois vivem perenemente no bem, isto é, em Deus. E assim se restaura a ordem primitiva da criação. [107] (p. 74)
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88. Princ. I, 7,4; 89, 17 ss.

100. Cels. IV, 72; 341, 9 s e Princ. II, 5, 3; 135, 30 ss.

104. Cels. IV, 69; 339, 4 ss.

105. Princ. II, 3, 1-5; 113 ss.

107. Princ. II, 10, 8; 183, 3 s.; cf. III, 6, 3; 283, 14 ss.

(BOEHNER e GILSON, 2003, p. 49-74 – passim).

24. André Pezzani (1818-1877) (advogado na Corte Imperial de Lyon e consultor de Allan Kardec)

O dogma das vidas sucessivas, não menos antigo e menos venerável do que o dogma da preexistência, tem entretanto apresentado uma causa de repulsão geral porque quase constantemente foi misturado aos erros da metempsicose na antiguidade, senão nos tempos modernos.

Os Indianos ensinaram a passagem no corpo dos animais. Pitágoras, Platão, Empédocles, se deixaram conduzir ao mesmo erro. Orígenes mesmo, o grande Orígenes, conjeturou uma opinião semelhante. É preciso crer na tradução de Périarchon, por Ruffin, onde se lê que (149): "Tal pode ser a fraqueza e a queda para onde a negligência e a preguiça conduzem cada criatura, que, caída no vício, seja levada ao corpo grosseiro dos animais privados de razão." E qual foi o motivo que fez Ruffin emprestar, gratuitamente, esse erro a Orígenes? Seria mais verossímil acusá-lo de tê-la feito desaparecer. Tem-se, aliás, uma carta de são Jerônimo a Avitus, na qual ele censura, formalmente, Orígenes de acreditar na metempsicose. Felizmente para Orígenes, temos dois textos diametralmente opostos, e como eles se encontram em sua Apologia contra Celso, e em seus Comentários sobre são Mateus, duas obras autênticas e das quais possuímos o original grego, podemos, com razão, limpar sua memória dessa acusação; mas é muito que seu sistema disso tomou emprestado e que, nisso, somente conjeturou.
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149 Liv. IV, cap. V, art. 4.
(PEZZANI, 2009, p. 135-136). (grifo nosso).

Isto resulta da própria palavra do Cristo, quando, no admirável discurso que fez a seus discípulos antes de ser entregue aos judeus, ele lhes disse: "Há muitas moradas na casa de meu Pai. Se assim não fosse, eu vo-lo teria dito; vou para vos preparar o lugar" (Evangelho segundo São João, cap. XIII) 175. Orígenes comenta esta passagem: "O Senhor, no Evangelho, fez alusão "às diferentes estações que as almas devem ocupar depois de elas terem sido despojadas de seu corpo atual e que elas, nelas, têm revestido novos corpos;" quando disse: "Há muitas moradas na casa de meu Pai", estas são as estações numerosas que levam ao Pai, e nessas habitações diversas que socorro, que apoio, que ensinamento, que luz a alma recebe? É o que só o Senhor conhece, quando disse de si mesmo: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida, e ninguém chegará ao Pai senão por mim". É o Senhor, que, em cada uma dessas estações, é o caminho pelo qual a alma passa; é por ele que se entra, que se sai, que se alimenta, que se é transportado a uma outra morada, e de lá ainda a uma outra, até que, finalmente, se chega ao próprio Pai." (Homélies [Homílias], 27).
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175 . A citação correta desta passagem é: João 14: 2. N.T.
(PEZZANI, 2009, p. 150).

[...] Orígenes a considera como o único meio de explicar certos relatos bíblicos, tais como a luta de Jacó e Esaú antes de seu nascimento, tais como a eleição de Jeremias quando ele ainda estava no seio de sua mãe, e um grande número de outros fatos que acusariam o céu de iniquidade, se eles não fossem justificados pelas ações boas ou más de uma vida anterior a esta. Além disso, para não deixar nenhuma dúvida sobre a origem e o verdadeiro caráter dessa crença, o sacerdote de Alexandria cuidou de nos dizer que não se trata aqui da metempsicose de Platão, mas de uma teoria muito diferente e de outro modo bem elevada. (PEZZANI, 2009, p. 166). (grifo nosso).

Os Mistérios para os Gentios, o Zohar para os hebreus têm sido, pois, a doutrina secreta destinada aos fortes, aos púberes entre as crianças. Orígenes e seus escritos realizaram a mesma regra entre os cristãos. Missionário divino, escolhido por Deus, veio para revelar antes da época a pluralidade dos mundos e das existências, e espalhar as sementes que só o futuro faria eclodir, e que os precursores se comunicariam à vontade; mas elas só deviam frutificar em nossos dias e com o advento do Espírito de Deus, reservado à nossa adolescência e à nossa puberdade. (PEZZANI, 2009, p. 171) (grifo nosso).
[...]. Para explicar a criação do mundo em que reinam o mal físico e o mal moral, Orígenes supôs que a união das almas aos corpos é uma punição204; ele não compreendia a necessidade da iniciação e a laboriosa conquista do progresso.
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204 As causas da diferença das condições provêm, segundo Orígenes, de existências anteriores. Porque a justiça do Criador deve aparecer em tudo pela razão de que a justiça do Criador deve parecer em todas as coisas (De Pincipiis, Liv. II, cap. IX, art. 7.). A mente caída se fez alma. O espírito decaído foi feito alma, e a alma reparada tornar-se-á puro espírito. (Cap. VII, art. 3.) O mundo, com efeito, se compõe de criaturas inteligentes nos mais diversos estados. Que outro motivo dar à sua existência que a diversidade da queda desses seres que tiveram um ponto de partida comum? Antes que as criaturas descessem aos lugares inferiores, e trocassem o invisível pelo visível, se revestindo de corpos pesados e densos, elas gozavam no seio de Deus de uma beatitude sem perturbação e de um repouso constante. Deus lhes fez corpos conformes com sua condição e proporcionados ao grau de sua queda; é assim que foi fabricado o mundo visível. (Liv. IV, cap. V, art. 4.) Movimentos diferentes diferentes vontades recebem diferentes estados, isto é, como os anjos, os homens, ou demônios, de volta, destes se fazem homens ou anjos. É de grande negligência ou indolência que alguém decaia ou se esvazie, para que, chegando aos vícios, possa ser ligado ao corpo grosseiro de jumentos irracionais (Liv. III, cap. v, art. 4) Ruffin, discípulo de Orígenes, tradutor latino de suas obras, não tinha, pois, rejeitado inteiramente, os processos da metempsicose. Ele admitia todavia um grande princípio, que a elevação a um nível superior é concedida a cada um ... Por cada um a todos, de todos a cada um (Liv. I, cap. VI, art. 3.). Mas ele deixava, mesmo depois da chegada ao objetivo, a possibilidade da queda.

(PEZZANI, 2009, p. 173) (grifo nosso).

Orígenes não compreendia a lei da iniciação progressiva, nem como um certo termo de desenvolvimento tendo chegado, a vontade na posse da verdade, do bem e do belo, não poderia retrogradar apesar da persistência do livre-arbítrio. Ele também admitia a criação coeterna em Deus, não na ordem lógica, mas na ordem cronológica; ele reconhecia antes do mundo atual uma série infinita de outros mundos que o precederam, e uma outra série igualmente infinita após a destruição do universo atual. (PEZZANI, 2009, p. 175) (grifo nosso).

[...]. Mas acrescentar como Orígenes, que todos os nascimentos sem exceção são de punições, e de não admitir, por consequência, nos precedentes da população senão os deméritos, é isso que os princípios não garantem com a mesma certeza. (PEZZANI, 2009, p. 179). (grifo nosso).

[...]. O espetáculo de nossos malvados nos dá aqui mesmo o espetáculo de todas as sociedades condenadas. Que isto seja em um mundo ou em outro, os procedimentos da Providência, com respeito àqueles que ela corrige, não podem deixar de ser os mesmos e os diversos mundo estão, provavelmente, ligados uns aos outros por este objetivo: o crime cometido em um deles não se expia, muitas vezes, senão em outro, para só se curar, talvez, totalmente, em um seguinte. (PEZZANI, 2009, p. 180). (grifo nosso).

Importa de se explicar bem sobre os pontos da doutrina de Orígenes, que foram condenados pelo Concílio de Calcedônia e, mais tarde, pelo quinto Concílio de Constantinopla. Esses concílios assinalam por uma justa reprovação: 1.º) o dogma da preexistência, tal como o entendia Orígenes quando ensinava que os homens eram anjos decaídos, e que o ponto de partida tivera, para todos, a natureza angélica; 2.°) o dogma da encarnação do Cristo sem humanidade; 3.°) o dogma da destruição dos corpos; 4.°)o dogma da absorção final em Deus; 5.°) o dogma da natureza angélica e não divina do Cristo; 6.°) a possível decadência dos eleitos. Adotamos completamente essa decisão, não somente porque ela emana de dois concílios, mas porque está conforme com a verdade, tal como ela aparece, pelo menos à nossa razão. Não compreendemos o dogma da preexistência como Orígenes. A perfeição que resulta da sabedoria não existiu no ponto de partida, mas somente a inocência que não resistiu à provação e faliu em virtude de seu livre-arbítrio. Sem essa falta, após as provações mais ou menos longas, a criatura teria conquistado a vida eterna e a infalibilidade da vontade sem sofrer a morte, isto é, a transformação e a passagem às diversas estações. Explicaremos mais tarde o sentido profundo oculto no mito de Adão, o pecado original, isto é, a solidariedade, a transmissão da funesta herança da falibilidade. Mas nunca admitiremos a preexistência fabulosa, como dizem os concílios, de uma pureza angélica contrária à lei do progresso que temos exposto; na verdade, pensamos que o ponto de partida das almas foi a igualdade, porque não encontramos nenhuma razão para uma diferença imerecida e oposta à justiça de Deus219; mas é uma igualdade de inocência que é evidente antes da provação, visto que nada pode sair senão de bom das mãos do Criador.

Ao invés de ensinar a destruição dos corpos, cremos em sua ressurreição para conservar a identidade dos seres e a lembrança; e como os mais ortodoxos teólogos220, como os Pais da Igreja, acreditamos na ressurreição, não do corpo atual ou de um daqueles que a alma pode revestir, mas do corpo em sua mais pura essência, em sua substância mesmo que é outra coisa do que isto que tocamos e vemos com nossos sentidos221, de um corpo espiritual, para falar com São Paulo, imponderável, incorruptível e imortal. Dizendo isto, estamos com a tradição universal, com a verdade.

Em vez de admitir a absorção final em Deus, ensinamos por toda parte e sempre, até na vida eterna, o reino da personalidade e da liberdade.

Finalmente, repelimos a ideia da decadência possível das almas que chegaram ao objetivo e tomaram posse da vida eterna. Não podemos pensar que o duro e penoso labor das gerações passadas seja perdido, que nossos esforços na conquista da inteligência e da moralidade não tenham uma recompensa estável, que seja preciso recomeçar sem repouso e sem fim nossas longas viagens através dos mundos; acreditamos que nossa vontade, esclarecida por tão laboriosas experiências, forte por tantas provações sofridas, não falirá mais, não se separará mais de Deus, porque ela elevar-se-á dignamente para o contemplar face a face. A lei do progresso indefinido satisfaz completamente a mobilidade da criatura; cresceremos sem cessar e sem termo, sem nunca alcançar o infinito e o incriado, em inteligência, em vontade e em amor Orígenes partira de um erro, supondo a perfeição antes de queda; devia professar, logicamente, o retorno a um mesmo objetivo tão frágil quanto o primeiro. Nós nos preservamos desse erro, e nossa conclusão final é sem censura.

Uma coisa é, sobretudo, notável nas condenações que marcaram a doutrina de Orígenes, é que por um efeito da graça divina e do movimento providencial, os concílios tocaram precisamente, sem o saberem, na parte tenebrosa do Cristianismo, a que deve desaparecer na evolução dos séculos e pelo advento do espírito. Os concílios se limitaram a condenar a opinião que representa os homens como arcanjos decaídos, mas não atacaram a preexistência progressiva e vulgar; além disso, lançam o anátema contra a proposição que o demônio possa se salvar. Ora, como os arcanjos ou anjos decaídos, demônios conforme como o dogma infantil os compreendem, não existem, segue-se que os concílios, de fato, não se pronunciaram senão sobre seres quiméricos. Nenhuma palavra é dita contra a salvação dos homens por mais criminosos que eles sejam. A questão, então, não está nítida e devemos, por isto, agradecer à Providência.
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219. Tem-se feito uma objeção à nossa doutrina. Se as almas são iguais, de onde vêm, mais tarde, as diferenças? Qual é a causa de seus diversos movimentos? Esta causa está no livre arbítrio. As diferenças provêm daquilo que tal ou tal alma tem falido mais frequentemente ou triunfado mais frequentemente.

220. É o que ensina Santo Agostinho, que não se suspeitará de origenismo: "Os corpos dos eleitos ressuscitarão sem nenhuma falta, sem nenhuma deformidade. Eles estarão isentos de toda corrupção, de todo peso, de toda dificuldade para se mover. A facilidade de agir será tão perfeita quanto a felicidade da qual gozarão. É por isto que esses corpos, após a ressurreição, são chamados corpos espirituais, seja como for, certo é que esses serão corpos e não espíritos. Esse corpo é, agora, chamado carne, porque ele está sujeito à corrupção; então não será o mesmo: nosso corpo tornado incorruptível não será propriamente mais carne, mas um corpo tão incorruptível quanto os corpos celestes. É o que faz São Paulo dizer que a carne e o sangue não possuirão o reino de Deus. Explicando seu pensamento, o apóstolo acrescenta: A corrupção não possuirá o que é incorruptível. Mas ainda que a qualidade de nossos corpos seja mudada, sua substância será sempre a mesma, e somente nesse sentido serão ainda carne após a ressurreição. Porque então o apóstolo disse que se põe na terra, como uma semente, e que ressuscitará corpo espiritual." (Santo Agostinho, Manuel [Manual], cap. XXVI.).

221. Creio na imortalidade do corpo do mesmo modo que na da alma. Se nossa alma persistisse sozinha nós não seríamos, no futuro, o mesmo ser. A alma sem o corpo, o corpo sem a alma, não é o eu. O que morre, não é a essência do corpo, é a sua forma. que não é outra coisa senão sua manifestação móvel. A substância, mesmo corporal, não é nem visível nem tangível. Não é a cor, o perfume, o sabor, o som, a figura que constituem a essência da matéria, fenômenos passageiros e transitórios que a dissolução pode alcançar sem penetrar até o ser. A união da alma e do corpo é eterna. Não esqueçamos que a dualidade humana se converte, em definitivo, em uma unidade indivisível, e se a identidade do ser está salva até com uma diversidade de manifestação, ela não pode se conservar senão pela persistência total do elemento substancial. A ressurreição, tal como a ensina a Igreja católica, deve-se entender do momento em que as provações estando terminadas e os tempos cumpridos, o corpo animal ressuscita corpo espiritual, como disse são Paulo, e na lembrança completa de todos os instantes de sua existência. A ideia cristã, mal entendida por alguns que apresentaram objeções ridículas, é, então, perfeitamente verdadeira e exata.

(PEZZANI, 2009, p. 193-196). (grifo nosso).

25. Bertrand Russel (1872-1970) (matemático e filósofo galense)

A síntese da filosofia grega e das escrituras hebraicas permaneceu mais ou menos acidental e fragmentária até o tempo de Orígenes (185-254 A. D.). Orígenes, como Platão, vivia em Alexandria, que, devido ao comércio e à sua universidade, foi, desde sua fundação até sua queda, o centro principal do sincretismo culto. Como seu contemporâneo Platino, foi aluno de Ammonio Sacas, considerado por muitos como o fundador do neoplatonismo. Suas doutrinas, expostas na obra De Principiis, têm muita afinidade com as de Plotino – mais, com efeito, do que é compatível com a ortodoxia.

Não há nada, diz Orígenes, completamente incorpóreo, exceto Deus – Pai, Filho e Espírito Santo. As estrelas são seres vivos racionais, aos quais Deus deu almas que já existiam. O Sol, pensa ele, pode pecar. As almas dos homens, como ensinou Platão, vêm a eles, de alguma parte, ao nascer, tendo existido sempre desde a Criação. Nous e alma são distinguidos mais ou menos como em Plotino. Quando o nous decai, converte-se em alma; a alma, quando virtuosa, transforma-se .em nous. Por último, todos os espíritos se tornaram inteiramente submissos a Cristo, e serão, então, incorpóreos. Mesmo o demônio se salvará por fim.

Orígenes, apesar de ser reconhecido como um dos Padres, foi, nos últimos tempos, condenado, por haver mantido quatro heresias:

1.  A preexistência das almas, como Platão ensinou.
2. Que a natureza humana de Cristo, e não apenas a sua natureza divina, existiu antes da Encarnação.
3. Que, na ressurreição, nossos corpos serão transformados em corpos absolutamente etéreos.
4. Que todos os homens, e mesmo os demônios, serão, no fim, salvos.

São Jerônimo, que havia manifestado uma admiração um tanto imprudente por Orígenes, pelo seu trabalho em estabelecer o texto do Antigo Testamento, achou prudente, mais tarde, gastar muito tempo no repúdio veemente de seus erros teológicos. (RUSSELL, B., 1968, p. 25).
Aqui, terminamos a lista dos autores que falam do assunto; é longa, sabemos disso; porém, julgamos importante que tenha sido dessa forma, para que você, leitor, possa tirar suas próprias conclusões.

Fatos que merecem explicações


Temos, sobre o que até aqui foi colocado, quatro indagações que devem ser explicadas, pois relacionam-se diretamente ao assunto em estudo, quais sejam: 1ª) A questão da participação efetiva de Teodora; 2ª) se houve influência de Justiniano junto ao Concílio de Constantinopla; 3ª) se Orígenes, realmente, acreditava na reencarnação; e, finalmente, 4ª) se o Concílio de Constantinopla, de fato, anatematizou Orígenes e em que. É o que tentaremos ver a seguir.

John Dominic Crossan, professor universitário de Estudos Bíblicos, em seu livro O JesusHistórico, desenvolve alguns critérios para autenticar os dados de uma pesquisa, para que o leitor fique plenamente seguro da informação recebida. Diz ele a certa altura:
O elemento final desta tríade é a classificação da singularidade. Esse processo consiste em se evitar trabalhar com qualquer unidade encontrada em apenas um testemunho, mesmo que seja dentro do primeiro estrato. A minha intenção é fazer com que isso funcione como uma proteção e uma garantia. Um material encontrado em pelo menos duas fontes independentes do primeiro estrato não pode ter sido inventado por nenhuma delas. (CROSSAN, 1994, p. 32). (grifo nosso).
Usando esse critério, iremos tratar de todas estas quatro questões, visando estabelecer coerência nos relatos, de forma a poder dar a você, caro leitor, uma base maior de dados para que você possa tirar as suas próprias conclusões. Assim, faremos o possível para evitar qualquer coisa que nos leve a uma conclusão tendenciosa, já que esse não é o nosso objetivo, pois queremos que apenas a verdade dos fatos se faça presente.

1ª) A questão da efetiva participação de Teodora


Será que ela teve alguma participação nisso? Teria, de fato, a ex-prostituta mandado matar as quinhentas ex-colegas e, por conta disso, resolveu “acabar” com a ideia da reencarnação, visando fugir de um provável carma? O historiador Procópio, citado por alguns dos autores, fala alguma coisa disso? Bem se vê que perguntas não faltam. Vejamos se conseguiremos elucidá-las.

Muito embora não gostemos muito de citar coisas disponíveis na Internet, preferindo as obras que temos em mãos, vamos usar uma fonte dela:
Teodora também devotou considerável atenção à punição das mulheres encontradasem pecado carnal. Ela pegou mais de quinhentas prostitutas no Fórum, que viviam uma vida miserável se vendendo por três óbolos, e enviou-as para a margem oposta, onde foramtrancadas em um monastério chamado Arrependimento para forçá-las a reformar sua maneira de viver. Algumas delas, entretanto, jogaram-se dos parapeitos à noite para livrarem-se assim de uma salvação indesejada.
O que nos chamou a atenção é que, se Teodora “devotou considerável atenção àpunição das mulheres”, ela não estava mesmo para brincadeiras e, certamente, isso não é atitude de quem poderia estar preocupado com a salvação delas. O detalhe é que “foram trancadas”; o que nos leva a concluir que, na verdade, todas elas foram presas.

Encontramos uma tradução impressa, onde, entre outros, esse fato se encontra sob o título “Outros crimes de Teodora”, que transcrevemos:
Teodora, entretanto, gostava também de imaginar castigos para os delitos contra os costumes. Reuniu mais de quinhentas prostitutas, que exerciam o seu comércio em plena praça pública por três óbolos – o necessário para sobreviver – e as expediu para a margem oposta a fim de encerrá-las no mosteiro chamado Metanoia (Arrependimento), forçando-as a mudar de vida. Algumas delas se lançaram, à noite, do alto do mosteiro e escaparam assim a uma mudança que não desejavam. (PROCÓPIO, s/d, p. 47). (grifo nosso).
Tem-se quase que a mesma ideia da tradução anterior, deixando-nos mais tranquilos com relação à descrição dessa ocorrência.

Vejamos o que Carlo Maria Franzero fala desse episódio:
Era apenas natural que a Basilissa exercesse a sua influência em favor das antigas colegas e, assim, quinhentas prostitutas por modestíssimo preço exerciam abertamente a sua profissão no Fórum, foram convidadas coercitivamente a entrar no novo convento do Arrependimento, na outra margem do Bósforo – retiro magnífico para quem quisesse meditar. Ao que parece, porém, muitas destas donzelas não se deram bem com o regime e preferiram atirar-se ao mar, durante a noite, com nítida desvantagem para as possibilidades de salvação das suas almas. (FRANZERO, 1963, p. 87). (grifo nosso).
O romancista Francis Fèvre, que não tem Procópio em sua referência bibliográfica, apenas, vez ou outra, citando-o, nos acrescenta alguma coisa a mais nesta história. Diz ele que:
[…] Para evitar a acusação de impiedade, Teodora não as devolve à perambulação nas ruas sombrias, nas discretas pracinhas. Talvez com o objetivo de encarnar com convicção seu novo papel de imperatriz, faz encerrar as prostitutas em um convento fundado para esse fim.

Difícil seria dizer se a antiga cortesã, amaldiçoada por todo o clero da capital, agiu por piedade ou por diplomacia. Mas, as pecadoras resgatadas a peso de ouro teriam dispensado uma vida monástica. O novo convento destinado a acolhê-las na capital mostra claramente seus objetivos: todos os habitantes o conhecem pelo nome de convento do Arrependimento. Os muros são bastante altos, uma fuga poderia deixar aleijadas as pecadoras que se arriscassem. Essas mulheres devem passar o resto de suas vidas à sombra dos muros e das edificações do convento, mantidas por uma verba significativa doada por sua benfeitora, para glória de Teodora, destinada ao céu por sua piedosa colaboração para salvar almas em perigo. (FÈVRE, 1991, p. 173). (grifo nosso).
Fèvre, conta-nos, sobre Procópio:
A vida escandalosa da jovem Teodora nos é contada pelo historiador bizantino do século VI, Procópio. Se este autor, respeitável por suas obras que descrevem o império e o reinado de Justiniano e Teodora, acentua os vícios da jovem cortesã, deve-se interpretar essa atitude como resultado da amargura de um cortesão desiludidoEm seu livro Anedotas, terminado em 558, dez anos após a morte da imperatriz Teodora, a luxúria da futura senhora do império é citada a cada instante. A agressividade do historiador contrasta singularmente com o estilo laudatório de seus livros publicados anteriormente. Na verdade, não fora seu destino imperial, não teria sido tão enfatizada a dissipação da juventude de Teodora. Procópio salienta o passado duvidoso da criança do Hipódromo para melhor rebaixar a soberana intocável. (FÈVRE, 1991, p. 39). (grifo nosso).
Teria esse fato, o de trancafiar as quinhentas prostitutas, sido uma espécie de “limpeza pública”? E quanto à possibilidade de Teodora estar querendo “apagar o passado”?! A única coisa que encontramos foi: “A imperatriz não toleraria, é claro, qualquer alusão de alguém a seu passado pecaminoso, mas suas preocupações e sua ação mostram que a lembrança de sua juventude tumultuada ocupa um lugar importante em seu coração” (FÈVRE, 1991, p. 173). Essa informação não é suficiente para concluirmos isso. A única coisa que fica clara é que nesse episódio algo de grave deveria estar acontecendo para que algumas delas, se verdadeira a informação, se jogassem dos parapeitos, buscando a morte certa. Poderia ser pelo motivo de que as estariam torturando ou mesmo matando-as? Deixamos em aberto essas hipóteses, por falta de dados para um veredicto final.

Procópio, do qual temos esses relatos, somente escreveu o seu livro Anedotas (História Secreta), em 558, ou seja, dez anos depois da morte da imperatriz. Fato curioso é que, depois do relato do confinamento das prostitutas, nenhuma linha a mais ele fala delas, deixando-nos com uma forte impressão que foram “apagadas” mesmo; mas, como já o dissemos, não temos elementos para precisar o que realmente aconteceu.

O certo é que, para nós, essa história está muito mal contada; é o máximo que podemos dizer. Não encontramos nenhuma base para dizer qual teria sido o real motivo de Teodora ter feito isso; se matou ou não essas suas ex-colegas. Particularmente, não acreditamos que a imperatriz tenha trancafiado as quinhentas prostitutas para fazer delas monjas, visando salvar essas almas do pecado ou que tenha pensado em melhorar a sorte delas, garantido-lhes um sustento para o resto da vida.

Voltando a Franzero, na tradução de Luís de Sttau Monteiro, vejamos o que ele diz para ajudar-nos a formar opinião sobre Procópio, o historiador bizantino:
Apesar de tudo quanto sabia, nunca conseguiu falar senão do escândalo que a Basilissa causava com as suas inconvenientes opiniões. Exagerava as histórias referentes à sua avareza, à sua insolência, ao seu humor autoritário e a excessiva influência que sobre Justiniano exercia – mas não citava fatos susceptíveis de lhe mancharem a reputação. (FRANZERO, 1963, p. 163). (grifo nosso).
Fomos alertados que a frase, acima grifada, tem, em inglês, o seguinte teor: ”but there was nothing that could darken her reputation in her private life,” que, em português, seria: “mas não havia nada que poderia obscurecer sua reputação na sua vida privada”, o que difere da tradução apresentada. Bom, na verdade, o texto traduzido na literalidade é ambíguo, pois não sabemos se Procópio não fala porque não tinha o que falar ou porque, apesar de haver coisas, não falou. Vemos apenas que Procópio, quando cita, em sua obra, alguma coisa grave sobre a reputação de Teodora, não o faz diretamente; apenas insinua que algumas pessoas diziam:
Um dia, espalhou-se a suspeita de que a imperatriz se apaixonara por um dos seus servidores, um certo Areobindo, de origem bárbara, formoso varão que ela fizera seu intendente. Querendo fazer desaparecer a acusação, muito embora, segundo dizem, tenha ficado furiosamente enamorada desse homem, ela decidiu começar por fazer torturá-lo cruelmente e sem motivo; em seguida nada mais se soube dele, e ninguém mais o viu até hoje. (PROCÓPIO, s/d, p. 46). (grifo nosso).
Assim, continuamos sem ter como resolver a questão, porquanto, ao que nos parece, o historiador Procópio não forneceu elementos, se é que os tinha, para dirimir as dúvidas.

Entretanto, quando lemos Teodora de Henry de Kock, romancista francês, ele já é mais objetivo, conforme podemos ver:
Por orgulho, Teodora queria que o soberano com quem compartilhava o trono fosse o maior do mundo e com esse fim o incitava à realização de grandes obras. E – bizarra anomalia! - o homem cujo nome procurava popularizar por todo o universo ela própria o desonrava, entregando-se às mais revoltantes torpezas.

Ignorava Justiniano a conduta depravada de Teodora? Não. E como poderia ignorar? Teodora escolhera o próprio palácio para centro de devassidões. Mas, segundo os costumes do tempo, Justiniano, marido de sua época, tudo via mas fingia nada ver. Depois, talvez, ele achasse de boa política não se irritar com um mal de que era o primeiro artesão. Desposara, conscientemente, uma cortesã. Podia impedir que essa cortesã conservasse sob a púrpura os gostos, pensamentos e instintos de outrora?

Teodora tinha três companheiras de prazer: Clisômala, Isidora e Macedônia. Mas sua amiga mais querida, sua êmula e confidente em matéria de torpeza, era Antonina, a mulher de Belisário. Como Teodora, Antonina fora, antigamente, artista de teatro, uma das comensais assíduas de Embolum, ou pórtico da prostituição. Como Justiniano, Belisário desposara também uma cortesã. O que o mestre fizera, o servidor podia também fazer. (KOCK, s/d, p. 31).

Tornada imperatriz, mas continuando a ser cortesã, Teodora criou uma função original, não menos importante – e não menos infame: a de executar suas vinganças. Dessa função foi incumbido Andrâmitis.
[…]

Pois bem! Nada há de novo sob o sol, no que concerne a infâmias. Essa tradição do décimo-quarto século, imortalizada por Alexandre Dumas, tem precedentes datados no sexto século. Margarida de Borgonha e suas irmãs Joana e Branca são apenas imitadoras de Teodora e suas nobres amigas. Antonina, Macedônia, Isidora e Clisômala. Apenas em Constantinopla essas damas eróticas não perdiam o tempo – como as de Brantôme – em contemplar e escolher os transeuntes das janelas de um palacete. Ora! Abaixar-se a tal necessidade! Incumbiram certas mulheres do assunto. Eram as suas fornecedoras de caça amorosa. Quanto ao resto, passava-se no palácio imperial da antiga Bizâncio, como aconteceria mais tarde na torre de Nesles, na antiga Lutécia. Desencadeavam-se intermináveis orgias e os que nelas tomavam parte desapareciam...
 E era Andrâmitis o encarregado desse departamento.


Havia, no apartamento, ricamente decorado, onde pobres homens, vítimas das paixões insaciáveis dessas vampiras, se embriagavam, uma noite inteira, de beijos e vinhos e se fartavam de iguarias raras e carícias loucas, uma porta pintada de vermelho... - a cor do sangue... - recoberta por reposteiro azul...

Ao deixarem os companheiros, Teodora e as amigas diziam-lhes, com voz doce: “Até logo!”

Odiosa mentira! Eles não a veriam jamais e elas o sabiam. Uma vez desaparecidas as mulheres, Andrâmitis entrava no aposento e convidava-os a que o acompanhassem.

Seguiam-no sem desconfiança. Pode-se lá supor estar a morte tão próxima da felicidade?

Andrâmitis os levava para a porta vermelha, da qual apenas ele possuía a chave. Abria-a e fazia-os caminhar na sua frente. Levava-os ao fundo de grande corredor, no fim do qual se via uma escada que os deveria levar, indubitavelmente, a alguma parte onde eles alcançariam a saída do palácio. Aí o negro os deixava.

Mas antes de atingirem o meio da escada, a porta vermelha se fechava. Ao mesmo tempo, o soalho afundava sob seus pés. Um único grito de pavor saída de alguns peitos... e depois... o silêncio... o silêncio da morte. O soalho voltava para seu lugar, cobrindo os infelizes completamente retalhados pela queda mortal sobre as arestas. Os corpos ensanguentados rolavam para o fundo de um poço, do qual, na hora da maré, o Bósforo se incumbia de renovar a água e lavar as paredes... (KOCK, s/d, p. 34-36).

Mas, por ter renunciado momentaneamente à orgia, Teodora não renunciara ao prazer. Certa tarde, como de costume, levaram-lhe um amante. Um apenas, pois que ela estava só... (KOCK, s/d, p. 39).
Vejamos o contraste disso com o que diz Giordani citando Vasíliev (História I. p. 163):
Em seu novo papel, Teodora se mostrou à altura da situação, mantendo-se fiel a seu marido, interessando-se nos assuntos do Estado, demonstrando grande penetração e exercendo considerável influência sobre Justiniano em matéria de governo. (GIORDANI, 1977, p. 47-48). (grifo nosso).
Wellman, jornalista e romancista norte-americano, também confirma isso ao dizer: “A despeito de todas as suas falhas, ninguém, nem mesmo o seu amargo inimigo anônimo, Procópio, pôde acusá-la jamais de haver faltado, no tocante à lealdade e à fidelidade a Justiniano.” (WELLMAN, 1961, p. 400) (grifo nosso).

Apenas para mostrar a pouca confiabilidade que algumas pessoas têm em relação a Procópio, transcrevemos:
“O historiador Procópio, em sua História Secreta, apresenta-nos um retrato muito vivo (mas não muito digno de fé) da vida tempestuosa da filha de um domador de ursos, a qual, na palavra de Diehl, “divertiu, encantou e escandalizou Constantinopla”. (GIORDANI, 1968, p. 47). (grifo nosso).

“A terceira obra de Procópio, a História Secreta, é considerada por Runciman[33] “um conglomerado amargo de mexericos”. A “História Secreta” difere, com efeito, fundamentalmente das outras duas e sua autenticidade chegou a ser posta em dúvida pelos críticos. Essa obra é um libelo grosseiro contra Justiniano, Teodora e o próprio Belisário. A Justiniano o autor atribui a causa de todos os males que, então, caíram sobre o Império.
______
[33] Lingenthal, Karl Eduard Zachariä von, Geschichte des Grieschisch-Römischen Rechts. - Aalen in Württenberg – Verlag Scientia 1955. (Photomecanischer Nachdruck).

(GIORDANI, 1968, p. 192). (grifo nosso).
Buscamos a opinião do professor Vicente Dobroruka, do Departamento de História, Universidade de Brasília, que, gentilmente, nos respondendo a um email, disse-nos:
Minha opinião é q de q o episódio do "suicídio" evoca dois lugares comuns literários na historiografia antiga: um, o moralismo (uma vez prostituta, sempre prostituta - e isso me parece fora de dúvida q Teodora tenha sido, mas n se seguem disso implicações sobre sua crueldade); o outro, o dos suicídios coletivos de habitantes cercados em cidades das quais n tinham como sair. As "500 prostitutas" teriam, de certo modo, preferido a morte a renunciarem à lascívia (mais moralismo...), mais ou menos como os zelotes de Masada em Flávio Josefo (Guerra dos judeus, 7). Não creio na história, como representação factual e autêntica. Leve em conta tb a tendência de *todos* os historiadores antigos a exagerarem nos números (Procópio mesmo fala em "milhões" mortos por Justiniano - levado a sério, n sei como a espécie humana sobreviveria a tal fato :-) (DOBRORUKA, 2009, por e-mail) (grifo nosso).
Trazemos também o que disse Paul I. Wellman:
Referem-se a respeito de Teodora, particularmente dos últimos tempos do seu reinado, fatos que atestariam crueldade e falta de escrúpulos. Alguns deles são visivelmente falsos, como por exemplo a desacreditada Anecdota de autoria de Procópio, segundo a qual um filho, ostensivamente nascido das suas relações com algum admirador, na época em que era cortesã, apareceu para legitimar o seu parentesco com a imperatriz, donde, segundo Procópio, "receando que a história chegasse aos ouvidos do imperador", Teodora fez desaparecer para sempre o rapaz.

[...]

A respeito de Procópio, historiador oficial do reinado de Justiniano, a maioria do que se conta em desabono de Teodora baseia-se na sua grosseira "história secreta", intitulada Anecdota. Os motivos dessa inimizade implacável para com a imperatriz são ignorados. Nos seus relatos oficiais, Procópio mostra-se adulador servil. Enquanto escrevia as suas obras a respeito de guerras e realizações do império, compilava uma obra secreta onde reunia qualquer mexerico, insinuação ou calúnia que pudesse recolher.

A falsidade da Anecdota revela-se através de inverdades óbvias, que prejudicam todo o seu conteúdo. Por exemplo: o historiador assegura, com toda a seriedade, que Justiniano e Teodora não eram seres humanos e sim demônios que haviam assumido forma humana. E aduz a evidência alegada para provar a sua asserção ridícula. Outros seus relatos são, além de contraditórios, impossíveis de aceitar. E o seu hábito de deturpar até mesmo os atos louváveis do par imperial, para que se afigurem perniciosos, prova a animosidade que perpassa através de toda a obra.

Não obstante, é nesse documento secreto, escrito aparentemente para desabafar o próprio rancor, e que não se destinava à publicação, vindo à luz somente séculos depois - quando já era demasiado tarde para aprovar ou desaprovar a maioria das suas asserções - que muitos se baseiam, nos dias que correm, para as suas estimativas acerca do caráter de Teodora. O legado da pena despeitada dum homem que a odiava secretamente, foi o mais mortal dos golpes desferidos contra a bela imperatriz, embora ela não vivesse o bastante para ter conhecimento disso.

Entretanto, houve atos de tirania e crueldade, atestados por outras fontes mais dignas de confiança do que Procópio. A esse respeito, cumpre-nos dizer que tirania e crueldade eram comuns naquela época, e sob esse ponto-de-vista a imperatriz não era pior - se tanto igualmente perversa - do que os seus contemporâneos assentados em tronos.

A despeito de todas as suas falhas, ninguém, nem mesmo o seu amargo inimigo anônimo, Procópio, pôde acusá-la jamais de haver faltado, no tocante à lealdade e à fidelidade a Justiniano. O absoluto silêncio que se observa a respeito dum assunto, que teria sido dos primeiros a ser explorados em desabono da imperatriz, constitui a prova máxima de que, ao se casar, ela deixara para sempre pensamentos e atitudes de sua vida de cortesã. Trabalhou incessantemente para a glória do marido, o imperador, e muito do que se lhe aponta foi feito por amor dele. (WELLMAN, p. 399-401) (grifo nosso).
Assim, fica evidente a grande complexidade em se buscar dados históricos, porque fica difícil acreditar em alguns relatos, por conta dos interesses de quem os registrou ou mesmo problemas nas traduções, que deveriam refletir o pleno conhecimento da língua diante da história, por parte do decorrer do tempo.

Dos vinte e quatro autores citados, apenas dois relatam esse episódio de que Teodora teria mandado matar as quinhentas prostitutas. Um deles foi Kersten, teólogo alemão, que apresenta uma vasta referência bibliográfica, que demonstra a extensão de seu trabalho de pesquisa. Chaves é o outro que não cita Kersten, e também não informa a sua fonte. Aliás, pessoalmente disse-nos que, ao afirmar “contam alguns autores” estava apenas registrando, não comungando com eles, embora tenha afirmado “o certo é”. Acreditamos ser muito pouco para um assunto grave desse; portanto, pelo que conseguimos levantar, não se pode afirmar com certeza que isso tenha acontecido de fato; apenas se pode aceitar que Teodora as tenha recolhido, e, pelo jeito, à força, ao mosteiro Arrependimento; o que aconteceu daí em diante, nada conseguimos apurar.

Por outro lado, é sabido que “Teodora perseguia implacavelmente aqueles que o acaso de seu nascimento lhe são impostos como elementos perturbadores” e era “capaz de mandar matar por uma razão fútil o inseto humano que perturba seus planos” (FÈVRE, 1991, p. 168.182), o que dá possibilidade dela ter feito horrores com suas ex-colegas. Entretanto, a questão não é tão simples assim; é, ao contrário, complexa e se resume em quem nós devemos acreditar, pois o fato de outros autores não falarem no caso não o torna fictício; inclusive, pode não ter sido citado nem mesmo pelos historiadores que poderiam avaliar que tal episódio não merecesse ser registrado. Diante disso, e como só temos, no fundo, uma só fonte, mesmo sem a termos como inverídica, julgamos prudente, no presente caso, aguardar que nos apareça, pelo menos, uma outra fonte primária que relate isso. Vimos esse fato em vários textos, mas os autores nem mesmo citaram uma fonte; outros, apenas mencionaram um desses dois autores, que falamos no parágrafo anterior, o que nos faz continuar no mesmo ponto, como se estivéssemos ancorados.

2ª) Se houve influência de Justiniano junto ao Concílio de Constantinopla


Franzero, conta-nos de Justiniano o seguinte:
Se o pecador for considerado demasiado grave para ser remido, as infelizes vítimas são executadas e as suas fortunas confiscadas. Os julgamentos, que têm lugar à porta fechada, não admitiram testemunhas de defesa. (FRANZERO, 1963, p. 91).
Se fosse essa a sua maneira de ser, Justiniano poderia ter eliminado as prostitutas a mando da mulher? Diríamos sim; mas como nada disso foi afirmado, só podemos conjecturar que, em princípio, tal possibilidade existe; entretanto, como já dito, faltam-nos as provas robustas.

Quanto à sua participação no Concílio, temos essa informação dos vários autores que citamos, cuja convocação se deu por sua iniciativa; não, como deveria, de uma autoridade religiosa. Podemos ver isso nos autores: Chaves, Russel, Prophet, Kersten, Andrade, Reale e Antiseri, Santesson, Mello, Atkinson, Prieur, Champlin e Bentes, Tendam, Miranda, Prabhupãda, Tilak, Bizemont, e, por fim, Pompas; ao todo, dezessete autores. Como uns não citam os outros, temos que convir que, sendo as fontes diferentes, não há como pensar em “conluio” de todos, e, muito menos, como sendo um simples boato.

Quanto ao motivo da convocação do Concílio encontramos como sendo para anatematizar as ideias de Orígenes, especialmente a preexistência, e, por tabela, contra a reencarnação que, no próximo tópico, iremos analisar. Todos esses autores, que acabamos de citar, de um jeito ou de outro, acabam falando disso. E aqui surge outro problema: é que essa unanimidade pode não espelhar a realidade dos fatos, por decorrerem de uma análise muito superficial dessas crenças de Orígenes.

Por outro lado, como foram destruídos muitos dados históricos, talvez esteja aí uma das boas razões por que não é fácil achar registros de certos atos de Justiniano e Teodora; porém, uma coisa se apresenta como certa:
O imperador convocava os concílios, onde se fazia representar por altos funcionários, quando não comparecia pessoalmente, ratificando as decisões dos padres, decisões essas que não tinham força de lei senão depois de sua ratificação. Muitos imperadores vangloriavam-se, aliás, de serem excelentes teólogos, e a esse título arrogavam-se o direito de legislar sobre a disciplina e o dogma; e alguns dentre eles, Justiniano, por exemplo, chegaram até a escrever longos tratados para expor e defender sua opinião sobre esta ou aquela questão essencial, e, se necessário, para impô-la. (DIEL, 1961, p. 91-92).
Portanto, fica, aí, evidenciada a sua participação nos concílios, entretanto, estamos longe de poder afirmar que foi para derrubar a preexistência ou a reencarnação, teses de Orígenes.

3ª) Se Orígenes realmente acreditava na reencarnação


O que não podemos fazer é tomar a crença de Orígenes sobre a reencarnação para com isso, justificar que era uma crença do cristianismo primitivo, pelo simples fato de que “uma andorinha só, não faz verão” e que, além disso, não se pode afirmar que a crença dele corresponde ao que atualmente se entende por reencarnação.

Por outro lado, o fato dele ter acreditado na preexistência da alma, também não implica em que acreditava na reencarnação nos moldes atuais. E, para dizer a verdade, nem mesmo a forma que acreditava na preexistência pode ser igualada ao que se acredita disso hoje, o que veremos um pouco mais à frente.

E, talvez, nem tenhamos todos os dados históricos, para desvendar algo desse passado, caso esta informação de Paul Brunton seja verdadeira:
O vigor com que o imperador Justiniano proscreveu e destruiu livros e documentos heréticos deixou poucos registros que permitissem às gerações subsequentes saber o que outros cristãos haviam ensinado e acreditado a respeito da doutrina da reencarnação. […]. (BRUNTON, 1990, p. 118).
Não temos como saber se esses documentos eliminados poderiam mudar em alguma coisa o pouco que se sabe sobre Orígenes; especialmente, se iria mudar seus conceitos em relação ao que temos com o que “sobreviveu” à queima de arquivo.

Um complicador a mais é o que veremos no desenrolar deste tópico. Outro fator, que influi muito nas informações, é quando o autor tem mais compromisso com o dogmatismo religioso do que com a verdade. Muito se tem feito em “nome da fé”, em detrimento do que realmente ocorreu, onde as versões se ajustaram aos interesses das igrejas que, muitas das vezes, estavam mais preocupadas em se manterem no poder do que salvar uma só “ovelha perdida”, função essa que deveria ser sua razão de existir.

Entretanto, sabemos que essa questão de Orígenes, realmente, é por demais complexa; contudo, as coisas podem não ser como parecem ou como querem que sejam:

1 -Tudo Sobre a Reencarnação
Hans Stefan Santesson
Contra Celso -Orígenes
Tradução Orlando dos Reis - Paulus
1.1 - “Não está mais de conformidade com a razão que todas as almas, por algumas razões misteriosas (falo agora de acordo com as opiniões de Pitágoras, Platão e Empédocles, que Celso frequentemente menciona), sejam introduzidas num corpo de acordo com seus méritos e antigos atos? Não é racional que as almas que usaram seus corpos para fazer maior bem possível tenham direito a corpos dotados de qualidades superiores aos corpos dos demais?” (p. 125,-126).
“Não será mais de acordo com a razão que cada alma, introduzida num corpo por razões misteriosas – falo aqui nos termos da doutrina de Pitágoras, Platão e Empédocles, citados por Celso – seja assim introduzida por seu mérito e seu caráter anteriores? Portanto, é provável que esta alma, mais útil por sua incorporação à vida humana do que a de grande número de pessoas, para não parecer preconceituoso dizendo de todas, tenha tido necessidade de um corpo que, não só se distingue dos corpos humanos, mas também é superior a todos.” (Livro I, 32, p. 73-74).
1.2 - “A alma, cuja natureza é imaterial e invisível, não existe em local material sem ter um corpo apropriado à natureza do lugar; consequentemente, deixa um corpo que lhe era necessário antes, mas que não é mais adequado ao seu status modificado e troca-o por outro”. (p. 126).
“... a alma, que por sua própria natureza é incorpórea e invisível, precisa, quando se encontra num lugar corporal qualquer, de um corpo apropriado por sua natureza neste lugar. Ela carrega este corpo depois de ter abandonado a veste, necessária antes, mas supérflua para um segundo estado, e a seguir, após tê-lo revestido por cima com aquela veste que tinha inicialmente, porque precisa de uma veste melhor para chegar às regiões mais puras, etéreas e celestes.” (Livro VII, 32, p. 567-568).
2 - Como os teólogos refutam...
Mário Cavalcanti de Mello
2.1 - “A alma sendo imaterial e invisível não pode existir em nenhum lugar material, sem revestir corpos apropriados a este lugar; ela rejeita, num dado momento, um corpo que era necessário até aí, mas do qual não tem mais necessidade, e ela o troca por um outro. (Cont. Celso – liv. VII, c. XXXII)” (p. 153).
2.2 - “Celso ignora completamente o objetivo de nossos escritos; a interpretação dada por ele é que os leva ao descrédito e não a sua verdadeira significação. Se ele houvesse refletido sobre o que é necessário a uma alma destinada à vida eterna, se ele houvesse pensado na natureza de sua essência e do seu princípio, não teria tornado ridícula a entrada do que é imortal em um corpo mortal, entrada que se efetua, não segundo o ensinamento platônico da metempsicose, mas segundo uma visão mais elevada deste fato. (Cont. Celso, liv. IV, c. XVIII)”. (p. 151).
“Celso, portanto, não viu de modo algum a intenção de nossas Escrituras; por isso ele investe contra a própria interpretação, e não contra a das Escrituras. Se tivesse compreendido o destino da alma na vida eterna futura, e o que sua essência e origem implicam, não teria criticado dessa forma a vida do ser imortal num corpo mortal, explicada não segundo a teoria platônica da metensomatose, mas numa perspectiva mais elevada. (Livro IV, 17, p. 291-292).
2.3 - “Se o nosso destino atual não era determinado pelas obras de nossas existências passadas, como poderia Deus ser justo permitindo que o primogênito servisse ao mais jovem e fosse odiado, antes de haver cometido atos merecendo a servidão e o ódio?....
Só as vidas anteriores podem explicar a luta de Jacó e Esaú antes de seu nascimento, a eleição de Jeremias durante o tempo em que estava ainda no seio de sua mãe... e tantos outros fatos que atirarão o descrédito sobre a justiça divina, se não forem justificados por atos bons ou maus, cometidos ou praticados em existências passadas. (Cont. Celso --, I, III)” (p. 153).
Não encontrado
 

Veja a diferença entre os textos da publicação católica com os dos outros escritores. Parece-nos que a verdade é mesmo diferente para o lado que se julga vencedor; não é mesmo? Assim, vale essa opinião: “Para poder se fazer uso das citações dos Padres é preciso primeiro estabelecer o texto original dos escritores patrísticos, pois estes sofreram um processo de corrupção e revisão comparável ao dos manuscritos bíblicos”. (BARRERA, 1999, p. 411).

Tomando-se o que se tem, podemos dizer que, apesar de muitos dizerem que Orígenes não acreditava na reencarnação, não parece ser totalmente a verdade. Entretanto, uma importante questão deve ser, primeiramente, levantada: a ideia que ele tinha sobre a reencarnação é a mesma que se tem hoje? Vamos, por enquanto, deixar isso em aberto, para colocar dados que irão nos permitir responder essa questão.

Quanto às crenças de Orígenes, vejamos o que Champlin e Bentes, autores daEnciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia, dizem:
Orígenes acreditava na preexistência da alma humana e cria que a queda original do homem deu-se em conjunto com a queda dos anjos que se desviaram. Então isso foi transferido para o homem terreno. A queda no pecado teria disparado o drama sagrado da alma, em que se busca a redenção do estado de queda, o que é inevitavelmente obtido.

[...]

Os mundos materiais foram criados como lugares de provas que necessariamente acompanham a redenção.

[...]

Orígenes era um escritor prolífico, e nem sempre coerente consigo mesmo. Há citações suas que favorecem a reencarnação das massas. Tenho diante de mim as obras deleContra Celsum e De Principiis, onde ele se manifesta nesse sentido. Não obstante, parece que o ímpeto geral de sua teologia era que nos mundos espirituais é que as almas têm oportunidade de continuar aprendendo e tendo oportunidade de salvação, e não em nosso mundo físico. (CHAMPLIN e BENTES, vol. 4, 1995, p. 627-628). (grifo nosso).

John Van Auken, cita um trecho de Orígenes em que fica evidente a ideia da reencarnação. Vejamo-lo:

Cada alma... vem para este mundo fortificada pelas vitórias ou enfraquecida pelas derrotas de sua vida anterior. Seu lugar neste mundo, como um vaso destinado à honra ou à desonra, é determinado por seus prévios méritos ou deméritos. Seu trabalho neste mundo determina seu lugar no mundo que se seguirá a este. Orígenes, De Principiis (185-254 d.C.) (AUKEN, 1997, p. 153). (grifo do original).
Outros quatro autores – Russel, Santesson, Bizemont e Pompas –, também citam esse trecho de Orígenes.

Mesmo que Orígenes possa ter sido um pouco ambíguo em suas ideias, podemos admitir, pelas informações acima, que ele aceitava a preexistência, na reencarnação e na pluralidade dos mundos, embora, sua crença, em cada uma delas, não fosse exatamente como as entendemos nos dias atuais.

Vejamos este quadro comparativo, no qual tentamos explicitar suas crenças comparando-as, especificamente, com o que se crê no Espiritismo, uma vez que é sobre esse seguimento religioso, do qual fazemos parte, que se volta o nosso interesse:


Itens

Orígenes

Espiritismo
1.criação
Todos os seres espirituais foram criados puros.
Todos os seres espirituais foram criados simples e ignorantes.
2. 2.encarnação (primeira)
Alguns decaíram e foram enviados a corpos físicos; é vista como punição.
Todos passam por ela para sua caminhada evolutiva; é regra geral visando o progresso.
3. preexistência
Em razão do item 1.
Em razão dos itens 1 e 2.
4. reencarnação
Reencarnam de mundo em mundo.
Reencarnam no mesmo mundo, até o grau máximo que lhe permite evoluir nele; só depois é que reencarnarão noutros mundos.
5. 5.pluralidade dos mundos
Em razão do item 4.
Em razão do item 4.
6. destino final
Todos os seres chegarão a Deus.
Todos os seres chegarão a Deus.

Vemos, portanto, que alguns fundamentos de cada uma dessas crenças têm base divergente, especialmente aquelas que tomam para justificar a crença no cristianismo primitivo na pluralidade das vidas, que são os itens: preexistência e reencarnação.

Argumentam alhures que a forma que Orígenes acreditava na reencarnação é diferente da que os Espíritas acreditam, tendo nisso uma questão fundamental para derrubar esse princípio Espírita. Sim, de fato, as bases da crença são divergentes. Vejamos como Kardec abordou isso:
ENCARNAÇÃO NOS DIFERENTES MUNDOS

172. As nossas diversas existências corporais se verificam todas na Terra?
“Não; vivemo-las em diferentes mundos. As que aqui passamos não são as primeiras, nem as últimas; são, porém, das mais materiais e das mais distantes da perfeição.”

173. A cada nova existência corporal a alma passa de um mundo para o outro, ou pode ter muitas no mesmo globo?
“Pode viver muitas vezes no mesmo globo, se não se adiantou bastante para passar a um mundo superior.”

a) - Podemos então reaparecer muitas vezes na Terra?
“Certamente.”

b) - Podemos voltar a este, depois de termos vivido em outros mundos?
“Sem dúvida. É possível que já tenhais vivido algures e na Terra.”

174. - Tornar a viver na Terra constitui uma necessidade?
“Não; mas, se não progredistes, podereis ir para outro mundo que não valha mais do que a Terra e que talvez até seja pior do que ela.”

176. Depois de haverem encarnado noutros mundos, podem os Espíritos encarnar neste, sem que jamais aí tenham estado?
“Sim, do mesmo modo que vós em outros. Todos os mundos são solidários: o que não se faz num faz-se noutro.”

a) - Assim, homens há que estão na Terra pela primeira vez?
“Muitos, e em graus diversos de adiantamento.”

b) - Pode-se reconhecer, por um indício qualquer, que um Espírito está pela primeira vez na Terra?
“Nenhuma utilidade teria isso.”

177. Para chegar à perfeição e à suprema felicidade, destino final de todos os homens, tem o Espírito que passar pela fieira de todos os mundos existentes no Universo?
“Não, porquanto muitos são os mundos correspondentes a cada grau da respectiva escala e o Espírito, saindo de um deles, nenhuma coisa nova aprenderia nos outros do mesmo grau.”

a) - Como se explica então a pluralidade de suas existências em um mesmo globo?
“De cada vez poderá ocupar posição diferente das anteriores e nessas diversas posições se lhe deparam outras tantas ocasiões de adquirir experiência.”

178. Podem os Espíritos encarnar em um mundo relativamente inferior a outro onde já viveram?
“Sim, quando em missão, com o objetivo de auxiliarem o progresso, caso em que aceitam alegres as tribulações de tal existência, por lhes proporcionar meio de se adiantarem.”

a) - Mas, não pode dar-se também por expiação? Não pode Deus degredar para mundos inferiores Espíritos rebeldes?
“Os Espíritos podem conservar-se estacionários, mas não retrogradam. Em caso de estacionamento, a punição deles consiste em não avançarem, em recomeçarem, no meio conveniente à sua natureza, as existências mal empregadas.”

b) - Quais os que têm de recomeçar a mesma existência?
“Os que faliram em suas missões ou em suas provas.”

179. Os seres que habitam cada mundo hão todos alcançado o mesmo nível de perfeição?
“Não; dá-se em cada um o que ocorre na Terra: uns Espíritos são mais adiantados do que outros.”

184. Tem o Espírito a faculdade de escolher o mundo onde passe a habitar?
“Nem sempre. Pode pedir que lhe seja permitido ir para este ou aquele e pode obtê-lo, se o merecer, porquanto a acessibilidade dos mundos, para os Espíritos, depende do grau da elevação destes.”

a) - Se o Espírito nada pedir, que é o que determina o mundo em que ele reencarnará?
“O grau da sua elevação.”

188. Os Espíritos puros habitam mundos especiais, ou se acham no espaço universal, sem estarem mais ligados a um mundo do que a outros?
“Habitam certos mundos, mas não lhes ficam presos, como os homens à Terra; podem, melhor do que os outros, estar em toda parte.” (KARDEC, 1995, p. 122-128).
Fica claro que há, sim, possibilidade de se reencarnar em outros mundos, o que não quer dizer que seja, necessariamente, como Orígenes pensava que iria se dar. É esse o problema dos que querem usar Orígenes para sustentar a crença na reencarnação. Particularmente, não cremos que essa divergência venha a derrubar a tese Espírita, embora, também, não vejamos necessidade alguma de se apoiar em Orígenes, caso se tenha um entendimento idêntico ao dele, para sancionar a reencarnação porque, como já o dissemos, ela decorre de uma lei natural.

4ª) Se o Concílio de Constantinopla anatematizou Orígenes

Pelo que podemos ver, dizem-nos vários autores que a reencarnação começou mesmo a ser “perseguida” pelo Imperador Justiniano a partir do ano de 543 d.C., quando anatematiza dez princípios origenistas, porém, parece-nos estarem indo além dos fatos, pois a condenação é da preexistência e não da reencarnação propriamente dita, embora, sem a primeira, a outra não ocorra.

O Concílio de Constantinopla, em 553, a bem da verdade, apenas referendou o que havia sido anatematizado em 543; mesmo assim, segundo alguns dos autores que citamos, por debaixo dos panos. Não iremos repetir o que cada um disse, somente listaremos os que falam disso: Chaves, Prophet, Russel, Kersten, Reale e Antiseri, Denis, Santesson, Mello, Algeo, Cajazeiras, Atkison, Prieur, Champlin e Bentes, Tendam, Miranda, Prabhupãda, Tilak, Lacerda, Bizemont e Pompas. Seria fora de propósito uma maquinação de todos eles para passar um boato, visando justificar esse Concílio.

Citar apenas um deles basta: “5. Constantinopla II (553 D.C.), que reafirmou as decisões dos quatro concílios e condenou os erros de Orígenes e de outros” (CHAMPLIN e BENTES, vol. 1, 1995, p. 833).

E Panayotis A. Yannopoulos, um outro fora dessa lista:
Quanto ao origenismo, uma carta de Justiniano, cujo texto se perdeu (Jorge o monge, ed. Ch. De boor, 1904, 630), servia como documento de trabalho. O decreto de 543 foi praticamente ignorado. É certo que o concílio condenou Orígenes, suas ideias, seus seguidores. São consideradas como heréticas as teorias sobre a apocatástase do Universo, sobre a reencarnação das almas e outras menos conhecidas. Infelizmente, perderam-se as atas e não possuímos sequer sua tradução latina, pois a questão não interessava aos ocidentais. Ainda que os nossos conhecimentos sejam incompletos nesse campo, o rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em termos claros e severos. (YANNOPOULOS, 1995, p. 134).
E, finalizando, trazemos Roque Frangiotti, na Introdução do livro Contra-Celso, de Orígenes, que disse:
Orígenes permanece, sem dúvida, o gênio maior que a Igreja cristã de língua grega produziu. “Ninguém, amigo ou inimigo, pôde subtrair-se à sua influência. Não houve nome, na Antiguidade cristã, mais discutido que o de Orígenes; nenhum foi pronunciado com tão apaixonado entusiasmo ou tão profunda indignação. Homens nobres e doutos aderiram a ele. Não poucos heréticos alegaram sua autoridade, mas também mestres ortodoxos dele aprenderam”. [7] Teólogo, exegeta, apologista, asceta e precursor dos Padres do deserto, é grande em toda ordem de coisas e deixou bem marcados todos os domínios que tocou. Contudo, por causa da sua exegese alegórica e pela influência da filosofia platônica, sua ortodoxia foi questionada e pelos anos 400, as disputas se acirraram violentamente. As discussões e os ataques se acalmaram só a partir do edito do imperador Justiniano I, de 543, e do II Concílio de Constantinopla, em 553, que condenou nove proposições de Orígenes, o que provocou o desaparecimento sistemático de sua imensa obra.
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[7] B. ALTANER e A. STUIBER, Patrologia. Vida, obras e doutrina dos Padres da Igreja, 2ª ed., Paulus, 1988, p. 205).

(FRANGIOTTI, 2004, p. 17). (grifo nosso).
Corroborando:
Origenismo. Sistema teológico errôneo, atribuído a Orígenes, brilhante teólogo e indefesso guarda dos princípios da fé, que, imbuído de ideias platônicas, foi levado a algumas concepções erradas. Assim, a preexistência da alma, noções inexatas sobre as processões divinas, sobre o pecado original, sobre o inferno. O Concílio de Constantinopla (553) aprovou uma condenação sinodal de 15 proposições origenistas, que representam uma parte apenas de sua doutrina. (Dicionário Barsa, p. 199).
E vejamos o que Tendam disse sobre esse Concílio:

A Igreja ocidental rejeitou o Segundo Concílio de Constantinopla. Na África, as tropas imperiais forçaram sua aceitação. Os bispos do norte da Itália se distanciaram de Roma e recusaram-se a reconhecer a ratificação do papa. Tiveram apoio da Espanha e da França. Todo o Concilio tornou-se irrelevante diante do resultado da conquista islâmica na maioria das províncias pertencentes à Igreja monofisista.

O resultado foi a proposição insustentável de que a Igreja renunciava à doutrina da reencarnação, em 553. Em primeiro lugar, a condenação das visões de Orígenes foi apenas um assunto secundário na discussão. Em segundo, o Concílio ratificou as condenações anteriores. Em terceiro, grande parte da Igreja rejeitou o Concílio. Em quarto, não ficou claro quais as doutrinas de Orígenes que estavam em discussão. Em quinto, os textos de Orígenes defendiam a preexistência e não apoiavam diretamente as ideias reencarnacionistas. Orígenes pensava, por exemplo, que as várias circunstâncias na vida das pessoas eram consequências de pecados por elas cometidos durante as preexistências espirituais. A existência do corpo era uma purificação dos pecados cometidos na preexistência.

Em tempos recentes, alguns clérigos cristãos publicaram argumentos de que a crença na reencarnação está de acordo com a fé cristã. Todavia, a doutrina da reencarnação dificilmente teve um papel significativo no desenvolvimento histórico do cristianismo. Segundo Guirdham (1970), a crença dos catares na reencarnação foi uma das causas da inimizade da Igreja por eles. (TENDAM, 1993, p. 66-67).
Vale a pena observar as várias coisas que o autor disse sobre ser insustentável dizer que a Igreja renunciava à doutrina da reencarnação, o que confirma muito do que foi dito antes.

Conclusão


Embora não tenha ficado totalmente provada a questão do caso Teodora, são unânimes, os autores citados por nós, em relatar a influência do Imperador Justiniano, quer por conta dele próprio, quer por sua esposa; mas, o fato é que exerceram essa influência no V Concílio Ecumênico de Constantinopla, de tal forma que as idéias de Orígenes foram anatematizadas. E para que fique claro quais seriam elas, transcrevemos:
[…] O Concílio de Calcedônia e o quinto de Constantinopla rejeitaram, não a crença na pluralidade das vidas da alma, mas simplesmente a opinião de Orígenes de que a união do espírito com o corpo é sempre uma punição e a de que a alma viveu primeiro no estado angélico. [...]. (DENIS, 1989b, p. 104).
Entretanto, o que deve ficar claro é que não foi “anatematizada” a reencarnação, como dizem alguns adeptos da pluralidade das existências. Por isso retomamos essas palavras de Léon Denis, porquanto, temos visto, até no meio Espírita, muitos companheiros citando que Orígenes aceitava a reencarnação, para justificá-la como sendo crença da igreja primitiva, e, que, conforme vimos, isso não é bem a verdade.

E aqui temos uma defesa de um bispo católico, que ajudará a se colocar as coisas nos devidos lugares:
[...] É certo que alguns textos, como os do quarto concílio de Constantinopla, que se acreditou às vezes poder invocar contra a reencarnação, não se aplicam a ela em realidade; mas os ocultistas não puderam triunfar nisto, e, se for assim, é simplesmente porque, naquela época, a reencarnação ainda não tinha sido imaginada. Tratava-se de uma opinião de Orígenes, segundo a qual a vida corporal seria um castigo para almas que, «preexistindo em tanto que potências celestes, teriam chegado a saciar-se da contemplação divina»; como se vê, nisto não se trata de outra vida corporal anterior, mas sim de uma existência no mundo inteligível no sentido platônico, o que não tem nenhuma relação com a reencarnação. Custa trabalho conceber como Papus pôde escrever que «a opinião do concílio indica que a reencarnação formava parte do ensino, e que se havia quem voltava voluntariamente a reencarnar-se, não por desgosto do Céu, mas sim por amor de seu próximo, o anátema não podia lhes tocar» (imaginou-se que esse anátema se dirigia contra «o que proclamasse ter tornado sobre a terra por desgosto do Céu»); e se apoia nisto para afirmar que «a ideia da reencarnação forma parte dos ensinos secretos da Igreja» 151. [...]
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151. La Réincarnation, p. 171.
(GUÉNON, 2010, p. 221).
Na medida do que nos foi possível, eliminamos opiniões em que um autor listado citava um outro, pois só nos interessava a fonte inicial.

Aos interessados no assunto recomendamos que pesquisem; porém evitem as informações dadas por dogmáticos, estejam eles de que lado for, pois, por estarem presos a uma ideia que, muitas vezes lhes foi imposta, não percebem que a verdade pode ser bem outra daquilo que acreditam. Ao final, fora os listados como Referências bibliográficas, relacionaremos diversos livros sobre o tema reencarnação.

Uma coisa é certa: “O ensino da reencarnação é amado, detestado; favorecido, temido. Sempre era e é uma coluna dogmática das religiões orientais; foi ensinada nas escolas dos fariseus e essênios, e entre os judeus místicos da Cabala”. (CHAMPLIN e BENTES, vol. 5, 1995, p. 583). Além disso, é importante não largar o ponto de vista de que “Uma crença prova apenas a existência do 'fenômeno crença', mas de nenhuma forma a realidade do seu conteúdo” (JUNG).

Antes de finalizar, vamos transcrever o que Elizabeth Clare Phophet diz ser opinião de Orígenes, que se encaixa como uma luva nos que, refutando a reencarnação, defendem a ressurreição física dizendo “para Deus tudo é possível”:
Os ortodoxos usaram a frase “com Deus tudo é possível” para explicar a falta de lógica de uma ressurreição física. Mas Orígenes classificou esta crença como “pobreza intelectual” ou “falta de instrução”. Qualificando-a como “uma ideia excessivamente baixa e insignificante”10, disse que essas especulações contradiziam a afirmação de Paulo de que o corpo ressurrecto é espiritual. Orígenes achava que a doutrina da ressurreição física era para os “simplórios” e para o “povo comum, que é induzido a viver uma vida melhor através da sua crença”11.
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10. Origen, On Fist Principles 2.10.3, Butterworth, p. 140.

11. Origen, Against Celsus 5.19, citado em Jaroslav Pelikan, The Emergence of the Catholic Tradition (100-600), vol. 1 of The Christian Tradition: A History of the Development of Doctrine (Chicaco: University of Chcago Press, 1971), p. 48.

(PROPHET, 1999, p. 152-153).
Portanto, esse não é um bom argumento.

E, para encerrar, já que falamos tanto de Orígenes, vamos deixar a ele o fechamento deste texto:
Fica patente que a natureza humana é afligida com este obstáculo, se pensarmos na dificuldade que sentimos em mudar de opinião uma vez que ficamos na prevenção, ainda mesmo em favor das mais vergonhosas e mais fúteis tradições dos antepassados e concidadãos. (ORÍGENES,2004, p. 95). 

Sócrates e a doutrina do Voluntarismo "Poder é direito"




Rm 9:13 -  Como está escrito: Amei a Jacó, e aborreci a Esaú.
 Essa citação se baseia no trecho de Ml 1:2,3. Os intérpretes se têm esforçado extraordinariamente para enfraquecer o senso de «ódio» que aqui transparece, suavizando-o para «amor menor», ou alguma outra modificação qualquer. Qualquer pessoa que lê o contexto do segundo capítulo da profecia de Malaquias, entretanto, percebe claramente que as palavras «amar» e «aborrecer» devem ser entendidas em seu sentido literal. O trecho de Ml 1:4 fala dos edomitas como «Povo contra quem o Senhor está irado para sempre».

Na exegese ou interpretação, é necessário manter a honestidade a qualquer custo, em que, antes de tudo, se deve determinar o sentido exato de qualquer passagem bíblica dada. Somente quando um sentido é inaceitável é que o intérprete tem o direito de aliviar os elementos inaceitáveis, para que a interpretação resultante se coadune com o resto dos ensinamentos bíblicos, para que tal interpretação possa ser aceita pela consciência humana. Assim é que, nessa passagem de Malaquias, citada por Paulo neste versículo, não pode estar em vista qualquer outra coisa além do ódio literal, em que o Senhor aparece irado contra certo povo «...para sempre».

Realmente, isso parece ser contrário a tudo quanto sabemos sobre Deus, porque parece negar sua misericórdia e seu amor, como algo diametralmente contrário à mensagem do trecho de Jo 3:16. Portanto, na interpretação deste versículo, que oracomentamos, que se pode dizer? Não é honesto tentarmos reduzir o seu sentido a termos como, por exemplo, «amor menor», com a finalidade de aliviar certas passagens do A.T. de sua suposta excessiva severidade, supondo-se que Paulo usou os seus termos do mesmo modo que o fazia o A.T., como também não seria honesto aliviar certas ideias de Paulo de sua suposta excessiva severidade. É muito melhor afirmarmos que os homens, incluindo até mesmo homens bons e piedosos, nem sempre se mostraram coerentes e corretos em suas afirmativas sobre a natureza de Deus; antes, em determinadas ocasiões, tais homens têm injetado seus próprios sentimentos em suas declarações acerca da personalidade divina.

Desse modo, a nação de Israel odiava a nação de Edom, e os israelitas esperavam que seu ódio jamais se abrandasse. Portanto, os israelitas chegaram à suposição de que Deus compartilhava totalmente dos seus sentimentos.

VOLUNTARISMO

O «voluntarismo». Trata-se da noção filosófico-teológica de que a vontade de Deus é suprema, pois Deus agiria principalmente de acordo com a sua «vontade», e não de acordo com sua «razão». Isso significaria, por sua vez, que tudo aquilo que Deus determina por sua vontade é correto, sem importar o que o homem possa pensar sobre a moralidade dos atos divinos. Foi Sócrates quem ventilou a questão crucial, quando perguntou: «Uma coisa é direita porque Deus a determina pela sua vontade, ou Deus determina alguma coisa porque ela é direita?». E a noção do «voluntarismo» retruca: «Algo é direito porque assim Deus determina pela sua vontade». Portanto, se porventura Deus envia alguns homens para matarem e fazerem violência contra outros (conforme algumas passagens do A.T. pintam ao Senhor), isso se torna automaticamente correto, ainda que outras passagens bíblicas indiquem que matar é um pecado. Em outras palavras, segundo essa posição do«voluntarismo», Deus pode fazer aquilo que o próprio Deus disse ao homem ser imoral como prática humana, somente porque o homem tem a capacidade de praticar isto ou aquilo. Foi com base nesse pensamento que se criou a proposição que diz que «Poder é direito». Porém, precisamos confiar em Deus de que ele faz todas as coisas segundo a razão e a justiça, e não meramente de forma caprichosa e arbitrária. Outrossim, precisamos crer que Deus não pratica aquilo que ele mesmo proibiu aos homens fazerem. Por conseguinte, o ponto de vista do «voluntarismo», acerca da personalidade de Deus, dentro ou fora das Escrituras, sob qualquer forma que esse ponto de vista assume, é errôneo, e deve ser peremptoriamente rejeitado.

Considerações Sobre O Voluntarismo

1. O voluntarismo é o âmago mesmo da reprovação ativa, pois, mediante esse fator é que Deus endurece, condena e julga, devido à sua própria vontade soberana, inteiramente à parte do que o homem tenha sido, seja ou possa vir a ser.

2. Não podemos ignorar a mensagem do nono capítulo de Romanos, supondo que se relacione somente a juízos temporais, à eleição de nações, e não de indivíduos, ou que estejam envolvidos apenas princípios religiosos, e não individuais.

3. Se asseverarmos que existem «razões» por detrás da «vontade» divina, então já teremos abandonado a ideia do verdadeirovoluntarismo, o que dá a ideia de mera ação da vontade, levada pelo capricho. Isso será uma verdade, mesmo que cheguemos a supor que as razões são divinas, completamente ocultas da inteligência e da pesquisa humanas. A maioria dos teólogos supõe a existência de motivos, divinos ou humanos, ou mesmo ambos, pelo que não são verdadeiros seguidores da ideia dovoluntarismo.

4. O voluntarismo se relaciona com a «reprovação». Veja sobre esse tema, em Rm 9:10.

5. O trecho de Rm 9:30—10:21, ensina-nos que a vontade e o agir humano entram em cena na questão da salvação, pelo que qualquer forma de voluntarismo é abandonada. Se destacarmos no nono capítulo desta epístola, porém, não poderemos afirmar tal coisa. Será isso, igualmente, um paradoxo? O voluntarismo é uma verdade, por um prisma divino; porém, não é a única verdade, posto existirem considerações humanas. Mas é verdade, seja como for, que estamos manuseando aqui com elevadas doutrinas e profundas realidades espirituais que são essencialmente misteriosas para nós, no presente; e que essa é uma das chaves da interpretação dessas questões complicadas.

«De nada nos vale tentar suavizar essas expressões bíblicas. Malaquias tencionou que elas fossem compreendidas bem literalmente... e elas foram literalmente aceitas pelo apóstolo Paulo. (Porém, não nos devemos olvidar, como também ficará bem claro mais adiante, que Paulo falava, pelo menos até certo ponto, hipoteticamente). O ato divino da seleção de Jacó, pois, foi um ato de pura graça, não estando condicionado aos méritos de Jacó e nem ao fracasso moral de Esaú. Paulo, portanto, poderia ter concluído, como parte de seu argumento, o seguinte: 'Agora, o que impediria Deus de tomar uma decisão posterior, sobre quem pertenceria a Israel que haveria de receber o cumprimento de suas promessas? De fato (conforme ele diz em Rm 4:16), os beneficiários dessa promessa não precisavam ser judeus, sob hipótese alguma'. Em outras palavras, o pacto de Deus com Israel não poderia ser considerado invalidado, mesmo que todos os judeus rejeitassem o evangelho e perdessem o cumprimento da promessa, porque 'Israel' significa não os judeus, por descendência natural, e, sim, os eleitos, sem importar a nação de que vieram». (John Knoxin loc).

«A atitude profana de Esaú foi o motivo paralelo, mas não a causa da seleção divina de Jacó. A razão dessa escolha só pode ser encontrada no profundo do coração de Deus, aquele mundo 'escuro de tanta luz'. Tudo está bem ali, mas nós não conhecemos tudo quanto existe ali.

Assim somos elevados até à porta fechada do santuário da escolha divina. Toquemos nela; ela é adamantina, e estáhermeticamente trancada. Ne­nhum tirano inacessível está assentado em seu interior, brincando com ambos os lados de um jogo da sorte, indiferente aos clamores das almas humanas. O portador da chave, cujo Nome está gravado na porta, é: '...e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos, e tenho as chaves dá morte e do inferno' (Ap 1:18). E se porventura apurarmos os ouvidos, haveremos de ouvir palavras no íntimo semelhantes à suave e profunda voz de muitas águas, mas que procedem do coração eterno: 'Sou o que sou; quero o que quero; confiai em mim'. Não obstante, a porta está trancada, e a voz é misteriosa». (Moulein loc., que salienta aqui um elemento necessário para a nossa interpretação sobre toda esta passagem. Pois as questões relativas à predestinação e à eleição não podem ser explicadas por qualquer raciocínio humano, embora tenhamos algo de significativo para dizer).

Não nos devemos esquecer do ponto principal de toda essa discussão, que retrocede até ao versículo seis deste capítulo e da proposição ali proferida. O propósito de Deus não falhou, embora a maioria da população israelita tenha rejeitado o Messias, já que o acolhimento ao Messias dependia da eleição da graça. Paulo não ventila o outro lado do paradoxo, isto é, qual o papel desempenhado pelo homem. Esta ideia sé evidencia, entretanto, em outras passagens das Escrituras.

«...como está escrito...» Com essas palavras, Paulo introduz os seus principais argumentos neste texto, com a intenção de mostrar que a sua teologia não era criação sua, mas antes, era aquela que concordava perfeitamente com os ensinamentos do A.T. Os versículos sétimo e nono apresentam essa harmonia entre Paulo e o A.T., por meio de citações, sem a fórmula, «está escrito». Essa frase ocorre por dezessete vezes na epístola aos Romanos, assim vinculando as importantes porções da mensagem dessa epístola a ideias já existentes no A.T. Por conseguinte, Paulo defendia o tema da continuação da revelação do Antigo no Novo Testamento. Isso, demonstra que Jesus era o Messias prometido no A.T., porque o N.T. foi escrito para descrever o sentido e a importância de Cristo para os homens. (Quanto à apologia cristã primitiva, que tinha por desígnio demonstrar essa verdade, ver Jo 7:45. Quanto aos diversos trechos onde essa expressão «está escrito», ocorre nesta epístola aos Romanos, ver as seguintes referências: Rm 1:17; 2:24; 3:4,10; 4:17,23; 8:36; 9:13,33; 10:15; 11:8,36; 12:19; 14:11; 15:3,9,21. O trecho de Rm 15:4 contém a mesma ideia, apesar de não estar vazada exatamente nas mesmas palavras; em vários lugares, são citados trechos do A.T., sem a fórmula específica «está escrito», conforme se verifica nos versículos sétimo e nono deste capítulo).