terça-feira, 22 de novembro de 2011

Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito.Algum tipo de menção ao Jesus do Novo Testamento ?

O Talmud.

Em 66 e.c. os judeus ergueram-se contra o poder romano. A resposta imperial foi implacável e conduziu a região a um conflito que durou sete anos. Populações inteiras foram massacradas ou escravizadas e o Templo de Jerusalém foi destruído. No caos que se seguiu, apenas dois movimentos político-religiosos de origem judaica sobreviveram de forma consistente: o cristianismo e o farisaísmo. A persistência do primeiro deveu-se às suas inovações teológicas e a uma política de proselitismo entre os não-judeus. A do segundo à sua incisiva defesa das tradições.

Os fariseus eram um grupamento importante nos anos que antecederam a guerra. Segundo Flávio Josefus tinham “grande confiança das massas” e “todas as preces e ritos sagrados de adoração divina” eram “executados de acordo com sua exposição” . Consideravam-se detentores de normas ancestrais . Gravitando entre partido político e seita religiosa, os fariseus estavam associados aos escribas, o grupo que se dedicava ao estudo e preservação dos textos sagrados e que emergiram na vida política judaica após as reformas de Esdras (V século a.e.c.). Constituíam-se em um grupo dotado de preocupações ordenadoras e preservasionistas, fortalecidos numa era de grandes desafios identitários.

Sua atitude diante do levante é difícil de ser precisada. Não parece, no entanto, que tenham apoiado a rebelião de forma ostensiva. O que é certo é que no pós-guerra entenderam-se, e assim foi aceito por setores substanciais da sociedade judaica, como a corrente de opinião capaz de condensar as ansiedades nacionais e religiosas. Diante da desagregação subseqüente, na qual o cristianismo pretendia erguer-se como a única resposta religiosa possível, os fariseus trabalharam pela sobrevivência do judaísmo.

Os fariseus se consideravam detentores de uma tradição específica, a, assim chamada, Mishnah, literalmente “Ensinamento”. Tratava-se de um conjunto complexo de disposições legais e filosóficas, conhecido também como a Torah oral. Aceitava-se que se constituía em material complementar à Torah escrita e fundamental para sua correta compreensão. Tal tradição não tinha uma aceitação geral no período anterior ao levante. Para os fariseus, no entanto, era a espinha dorsal de uma particular visão de mundo. A sua origem, do ponto de vista mítico, era entendida como associada à revelação de Moisés, tendo sido transmitido por este a Josué, depois aos anciãos, aos profetas, aos homens da Grande Assembléia (os soferim, os escribas), e finalmente aos líderes dos fariseus. A tradição atribui às academias dos mestres Hillel e Shammai o início do processo de organização desse vasto material, ainda em períodos anteriores ao primeiro levante.

Após a guerra, depois de 73, vários sábios estiveram envolvidos no processo de consolidação da Mishnah. Inicialmente os eruditos se reuniram na academia de Jabneh, dirigida por Johannan Ben Zacchai. Na geração seguinte os trabalhos foram conduzidos por diversos intelectuais, entre eles o Rabbi Akiva, nos difíceis momentos do segundo levante judaico. Em torno de 220 a Mishnah teria sido completada por Rabbi Judah o Príncipe, que lhe deu a definitiva organização, em ordens, tratados e capítulos. Foi então estruturada em seis ordens, 63 tratados e 523 capítulos. 11 tratados da ordem Zeraim (leis agrícolas), 12 da ordem Moed (leis relativas a festivais judaicos), 7 da ordem Nezikim, (jurisprudência civil e criminal), 11 da ordem Kodoshim (sobre o santuário e leis alimentares) e 12 da ordem Toharoth (a respeito de pureza e impureza). Todos os sábios que contribuíram para essa versão final da Mishnah, cerca de 150, passaram a ser tradicionalmente conhecidos como tannaim, isto é, os professores .

Com as comunidades judaicas espalhadas por diversas regiões do mundo, e desaparecido o poder centralizador do Templo de Jerusalém, foram os rabbis, através da preservação e estudo da Mishnah, os responsáveis pela manutenção de identidade religiosa do judaísmo. Era esta, na prática, como já afirmamos, a única identidade sobrevivente, entre diversas que pereceram nos dois levantes judaicos e diante do cristianismo, que a negava. Era também a única imbuída de autoridade, tendo sido os sacerdotes depostos de seu poder político pelas legiões romanas. A capacidade dos rabbis em pensar o judaísmo sem o Templo aprofundou a sua liderança . Através da instrumentalização da sua Mishnah, da Torah oral, os rabbis, herdeiros e continuadores dos fariseus, se transformaram no grupo intelectual dominante dentro do judaísmo.

A partir do III século a discussão sobre os conteúdos da Mishnah foi conduzida pelos amoraim, os expositores. Foram eles que começaram a elaborar o Talmud, ou Gemara, isto é o comentário, no caso, sobre a Mishnah. Na Palestina, os principais mestres foram Rabbi Johanan (morto em 279) e Abbahu de Cesarea. Em 425, no entanto, todas as academias judaicas que existiam dentro do Império Romano foram fechadas, por ordem do imperador cristão, e o movimento de exegese mishnaica foi interrompido. Parte decisiva na consolidação desse processo passou a ser desempenhado pela comunidade judaica diaspórica, especialmente a da mesopotâmia. Esta, fora do limes romano, gozou de grande liberdade e prosperidade por séculos. Foi ali que Rab, que havia estudado com Judah o Príncipe na Palestina, fundou, em 219, a Academia de Sura. Nessa instituição, e na academia de Pumbedita, em condições políticas e intelectuais favoráveis, sob os soberanos persas sassânidas, o comentário continuou a ser desenvolvido, incorporando as antigas discussões palestinas e novas abordagens babilônicas. Um texto mais ou menos consolidado foi fixado por Ashi, diretor de Sura por 52 anos, em torno de 427, e consolidado por Rabina, em torno de 499. Aos capítulos da Mishnah, assim, foram acrescentados os comentários dos amoraim. Estes constituem a Gemara, de fato atas de reuniões ou coletâneas de opiniões, que envolvem não apenas afirmações amoraítas, mas tanaíticas e de fontes diversas.

Judeus e Cristãos no Talmud.

Os conflitos entre os primeiros cristãos e os judeus foram intensos. A literatura cristã primitiva denuncia a permanente resistência que as lideranças judaicas, e especialmente os fariseus, sustentaram diante do cristianismo nascente. Os textos judaicos, no entanto, e especialmente o Talmud, parecem ambíguos e obscuros à respeito da natureza desse embate. Os textos cristãos se justificam na oposição ao judaísmo, por isso insistem em denunciar os fariseus. Mas o Talmud se estrutura a partir da exegese de suas tradições. Ele não mostra, assim, uma preocupação especial para com o cristianismo. As reticências contra o pensamento cristão são, na verdade, compartilhadas com relação a todas as religiosidades não-judaicas. Daí o fato de que no Talmud não sejam encontradas referências explícitas ao cristianismo e, no caso que nos interessa, a Jesus. Observemos que a denominação talmúdica normalmente aplicada ao cristão é min, isto é, “herético”. Mas o mesmo epíteto pode ser estendido, por exemplo, ao saduceu ou a qualquer judeu tido por desviante. O termo é precisado “por Rabbi Nahman em nome do Rabbi Bar Avuha”: “Não existem heréticos entre os gentios” . Isto significa que este nome, quando necessário, deve ser aplicado aos judeus convertidos ao cristianismo ou aos dissidentes religiosos judaicos, mas não aos gentios, ou aos gentios tornados cristãos. O que não é judeu não é objeto especial do comentário rabinico.

O Talmud foi elaborado em sua forma final na Babilônia. Embora numerosos, os cristãos da mesopotâmia foram em sua maioria instalados ali após 240, por Shapur I. O soberano sassânida deslocou populações cristãs da Síria, Cilícia e Capadócia, e estas tiveram um desenvolvimento histórico particular na região. Primeiro, não emergiram da comunidade judaica babilônica e assim eram estrangeiras diante desta. Segundo, nunca exerceram poder de Estado, o que as tornava mais uma entre diversas minorias da área. Terceiro, não acompanharam as perspectivas teológicas oriundas do Império Romano. Alguns cristãos mesopotâmicos adotaram o nestorianismo, em 484, mas havia uma forte presença marcionista e gnóstica . Não nos parece, portanto, que o cristianismo tivesse para as comunidades judaicas da mesopotâmia a mesma dimensão que tivera séculos antes para os judeus do mediterrâneo oriental. Mas mesmo entre estes as possíveis críticas ao cristianismo também eram sempre generalizáveis a outros movimentos religiosos. Observemos a intervenção do Rabbi Chia bar Abba no Pesikta Rabbati, uma coleção midráshica medieval fundada em tradições judaicas palestinas dos IV-V séculos: “Se um bastardo (“mamzer”) diz para você: “Existem dois deuses”, responda a ele: Está aqui (Deut. 5,4) escrito não Deuses, mas sim o Senhor, aquele que falou com você cara a cara” . O mamzer é um judeu fruto de qualquer união sexual ilegal e portanto desprovido da plena identidade judaica. Esta crítica teológica é ambígua, e pode tanto ser aplicada a um judeu-cristão, que acredita na divindade do Pai e do Filho, quanto a um judeu tornado sectário do dualismo mazdeísta, ou do maniqueísmo, que crê na análoga potência cósmica do Bem e do Mal. Tende-se assim a dar respostas gerais que deêm conta dos diversos riscos externos que são decorrentes da violação das leis judaicas.

Recorrer ao Talmud para encontrar referências históricas sobre Jesus tem sido uma tarefa difícil, portanto . O Talmud, além do mais, não é um texto que possua uma estrutura narrativa comparável à dos textos cristãos. As discussões contidas na Mishnah e na Gemara são expostas de maneira complexa e pluralista, registrando as diferentes opiniões de diversos rabbis. Os temas são tratados de forma impressiva, mediante associações subjetivas, e as posições registradas o são muitas vezes de forma não congruente com o assunto inicial que se pretende tratar. São reunidos, num mesmo texto, opiniões dos tannaim, dos amoraim, de outras pessoas e fragmentos de folclore. Afirmações peremptórias são sujeitas à crítica de outros eruditos e podem inclusive ser rejeitadas pela maioria em determinada passagem, novamente corroboradas em outra. A lógica básica é, talvez, que a infinitude do pensamento divino traduz-se em infinitude de interpretações, e todas elas seriam movimentos aproximadores, que complementariam, esclareceriam e inovariam a compreensão da teofania do Sinai. A interpretação é “a continuação direta de uma revelação original, e uma extensão do próprio texto”. As palavras da Torah são assim comparadas “a uma figueira que dá frutos perpetuamente” . O Talmud contém atas de reuniões que ocorreram em diferentes tempos e lugares, nas quais sábios refletem livremente sobre a aplicação e o sentido da lei judaica. Não se trata, portanto, de um livro de história. O seu objetivo é a exegese da Torah, a reflexão sobre os infinitos sentidos da revelação do Sinai, a discussão ampla sobre a natureza da condição humana segundo a perspectiva judaica.

Parábolas e histórias diversas fazem parte do Talmud. São contadas ou relembradas pelos rabinos, no decorrer de suas discussões, para reforçar argumentos, ilustrar um tópico, convidar à reflexão. Na lembrança dos que as contam e daqueles que as transcreveram, no entanto, está presente a densidade característica da memória e do mito. Não há precisão no nível da realidade, mas sim no do metafísico e do imaginário. O sentido dessas narrativas está no que elas revelam de essencial, absoluto, transcendente, eterno, não no que possuem de transitório, imanente e histórico. “Um certo Min”, certo dia, questionou o Rabbi Abahu sobre as inconsistências históricas do texto bíblico, onde, às vezes, uma coisa que veio depois é dada como tendo vindo antes e fenômenos análogos. Abahu respondeu que “Para você que não deriva interpretações de justaposição, isto é uma dificuldade, mas para nós que derivamos interpretações de justaposição isto não é uma dificuldade... porque é o capítulo de Absalão justaposto ao capítulo de Gog e Magog? Se alguém perguntar se é possível um escravo se rebelar contra seu mestre, você pode replicar a ele: é possível um filho se rebelar contra seu pai? Isso aconteceu e assim isto irá acontecer” . Assim, as duas histórias, diferentes entre si em grandeza e temporalidade, lidam na verdade com o mesmo fenômeno: a rebelião das nações contra o Eterno.

Jesus é mencionado no Talmud? Muitas dúvidas cercam as respostas possíveis. A nossa tentativa, neste texto, é analisar as dificuldades e possibilidades do tema, especialmente na parábola de Yeshu Ha Notzri e sua viagem ao Egito.

O ciclo de Yeshu Ben Pandera.

As passagens do Talmud que supostamente mencionam Jesus são, como adiantamos, muito duvidosas. Algumas só foram identificadas enquanto tais a partir de tradições cristãs primitivas, por exemplo em Orígenes, citando o filósofo neo-platônico Celso , e de uma leitura católica um tanto ou quanto tendenciosa de seu conteúdo. A Igreja de fato as condenou em 1263 e o próprio Talmud foi colocado no index, por conta delas também, em 1559. Em sua maioria são curtas e pontuais referências a um certo indivíduo chamado de forma alternada Yeshu Ben Pandera ou Ben Stada. Esta personagem é mencionada como sendo um mamzer, um bastardo, que atuou de forma perniciosa na comunidade judaica. Seu pai legal se chamaria Paphos ben Yehudah e sua mãe Stada, ou “Míriam, a cabelereira” . Seu pai verdadeiro, no entanto, seria um legionário romano, de nome Pandera . Os cristãos sustentaram, por séculos, que Ben Pandera continha uma referência blasfema a Jesus de Nazaré. Mas a simples leitura dos textos contribui para inviabilizar essa versão. Na verdade, Paphos ben Yehudah, o pai legal de Ben Pandera, teria vivido, segundo o Talmud, na época da segunda guerra judaica (132-135 e.c.), tendo sido preso junto com o Rabbi Akiva, embora não por razões político-religiosas como este, mas “por assuntos banais” . Ben Pandera, portanto, viveu na época do levante de Bar-Kochba, em torno de 130. O Talmud aprofunda a história, explicando que Ben Stada foi julgado por uma corte judaica, condenado a ser apedrejado e executado na cidade de Lud na véspera da Páscoa . André Chevitarese, em recente artigo, confirma que essa narrativa de fato só começou a circular “entre os judeus helenistas da Diáspora a partir da segunda metade do século II” . Isto é, após a segunda guerra. Assim, embora também chamado Yeshu, um nome bem comum, na verdade, e, nessa época, já célebre, Ben Pandera não é o Jesus de Nazaré. Não são poucos os que adotarão o nome de Jesus para encontrar mais legitimidade em suas pregações, e esse pode ser o caso. Trata-se de uma personagem, portanto, sobre a qual nada sabemos por outras fontes.

A identificação de Ben Pandera com o Jesus do Novo Testamento foi criticada desde há muito como intencionalmente maliciosa, pela óbvia caracterização negativa nela contida . No entanto, devemos argumentar que o Talmud deriva “interpretações de justaposições”. Assim, o ciclo de Ben Pandera pretende estar referido à algum fenômeno que transcende a sua própria história. Relaciona-se, provavelmente, à sempiterna preocupação talmúdica com os marginais diversos, aqueles que transitam entre os mundos judaico e gentio, como o mamzer, filho ilegítimo, ou como o min, herege, e o final trágico que é reservado a todos eles, isto é a morte física ou identitária. Se o assunto está relacionado a Jesus de Nazaré não está explicitamente dito. De fato, quem construiu ou registrou a justaposição foram, de forma documentada, cronistas e intérpretes cristãos. Trata-se de uma interpretação que não está escrita ou sequer é sugerida no Talmud.

Mas é justo também acrescentar que a crença de que a ilegitimidade de nascimento engendra o perverso não é exclusiva dos judeus e estava instalada no imaginário cristão medieval. Observemos o papel simbólico que a prostituta representa como a fonte do mal no Apocalipse (p.ex. 17,1) e a crença medieval de que o Anticristo nascerá de uma anti-virgem, uma prostituta. As origens deste mito também se encontram em período posterior à segunda guerra judaica. Hipólito de Roma, no século III, afirmou que o Anticristo em tudo será semelhante ao Cristo, mas, como o título sugere, invertido, tendo sua identidade fundada no mal. Assim como Cristo foi um “leão por conta de sua realeza e glória...” o Anticristo será “um leão, por conta de sua tirania e violência”. E assim como “o Salvador veio ao mundo na circuncisão, o Anticristo deverá vir da mesma maneira” . Isto é, além de nascer de uma mulher impura, de forma inversa à Maria, o Anticristo nascerá do povo judeu, cuja identidade é anti-identidade, ilegítima.

Yeshu Ha Notzri no Egito.

Mas há outra passagem do Talmud, uma parábola, na qual tem sido sugerida a existência de algum tipo de menção ao Jesus do Novo Testamento. Nela, um dos personagens é denominado Yeshu Ha Notzri. Apenas um entre quatro manuscritos do Talmud contém essa denominação. Isto pode ser explicado quer pela auto-censura da maioria dos copistas, quer por alguma tradição especial da qual algum deles era portador, quer pela simples e silenciosa decisão de acentuar uma idéia ou uma identificação/justaposição. Notzri é de fato um termo bíblico, utilizado, por exemplo, em Jeremias 4,16, e foi traduzido na Bíblia de Jerusalém como “inimigo”. No entanto, o seu sentido mais preciso, tal como utilizado na tradução do Tanach pelo Rabbi Nosson Scherman é “aquele que sitia”. Nos dois casos é clara a necessidade de especificar que este Yeshu possui uma característica especial. A sua qualificação o identifica àqueles que avançam contra o povo judeu, para os sitiar ou destruir, uma idéia forte nas comunidades diaspóricas, especialmente quando diante da autoridade cristã. Além do mais, a palavra pode evocar outras duas: Nazoreu e Nazaré. Poderia assim ser uma tentativa de identificar a personagem quer com o movimento dos nazoreus quer com Jesus de Nazaré. As dificuldades neste último sentido são visíveis, no entanto, mas a tradição de identificar este Yeshu com Jesus não é totalmente insustentável, como veremos. De qualquer maneira, essa parábola não guarda correspondência com o ciclo de Ben Pandera, e as justaposições que contém são explícitas. Ela se inicia com uma afirmação de caráter geral:

“Os Rabbis ensinaram: Sempre deixe a mão esquerda repelir e a mão direita convidar, não como Elisha, que repeliu Gehazi com ambas as mãos e não como Rabbi Joshua ben Perachiah que repeliu Yeshu Ha Notzri com ambas as mãos...”

A história em questão, envolvendo Eliseu e seu servo Giezi está em 2Reis 5, 20-27. Naamã, um arameu, foi curado da lepra por Eliseu. Ofereceu dinheiro ao profeta em troca da cura, e este recusou. O servo de Eliseu, Giezi, aproveitando-se da situação, procurou Naamã secretamente. Alegando vir em nome do profeta e uma falsa razão religiosa, pediu-lhe dinheiro. Naamã, agradecido como estava, deu-lhe dois talentos de prata e duas vestes de gala. Eliseu, no entanto, descobriu o ocorrido e puniu Giezi com a lepra que fora de Naamã. Trata-se de uma parábola ética. Não se coloca em dúvida o erro de Giezi, mas os rabinos parecem concordar que a decisão de Eliseu foi errada, além de desproporcional. Na prática defendem que toda repreensão deve conter em si um movimento equilibrado entre repelir e convidar. Condenar o ato e perdoar a falha, para introduzir o diálogo e impedir a repetição do erro. Trata-se da arte de se relacionar com o outro, quando se tem em mente padrões éticos precisos e de trabalhar pela Justiça. Entramos aqui, portanto, na história de Yeshu Ha Notzri:

“E o Rabbi Joshua ben Perachiah? Quando o Rei Yannai matou nossos Rabbis, Rabbi Joshua ben Perachiah e Yeshu fugiram para Alexandria, no Egito. Quando houve paz, Rabbi Shimon ben Shetach mandou-lhes uma carta: “De Jerusalém, a cidade sagrada, a você Alexandria do Egito. Meu marido permanece em seu meio e eu estou desamparada” Assim, Joshua ergueu-se e voltou. No caminho encontrou uma certa taverna. E nessa taverna o trataram com grande respeito. Então ele disse: “Que linda é esta hospedaria!” Yeshu disse para ele: “Rabbi, ela, a hospedeira, tem olhos apertados”. Joshua disse: “Pecador, é nisto que está pensando?” Joshua então o expulsou. Yeshu veio ante Rabbi Joshua várias vezes e disse: “aceite-me”. Mas Rabbi Joshua não lhe deu atenção. Um dia Rabbi Joshua estava recitando o Shemá e Yeshu veio a ele. Ele estava pronto para aceitá-lo e assinalou a ele com sua mão [esquerda, já que a direita cobria o rosto em concentração]. Yeshu pensou que Rabbi Joshua o estava repelindo. Ele se foi, tomou uma lápide e curvou-se diante dela em adoração. Yeshu disse então a Rabbi Joshua: “Você me ensinou que qualquer um que peque e conduza os outros ao pecado não tem uma oportunidade de se arrepender”. E o Mestre disse: Yeshu Ha Notzri, praticou magia e engano e desviou Israel.”

A história se passa durante o final do reinado do soberano asmoneu Alexandre Yannai (103-76 a.e.c.). Durante seu governo foi movida campanha violenta contra os fariseus, como anotou Flavio Josephus, só encerrada após a sua morte com a ascensão da viúva Salomé Alexandra . Inicialmente, este Yeshu não é Ben Pandera por duas razões. Primeiro, não há uma correspondência temporal, já que esta parábola tem lugar quase duzentos e cinqüenta anos antes. E segundo, considerando a estatura religiosa de Joshua ben Perachiah- é denominado de ”marido” de Jerusalém- jamais poderia ele ter como discípulo um mamzer, como era Ben Pandera. Apesar de tentadora, igualmente, a possibilidade de entende-lo como o Jesus de Nazaré também em princípio não se sustenta, considerando a grande distância temporal. A não ser que consideremos que Jesus de Nazaré não viveu na época declarada no Novo Testamento, mas em outra, anterior, o que é uma especulação sem fundamentação, até onde podemos alcançar com os documentos de que dispomos .

Apesar disso, há nessa parábola um encantamento particular, pelas justaposições, declarada e subentendidas, que provoca. Aos rabinos a atitude de Eliseu parece estruturalmente errada. Não se deve repelir o pecador sem, ao mesmo tempo, deixar um caminho aberto ao arrependimento, isto é, à aproximação. A lepra de Giezi lhes parece excessivamente severa e inútil: não permite que o servo se arrependa, isto é, entenda seu erro e o corrija, e inviabiliza a Eliseu o movimento humano do convite, da proximidade. A rigidez de Eliseu é, portanto, excessiva para o pecado cometido. E no seu pessimismo diante da possibilidade de arrependimento do outro, está a projeção de uma rigidez e intolerância para consigo mesmo já que, afinal de contas, também ele é um humano. A mesma lógica aplica-se a Joshua ben Perachiah.

Aqui, reflete-se abertamente sobre um dos grandes temas judaicos no período posterior à expansão macedônica: o caráter perverso das influências helenísticas. Joshua e Yeshu, com efeito, são judeus observantes- e não poderia ser de outra maneira. Dirigem-se, no entanto- e exclusivamente por razões de perseguição política-, a Alexandria do Egito. Esta cidade era um dos principais centros helenísticos do mediterrâneo oriental. O tema do deslocamento para o Egito quando de perseguições em Judá está presente também na literatura neo-testamentária, Mt 2,13-15, por exemplo. Mas o Talmud insiste que o Egito, embora pudesse representar um abrigo importante, provavelmente por conta de sua importante comunidade judaica, também apresentava perigos consideráveis. “Dez medidas de feitiçaria vieram ao mundo. O Egito recebeu nove medidas, e todo o resto do mundo uma” . No ciclo de Ben Pandera consta a informação de que este trouxe fórmulas mágicas do Egito “em cortes na sua pele” , talvez porque, assim acreditaria séculos depois Rashi, um eminente comentarista talmúdico, os egípcios proibissem a saída de seus livros mágicos do país. Ben Pandera não teve outro meio de levar as formulações senão inscrevendo-as no seu corpo. Essa visão do Egito como a terra da magia e dos livros mágicos é forte na literatura helenística e no mundo antigo. Está na base da importância multi-secular dos textos herméticos, por exemplo, tidos como de lá originados.

Yeshu Ha Notzri, portanto, é entendido como tendo sofrido razoável contaminação religiosa estranha no Egito. Joshua, ao chegar à hospedaria, reconhece a correta execução das formalidades devidas e, como fariseu que é, vê nessa correção argumento suficiente para elogiar o lugar e seus donos. Yeshu, no entanto, faz uma observação ambígua sobre o olhar da dona do estabelecimento, que parece talvez questionar a honestidade do ambiente. A observação de Yeshu, de qualquer forma, demonstra seu interesse pela hospedeira, ou pelo que ela contém em seu interior, pelo que está além do formal. Essa é uma preocupação helenizante, porque implica no reconhecimento e aceitação da ascendência da subjetividade sobre a objetividade legal. A reação de Joshua, embora advinda de uma escrupulosa observância religiosa, é criticada pelo Talmud: ele simplesmente nega e recusa Yeshu de forma absoluta e o expulsa de sua presença. Yeshu o procura várias vezes, para se desculpar, mas Joshua se recusa a vê-lo. Não quer conversar com ele. O está repelindo, portanto, com “ambas as mãos”.

A parábola conclui com a explicação de que Joshua afinal decide aceitar Yeshu, mas parece que tarde demais. De forma marcadamente simbólica, Yeshu procura seu mestre pela última vez na hora em que este recita a declaração de fé judaica, o Shemá: Shemá Israel, Adonai heloheinu, Adonai ehad, “Escuta Ó Israel, o Eterno é nosso Deus, o Eterno é Um”. A tradição estabelece que no momento de proferir essa frase, o judeu deve cobrir os olhos com a mão direita, em concentração, como sinal de aceitação da determinação divina. Como vimos, é esta a mão que convida, que dialoga. Incapaz de mover a mão direita, Joshua acena a Yeshu, aceitando-o, mas o faz com a mão esquerda, que é a mão da repulsa. É claro que para Joshua a utilização da mão esquerda não teria o sentido de repulsão, pois o mandamento divino tinha, para ele, óbvia precedência e não haveria outra mão com a qual pudesse convidar. Esse pequeno incidente, no entanto, adquire gigantesca dimensão com a cumplicidade de Yeshu. Mais uma vez este desconhece o imperativo da Lei, pois parece entender que Joshua deveria ter interrompido o Shemá para aceitá-lo, o que significaria colocar o humano, Yeshu, acima do divino. Suas conclusões sobre o acontecimento são radicais: ele afirma que Joshua lhe ensinou que não há perdão para os erros. Sai então do judaísmo. Como tudo fora da tradição era tido como idolatria ou feitiçaria, ele se torna, numa definição geral e ambígua, idólatra. Yeshu condena toda sua antiga identidade religiosa como intolerante porque Joshua ben Perachiah não o perdoou no momento certo, isto é, no seu momento. O erro de Joshua duplica-se em Yeshu, pois este também recusa o mestre e o seu próprio povo “com ambas as mãos”.

Sob o ângulo da justaposição Yeshu Ha Notzri lembra-nos realmente Jesus de Nazaré, pelo menos na forma como muitos cristãos o entenderão a partir da pregação de Paulo. Ele parece, inclusive, defender uma das teses centrais da literatura paulina: a superioridade do amor sobre a lei. É claro que aqui, mais uma vez, não se trata de uma referência direta ao cristianismo, mas a toda atitude judaica de incorporação de valores estranhos, principalmente helenísticos, ou a todo eventual movimento humano de flexibilização de regras e princípios existentes. “Os Rabbis ensinaram: Sempre deixe a mão esquerda repelir e a mão direita convidar, não ... como Rabbi Joshua ben Perachiah que repeliu Yeshu Ha Notzri com ambas as mãos”. É evidente que a crítica rabínica é clara com relação a Yeshu, pois a sua atitude não é, sob qualquer hipótese, justificável. Assim como Giezi errou ao mentir e enganar, Yeshu não deveria ter feito um comentário tão subjetivo e duvidoso sobre a dona da estalagem e jamais poderia ter interrompido um Shemá, judeu como era, ou mesmo condenado toda uma tradição e um pacto, apenas por conta do erro de um homem. Mas é também uma crítica extensível a Yoshua. E uma advertência aos estudiosos do Talmud. Nenhum mal-entendido teria ocorrido se Joshua tivesse ensinado a Yeshu a verdadeira natureza do perdão, a arte da tolerância que é tão presente em todo corpo textual talmúdico. E era essa a sua função como mestre, isto é, dar o exemplo. De fato, caberia a Yoshua, com sabedoria, saber lidar com o diferente e convidá-lo, com a mão direita, ao diálogo e à prática da Justiça.

Conclusões.

O Talmud não parece conter referências claras ao Jesus histórico. Mas encontramos nele a presença constante da discussão sobre a dinâmica da relação dos judeus com o mundo. Nesse sentido, a parábola de Yeshu Ha Notzri propicia uma reflexão sobre os dramáticos mas recorrentes momentos em que, no contato com a sociedade que os cerca, os judeus absorvem idéias estranhas e as testam no interior do judaísmo. Provavelmente perniciosas, no entanto não devem, como os rabbis advertem, ser entendidas como razão de ruptura, mas como oportunidade para o diálogo e compreensão mais precisa da Lei, ou, talvez mais acertadamente, da Justiça que a suporta. Posição esta cobrada tanto de Yoshua quanto de Yeshu. É muito visível que essa história pode ser justaposta também ao dramático período histórico de rompimento entre as comunidades cristãs e judaicas, num sentido amplo. A parábola de Yeshu Ha Notzri refere-se não apenas aos desentendimentos entre tendências religiosas judaicas, mas também às usuais e recorrentes rupturas entre religiões, grupos humanos, famílias e pessoas. Se não é a história a principal preocupação talmúdica, mesmo assim o Talmud assevera que devemos, seres humanos, aprender a partir da reflexão sobre essa mesma história e seus muitas vezes insensatos momentos.



quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Madden-Hare-Cahn-Stein: E as" balanças" do deus benévolo e do deus malévolo

Este artigo desenvolve um desafio ao teísmo. O desafio é explicar por que a hipótese de que existe um Deus onipotente, onisciente e onibenevolente deveria ser considerada significativamente mais razoável do que a hipótese de que existe um Deus onipotente, onisciente e onimalevolente. Os teístas geralmente descartam de imediato a hipótese do Deus malévolo devido ao problema do bem – não há dúvidas de que existem muitas coisas boas no mundo para que este seja a criação de tal ser. Mas então por que razão o problema do mal não provê razões igualmente boas para se descartar a crença num Deus bondoso?

O desafio do Deus Malévolo

Denominemos a afirmação central clássica do monoteísmo – segundo a qual existe um criador onipotente, onisciente e supremamente benévolo – a hipótese do Deus benévolo. Geralmente, os que acreditam nesta hipótese , embora talvez insistam que esta seja uma ‘atitude de fé’, ainda assim não a consideram desarrazoada. Acreditar na existência de Deus, eles sustentam, não é como acreditar na existência do Papai Noel ou de fadas. É uma crença muito mais razoável do que estas.

Em resposta, os críticos muitas vezes assinalam que, mesmo que os argumentos mais populares para a existência de Deus forneçam evidências respaldando a hipótese de que que existe algum tipo de inteligência sobrenatural por trás do universo, estas evidências pouco ou nada dizem sobre seu caráter moral. Suponha, por exemplo, que o universo mostre evidências inequívocas de ter sido projetado. Concluir, unicamente com base nisso, que o projetista seja supremamente benevólo seria tão injustificado quanto seria concluir que ele seja, digamos, supremamente malévolo, o que claramente não seria justificado em qualquer sentido. Os críticos podem acrescentar que existe, além disso, uma vasta gama de evidências contrárias à hipótese da existência de tal ser supremamente benévolo. Mais especificamente, eles podem invocar o problema probabilístico do mal.

Versões do problema do mal

Existem pelo menos dois argumentos englobados pelo rótulo ‘problema do mal’. O problema lógico começa com a idéia de que a proposição:

(1) Existe um Deus onipotente, onisciente e maximamente bom.

é logicamente inconsistente com a proposição

(2) O mal existe.

Utilizo o termo ‘mal’ como significando tanto sofrimento como ações moralmente condenáveis. O argumento então prossegue da seguinte maneira. (2) é inegavelmente verdadeira. Portanto, (1) é falsa. Observe que a qualidade e a quantidade de mal são irrelevantes para esta versão do argumento – tudo o que ela exige é que exista uma quantidade mínima, não importa o quão irrisória. Talvez o problema lógico do mal não confronte o teísmo com um desafio realmente difícil. Para lidar com ele, bastaria mostrar que um Deus onipotente, onisciente e maximamente bom pode permitir a ocorrência de algum mal para alcançar um bem maior.

Um segundo problema – o problema probabilístico - apóia-se não na idéia de que (2) é logicamente incompatível com (1), mas na idéia de que (2) nos municia com boas evidências contrárias a (1). A quantidade de mal agora se torna relevante. Mesmo se admitirmos que Deus pode possuir razões para permitir a ocorrência de algum mal, certamente pode não existir nenhuma boa razão para a quantidade aterradora com que nos deparamos. Podemos aperfeiçoar o problema observando que Deus presumivelmente não permitiria a existência de qualquer sofrimento gratuito. Deve haver uma boa razão para cada ínfima ocorrência dele.

Muitos afirmam que não somente existem poucas razões para supor que o Deus do monoteísmo clássico existe; a atordoante quantidade de mal existente fornece-nos evidências esmagadoras de que ele não existe. Os teístas que sustentam que a crença em Deus, embora não seja conclusiva, é pelo menos não-desarrazoada, estão equivocados. Longe de ser ser um problema que a razão não pode resolver, a afirmação de que o Deus do monoteísmo clássico existe parece ser franca e empiricamente falseada.

Teodicéias

Confrontados com esta objeção, os teístas podem oferecer várias respostas. Eles podem sugerir que possuímos boas bases para acreditar não somente que existe um criador, mas que este ser de fato possui as propriedades a ele atribuídas no monoteísmo tradicional. Retornarei a esta idéia adiante. Eles também podem sugerir que o problema do mal pode, num grau considerável, ser resolvido. Várias explanações teístas para o mal foram oferecidas, incluindo as seguintes.

A solução do livre-arbítrio simples Não somos autômatos cegos, mas agentes livres. Como consequência do livre-arbítrio que Deus nos concedeu, as vezes escolhemos agir errado. O sofrimento acontece. Entretanto, o livre-arbítrio torna possível a existência de bens importantes, como a possibilidade de ações moralmente virtuosas. Deus poderia ter criado um universo habitado por marionetes que sempre fizessem a vontade de Deus. Mas ao comportamento de tais marionetes faltaria a dimensão de responsabilidade moral que torna nossas ações moralmente virtuosas. Ao nos emancipar e nos tornar livres, Deus inevitavelmente permitiu algum mal, mas este mal é mais do que superado pelos importantes bens que o livre-arbítrio acarreta.

A solução do aprimoramento espiritual: Este universo é, tomando emprestado a expressão de John Hick, um ‘vale onde as almas são forjadas’. Sabemos que uma experiência ruim pode as vezes nos tornar mais fortes. Pessoas que padeceram de alguma doença terrível as vezes afirmam terem se beneficiado muito dela. De maneira similar, ao nos infligir dor e sofrimento, Deus nos permite crescer e nos desenvolvermos moral e espiritualmente. É somente através de nossa experiência do sofrimento que podemos nos tornar as nobres almas que Deus deseja que sejamos.

Bens de sgunda ordem exigem males de primeira ordem Os teístas podem nos lembrar que Deus tem inevitavelmente que incluir uma boa dose de sofrimento em Sua criação a fim de que certos bens importantes possam existir. Considere, por exemplo, a caridade. A caridade é uma grande virtude. Todavia só podemos ser caridosos se existirem pessoas necessitadas. A caridade é um dos assim chamados bens de segunda ordem que exigem males de primeira ordem como a carência e o sofrimento (ou ao menos sua simulação) para existir. O bem de segunda ordem supera os males de primeira ordem, o que justifica Deus ao permiti-los.

Quando oferecidas em resposta ao problema probabilístico do mal, tais explanações são as vezes chamadas teodicéias. É sobre o problema probabilístico do mal e sobre as teodicéias que me concentrarei aqui. Obviamente, como teodicéias, estas explicações possuem limitações óbvias. Por exemplo, mesmo que a solução do livre-arbítrio simples seja bem-sucedida em explicar o mal acarretado por nossa livre agência, ela falha em explicar os assim chamados males naturais – tais como o sofrimento acarretado pelos desastres naturais. Não há dúvidas de que as três teodicéias resumidas acima fracassam em explicar porque existe tanto sofrimento no mundo. É verdade que outras explicações mais sofisticadas foram oferecidas, como veremos. Alguns acreditam que estas teodicéias, se não individualmente, pelo menos em conjunto, enfraquecem sensivelmente o problema probabilístico do mal. O problema, eles supõem, pode não ter sido inteiramente solucionado, mas foi pelo menos reduzido a uma escala manejável.

Ainda assim, permanece o reconhecimento por parte de vários teístas de que certamente não é fácil explicar definitivamente porque um ser onipotente, onisciente e onibenevolente deflagaria tanto horror sobre os habitantes sencientes deste planeta ao longo de centenas de milhões de anos. Isto leva alguns a suplementar estas explicações com um apelo adicional – ao mistério. Deus trabalha de maneiras misteriosas. Porque Deus é infinitamente inteligente e informado, é provável que seu plano divino seja vastamente ‘além de nossa compreensão’. Caso em que o fato de que a razão para muito do mal que existe se encontrar além de nossa capacidade de compreensão não é uma boa evidência para sua inexistência.

Como eu disse, as três teodicéias delineadas acima foram desafiadas. Também pretendo desafia-las, e a várias outras, mas de uma maneira incomum. Pretendo recuar um passo e questionar a natureza e a plausibilidade destas explanações em conjunto, através de uma analogia.

A hipótese do deus malévolo

Considere uma hipótese diferente . Suponha que o universo possui um criador. Suponha também que este ser é onipotente e onisciente. Mas imagine que ele não é maximamente bom. Em vez disso, imagine que ele é maximamente maligno. Sua perversidade é ilimitada. Sua crueldade não conhece fronteiras. Não existe nenhum outro deus ou deuses – apenas este ser supremamente vil. Chamemos a este cenário a hipótese do deus malévolo.

O quão razoável é a hipótese do deus malévolo? Eu já mostrei que, ao menos em suas versões mais simples, a maioria dos argumentos populares para a existência de Deus falha em oferecer qualquer pista sobre o caráter moral de nosso criador. Caso em que, na medida em que eles favorecem a hipótese do deus bondoso (ou seja, não muito, se tanto), eles também respaldam a hipótese do deus malévolo.

O problema do bem

Por outro lado, não existem evidências esmagadoras contra a hipótese do deus malévolo? Refiro-me, é claro, ao que pode ser chamado de problema probabilístico do bem. O problema é explicar porque um ser onipotente, onisciente e supremamente maligno permitiria tamanha quantidade de coisas boas no universo que criou. Por que, por exemplo, um deus malévolo:

(i) Nos daria imensa saúde, prosperidade e alegria?

(ii) Colocaria a beleza natural no mundo, uma indiscutível fonte de prazer e deleite para nós?

(iii) Permite-nos ajudar uns aos outros, de modo a reduzir o sofrimento e aumentar a quantidade de coisas que o deus malévolo despreza, como o amor?

(iv) Presentou-nos com filhos para amar e que nos retribuem com amor incondicional?

(v) Dotou-nos com corpos belos, jovens e saudáveis?

Certamente, se um ser supremamente malévolo vai introduzir seres sencientes em sua criação, irá tortura-los e infligir-lhes o mal. Certamente não permitirá o amor, o riso, os pores-do-sol, os arco-íris. Tampouco nos permitirá realizar o tipo de ações corajosas e altruístas que nos enobrecem e reduzem a dor e o sofrimento de nossos semelhantes. Portanto, sim, o mundo contém muitas coisas ruins. Mas também possui uma grande quantidade de coisas boas – na verdade, coisas de uma bondade tal que coloca em xeque a plausibilidade da hipótese de que seja a criação de tal ser desmesuradamente poderoso e maligno.

Observe agora que o problema probabilístico do mal espelha o problema probabilístico do bem. Se você acredita em um deus onipotente, onisciente e maximamente benévolo, então você defronta-se com o desafio de explicar porque existe tamanha quantidade de mal no mundo. De maneira similar, se você acredita em um deus onipotente, onisciente e maximamente malévolo, você defronta-se com o desafio de explicar porque o mundo contém tantas coisas boas.

Algumas teodicéias reversas

Obviamente, poucos, se tanto, de nós acredita na hipótese do deus maligno. Prima facie, não somente existem poucas razões para supor que tal ser existe, existem também evidências esmagadoras contra sua existência. Quando apresentados à hipótese do deus malévolo, a maioria de nós de imediato a descarta como absurda, geralmente porque consideramos o problema do bem decisivo.

Mas observe que, assim como existem estratégias desenvolvidas pelos teístas para tentar lidar com o problema do mal, também existem estratégias similares que podemos desenvolver para tentar lidar com o problema do bem. Aqui estão alguns exemplos.

A solução do livre-arbítrio simples: O deus maligno nos concedeu o livre-arbítrio. Possuir o livre-arbítrio significa que as vezes escolhemos o bem, o que desagrada ao deus malévolo. Entretanto, ele também introduz a possibilidade de más ações pelas quais os agentes podem ser responsabilizados moralmente. Um deus maligno poderia ter criado um universo habitado por marionetes que ele asseguraria que sempre se comportassem desagradavelmente. Mas ao comportamento de tais autômatos falta a dimensão de responsabilidade moral que transforma tais atos em ações de um tipo mais perverso e repugnante. Para maximizar o mal, o deus maligno deseja que realizemos atos cruéis e egoístas por nossa própria vontade.

Em resposta a esta primeira idéia, alguém pode objetar: ‘Mas porque um mundo como este, no qual possuímos livre-arbítrio, seria pior do que um mundo no qual não possuímos nenhuma liberdade e somos simplesmente obrigados a atormentar indefinidamente nossos semelhantes? Certamente este último cenário seria de longe muito mais ruim. Então por que o deus malévolo não o criou?’ Mas isto é esquecer que um mundo no qual somos obrigados a maximizar o sofrimento é um mundo no qual nenhuma ação moralmente condenável é realizada. E o mal moral é uma forma particularmente profunda e importante do mal (como os teístas geralmente reconhecem). Assim como, do ponto de vista de um deus bondoso, um mundo sem ações moralmente boas é gravemente deficiente, de maneira similar, do ponto de vista de um deus maligno, um mundo sem ações moralmente ruins também possui deficiências graves.

Em resposta, pode-se dizer: ‘Por outro lado, um mundo no qual o livre-arbítrio exista é, de longe, preferível para nós do que um mundo no qual somos obrigados a atormentarmo-nos uns aos outros indefinidamente. Este segundo tipo de existência infernal seria muitíssimo pior. E portanto preferível do ponto de vista de um deus malévolo. Então por que o deus maligno não o criou?’

Há alguma plausibilidade nesta resposta. Observe, contudo, que quase o mesmo tipo de reserva pode ser, e na verdade foi, aplicado às teodicéias do livre-arbítrio que utilizamos como modelo. O personagem de Dostoyevsky Ivan Karamazov, por exemplo, questiona se nossa liberdade não é um preço inaceitavelmente alto se seu resultado é a tortura de crianças inocentes. Certamente, Ivan e outros sugerem, diante da escolha entre criar um mundo paradisíaco no qual fomos feitos nobres e virtuosos e desfrutamos de uma existência profundamente rejubilante, e um mundo no qual, como resultado de nos ter sido dado o livre-arbítrio, a humanidade padece de guerras intermináveis, assassinatos, estupros, torturas, o Holocausto, e por aí vai, um bom deus deveria escolher o primeiro ( sem dúvidas vários de nós prefeririam muito mais habitar o primeiro mundo celestial; de fato, vários teístas esperam e oram para que eventualmente venham a habita-lo).

Assim, conquanto possa existir aqui uma dificuldade para a solução do livre-arbítrio ao problema do bem, esta não se revela nem um pouco menos plausível do que a resposta-modelo do livre-arbítrio ao problema do mal, dado que este tipo de preocupação é comum a ambas.

Aqui estão mais duas soluções.

A solução da destruição espiritual Hick estava enganado: isto é um vale, não de edificação e aprimoramento espiritual, mas de degradação, degeneração, decadência e destruição espiritual. O deus malévolo quer que soframos, façamos o mal e nos desesperemos. Por que, então, um deus malévolo criou belezas naturais? Para nos oferecer algum contraste. Para fazer o que é feio parecer ainda pior. Se tudo fosse uniformemente, maximamente feio, não teríamos nem a metade dos tormentos proporcionados por uma feiúra salpicada com alguma beleza.

A necessidade de contraste também explica porque o deus maligno agraciou a poucos com uma vida luxuosa e bem-sucedida. Sua felicidade foi projetada para intensificar ainda mais o sofrimento do resto de nós. Quem pode sentir-se contente e satisfeito sabendo que uma minoria possui muito mais, que eles não fizeram por merecer, e que não importa o quão arduamente nos empenhemos, nunca alcançaremos seu patamar (e não se esqueça, além disso, que mesmos aqueles poucos sortudos não são realmente felizes).

Por que o deus malévolo nos permite ter filhos para amar e que nos amem incondicionalmente em troca? Porque nos preocuparemos interminavelmente com eles. Somente um pai ou uma mãe conhecem a intensidade da angústia e do sofrimento acarretados pela paternidade.

Por que um deus malévolo nos daria corpos belos, jovens e sadios? Porque sabemos que nossa saúde e vitalidade são efêmeras, que ou morreremos jovens ou então definharemos lentamente. Ao nos presentear com algo maravilhoso por um momento, e então gradualmente retira-lo de nós, um deus malévolo pode nos fazer sofrer ainda mais do que sofreríamos se essa coisa maravilhosa nunca nos tivesse pertencido.

Males de segunda ordem exigem bens de primeira ordem permitem Alguns males são males de segunda ordem que requerem bens de primeira ordem. Considere a inveja. Eu não posso sentir inveja a menos que saiba que outros possuem algo que vale a pena invejar. O deus malévolo permite a poucos de nós possuir bens (ou características que podem ser percebidas como valiosas) de maneira que a inveja possa existir.

Chamemos tais tentativas de explicar o problema do bem de teodicéias reversas. Se estas teodicéias reversas não o persuadiram, lembre-se que, da mesma maneira que um defensor da hipótese do deus bondoso, também podemos tirar da manga a carta do ‘mistério’. Sendo infinitamente inteligente e bem informado, é provável que o plano supremamente engenhoso e diabólico do deus malévolo esteja muito além de nossa limitada capacidade de compreensão. Neste caso, o fato de não sermos capazes de compreender porque existem tantas coisas boas no mundo se ele existe não é uma boa evidência para sua inexistência.

A tese da simetria

As três teodicéias reversas apresentadas acima para lidar com o problema probabilístico do mal obviamente espelham as três teodicéias que vimos antes. Na verdade, outras teodicéias também podem ser parodiadas desta maneira (veja abaixo). Isto sugere uma maneira interessante de desafiar o teísmo.

Quão persuasivas são nossas três teodicéias reversas? Intuitivamente, não convencem nem um pouco. Em vez de serem consideradas seriamente, elas geralmente causam diversão tanto entre teístas como entre não-teístas. Mas isto levanta a questão: se as teodicéias reversas são fracas e ineficazes, por que deveríamos considerar as teodicéias convencionais mais eficazes?

Podemos também levantar uma questão mais geral. Em termos de razoabilidade, não existe uma ampla simetria entre a hipótese do deus benévolo e a hipótese do deus malévolo? Considere os argumentos que respaldam as duas hipóteses. Eu assinalei antes que vários dos argumentos populares que corroboram a hipótese do deus bondoso acabam por providenciar quase o mesmo tipo de respaldo (isto é, não muito) para a hipótese do deus malévolo. Além disso, quando se trata de lidar com as evidências contrárias às respectivas hipóteses oferecidas pelas enormes quantidades tanto de bens quanto de males encontradas no mundo, podemos construir tipos similares de explicação. Em particular, as três teodicéias oferecidas para lidar com o problema probabilístico do mal são equivalentes às teodicéias reversas esboçadas acima.

Denominarei a idéia de que, em termos de razoabilidade, realmente existe tal simetria aproximada entre as hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo, a tese da simetria.

A analogia das balanças

Suponha que a razoabilidade das hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo seja em cada caso indicada por um ponteiro num conjunto de balanças. Dependendo de como cada uma de nossas duas balanças seja carregada – considerações que aumentam a razoabilidade são colocadas à esquerda de cada balança; considerações subtraindo razoabilidade são colocadas à direita – o ponteiro em cada balança movimenta-se desde altamente razoável, passando por uma série de posições (relativamente razoável, não irracional, etc.) até altamente desarrazoado.

Certamente, constatamos que vários dos argumentos populares colocados por alguns teístas do lado esquerdo da balança da hipótese do bom deus bondoso podem com eficácia (ou ineficácia) similar serem colocados do lado esquerdo da balança da hipótese do deus malévolo. Também constatamos que as três teodicéias que vimos utilizadas por teístas para tentar remover ou aliviar o peso do problema do mal na balança da hipótese do deus bondoso (talvez possamos pensa-las como grandes balões de hélio afixáveis ao problema para atenuar seu peso) são equivalentes às teodicéias reversas que podem ser utilizadas para reduzir o peso do problema do bem.

A tese da simetria afirma que, quando carregamos as balanças corretamente com todas as evidências disponíveis e outras considerações pertinentes à razoabilidade de uma crença, (a propósito, não assumo qualquer compromisso com o evidencialismo aqui), as duas balanças estabilizam aproximadamente nas mesmas posições.

Agora, a maioria de nós, incluindo os teístas, consideram a hipótese do deus malévolo altamente desarrazoada. Imaginamos que existe pouco material para colocar no lado esquerdo da balança, e que, quando o monólito representado pelo problema do bem é adicionado, a balança dá uma guinada violenta para a direita, apesar dos efeitos de qualquer dos balões de hélio representados pelas teodicéias reversas que podemos lhe afixar. Mas os adeptos da hipótese do deus bondoso usualmente imaginam a balança do deus bondoso muito mais equilibrada. Acreditar num deus bondoso, eles pensam, não é como acreditar em fadas, no Papai Noel, ou, naturalmente, num deus malévolo. Quando esta balança é adequadamente carregada e a posição do ponteiro observada, eles dizem, encontramo-lo indicando ‘não desarrazoado’ ou até mesmo ‘bastante razoável‘.

Resumindo, os que adotam a hipótese do deus bondoso caracteristicamente rejeitam a tese da simetria. O desafio que estou apresentando àqueles que acreditam no deus do monoteísmo clássico, então, é explicar por que, se a crença num deus malévolo é altamente desarrazoada, deveríamos considerar a crença num deus bondoso significativamente mais razoável?

Podemos chama-lo de o desafio do deus malévolo.

O problema do bem na literatura

Não sou o primeiro a observar como o problema do bem pode ser utilizado para produzir um problema para os teístas.

A mais antiga discussão parece estar no livro de 1968 Evil and the Concept of God escrito por Edward Madden e Peter Hare, em que os autores dedicam três páginas ao problema do bem. Após esboçar rapidamente algumas teodicéias reversas, Madden e Hare concluem:

A esta altura já deveria estar claro que os problemas do mal e do bem são totalmente isomórficos; o que pode ser dito sobre um pode, num sentido inverso, ser dito sobre o outro. Para qualquer solução para um dos problema existe uma solução equivalente para o outro, e para cada contraargumento de um existe um contraargumento paralelo do outro.

O artigo de 1976 ‘Cacodaemony’, Stephen Cahn (de forma independente) extrai a mesma conclusão, afirmando que: ‘os argumentos clássicos em defesa da idéia de que todo mal existente no mundo torna possível um mundo contendo bens ainda maiores podem ser equiparados a argumentos em defesa da idéia de que todas as coisas boas existentes no mundo tornam possível um mundo contendo males ainda maiores’. Em ‘God, the demon, and the status of theodicies’, publicado em 1990, Edward Stein concorda com Hare, Madden e Cahn em que ‘[um] demonista pode idealizar uma demonologia que é isomórfica a qualquer teodiceia’.

Christopher New (também ignorando a literatura anterior), em seu artigo de 1993, ‘Antitheism’, desenvolve alguns argumentos correspondentes para, e teodicéias reversas em defesa da, crença num deus malévolo. Finalmente, em ‘God, devil, good, evil’ publicado em 1997, Charles Daniels aventura-se a lidar com os argumentos de Hare, Madden, Cahn e Stein sugerindo a existência de uma assimetria crítica entre as hipóteses do deus bondoso e do deus malévolo – Daniels argumenta que um deus malévolo é na verdade uma impossibilidade lógica. Responderei à objeção de Daniels no fim deste artigo.

Existe uma série de diferenças importantes entre meu desafio do deus malévolo e os desafios prévios lançados por Madden e Hare, Cahn, Stein e New.

Primeiro, como ficará claro, eu rejeito a afirmação central de Hare, Madden, Cahn e Stein: que os problemas do bem e do mal e suas respectivas soluções são ‘exatamente equivalentes’ (Madden e Hare). As soluções não são exatamente equivalentes. Eu mostrarei algumas assimetrias entre os dois problemas e conjuntos de teodicéias (e também assimetrias nos argumentos que podem ser construídos para estes respectivos deuses). Entretanto, eu explicarei porque estas assimetrias locais não necessariamente, e muito provavelmente não, ameaçam a tese da simetria.

Segundo, eu vejo falhas na tentativa de New de lidar com certos argumentos para um deus bondoso aparentemente não-reversíveis, e forneço uma resposta melhor àqueles argumentos.

Terceiro, pretendo que minha hipótese do deus malévolo proporcione um desafio mais robusto, espinhoso e nuançado ao teísmo do que os lançados pelos que contribuíram anteriormente com esta discussão, não apenas reconhecendo e respondendo ao problema das assimetrias locais, mas também antecipando e enfrentando uma ampla gama de possíveis respostas teístas.

Respostas ao desafio do deus malévolo

Algumas pessoas podem pensar que o desafio do deus malévolo é facilmente refutável. Por exemplo, não omitimos vários argumentos importantes para a existência de Deus que são argumentos específicos para um deus bondoso, e que não são equiparados por nenhum argumento correspondente para um deus malévolo? Não mostram estes argumentos que a crença num deus bondoso é, afinal de contas, um pouco mais razoável do que a crença num deus malévolo?

Milagres e experiências religiosas

Considere por exemplo o argumento dos milagres. Curas milagrosas e outros fenômenos supostamente sobrenaturais são observados regularmente. Alguns são investigados oficialmente e confirmados por autoridade religiosas como a Congregação Católica para as Causas dos Santos. Não proporcionam tais eventos pelo menos algumas evidências para a existência não somente de um deus, mas de um deus bondoso disposto a realizar grandes obras benéficas em resposta às nossas orações?

Ou considere o argumento da experiência religiosa. Experiências religiosas são quase sempre interpretadas como experiências de alguma coisa imensamente positiva. Mais uma vez, não nos fornecem elas pelo menos alguma evidência de que não somente existe algum tipo de inteligência por trás do universo, mas que esta inteligência é uma força benévola, não malévola?

Mesmo que tais argumentos estejam longe de serem conclusivos quando considerados individualmente, podemos supor que eles contribuem para fazer um caso cumulativo para a existência não de um deus qualquer, mas da divindade supremamente benevolente do monoteísmo clássico. Mas se isto é verdade, então o equilíbrio da balança do deus benévolo agora se altera. Dispomos agora de algo um pouco mais convincente para colocar no lado esquerdo da balança do deus benévolo, algo para o qual não há nada correspondente que possa ser colocado no lado esquerdo da balança do deus malévolo. Possuímos agora algum motivo para rejeitar a tese da simetria?

New sobre os argumentos dos milagres e das experiências religiosas

Em ‘Antitheism’, New tenta lidar com esta aparente assimetria construindo argumentos correspondentes para um deus malévolo. Ele pede que imaginemos um mundo cujos habitantes tem experiências com um deus malévolo (New as chama de ‘experiências antirreligiosas’) e que observam eventos perigosos ou desagradáveis que não podem ser explicados cientificamente (New os chama de ‘antimilagres’). Possuímos agora evidências hipóteticas para um deus malévolo que correspondem exatamente às evidências para o deus benévolo. O problema com a estratégia de New, porém, é que evidências imaginárias não são realmente evidências. Eu não posso providenciar evidências contrárias a uma teoria científica simplesmente imaginando alguma. Para possuir algum valor, as evidências devem existir concretamente.

Vários teístas insistem que dispomos de evidências reais para um deus benévolo – a evidência proporcionada pelos milagres e pelas experiências religiosas. O problema com a tese da simetria, o teísta pode insistir, é que simplesmente não existe qualquer coisa similar a este tipo de evidências para experiências antirreligiosas e antimilagres. A tentativa de New de produzir argumentos correspondents aos argumentos dos milagres e das experiências religiosas é um fracasso. Entretanto, como explicarei em seguida, existe uma maneira melhor de responder aos argumentos dos milagres e das experiências religiosas.

Uma resposta melhor

Os argumentos dos milagres e das experiências religiosas fornecem evidências melhores para um deus benévolo do que para um deus malévolo?

Suponha que a hipótese do deus malévolo seja verdadeira. Este ser maligno pode não querer que saibamos de sua existência. Para maximizar o mal, na verdade pode lhe ser útil nos enganar sobre sua verdadeira natureza. Um ser onipotente e maligno não teria dificuldades em ludibriar os seres humanos e faze-los acreditar que ele é bom. Assumindo uma aparência ‘boa’, ele pode aparecer num canto do mundo, revelar-se em experiências religiosas e realizar milagres em resposta às orações, e talvez também dar instruções sobre o que seus seguidores devem acreditar. Ele pode então fazer o mesmo em outras regiões do globo, exceto pelas instruções sobre o que se deve crer, que contradizem tudo o que ele disse em outros lugares.

Nosso ser maligno então retira-se e observa inevitáveis conflitos surgirem e assumirem proporções globais entre as comunidades para as quais ele se revelou fraudulentamente, cada uma delas totalmente convencida por seu próprio estoque de milagres e experiências religiosas de que o único deus verdadeiro está a seu lado. Temos aqui uma receita para conflitos intermináveis, violência e sofrimentos.

Quando observamos como as experiências religiosas e os milagres estão realmente distribuídos, este é aproximadamente o padrão que encontramos. Portanto, mesmo que eles sejam genuinamente sobrenaturais, será que estes fenômenos miraculosos constituem melhor evidência para um deus benévolo do que para um malévolo? Conquanto um deus benévolo possa criar milagres e experiências religiosas, é difícil ver por que ele os produziria desta maneira, considerando-se as previsíveis e terríveis consequências. Talvez os milagres e as experiências religiosas de fato indiquem a atividade de agentes sobrenaturais, mas é discutível que sua configuração real corrobore melhor a hipótese do deus benévolo que a do deus malévolo. Não deveríamos, a esta altura, descartar a possibilidade de que, se existe uma assimetria entre as duas hipóteses, esta deva-se na verdade à maior razoabilidade da hipótese do deus malévolo do que a do deus benévolo.

Em resposta à esta defesa da hipótese do deus malévolo, pode-se perguntar: ‘Mas por que uma deus malévolo se importaria em nos enganar sobre seu verdadeiro caráter, considerando-se que o pleno conhecimento deste carrasco cruel e todo-poderoso seria na verdade bem mais terrível?’

A resposta, é claro, é que um deus malévolo desejaria permitir a realização de atos moralmente condenáveis dentro de sua criação. Como já observado, um mundo sem agentes morais capazes de realizar ações de uma natureza profundamente perversa é um mundo seriamente deficiente deste ponto de vista. Portanto não somente o deus malévolo criou um mundo no qual nós somos agentes morais livres, como também arquitetou o tipo de circunstâncias nas quais somos, então, prováveis de escolher livremente o mal. Conflitos motivados pela religião claramente foram, e continuam a ser, uma das principais fontes de mal moral no mundo. Através deste engano, um deus malévolo é capaz de criar um ambiente no qual é provável que o mal moral floresça.

Uma última objeção ainda pode ser levantada: ‘Mas certamente nada poderia ser pior do que o inferno segundo sua concepção tradicional. Por que um deus malévolo simplesmente não nos envia direto para o inferno?’ Entretanto, como já observado, um enigma correspondente desafia os que acreditam num deus benévolo. Considerando-se que um cenário paradisíaco seria profundamente mais jubiloso do que este, por que um bom deus não nos envia direto para o Céu? Por que permite-se que tantos de nós atravessem sofrimentos tão terríveis aqui?

Considerando-se que ambas as hipóteses enfrentam este tipo de objeção, como está ela não representa nenhuma ameaça à tese da simetria. Além disso, podemos, em ambos os casos, tentar lidar com a objeção recorrendo a um pós-vida. Somos enviados a este mundo primeiro, onde nos é dada a oportunidade de realizar ações morais profundamente boas e más (isto é importante para ambos os deuses). Nós então passamos para um pós-vida: uma eternidade no Céu ou (sob a hipótese do deus malévolo) no Inferno, onde a felicidade ou (sob a hipótese do deus malévolo) a dor e o sofrimento são maximizados e quaisquer sofrimentos ou (sob a hipótese do deus malévolo) alegrias na primeira etapa de nossa existência são compensados. Eu examinarei brevemente os exemplos de tais teodicéias do pós-vida.

Evidências históricas

A propósito, as respostas acima podem ser ampliadas para lidar com argumentos para um deus benévolo baseados em evidências históricas, como as evidências fornecidas pelas escrituras (as quais nem todas são baseadas em experiências religiosas e milagres). Alguns insinuarão que existe um volume considerável de evidências históricas e textuais que podem ser apresentadas e combinadas para respaldar a crença numa divindade benévola, mas nenhuma evidência correspondente para respaldar a crença numa divindade malévola – e isto constitui uma assimetria significativa entre nossas duas hipóteses.

Em resposta, podemos perguntar mais uma vez – estas evidências históricas realmente corroboram melhor a hipótese do deus benévolo do que a do deus malévolo? Não se nossos deus malévolo deseja criar a ilusão de que é bom, a fim de fomentar a fraude delineada acima. Pode muito bem ser de seu interesse fabricar evidências enganosas sobre seu próprio caráter.

Quando consideramos a distribuição das evidências proporcionadas pelos milagres, experiências religiosas e também as evidências históricas associadas com as inúmeras fés diferentes, é no mínimo razoável que o padrão encontrado corrobore melhor a hipótese do deus malévolo do que a do benévolo. Pois, reiterando, por que diabos um deus benévolo produziria estes fenômenos de maneira a assegurar a existência de conflitos religiosos intermináveis? Sem dúvidas, é um pouco mais provável que a desastrosa distribuição real seja obra de um ser maligno.

Um argumento moral

Outra estratégia disponível para o teísta a fim de estabelecer uma assimetria significativa entre as duas hipóteses seria sustentar que existem argumentos morais para a existência de um deus benévolo que não podem ser equiparados por argumentos correspondentes para um deus malévolo. Por exemplo, eles podem defender que nossos senso moral poderia possuir unica e exclusivamente uma origem sobrenatural, e que somente um deus benévolo estaria interessado em que o possuíssemos. De maneira que o fato de possuirmos um senso do certo e do errado é uma poderosa evidência favorecendo a hipótese do deus benévolo sobre a hipótese do deus malévolo.

Contudo, este argumento particular fracassa. Conquanto possa ser verdadeiro que apenas um ser sobrenatural seja capaz de nos equipar com um senso moral, o fato é que um deus malévolo poderia muito bem ter interesse em nos fornecer tal senso. Pois ao nos dotar tanto de livre-arbítrio como de conhecimento do bem e do mal, um deus malévolo pode permitir o extraordinário mal de nossas más ações livremente realizadas com plena consciência de que elas são verdadeiramente más.

Por que, então, seria o fato de que possuímos um senso do certo e do errado uma evidência favorecendo a hipótese do deus benévolo em detrimento da do malévolo?

Um segundo argumento moral

Um tipo diferente de argumento moral especificamente para a existência de um deus benévolo concentra-se não sobre nossa consciência dos valores morais objetivos, mas em sua existência. Alguns insistirão que os fatos morais são tanto objetivos como não-naturais, e que um deus benévolo é por conseguinte exigido para sustenta-los (ou ao menos fornecer-lhes a melhor explicação.)

É no mínimo controverso se um argumento cogente ao longo destas linhas pode ser construído. Notoriamente, tais argumentos são desafiados pelo dilema de Eutífron. Imagine que afirmamos que Deus, como legislador divino, decreta que certas coisas, como o roubo e o assassinato, são erradas. Deus as decreta porque reconhece que roubar e matar são, independentemente, erradas, ou elas são erradas somente porque ele assim decretou? A primeira resposta torna Deus redundante na medida em que refere-se ao estabelecimento de um padrão de certo e errado – o assassinato seria errado de qualquer maneira, Deus existindo ou não, ou, na verdade, aconteça ou não de ser o próprio Deus bom ou mau. Mas então a natureza proibitiva objetiva, não-natural, do assassinato, seria obtida de qualquer forma, mesmo se existisse um deus malévolo. Sob a primeira resposta, podem ambos existir: um padrão de certo e errado objetivo, não-natural, e um deus malévolo.

A segunda resposta, notoriamente, parece tornar a condenabilidade moral do assassinato arbitrária e relativa. Observe que isto é um problema não importa qual de nossas duas hipóteses seja favorecida. Resumindo, sob a primeira resposta não há nenhum problema para a hipótese do deus malévolo; sob a segunda, existe, prima facie, um problema que afeta igualmente ambas as hipóteses. O dilema de Eutífron constitui assim o principal obstáculo para a construção de um argumento moral para a existência de um deus especificamente benévolo, em vez de malévolo.

É claro, permanece possível que um argumento moral cogente ao longo das linhas acima ainda possa vir a ser formulado. Eu suspeito que, para os que rejeitam a tese da simetria, esta é a mais promissora linha de ataque. Contudo, mesmo entre os teístas, até hoje permanece a controvérsia sobre a existência de qualquer argumento do tipo.

Outras teodicéias reversas

Retornemos agora às teodicéias convencionais e suas versões adaptadas. Talvez tenhamos subestimado o alcance e a eficácia das teodicéias convencionais disponíveis. Existe alguma que não seja reversível? Com certeza existem muitas que ainda não discutimos. Contudo, em vários casos, se não todos, as teodicéias reversas insinuam-se prontamente. Para ilustrar, esboçarei mais três exemplos: (1) uma teodicéia reversa das leis da natureza, (2) uma teodicéia reversa do pós-vida, e (3) uma teodicéia reversa semântica.

Teodicéia das leis da natureza Ações intencionais efetivas exigem que o mundo se comporte de maneira regular (por exemplo, sou capaz de acender deliberadamente este fogo riscando meus fósforos somente porque existem leis que determinam que, sob tais circunstâncias, meu ato resultará em fogo). A existência de leis da natureza é um pre-requisito para nossa capacidade tanto de agir sobre nosso ambiente natural como para interagir com os outros dentro dele. Estas habilidades permitem a existência de bens grandiosos. Elas nos dão a oportunidade para agir de um modo moralmente virtuoso, por exemplo.

Entretanto, tal mundo regido por leis inevitavelmente produz alguns males. Por exemplo, o tipo de leis e condições iniciais que produzem massas de solo estáveis nas quais podemos sobreviver e evoluir também produzem movimentos tectônicos que resultam em terremotos e tsunamis. Não obstante, o mal causado pelos terremotos e tsunamis é mais do que soprepujado pelos bens que aquelas leis permitem. Podemos pensar que somos capazes de conceber mundos possíveis que, como resultado de serem regidos por diferentes leis e/ou condições iniciais, contém uma porcentagem muito maior de bem do que de mal (que contém massas de solo estáveis mas nenhum terremoto,por exemplo), mas em virtude das consequências que fracassamos em antecipar (talvez a ausência de terremotos só seja possível ao custo de algum tipo muito pior de catástrofe global), tais mundos podem, na realidade, sempre serem piores do que o mundo real.

Uma teodicéia das leis da natureza reversa pode ser construída da seguinte forma.

Teodicéia reversa das leis da natureza Ações intencionais efetivas exigem que o mundo se comporte de maneira regular. A existência de leis da natureza é um pre-requisito para que sejamos dotados com a capacidade tanto de agir sobre nosso ambiente natural como de interagir com os outros dentro dele. Estas habilidades permitem grandes males. Por exemplo, elas nos dão a oportunidade de agir de maneiras moralmente perversas – assassinando e torturando outras pessoas, por exemplo. Ao nos conceder estas capacidades, o deus malévolo também consentiu que experimentássemos certas formas importantes de sofrimento psicológico como a frustração – não poderíamos tentar, e nos frustrarmos após repetidos fracassos, a menos que primeiro nos fosse dada a oportunidade de agir.

É verdade, tal mundo regido por leis inevitavelmente produz algumas coisas boas. Por exemplo, ao nos conceder a habilidade de agir dentro de um ambiente físico, o deus malévolo nos deu a habilidade para evitar o que nos faz sofrer e para buscar o que nos dá prazer. Não obstante, tais coisas boas são mais do que sobrepujadas pelos males que estas leis permitem. Podemos pensar que somos capazes de conceber mundos possíveis que, como resultado de serem regidos por diferentes leis da natureza ou condições iniciais, contém um porcentagemo muito maior de mal do que de bem (que contém ainda mais dor física e bem menos prazer, por exemplo), mas, em virtude das consequências que fracassamos em antecipar (talvez o sofrimento maior resultaria em sermos significativamente mais compreensivos, caridosos e bons de uma maneira geral para com os outros), tais mundos na verdade sempre seriam melhores do que o mundo real.

A isto, alguém pode objetar: ‘Muito bem, um deus malévolo decreta leis da natureza que nos conferem o poder de fazer o mal – mas certamente ele também irá ocasionalmente suspender tais leis a fim de nos confundir e frustrar e para produzir males para os quais as leis da natureza nada mais seriam do que um empecilho.”

Observe, entretanto, que ambas as teodicéias defrontam-se com este tipo de objeção. Uma reserva similar pode ser aplicada à teodicéia convencional das leis da natureza. Sim, um deus benévolo produzirá um universo regular de maneira que sejamos capazes de fazer o bem, mas certamente ele estaria disposto a suspender aquelas leis e intervir a fim de, digamos, impedir algum evento particularmente vil de um ponto de vista moral (por exemplo, a ascensão de Hitler ao poder) ou para impedir algum desastre natural particularmente terrível, ou para nos ajudar a alcançar algum bem grandioso (talvez providenciando algum golpe de sorte num laboratório científico que leve à cura do câncer). Um deus benévolo simplesmente não contemplaria impassível centenas de crianças serem enterradas vivas num terremoto mesmo se o terremoto fosse o resultado de leis naturais que são amplamente benéficas de outras maneiras.

As teodicéias do pós-vida também são populares. Considere a seguinte versão apresentada por T. J. Mawson em seu livro Belief in God.

Teodicéia do pós-vida compensatório A dor e o sofrimento que experimentamos neste mundo são mais do que compensadas no pós-vida – onde experimentaremos uma felicidade ilimitada. A razão pela qual um deus benévolo simplesmente não nos enviaria direto para o Céu é que apenas dentro de um mundo regido por leis no qual possuímos livre-arbítrio (algo que, de acordo com alguns teístas, como Mawson, nos falta no Céu) podemos desfrutar bens importantes, incluindo a grandiosa alegria que é fazer o bem por nossa própria vontade. Como consequência de habitarmos este mundo por um curto período, nós sofremos, mas este sofrimento é mais do que compensado por uma eternidade em comunhão com Deus no Céu.

A teodicéia do pós-vida de Mawson também pode ser emulada.

Teodicéia reversa do pós-vida compensatório A alegria e a felicidade que experimentamos neste mundo são mais do que compensadas no pós-vida – onde experimentamos um mal ilimitado. A razão pela qual um deus malévolo simplesmente não nos envia direto para este mundo interminavelmente cruel é que somente dentro de um mundo regido por leis no qual possuímos livre-arbítrio podemos experimentar males importantes, incluindo o grandioso pecado de fazermos o mal por nossa própria vontade. Como consequência de habitarmos este mundo por um breve período, nós experimentamos algumas coisas boas, mas estas são mais do que compensadas pelo que lhe segue: uma eternidade de sofrimento na companhia de um ser supremamente maligno.

Teodicéia semântica Também é possível parodiar as respostas semânticas convencionais para o problema do mal. Considere este exemplo. Quando descrevemos Deus como sendo ‘bom’, o termo possui um significado diferente daquele aplicável a meros humanos. Esta diferença no significado pelo menos explica parcialmente porque um deus benévolo faria coisas que não chamaríamos de ‘boas’ se feitas por nós.

Podemos reverter esta teodicéia assim.

Teodicéia semântica reversa Quando descrevemos deus como sendo ‘mal’, o termo possui um significado diferente daquele aplicável a meros humanos. Esta diferença no significado explica ao menos parcialmente porque um deus malévolo faria coisas que não chamaríamos de ‘más’ se feitas por nós.

Com um pouco de engenhosidade, teodicéias reversas podem ser formuladas também para várias outras teodicéias convencionais. Entretanto, como explicarei agora, provavelmente deveríamos reconhecer que – ao contrário das afirmações feitas por Madden, Hare, Cahn e Stein – em alguns casos, nenhuma teodicéia ‘exatamente correspondente’ pode ser formulada.

Assimetrias

Considere, por exemplo as teodicéias baseadas numa história cristã em particular sobre a Queda e a Redenção. Quando examinamos a explicação de Santo Agostinho para os males naturais e morais – que ambos deitam raízes no pecado original de Adão e Eva – nenhuma narrativa correspondente surge espontaneamente. Uma tentativa de construir uma história invertida sobre um Adão e Eva invertidos cuja desobediência a seu criador malévolo acarretou uma Queda invertida depara-se com obstáculos insuperáveis.

Por exemplo, conquanto um deus benévolo possa ter alguma razão para permitir que os males naturais acarretados pelo pecado original continuem a existir (pois estas consequências ruins, recaindo sobre nós próprios, são merecidas, e além disso ainda resta a oferta de redenção feita por Deus), por que um deus malévolo permitiria a existência contínua dos bens naturais acarretados pela desobediência do casal Adão e Eva invertido? Pode ser que, com alguma criatividade, uma narrativa completamente diferente envolvendo um deus malévolo possa ser elaborada para explicar os bens naturais, mas é difícil ver como ela poderia corresponder à história cristã da Queda em detalhes suficientes para qualifica-la como uma teodicéia reversa. Pace Madden, Hare, Cahn e Stein, parece que nem toda teodicéia possui realmente uma versão equivalente, muito menos uma versão exatamente equivalente.

Mesmo nos casos em que uma teodicéia correspondente pode ser elaborada, ainda podem existir assimetrias. Por exemplo, se supormos que o livre-arbítrio em si é um bem intrínseco, então a teodicéia do livre-arbítrio reversa envolve um deus malévolo dotando-nos com o bem do livre-arbítrio. Conquanto um deus malévolo possa, não obstante, ser capaz de maximizar o mal concedendo-nos o livre-arbítrio, ainda ssim ele paga um preço (introduzir esse bem intrínseco) – um preço para o qual não há paralelo na teodicéia do livre-arbítrio convencional. Sem dúvidas, isto torna a teodicéia do livre-arbítrio convencional muito mais efetiva do que sua versão invertida. O teísta pode insistir que porque o livre-arbítrio é não somente um bem intrínseco, mas um bem grandioso, então quantidades colossais de males adicionais são exigidas para sobrepuja-lo – tão grandes, na verdade, que tornam a teodicéia reversa do livre-arbítrio significativamente menos plausível do que a teodicéia convencional.

De modo que parece que existem algumas assimetrias entre os dois conjuntos de teodicéias. Entretanto, o efeito destas assimetrias parece ser comparativamente menor, exercendo pouco efeito sobre o equilíbrio total da razoabilidade. Por exemplo, considerando-se o status mítico de Adão, Eva e a Queda, a teodicéia de Santo Agostinho fracassa.

Mas então a ausência de uma teodicéia correspondente nã afeta muito a comparação de razoabilidades ( e em todo caso, podemos ser capazes de elaborar um tipo diferente de narrativa para acompanhar a hipótese do deus malévolo que explique os bens naturais de outro modo).

E sobre a assimetria entre as teodicéias do livre-arbítrio convencional e reversa? Stein tenta defender a tese de que para cada teodicéia existe um ‘correspondente exato’ argumentando que o livre-arbítrio não é, verdadeiramente, um bem intrínseco. Contudo, suponha que concedamos a título de argumentação que o livre-arbítrio seja um bem intrínseco. Isso demanda que abandonemos a tese de Madden-Hare-Cahn-Stein de que para cada teodicéia existe uma teodicéia reversa que é sua ‘correspondente exata’. Mas isto realmente exige que abandonemos minha tese da simetria – a tese de que quando carregamos corretamente as balanças do deus benévolo e do deus malévolo com todas as evidências disponíveis e outras considerações pertinentes à razoabilidade de uma crença, as duas balanças acusarão valores aproximadamente semelhantes?

Acredito que não por pelo menos três razões.

Primeiro, esta assimetria entre as duas teodicéias pode muito bem ser neutralizada por outra. A fim de dispormos de uma gama completa de escolhas livres entre o bem e o mal, Deus, seja ele bom ou mal, deve introduzir a dor, o sofrimento e a morte não somente como possibilidades mas como realidades. Não somente deve Ele fazer-nos vulneráveis a dor, ao sofrimento e à morte (para nos dar a opção de torturar ou assassinar os outros), Ele deve realmente inflingir a dor e a morte de maneira que sejamos capazes de escolher livremente ajudar a alivia-los ou preveni-los. Agora se é prima facie plausível que o livre-arbítrio é um bem intrínseco, não é menos plausível que a dor, o sofrimento e a morte são males intrínsecos. Caso em que ambas as teodicéias do livre-arbítrio requerem a introdução de bens intrínsecos e males intrínsecos. Enquanto os bens intrínsecos demandam explicações adicionais da hipótese do deus malévolo, por sua vez os males intrínsecos também demandam explicações adicionais da hipótese do deus benévolo. Caso em que aparentemente as duas assimetrias se equivalem.

Segundo, mesmo se fosse verdade que a teodicéia do livre-arbítrio é significativamente mais efetiva do que a teodicéia reversa, isso pode não afetar a balança da razoabilidade entre as hipóteses do deus benévolo e do deus malévolo. Suponha, a título de argumentação, que a teodicéia do livre-arbítrio convencional seja inteiramente efetiva em explicar os males morais, e que a teodicéia reversa seja totalmente ineficaz em explicar os bens morais (isto sendo uma assimetria bem mais dramática do que a proposta). Assim, deixamos todo o peso do bem moral na balança do deus malévolo, mas removemos inteiramente o peso do mal moral da balança da balança do deus benévolo. Esta mudança no equilíbrio das duas balanças realmente resulta nos dois ponteiros indicando níveis de razoabilidade muito diferentes?

Obviamente não. Pois, ceteris paribus, ainda existe uma quantidade monstruosa de mal na balança do deus bnévolo (tal como as extraordinárias quantidades de sofrimento infligido sobre criaturas sencientes ao longo dos milhões de anos anteriores ao aparecimento dos agentes morais sobre a Terra). Pode-se argumentar (penso que com alguma plausibilidade) que quando os males explicados pela teodicéia do livre-arbítrio são removidos, ainda permanece um volume de mal mais do que suficiente para manter o ponteiro firmemente fixado na posição ‘altamente desarrazoado’. O ponteiro não indica agora ‘não desarrazoado’ ou ‘bastante razoável’ – ele continua resolutamente acusando ‘altamente desarrazoado’ no fim da escala. A balança moveu-se um pouquinho, talvez, mas não muito. Se assim for, (o que considero pelo menos plausível), então a tese da simetria permanece verdadeira.

Terceiro, lembremo-nos de que mesmo se a teodicéia do livre-arbítrio convencional for um pouco mais efetiva do que a teodicéia reversa, esta ssimetria pode em todo caso ser contrabalançada ou sobrepujada por outras assimetrias que favoreçam a hipótese do deus malévolo sobre a hipótese do deus benévolo. Na verdade, um exemplo já foi descoberto: prima facie, a evidência relativa aos milagres e experiências religiosas parece respaldar a hipótese do deus malévolo um pouco melhor do que a hipótese do deus benévolo.

Concluindo, então, parece que – pace Madden, Hare, Cahn e Stein – os dois conjuntos de teodicéias não se equivalem mutuamente. Existem assimetrias. Entretanto, encontramos poucas razões para supor que estas assimetrias exerçam algum efeito significativo sobre o nível geral de razoabilidade de nossas respectivas hipóteses. Ainda não encontramos boas razões para pensar que nossas duas balanças não estabilizam em posições aproximadamente semelhantes.

Outras estratégias

Para encerrar, antecipo agora cinco respostas que o desafio do deus malévolo pode provocar, e delineio resumidamente algumas das dificuldades que elas enfrentam.

Significativamente mais coisas boas do que ruins Podemos tentar refutar o desafio mostrando que existe uma quantidade significativamente maior de bem do que de mal no mundo. Isto, entretanto, será algo difícil de estabelecer, no mínimo porque bem e mal são difíceis de quantificar e mensurar. Alguns teístas consideram simplesmente óbvio que o mundo contém mais coias boas do que ruins, mas então vários (incluindo alguns teístas) são atordoados pela idéia exatamente oposta. Apelos a estimativas subjetivas possuem pouco força probatória.

Argumentos ontológicos Podem os argumentos ontológicos providenciarem fundamentos a priori para supor não somente que existe um deus, mas que ele é bom? A dificuldade mais óbvia aqui é que é discutível, para dizer o mínimo, se é possível formular qualquer argumento ontológico cogente. A cogência dos argumentos que foram apresentados continua não reconhecida não somente por não-teístas, mas também por vários teístas – talvez a maioria dos teístas filósofos. Eles sem dúvida não recorrerão ao argumento ontológico a fim de demonstrar por que a tese da simetria fracassa.

New chama a atenção para o fato de que alguns argumentos ontológicos são, em todo caso, reversíveis. Considere este exemplo (meu próprio – baseado em New e Anselmo):

Posso conceber um deus malévolo – um ser pior que o qual nenhum outro pode ser concebido. Mas este ser seria ainda pior se existisse na realidade do que apenas na imaginação. Portanto, o ser que concebi deve existir na realidade.

Argumentos da impossibilidade Poderíamos refutar o desafio do deus malévolo demonstrando que um deus malévolo é na verdade uma impossibilidade, pois a própria noção de um deus malévolo contém uma contradição? Eis dois exemplos de tal argumento.

No artigo ‘God, demon, good, evil’, Daniels sugere que as ferramentas para lidar com o desafio do deus malévolo podem ser encontradas no diálogo platônico Górgias. Daniels acredita que Platão demonstrou que um deus malévolo é uma impossibilidade. Sua ‘refutação platônica’ da hipótese de um deus malévolo é a seguinte. Primeiro, Daniels afirma que nós sempre fazemos o que julgamos ser bom. Mesmo quando fumo, apesar de acreditar que fumar seja ruim, eu o faço porque julgo que seria bom fumar este cigarro aqui e agora. Disso resulta, Daniels diz, que ninguém faz coisas ruins intencionalmente. Mas então segue-se que se um ser for onisciente, ele não fará nada ruim. Não é possível a existência de um ser onisciente porém maligno. A noção de um ser onisciente mas maligno envolve uma contradição.

Acredito que o argumento de Daniels incorre numa falácia de ambiguidade acerca do uso da palavra ‘bom’. É verdade, sempre que faço alguma coisa deliberadamente, eu julgo, em certo sentido, que o que eu faço é ‘bom’. Mas ‘bom’ aqui não precisa significar mais do que ‘aquilo que pretendo alcançar’. Ainda não nos foi dada qualquer razão para pensar que não posso julgar ser ‘bom’, neste sentido, o que eu também acredito ser perverso, porque eu desejo o mal. Sim, um deus malévolo julgará ‘boa’ a realização do mal, mas apenas no sentido trivial de que o mal é o que ele deseja. Pace Daniels, não existe nenhuma contradição envolvida quando um ser onisciente julga que o mal seja, neste sentido, ‘bom’.

Um argumento bem diferente seria: ‘Mas ao realizar o mal, seu deus malévolo intenta satisfazer seu próprio desejo pelo mal; e a satisfação de um desejo é um bem intrínseco. De maneira que a idéia de um deus maximamente malévolo visando produzir um bem intrínseco envolve uma contradição.’

Este argumento também fracassa. Mesmo se admitíssemos a questionável hipótese de que a satisfação de qualquer desejo – mesmo um desejo ruim – é um bem intrínseco, o máximo que descobriríamos aqui seria outra assimetria local – que, visando maximizar o mal, o deus malévolo teria também pretendido realizar pelo menos um bem intrínseco (isto é, a satisfação deste desejo de maximizar o mal). O que estabelecemos, talvez, é que existem certos limites lógicos sobre a perversidade de Deus (da mesma maneira que também existem certos limites lógicos sobre Seu poder: Ele não pode fazer uma pedra tão pesada que não seja capaz de ergue-la). O Deus malévolo ainda pode ser maximamente perverso – tão perverso quanto lhe é logicamente possível ser. Ainda não foi estabelecida uma contradição na noção de um ser maximamente malévolo.

Em todo caso, existe uma questão mais geral a ser levantada sobre os argumentos tentanto mostrar que um deus malévolo é uma impossibilidade e que portanto o desafio do deus malévolo está refutado. A questão é esta: mesmo supondo que um deus malévolo seja, por alguma razão X, uma impossibilidade, ainda podemos fazer a pergunta hipotética: colocando de lado o fato de que isso-e-aquilo estabelecem que um deus malévolo é uma impossibilidade, quão razoável seria, se ele não fosse impossível, supor que tal ser malévolo exista? Se a resposta for ‘altamente desarrazoada’, isto é, por causa do problema do bem, então o desafio do deus malévolo ainda pode ser aplicado. Ainda podemos perguntar aos teístas por que, se a hipótese do deus malévolo fosse possível, eles a rejeitariam como altamente desarrazoada, mas não pensam o mesmo sobre a hipótese do deus benévolo?

Argumentos da simplicidade E sobre a hipótese do deus benévolo ser significativamente mais simples do que a hipótse do deus malévolo?

Por exemplo, podemos sugerir que um deus benévolo pode ser definido de um jeito simples, por exemplo, como dotado de todos os atributos positivos. Como a bondade é um atributo positivo, segue-se que este deus é benévolo. O conceito de um deus malévolo, ao contrário, é mais complexo, pois ele possui tanto atributos positivos (onisciência e onipotência) como negativos (malevolência). O princípio de parcimônia exige, portanto, que favoreçamos a hipótese do deus benévolo sobre a do deus malévolo.

Reconheço que podem realmente existir assimetrias entre as hipóteses em termos de simplicidade e economia. Entretanto, observe que o fato de uma teoria ser bem mais econômica do que outra confere-lhe pouca credibilidade adicional se as evidências disponíveis favorecem esmagadoramente a idéia de que ambas as teorias são falsas.

Considere, por exemplo, estas duas hipóteses: (i) Swindom é habitada por 1000 elfos, e (ii) Swindom é habitada por 1000 elfos cada um dos quais possui uma fada sentada em sua cabeça. A primeira hipótese é mais econômica, já que postula metade das entidades da segunda. Mas isto torna a primeira hipótese significativamente mais razoável do que a segunda? Não. Pois não somente existem poucas razões para supor que qualquer delas seja verdadeira, como existe evidências esmagadoras de que ambas são falsas.

De maneira similar, se a razoabilidade de ambas as hipóteses, a do deus benévolo e a do deus malévolo, for muito baixa, assinalar que uma hipótese é um pouco mais econômica do que a outra faz pouco para aumentar a probabilidade de uma hipótese em relação a outra. A idéia de que as duas hipóteses são mais ou menos igualmente desarrazoadas permanece incólume.

Conclusão

O foco principal deste artigo foi o desafio do deus malévolo: o desafio de explicar por que a hipótese do deus benévolo deveria ser considerada significativamente mais razoável do que a hipótese do deus malévolo. Examinamos diversos dos mais populares argumentos para a existência de um deus benévolo e descobrimos que eles aparentemente conferem pouca ou nenhuma força probatória adicional à hipótese do deus benévolo do que à hipótese do deus malévolo. Também vimos que várias das teodicéias oferecidas pelos teístas para lidar com o problema do bem são emuladas por teodicéias reversas que podem ser aplicadas ao problema do bem. Prima facie, nossos dois conjuntos de balanças parecem encontrar pontos de equilíbrio bastante similares.

Agora, eu não afirmo que a tese da simetria seja verdadeira, e que o desafio do deus malévolo não possa ser refutado. Mas me parece que é um desafio que merece ser considerado com seriedade. O problema defrontando os defensores do monoteísmo clássico é este: até que eles sejam capazes de dar boas razões para supormos que a tese da simetria seja falsa, eles carecem de boas razões para supor que a hipótese do deus benévolo seja mais razoável do que a hipótese do deus malévolo – sendo a última hipótese algo que mesmo eles certamente admitirão que é de fato bastante desarrazoada.

Embora reconheça a possibilidade de refutação do desafio do deus malévolo, eu próprio não sou capaz de divisar a maneira como isso possa ser feito. Talvez existam razões para imaginar que o universo foi criado por um ser inteligente. Mas, a esta altura, a sugestão de que este ser seja onisciente, onipotente e maximamente bom parece-me pouco mais razoável do que a idéia de que ele seja onipotente, onisciente e maximamente perverso.