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quarta-feira, 27 de julho de 2011

De pregador itinerante a Filho de Deus

O general romano Hermógenes estava estacionado com seus soldados em frente aos muros de Constantinopla, então a capital do império. Sentia-se preocupado. Fora incumbido pessoalmente pelo imperador Constâncio de prender um líder rebelde local, mas encontrara a cidade tomada por lutas de rua e parcialmente em chamas. Hermógenes decidiu pernoitar fora de Constantinopla para preparar seus próximos movimentos. Durante a noite, porém, a casa em que dormia foi descoberta por populares. Eles a incendiaram e arrastaram o militar para as ruas, onde foi surrado até morrer.

A morte de Hermógenes, ocorrida em 342, mostra o grau de enfrentamento e divisão que varreu o Império Romano durante o ciclo que entrou para a história como a controvérsia ariana. O que começou como um erudito debate teológico sobre Jesus se transformou numa questão de estado que durou cerca de 70 anos, rachou a sociedade da época e quase a arrastou para a guerra civil. O conflito só terminou quando um dos dois lados conseguiu empurrar o outro para a ilegalidade e a lata de lixo da história. A vitória teve um alcance que extrapolou, em muito, o próprio Império Romano. Pois foi durante aquele redemoinho histórico que se estabeleceu, na Igreja antiga, o dogma da identidade entre o carpinteiro Jesus de Nazaré e o Deus a quem ele chamava de Pai.

A controvérsia ariana é um drama, cheio de conspiração e de viradas inesperadas (veja arte ao longo do texto). Mas suas origens estão, na verdade, na pluralidade de pensamento que caracterizou o início do cristianismo, quatro séculos antes.

Após a morte de Jesus, seus seguidores espalharam-se pelo mundo. As primeiras comunidades cristãs surgiriam em cidades da Palestina, da Síria, da Ásia menor, da Grécia e até em Roma. "Devido à própria diversidade geográfica, esse grupos entraram em contato com diferentes idéias religiosas já existentes: alguns sofreram influências do judaísmo, outros do mundo grego".

Na segunda metade do século 1, algumas comunidades escreveram suas memórias da vida e dos ensinos de Jesus, criando os primeiros evangelhos. Os evangelhos atribuídos a Marcos, Mateus, Lucas e João serão depois considerados inspirados, e incorporados à Bíblia, enquanto outros, como o de Tomé, serão rejeitados. Neles já se refletem as diferenças entre as comunidades. "No evangelho de Marcos a narrativa só começa quando Jesus é reconhecido como filho de Deus, no batismo. Um outro grupo, porém, vai descrever sua infância, para afirmar que ele já era especial desde o nascimento. Não é que um texto queira negar o outro, mas sim ir além".

Ele conta que entre as idéias dos primeiros seguidores de Jesus estava a de que ele seria um profeta e libertador escatológico. Ou um enviado de Deus e, portanto, seu filho. "As pessoas exploravam diferentes maneiras de compreendê-lo", diz a americana Elaine Pagels, professora da Universidade Princeton, especialista no cristianismo primitivo e autora de "O Evangelho Desconhecido de Tomé".

Pagels diz que Marcos, Mateus e Lucas consideravam Jesus um ser humano com uma missão especial. "Eles o vêem como um messias, ou um rei enviado por Deus. Mas o rei Davi fora chamado de messias também. Só as cartas de Paulo e o evangelho de João é que falam diretamente sobre a divindade de Jesus", afirma.

Como alguém podia ser um cristão devoto e pensar que Jesus não é Deus? Uma possibilidade vem se revelando por meio da pesquisa dos manuscritos do Mar Morto, descobertos em 1947. No livro "Rei e Messias", o estudioso inglês Cristopher Rowland, de Oxford, explica que muitos viam Jesus como um "mediador angélico". Para esses cristãos Jesus era "aquele que, como o anjo de Deus no Antigo Testamento, foi enviado para revelar e cumprir a vontade de Deus, que está no céu".

O debate sobre a Bíblia

A disputa entre as diferentes visões sobre Jesus se refletiu também na discussão sobre a formação do livro sagrado dos cristãos
• 30 d.C.

Crucificação de Jesus

• Década de 50

Escritos do apóstolo Paulo

• 50-70

Escrita do evangelho de Tomé

• 70-90

Escrita dos evangelhos das comunidades de Marcos, Mateus e Lucas

• 90-100

Escrita do evangelho da comunidade de João

• Século 2

O número de evangelhos escritos por diferentes comunidades cristãs chega às dezenas. Irineu, bispo de Lião, denuncia boa parte desses grupos e seus textos como heréticos

• 144

Marcião, importante líder cristão, propõe um cânone bíblico composto por apenas um evangelho e as cartas de Paulo. Ele é denunciado como herege

• 170

Taciano escreve uma versão condensada dos evangelhos, que é recusada

• Século 3

Intenso debate teológico sobre a figura de Jesus

• 318

Início da controvérsia ariana

• 325

Reunidos no concílio de Nicéia, bispos escolhem uma fórmula que é contrária ao arianismo

• 367

Em seu esforço para combater o arianismo, o bispo Atanásio faz a primeira lista dos textos que compõem o novo testamento

• 381

Concílio de Constantinopla, convocado pelo imperador Teodoro, bane os bispos arianos

• 382

Concílio em Roma confirma a lista de Atanásio

Outros acreditavam que Jesus tivesse se tornado angelical ao ser elevado aos céus. Paulo Nogueira explica que "na tradição apocalíptica judaica, quando um homem subia aos céus, tinha que se transformar em anjo ou seria fulminado". Mas o caso de Jesus é diferente. "Ele seria maior do que os anjos, pois sobe aos céus para morar com Deus e governar o universo com ele, tornando-se um vice-regente ", diz.

E a diversidade de pontos de vista sobre Jesus só aumentaria com o tempo. A região do Mediterrâneo Oriental era um cadinho de povos e idéias. A cultura mais influente era a grega, com sua tradição de racionalismo e filosofia. À medida que o cristianismo penetrava nesse mundo, o encontro entre o pensamento grego e as escrituras da nova religião dava origem a formas mais sofisticadas de teologia cristã. "As discussões especulativas, que eram próprias das escolas filosóficas, foram transferidas para a teologia cristã". As escolas de teologia de certa forma foram sucessoras das academias filosóficas".

No início do século 4, as cidades de Antioquia e de Alexandria haviam se firmado como os dois grandes centros teológicos da cristandade, mas com diferentes tradições intelectuais. Em Antioquia era forte a influência aristotélica, e privilegiava-se uma leitura mais literal da Bíblia. Em Alexandria predominava uma releitura de Platão. E tendia-se a interpretar os textos bíblicos como alegorias.

A polêmica ariana teve início em 312 quando Ário, um popular padre de Alexandria, começou a pregar que Jesus não era igual a Deus, mas sim criado por ele e subordinado a ele. Alexandre, o bispo de Alexandria, considerou essa posição herética e em 318 puniu-o com o exílio. Mas o padre não era propriamente o autor de tais idéias; ele as absorvera em parte durante seus anos como estudante de teologia em Antioquia. E de maneira geral, a doutrina da subordinação de Jesus ao Pai era uma crença forte na parte oriental do Império Romano. "Não estava claro que a doutrina de subordinação fosse herética", explica Richard Rubenstein, autor de "Quando Jesus se Tornou Deus", o livro que inspirou esta reportagem. "Esse foi um dos fatores que fez com que a luta durasse tanto."

Ário partiu para a cidade de Nicomédia para receber o apoio de Eusébio, um antigo colega de estudos em Antioquia que se tornara bispo influente da igreja oriental. Começava a disputa entre arianos e antiarianos.

Uma divisão na Igreja era tudo o que o então imperador Constantino não queria. Ao contrário, seu objetivo era restaurar os dias de paz e grandeza do império, que se ressentia dos momentos difíceis do século anterior.

No início dos anos 220, tribos germânicas e soldados persas haviam invadido as fronteiras da Europa e da Ásia, e imposto aos legionários derrotas sem precedentes. Para sustentar o exército romano, os impostos foram duplicados sucessivas vezes, o preço dos alimentos subiu e a inflação explodiu. Em 70 anos, 17 generais diferentes tomaram o poder. O povo era impelido em massa para a escravidão e o banditismo assolava o império. Por volta de 290, porém, a crise parecia superada, ou superável. O imperador Diocleciano se propõe a trazer de volta a grandeza de Roma, e decreta a partir de 303 uma perseguição ampla, mas malsucedida, aos cristãos.

Diocleciano morre e em 312 o poder vai parar nas mãos de Constantino. Mesmo sem se batizar, Constantino é um cristão convicto. Cessa as perseguições, restitui à Igreja os bens confiscados, e abre a ela os cofres públicos. Constantino queria transformar o cristianismo numa ideologia oficial, capaz de trazer unidade a um império marcado pelo medo da dissolução e pelas diferenças regionais, especialmente entre a porção ocidental, que falava latim, e a oriental, que falava grego.

Buscando conciliação, ele convocou em 325 um concílio de bispos na cidade de Nicéia, o qual presidiu pessoalmente. Os bispos aprovaram uma fórmula conhecida como credo de Nicéia, que afirmava explicitamente que Jesus e Deus compartilhavam a "mesma essência". Foi uma derrota dos arianos.

Após o concílio, o bispo Eusébio de Nicomédia caiu nas graças de Constantino, que também se aproximou de Ário. As idéias de Ário foram declaradas corretas em concílios posteriores, e ele morreu bem no dia em que seria formalmente reintegrado à Igreja por ordem expressa do imperador. Sua morte não terminou o conflito, pois suas idéias eram apoiadas pela maior parte dos bispos da região de fala grega do império, enquanto seus adversários (o bispo Alexandre e seu discípulo e sucessor, Atanásio) tinham o apoio da parte latina da Igreja.

Rubenstein explica que a divisão era um reflexo das diferenças culturais. "A igreja do Oriente ainda se via, em alguma medida, como uma continuação do judaísmo e da cultura grega. Já a visão do grupo niceno era mais radical, e defendia uma ruptura com as heranças grega e judaica."

Na tela, um homem de muitas faces

Durante o século 20 o cinema mostrou várias versões sobre a personalidade do carpinteiro de Nazaré. Inicialmente com uma reverência que parecia beirar o temor. "Nos primeiros filmes Jesus era mostrado só de longe, não se via seu rosto", explica o professor de literatura Antônio Carlos Fester, que dá palestras em que analisa as diferentes formas como Cristo foi retratado na telona. "Isso só acontece, no cinema americano, com o 'Rei dos Reis', em 1927.

"Ex-membro da comissão de justiça e paz de São Paulo - sobre a qual está lançando um livro -, Fester é um católico cinéfilo, e criou, em meio a sua coleção de centenas de DVDs, uma sessão com dúzias de filmes onde Cristo é retratado como personagem principal ou coadjuvante. A partir da coleção, conseguiu detectar alguns padrões. "Existe um Jesus no cinema que é uma figura convencional, quase acadêmica." É o caso de filmes como o "Jesus de Nazaré", de Franco Zefirelli. "Os padres gostam muito desse filme porque é muito completo do ponto de vista biográfico. Embora seja preciso lembrar que os evangelhos não foram escritos como biografias", ressalta. Nestas obras é comum vê-lo como um homem de gestos pausados, bastante sério e com alguma pompa. Ao mesmo tempo há bastante ênfase nos milagres, recriados de forma impactante. É como se a parte divina do personagem fosse a sua totalidade.

Com o tempo, surgiu um Jesus mais pessoal. Em "A Maior História de Todos os Tempos", de George Stevens (onde o papel fica a cargo de Max von Sidow), ressalta-se a sua identidade como judeu praticante. Em "O Evangelho Segundo São Mateus", de Pasolini (que foi elogiado pelo Vaticano), mostra-se um cristo atuante, confrontando as autoridades temporais e religiosas da sua época. "A Última Tentação de Cristo", de Martin Scorsese, mostra uma progressiva descoberta de sua tarefa messiânica, intermeada com sentimentos de paixão amorosa, medo, dúvida. "Essa linha de filmes causa estranhamento e faz pensar sobre quem foi esse homem e qual sua mensagem", diz.

Essas diferenças sobressaíam-se na maneira como viam Jesus. "Os arianos tinham uma visão mais otimista da natureza humana, e viam Jesus como um exemplo moral. Tendiam a ressaltar seus aspectos de Filho, que o mostravam mais como um irmão mais velho do que uma figura paterna." Já os nicenos eram mais pessimistas quanto ao caráter pecador da humanidade, e consideravam que só um Jesus que estivesse no mesmo nível de Deus poderia vencer o pecado e a morte. Também viam a Igreja como o elemento mais importante de salvação, uma instituição que deveria resistir até mesmo ao fim do Império Romano - o que acabou acontecendo.

Por duas vezes, durante a controvérsia, o poder imperial esteve nas mãos dos arianos (um deles o Constâncio que enviou seu general Hermógenes para morrer nas mãos do povo de Constantinopla). Mas o bispo Atanásio de Alexandria revelou-se um adversário à altura. Durante quatro décadas, atazanou sem parar seus inimigos, recorrendo até mesmo à violência. Morreu em 373, pouco antes de a maré virar a seu favor. Em 378, as legiões romanas, sob o comando do imperador ariano Valente, foram arrasadas pelos godos na batalha de Adrianópolis. O império, mais uma vez, estava no fundo do poço. Ambrósio, bispo antiariano de Milão, fez um comentário severo: "Esse é o julgamento de Deus sobre os arianos". Teodósio I, o sucessor de Valente, conseguiu afastar por algum tempo o perigo das invasões . Durante uma viagem à Itália, aproximou-se dos bispos da igreja latina, e em fevereiro de 380 publicou um edito que promulgava a ortodoxia nicena como lei. A seguir, proibiu que os arianos celebrassem cultos em qualquer igreja e removeu-os dos bispados mais importantes.

Teodósio convocou um concílio em Constantinopla, em 381, que reafirmou o credo niceno, com algumas variações. Por fim veio a ordem para queimar os documentos arianos, cuja posse era crime mortal. "Depois de 70 anos de lutas internas que culminaram com o desastre de Adrianópolis, Teodósio apareceu num estágio histórico semelhante a Napoleão ou Stalin: uma figura autoritária cuja missão era consolidar a revolução cristã, preservar e adaptar a religião às realidades sociais existentes e, ao mesmo tempo, incorporá-la à estrutura do poder governamental", escreve Rubenstein.

Mas não foi o fim dos debates sobre a natureza de Cristo. No século 5 começou a impor-se nas igrejas da Síria Ocidental, Armênia, Egito e Etiópia a corrente monofisista, que privilegiava seu aspecto divino. No Ocidente subsistiu uma visão que afirmava a plena humanidade de Jesus. Mas sem torná-lo menos divino, pois o concílio de Constantinopla afirmou a crença num Deus trinitário, composto de três pessoas que partilhavam uma só substância divina. E Jesus, identificado com a segunda pessoa da trindade, foi reconhecido como Deus encarnado.

1 - Em Alexandria, o padre Ário afirma em seus sermões que Jesus é subordinado a Deus, e não o próprio Deus. Bom pregador e poeta, Ário torna-se uma figura popular.
2 - Alexandre, o bispo de Alexandria, convoca Ário para explicar suas idéias, as quais julga incorretas. Ele o excomunga e bane de Alexandria.
3 - Ário foge para Antioquia onde o bispo local, Eusébio, é seu amigo e figura poderosa na região oriental do império. Eusébio convoca um concílio, uma reunião de bispos para debater a doutrina, o qual conclui que as idéias de Ário não são heréticas.
4 - Preocupado com a divisão entre adeptos e adversários de Ário, o imperador Constantino convoca um concílio na cidade de Nicéia. Alexandre comparece levando seu pupilo Atanásio, que será o grande adversário dos arianos. O líder dos arianos é Eusébio. Os participantes criam um credo que condena indiretamente as idéias arianas. Ário se recusa a validar o credo e é expulso. Eusébio pouco depois será exilado.
5 - Numa reviravolta, Constantino chama Eusébio de volta do exílio e o nomeia seu conselheiro particular. Sob o patrocínio de Eusébio é convocado um novo concílio que considera as idéias de Ário corretas. Constantino exige que o bispo Alexandre readmita Ário a sua igreja em Alexandria.
6 - Alexandre se recusa terminantemente a readmitir Ário e morre pouco depois. Atanásio se torna bispo de Alexandria. Ele organiza uma resistência por vezes violenta contra os partidários de Ário.
7 - O imperador funda uma nova capital, Constantinopla. Atanásio é furiosamente perseguido e acusado de organizar o espancamento de cristãos arianos. Ele não nega as acusações, mas vai até Constantinopla falar com o imperador, a quem consegue impressionar favoravelmente.
8 - Ário escreve a Constantino reclamando que ainda não foi reintegrado à sua igreja. Constantino se sente ofendido pelo tom da carta e responde chamando-o de inimigo da religião. Ário vai a Constantinopla e se reaproxima de Constantino, que se dispõe a ajudá-lo diretamente a voltar para Alexandria.
9 - Os arianos organizam um concílio na cidade de Tiro, que condena Atanásio. Mas ele foge do Egito e é exonerado de seu posto e excomungado.
10 - Num concílio em Constantinopla, Ário apresenta sua própria versão do credo que, embora diferente do credo aprovado em Nicena, é julgado ortodoxo. O concílio ordena que ele receba a comunhão na principal igreja de Constantinopla, como forma de abrir o caminho à sua volta para Alexandria. Mas ele morre subitamente poucas horas antes da missa. Constantino também morre e o império é dividido entre seus filhos. Constante, que defende os antiarianos, fica com a Itália, e Constâncio, que protegerá os arianos, com a parte oriental do império.
11 - Ocorrem lutas violentas entre adeptos das duas correntes por todo o Mediterrâneo oriental. Tropas do exército desembarcam em Alexandria para prender Atanásio, mas ele foge para Roma. Eusébio, no auge do poder, se torna bispo de Constantinopla.
12 - Eusébio morre. Os adeptos de Atanásio tentam entronizar como novo bispo um dos seus, Paulo. Isso gera lutas violentas em Constantinopla, inclusive incêndios. Constâncio envia um general para prender Paulo, mas o militar morre espancado por uma multidão. As metades oriental e ocidental do império estão cindidas. Constante ameaça Constâncio com o uso da força para defender Atanásio. Risco de uma guerra civil entre Constante e seu irmão.
13 - Constâncio se torna o único líder do império e vê os adeptos de Atanásio como uma ameaça à estabilidade. Ele força a convocação de um outro concílio que adota um credo para subsitituir o de Nicéia. Mas ele morre pouco depois.
14 - O trono romano passa por vários ocupantes em poucos anos, enquanto o império sofre fortes reveses militares. Um general, Teodósio, consegue estabilizar a situação.
15 - Teodósio se aproxima dos bispos do ocidente e publica um edito defendendo o credo niceno. Ele ordena a perseguição dos arianos e consolida o cristianismo como religião oficial do império. É a vitória dos ortodoxos.
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Para ler:

• "Quando Jesus se tornou Deus", Richard Rubenstein. Fisus Editora, 2001.

• "Além de Toda Crença - O Evangelho Desconhecido de Tomé", Elaine Pagels. Objetiva, 2003.

• "História do Movimento Cristão Mundial", Dale Irvin. Paulus, 2004.

• "Rei e Messias", John Day (org.). Paulinas, 2005

• "O Nascimento do Cristianismo", John Dominic Crossan. Paulinas, 2005

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

John Dominic Crossan, Marcus Borg e as Pretensões do Jesus Seminar x William Lane Craig e a Defesa da Fé Cristã

O SEMINÁRIO JESUS X WILLIAM L. CRAIG

Embora não compartilhe da corrente apologética do Dr. William Lane Craig, não posso ser injusto e deixar de atribuir-lhe o destaque que tem, merecidamente, recebido por seu vigo em defender o Cristianismo Histórico. Sua abordagem Clássica, que emprega a Teologia Natural (Five Views on Apologetics, p. 15), tem sido influente nos estudantes da disciplina no Brasil. Isto não quer dizer que não existam falhas seríssimas nesta corrente (ver. Plantinga, Alvin. A objeção Reformada à Teologia Natural. In: Grandes Temas da Tradição Reformada, pp. 50 - 60). Apesar disso, considero o Dr. Craig uma das maiores autoridades em Defesa da Fé Cristã, em especial por seu poderoso raciocínio lógico.

O Dr. Craig já tem mais de 40 debates públicos e tem sido considerado imbatível por muitos ateístas. Bendigo a Deus pela vida do Dr. Craig.

Abaixo um artigo do Dr. Craig acerca do Seminar Jesus, um projeto que tenta reconstruir (os Evangelhos já fizeram isso!) o Jesus Histórico. O Dr. Craig dá uma verdadeira exposição sobre as pressuposições deste projeto. O artigo é longo, mas recomendo firmemente a sua leitura.

Redescobrindo o Jesus histórico: Pressuposições e pretensões do Jesus Seminar

Nesta primeira parte de um artigo em duas parttes, as pressuposições e pretensões do Jesus Seminar [Seminário Jesus]† são expostas e avaliadas. Nota-se que as principais pressuposições (i) do naturalismo científico, (ii) da primazia dos evangelhos apócrifos e (iii) da necessidade de um Jesus politicamente correto são injustificadas e resultam em um retrato distorcido do Jesus histórico. Embora o Jesus Seminar faça pretensão de falar em nome da erudição na busca pelo Jesus histórico, mostra-se que, de fato, é um pequeno grupo de críticos em busca de cumprir uma pauta cultural.

Em 1985, um proeminente estudioso do Novo Testamento chamado Robert Funk fundou um grupo de pesquisa no Sul da Califórnia ao qual ele deu o nome de Jesus Seminar [Seminário Jesus]. O propósito ostensivo do Seminar era descobrir a pessoa histórica de Jesus de Nazaré usando os melhores métodos da crítica bíblica científica. Na visão de Funk, o Jesus histórico tem sido sobreposto por lenda, mito e metafísica cristãos e, assim, certamente não se parece com a figura de Cristo apresentada nos Evangelhos e adorada pela Igreja hoje. O alvo do Seminar é arrancar essas camadas e recuperar o Jesus autêntico, aquele que realmente viveu e ensinou.

Fazendo isso, Funk espera atear uma revolução que trará fim ao que ele considera uma era de ignorância. Ele bombardeia a organização religiosa estabelecida por “não permitir que a inteligência da alta erudição infiltre-se em pastores e sacerdotes até chegar a uma massa faminta”1. Ele vê o Jesus Seminar como um meio de denunciar aos leigos a respeito da figura mitológica que lhes ensinam a adorar e de trazê-los face a face com o verdadeiro Jesus da história.

O grau com que os Evangelhos têm supostamente distorcido o Jesus histórico é evidente na edição dos Evangelhos publicada pelo Jesus Seminar. Chamada The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos], por incluir o chamado Evangelho de Tomé, ao lado de Mateus, Marcos, Lucas e João, essa versão imprime em vermelho somente aquelas palavras que os membros do Seminar determinam como sendo autênticas, realmente faladas por Jesus. Como resultado, menos de 20% dos ditos atribuídos a Jesus são impressos em vermelho.

O Jesus real e histórico parece ter sido uma espécie de crítico social itinerante, o equivalente judeu a um filósofo cínico grego. Ele nunca reivindicou ser o Filho de Deus, nem perdoar pecados, nem inaugurar uma nova aliança entre Deus e o homem. Sua crucificação foi um acidente na história; seu cadáver foi provavelmente lançado em uma sepultura suja e rasa, na qual apodreceu ou foi comido por cães selvagens.

A essa altura, se essas conclusões estão corretas, nós que hoje somos cristãos somos vítimas de um delírio em massa. Continuar a adorar Jesus atualmente, à luz dessas conclusões, seria ou idolatria ou mitologia – idolatria caso se adore a figura meramente humana que realmente viveu; mitologia caso se adore a ficção da imaginação da Igreja. Ora, não sei quanto a você, mas eu não quero ser nem um idólatra, nem um mitólatra. Portanto, é de máxima importância avaliar se as afirmações do Jesus Seminar são verdadeiras.

Hoje, portanto, quero falar sobre as pressuposições e pretensões do Jesus Seminar.

Pressuposições do Jesus Seminar

Primeiramente, falemos de pressuposições. O que é uma pressuposição? Uma pressuposição é uma suposição que se faz antes de se observarem as evidências. Pressuposições são cruciais porque determinam como se interpretam as evidências. Deixe- me dar-lhe um exemplo. Você ouviu falar sobre o homem que pensava estar morto? Esse sujeito acreditava firmemente que estava morto, mesmo sendo um ser humano vivo, funcionando normalmente. Bem, a esposa dele persuadiu-o para visitar um psiquiatra, que em vão tentou convencê-lo de que, de fato, estava vivo. Finalmente, o psiquiatra teve um plano. Ele mostrou ao homem relatórios médicos e evidências científicas de que mortos não sangram. Após minuciosamente convencer o homem de que mortos não sangram, o psiquiatra pegou um alfinete e fez um furinho no dedo do homem. Quando o homem viu a gota de sangue respingar em seu dedo, seus olhos se esbugalharam. “Ah!”, ele gritou, “Mortos sangram, sim, afinal!”.

A crença desse homem de que estava morto foi uma pressuposição que determinou como ele interpretou as evidências. Ele se apegava tão fortemente àquela pressuposição que ela distorceu como ele observava os fatos. Ora, da mesma maneira, o Jesus Seminar tem certas pressuposições que determinam como olham para as evidências. Felizmente, o Jesus Seminar deixou abundantemente claras algumas de suas pressuposições.

Naturalismo

A pressuposição número um do Seminar é o antissobrenaturalismo ou, mais simplificadamente, o naturalismo. Naturalismo é a visão segundo a qual todo evento no mundo tem uma causa natural. Não há eventos com causas sobrenaturais. Em outras palavras, milagres não podem acontecer.

Ora, essa pressuposição constitui absoluto divisor de águas para o estudo dos Evangelhos. Caso se pressuponha o naturalismo, então coisas como a encarnação, o nascimento virginal, os milagres de Jesus e Sua ressurreição são jogados pela janela antes mesmo que se sente à mesa para se observarem as evidências. Como eventos sobrenaturais, não podem ser históricos. Mas caso a pessoa esteja ao menos aberta ao sobrenaturalismo, então esses eventos não podem ser excluídos de antemão. Deve-se estar aberto para observar honestamente as evidências de que eles ocorreram. De fato, caso não se pressuponha o naturalismo, então os Evangelhos vêm à tona parecendo fontes históricas muito boas sobre a vida de Jesus.

R. T. France, estudioso neotestamentário britânico, escreveu:

No nível de seu caráter literário e histórico, temos boa razão para tratar seriamente os Evangelhos como fonte de informação sobre a vida e o ensino de Jesus... Realmente, vários historiadores antigos se considerariam sortudos por terem quatro relatos responsáveis [como os Evangelhos], escritos dentro de uma ou duas gerações a partir dos eventos, e preservados em tal riqueza de evidências de manuscritos primitivos. Além desse ponto, a decisão de aceitar o registro que oferecem é provavelmente influenciada mais pela abertura a uma visão de mundo sobrenaturalista do que estritamente por considerações históricas.2

Em outras palavras, o ceticismo quanto aos Evangelhos não se baseia na história, mas na pressuposição do naturalismo. A Introdução a The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos] declara:

A controvérsia religiosa contemporânea volta-se para a questão de se a visão de mundo refletida na Bíblia pode ser levada adiante nesta era científica e sustentada como um artigo de fé ... o Cristo do credo e do dogma ... não pode mais comandar a aprovação daqueles que têm visto os céus através do telescópio de Galileu.3

Mas por que, poderíamos perguntar, é impossível, em uma era científica, acreditar em um Cristo sobrenatural? Afinal, diversos bons cientistas são cristãos e a física contemporânea mostra-se bastante aberta à possibilidade de realidades que estão fora do domínio da física. Que justificação existe para o antissobrenaturalismo?

Nesse ponto, as coisas ficam realmente interessantes. De acordo com o Jesus Seminar, o Jesus histórico por definição deve ser uma figura não-sobrenatural. É aí que apelam para D. F. Strauss, o crítico bíblico alemão do século XIX. O livro de Strauss The Life of Jesus, Critically Examined [A vida de Jesus, criticamente examinada] baseou-se abertamente na filosofia do naturalismo. Segundo Strauss, Deus não age diretamente no mundo; Ele age apenas indiretamente, através de causas naturais. No que diz respeito à ressurreição, Strauss declara que o ressuscitar de Jesus por Deus “é irreconciliável com idéias ilustradas da relação de Deus com o mundo”4.

Observe atentamente, então, o que o Jesus Seminar diz sobre Strauss:

Strauss distinguiu nos Evangelhos o que ele chamou o “mítico” (por ele definido como qualquer coisa lendária ou sobrenatural) do histórico ... A escolha que Strauss admitiu em sua avaliação aos Evangelhos foi entre o Jesus sobrenatural – o Cristo da fé – e o Jesus histórico.5

Qualquer coisa sobrenatural é, por definição, anistórica. Nenhum argumento é dado; somente se define dessa maneira. Assim, temos um divórcio radical entre o Cristo da fé, ou o Jesus sobrenatural, e o Jesus real e histórico. Ora, o Jesus Seminar dá um visível endosso à distinção de Strauss: eles vêem que a distinção entre o Jesus histórico e o Cristo da fé é “o primeiro pilar da sabedoria acadêmica”6.

Mas, a essa altura, toda a busca pelo Jesus histórico se torna uma charada. Caso se inicie pressupondo o naturalismo, então, é claro, termina-se com um Jesus puramente natural! Esse Jesus reconstruído e naturalista não se baseia em evidências, mas na definição. O incrível é que o Jesus Seminar não faz qualquer tentativa para defender tal naturalismo; apenas o pressupõe. Mas essa pressuposição é completamente injustificada. Desde que a existência de Deus seja mesmo possível, então temos de estar abertos à possibilidade de que Ele tem agido miraculosamente no Universo. Somente se existe uma prova a favor do ateísmo pode-se justificar o pensamento de que milagres são impossíveis.

Isso levanta exatamente a questão de se os parceiros do Jesus Seminar sequer acreditam que Deus realmente existe. Em um debate com John Dominic Crossan, o co- presidente do Jesus Seminar, eu levantei exatamente essa questão. Veja atentamente como ele responde:

Craig: Essa distinção que você faz entre declarações de fé e declarações de fatos me perturba. Eu gostaria de saber o seguinte: o que você acha da declaração de que “Deus existe”? É uma declaração de fé ou de um fato?

Crossan: É uma declaração de fé para todos os que a fazem.

Craig: Quer dizer que, de acordo com sua visão, então, falando factualmente, não é verdade que Deus existe.

Crossan: Essa não seria uma maneira muito agradável de expressar isso. Deixe-me expressar-me dessa maneira a você. O que eu estou dizendo aqui é para tentar levar a fé seriamente. Entendam que o dr. Craig quer equacionar fé e fato. Há pessoas neste mundo que não acreditam que Deus existe. Eu entendo isso. Eu chego a pensar que eles estão errados, mas isso não se torna nem mais um pouco um ato de fé. Eles estão tendo um ato de fé em algo mais...

Craig: Mas se a existência de Deus é uma declaração de fé, e não uma declaração de um fato, isso quer dizer que a existência de Deus é simplesmente uma concepção interpretativa que uma mente em particular – um crente – coloca no Universo. Mas no Universo não existe um ser como Deus. Isto é, isso é simplesmente uma interpretação que um crente coloca dentro do Universo. Parece-me que, em um nível da realidade, independentemente da consciência humana, sua cosmovisão é realmente ateísta e que a religião é simplesmente uma estrutura interpretativa que indivíduos em particular colocam no mundo, mas nenhuma dessas é factual e objetivamente verdadeira...

Crossan: Não, eu diria que o que você está tentando fazer é imaginar o mundo sem nós. Ora, infelizmente, não posso fazer isso. Se você fosse me pedir (o que acabou de fazer) para considerar a partir da fé como Deus seria se nenhum ser humano existisse, seria como me perguntar: “Será que eu ficaria incomodado se não tivesse sido concebido?”. Eu realmente não sei como responder a essa questão.

Craig: É claro que você sabe!

Crossan: Espere um minuto! Nós só conhecemos Deus do modo como Deus revelou-nos Deus; isso é tudo que poderíamos saber em qualquer religião.

Craig: Durante a era jurássica, quando não existiam seres humanos, Deus existia?

Crossan: Pergunta insignificante.

Craig: Claramente, essa pergunta não é insignificante. É uma pergunta factual. Existia um Ser que era o Criador e Sustentador do Universo durante aquele período de tempo em que nenhum ser humano existia? Parece-me que, pela sua visão, seria dito um “Não”.

Crossan: Bem, eu provavelmente prefiriria dizer “Não”, porque o que você está fazendo é tentar se colocar na posição de Deus e perguntar: “Como é Deus à parte da revelação? Como é Deus à parte da fé?” Não sei se você pode fazer isso. Você pode fazer isso, suponho, mas não sei se teria realmente algum sentido.7

Parece muito óbvio que o dr. Crossan nem mesmo afirmaria que realmente há um Deus que existe fora da imaginação humana. Bem, se Deus é apenas uma projeção da consciência humana, se realmente não há ninguém “lá fora”, além daqui, então é claro que é impossível que Deus tenha agido sobrenaturalmente no mundo, como os Evangelhos afirmam. Então, a primeira pressuposição do Jesus Seminar, uma pressuposição à qual não fazem qualquer tentativa para justificar, é naturalismo ou talvez até ateísmo. Rejeite essa pressuposição e toda a construção entra em colapso.

Primazia dos Evangelhos Apócrifos

Ora, se o Jesus histórico não é o Jesus dos Evangelhos, o Jesus sobrenatural, então como estudiosos céticos entendem quem o Jesus histórico realmente era? Bem, isso leva à segunda pressuposição que gostaria de discutir, a saber, críticos céticos pressupõem que nossas fontes mais primárias para a vida de Jesus não são os Evangelhos, mas em vez disso escritos fora do Novo Testamento, especificamente os chamados evangelhos apócrifos. Esses são evangelhos forjados sob os nomes dos apóstolos, como o Evangelho de Tomé, o Evangelho de Pedro, o Evangelho de Filipe, e assim por diante. Diz-se que esses escritos extrabíblicos são a chave para se reconstruir corretamente o Jesus histórico.

O professor Luke Johnson, distinto estudioso de Novo Testamento na Universidade Emory, aponta que toda a recente enxurrada de livros reivindicando revelar o Jesus verdadeiro seguem o mesmo padrão previsível:

1. O livro começa fazendo alardes das credenciais acadêmicas do autor e sua pesquisa prodigiosa.
2. O autor afirma oferecer uma nova, e talvez até mesmo reprimida, interpretação de quem Jesus realmente era.
3. Diz-se que a verdade acerca de Jesus é descoberta por meio de fontes fora da Bíblia, as quais nos capacitam a ler os Evangelhos de uma nova maneira que está em desacordo com o sentido literal, ao pé da letra.
4. Essa nova interpretação é provocante e até erótica, dizendo, por exemplo, que Jesus casou- se com Maria Madalena ou era o líder de uma seita alucinógena ou um filósofo cínico andarilho.
5. Implica-se que as crenças cristãs tradicionais são, portanto, solapadas e precisam ser revisadas.8

Se você ouvir falar de livros com esse padrão familiar, sua antena crítica deve automaticamente se levantar. Você está prestes a ser ludibriado. Pois o fato é que não há fonte fora da Bíblia que ponha em questão o retrato de Jesus pintado nos Evangelhos.

Deixe-me tomar apenas alguns exemplos do que são fontes favoritas do Jesus Seminar. Primeiramente, o chamado Evangelho de Tomé. O Jesus Seminar considera-o uma fonte tão importante que o inclui ao lado de Mateus, Marcos, Lucas e João em sua edição de The Five Gospels [Os Cinco Evangelhos].

Ora, o que é o Evangelho de Tomé? É um escrito que foi descoberto no Egito logo após a Segunda Guerra Mundial. Era parte de uma coleção de documentos gnósticos. O Gnosticismo foi uma antiga filosofia do Oriente Próximo a qual sustentava que o mundo físico é mau e a esfera espiritual é boa. A salvação vem através do conhecimento secreto da esfera espiritual, o qual libera de seu encarceramento no mundo físico a alma. O chamado Evangelho de Tomé é anuviado com a filosofia gnóstica. Era, sem dúvida, parte da literatura da seita gnóstica, muito semelhante a seitas da Nova Era em nossos dias. Fragmentos, em grego, do Evangelho de Tomé que remontam a 200 d.C. foram encontrados, e a maioria dos estudiosos dataria o original como tendo sido escrito na última metade do século II d.C. Uma evidência desse fato é que o Evangelho de Tomé usa vocabulário proveniente de traduções e harmonias dos Quatro Evangelhos feitas no século II.

Assim, a vasta maioria de estudiosos, atualmente, considera o Evangelho de Tomé como uma fonte derivada do século II d.C. e que reflete a visão do Gnosticismo cristão.
Inacreditavelmente, contudo, os parceiros do Jesus Seminar consideram o Evangelho de Tomé como uma fonte primária primitiva concernente a Jesus e a utiliza para revisar o retrato de Jesus encontrado nos Evangelhos. Ora, que razões eles têm para datar o evangelho de Tomé como tão primitivo? Incrivelmente, toda a abordagem deles a essa questão é um raciocínio em círculo. Ele funciona assim:

1. O Evangelho de Tomé é uma fonte primária primitiva.“Como você sabe?”
2. Porque nenhum dito apocalíptico é encontrado no Evangelho de Tomé.“Por que isso é evidência para uma data primitiva?”
3. Isso é evidência para uma data primitiva porque Jesus não estava envolvido na Apocalíptica.“Como você sabe que Ele não estava envolvido nisso?”
4. Porque o Evangelho de Tomé prova que Ele não estava.“Por que acreditar no que o Evangelho de Tomé diz?”
5. O Evangelho de Tomé é uma fonte primária primitiva.

Desse modo, Howard Clark Kee, da Universidade de Boston, declara esse procedimento como “um triunfo do raciocínio circular”9. O estudioso neotestamentário britânico Thomas Wright diz que isso é como o Ursinho Puff seguindo seu próprio rastro na neve, ao redor de uma moita, e cada vez que vê mais rastros toma-os como evidência de que sua presa é até mais numerosa e mais real do que o que ele pensou antes!10 Não é de admirar que os parceiros do Jesus Seminar não têm sido capazes de convencer, por meio de argumentos como esse, muitos dos seus colegas!

Um segundo exemplo é o chamado Evangelho de Pedro. Embora esse escrito tenha sido condenado como espúrio, pelos primitivos Pais da Igreja, o texto real nos era desconhecido até que uma cópia foi descoberta num túmulo egípcio em 1886. Semelhantemente ao Evangelho de Tomé, traz as marcas da influência gnóstica e usa unicamente vocabulário do século II, de modo que os estudiosos unanimemente o consideram como um escrito do século II.

Apesar disso, John Dominic Crossan, o copresidente do Jesus Seminar, baseia toda sua reconstrução da morte e sepultamento de Jesus em sua afirmação de que o Evangelho de Pedro realmente contém a mais antiga fonte primária sobre Jesus e que os Quatro Evangelhos são todos baseados nela. Portanto, diz ele, os Evangelhos não têm valor histórico porque não têm qualquer fonte de informação sobre a morte de Jesus a não ser o relato do Evangelho de Pedro. Mesmo que o próprio Evangelho de Pedro descreva a ressurreição de Jesus, o naturalismo de Crossan o previne de acreditar nesse evento. Mas, com os Evangelhos bíblicos fora de seu caminho, Crossan pode afirmar que o Evangelho de Pedro é apenas lendário e que não há testemunho confirmatório à ressurreição de Jesus.

Um dos aspectos mais estranhos do raciocínio de Crossan é que ele parece ter se esquecido completamente do Apóstolo Paulo. Mesmo se Crossan estivesse correto quanto ao Evangelho de Pedro ser primário, o testemunho deste ainda seria independentemente confirmado pelos escritos de Paulo, que se refere ao sepultamento de Jesus e até lista as testemunhas das aparições da ressurreição de Jesus. Assim, mesmo se o relato da ressurreição no Evangelho de Pedro fosse fundamental para os Quatro Evangelhos, não há razão histórica para negar a ressurreição.

Porém, de fato, a teoria de Crossan a respeito da primazia do relato do Evangelho de Pedro é virtualmente rejeitada universalmente pelos estudiosos de Novo Testamento. O proeminente estudioso canadense Ben Meyer chamou os argumentos de Crossan de “excêntricos e implausíveis”11. Até mesmo Helmut Koester, da Universidade Harvard, rejeita o raciocínio de Crossan como sendo “seriamente defeituoso”12. Não existe qualquer sinal de dependência literária dos Quatro Evangelhos com relação à narrativa do Evangelho de Pedro. A conclusão óbvia é que o Evangelho de Pedro é baseado nos Quatro Evangelhos, e não o contrário. Thomas Wright resume isso tudo declarando que a hipótese de Crossan “ainda não foi aceita por qualquer outro estudioso sério” e a data e origem sugeridas por Crossan “são puramente imaginárias”13.

O que eu disse sobre o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Pedro poderia ser dito sobre todos os outros evangelhos apócrifos, também. De acordo com John Meier, proeminente crítico neotestamentário norte-americano, a idéia de que os evangelhos apócrifos fornecem-nos novas informações acerca de Jesus é “em grande medida fantasia”14. O fato é que esses escritos são tardios, escritos secundários moldados pela teologia do século II e pela posterior. Nas palavras do Professor Johnson, isso significa que, a despeito de toda publicidade, “os escritos do Novo Testamento permanecem como nossas melhores testemunhas históricas” para a vida de Jesus15.

Religião Politicamente Correta

A terceira pressuposição do Jesus Seminar é que a religião em geral e Jesus em particular devem ser politicamente corretos. Em nossos dias de relativismo e pluralismo religiosos, é politicamente incorreto reivindicar que uma religião é absolutamente verdadeira. Todas as religiões têm de ser, igualmente, caminhos válidos até Deus. Mas caso se insista em ser politicamente correto, então de alguma maneira deve-se tirar Jesus do caminho. Pois suas afirmações radicais e pessoais de ser o singular Filho de Deus, a revelação absoluta de Deus Pai, o único mediador entre Deus e o homem, são francamente embaraçosas e ofensivas para a mentalidade politicamente correta. O Jesus dos Evangelhos não é politicamente correto!

O desejo de ter uma religião politicamente correta e, em particular, um Jesus politicamente correto, distorce o julgamento histórico do Jesus Seminar. Eles desconsideram como sendo anistórico qualquer aspecto de Jesus que acham ser politicamente incorreto. Julgamentos históricos estão, pois, sendo feitos, não com base nas evidências, mas com base na polidez política.

Em lugar algum esse procedimento é mais evidente do que na obra de Marcus Borg, um dos membros mais célebres do Seminar. Como adolescente, Borg perdeu sua fé em Deus, em Cristo e na Bíblia. Mas alguns anos após formar-se no seminário, ele teve um número de experiências místicas que lhe deram um novo conceito sobre Deus. Ele diz: “Percebi que Deus não se refere a um ser sobrenatural ‘lá fora’ [...] Antes, Deus se refere ao sagrado no centro da existência, o santo mistério que está ao redor e dentro de nós”16. Ora, se essas palavras são entoadas da maneira certa, podem soar muito significativas e profundas. Mas são raquíticas em seu entendimento de Deus. O que Borg quer dizer quando afirma que “Deus é mais do que tudo e, apesar disso, tudo está em Deus”17?

De qualquer forma, Borg então reinterpreta Jesus à luz de suas próprias experiências místicas. Se imaginamos Jesus dessa maneira, diz Borg, isso “solapa uma crença cristã amplamente difundida segundo a qual Jesus é singular, o que é comumente ligado à noção de que o Cristianismo é exclusivamente verdadeiro e que ‘Jesus é o único caminho’”18. Nesse ponto, parece muito óbvio que o desejo de Borg por ter uma religião politicamente correta determina sua reconstrução do Jesus histórico. Como aponta Douglas Geivett, a rejeição de Borg da figura tradicional de Jesus tem “menos a ver com pesquisa histórica sobre Jesus e mais a ver com as próprias crenças de Borg sobre Deus”19.

O resultado de se permitir que a polidez política dite o que é e não é histórico é que se acaba criando um anacronismo: um Jesus politicamente correto, de fins do século XX, é apenas um reflexo de si mesmo [e não de Jesus]. Assim, o Jesus de Borg mostra ser um liberal social, dirigido por uma “política de compaixão”, a fim de defender os direitos das mulheres e dos pobres contra uma situação social opressiva. O caráter compassivo de Jesus, diz Borg, também implica a defesa dos direitos dos gays e a provisão de saúde universal imediatamente! É difícil discordar do veredicto de Howard Kee: os parceiros do Jesus Seminar sucumbiram à tentação de criar Jesus à sua própria imagem20. Eles olharam para o longo poço da história e viram seus próprios rostos refletidos no fundo dele21.

Em suma, as conclusões do Jesus Seminar se baseiam não tanto em evidências, quanto nas pressuposições do naturalismo, na primazia dos evangelhos apócrifos e na religião politicamente correta. Não há justificação para qualquer dessas pressuposições. Rejeite-as, e todo o Jesus reconstruído deles colapsa em ruína.

Pretensões do Jesus Seminar

Bem, a essa altura, você pode estar se perguntando como, nesse mundo, a erudição do Novo Testamento poderia ser baseada em fundações tão frágeis como essas. De fato, não o é. Isso me leva para o meu segundo ponto principal: as pretensões do Jesus Seminar.

O Jesus Seminar se retrata para a mídia como a voz representativa da erudição do Novo Testamento hoje, passando por cima das cabeças dos clérigos a fim de contar a leigos sem desconfiança, que têm sido ludibriados pela Igreja, como Jesus realmente era. Apenas uma evidência dessa pretensão é que eles nomearam a tradução deles dos Evangelhos “A Versão do Acadêmico” [The Scholar’s Version] – como se as equipes de linguistas e especialistas que produziram traduções tais quais a RSV [Revised Standard Version], a NEB [New English Bible] ou a NIV [New International Version]‡ não fossem de acadêmicos! Eles são muito preocupados em retratar-se como historiadores desinteressados, e não teólogos. Essa é a visão da mídia sobre o Jesus Seminar – um grande grupo de historiadores, acadêmicos representativos, falando a verdade sem tendências. Essas são as pretensões. Qual é a realidade?

Bem, a realidade vem a ser muito diferente. A reivindicação deles de terem 200 acadêmicos no Seminar é grosseiramente inflacionada: essa cifra inclui qualquer um que, de alguma maneira, esteve envolvido nas atividades do Seminar, como estar numa lista de correpondências. O número real de participantes regulares é somente de aproximadamente 40. E quanto às credenciais acadêmicas dos membros? Dos 74 listados na sua publicação The Five Gospels, somente 14 seriam figuras importantes no campo dos estudos de Novo Testamento. Mais da metade é de basicamente desconhecidos, que publicaram somente dois ou três artigos. Dezoito dos membros não publicaram absolutamente nada sobre estudos do Novo Testamento! A maioria tem posições acadêmicas relativamente inexpressivas – por exemplo, ensinar na faculdade de uma comunidade. De acordo com Johnson, “Os números, sozinhos, sugerem que qualquer reivindicação de representar ‘erudição’ ou a ‘academia’ é ridícula”22.

Realmente, é a reivindicação do Seminar de representar o consenso da erudição que tem deveras cutucado os estudiosos de Novo Testamento. E eu quero enfatizar que não estou falando sobre as reações de conversadores ou evangélicos: estou falando sobre a ampla gama de estudiosos de Novo Testamento. Por exemplo, Howard Kee denuncia o Jesus Seminar como “uma desgraça acadêmica”, e diz que as conclusões deles são “prejudiciais” e “periféricas”, não “um desenvolvimento substancial no estudo acadêmico responsável sobre o Jesus histórico”23.

De acordo com Johnson, a verdadeira pauta do Jesus Seminar não é acadêmica, mas social. Ele declara:

A pauta do Seminar não é erudição desinteressada, mas uma missão social contra a maneira como a igreja é dominada pela teologia evangélica – isto é, uma teologia enfocada na verdade literal dos Evangelhos. É importante notar, desde o princípio, que Robert Funk não concebe o Seminar como dando uma contribuição à erudição, mas como cumprindo uma missão cultural. Os inimigos declarados do Seminar não são simplesmente fundamentalistas ou a Convenção Batista do Sul [Southern Baptist Convention], mas todos aqueles que contribuem para qualquer entendimento tradicional de Jesus como Senhor Ressurreto e Filho de Deus.24

É essa pauta sociocultural que determina, de antemão, as conclusões do Jesus Seminar. Longe de representar o consenso da erudição de Novo Testamento, o Seminar na verdade representa as visões de uma minoria radical da periferia da ala esquerda da erudição bíblica. Não é de admirar que Jacob Neusner, um dos mais proeminentes teólogos judeus de nossos dias, tenha dito que o Jesus Seminar é ou a maior farsa acadêmica desde o Homem de Piltdown ou, senão, representa a falência dos estudos neotestamentários!25

Conclusão

Felizmente, a corrente principal da erudição neotestamentária tem se movido para uma direção muito diferente da periferia da ala esquerda representada pelo Jesus Seminar. Passados são os dias em que Jesus era tratado como uma figura da mitologia grega e romana. Passados são os dias em que Seus milagres eram desconsiderados como sendo contos de fada baseados em histórias de heróis mitológicos. Passados são os dias em que seu túmulo vazio e as aparições da ressurreição eram depreciados como sendo lendas ou alucinações. Atualmente, concorda-se amplamente que os Evangelhos são fontes históricas de valor com relação à vida de Jesus e que o contexto adequado para se compreenderem os Evangelhos não é a mitologia, mas o Judaísmo Palestino. Concorda-se amplamente que o Jesus histórico colocou-se e falou como estando no lugar do próprio Deus, proclamou o advento do Reino de Deus, e realizou ministério de operação de milagres e exorcismos, como sinais do Reino. Acho tremendamente gratificante ver que o movimento da erudição neotestamentária como um todo está em direção a confirmar com o entendimento tradicional de Jesus conforme retratado nos Evangelhos. Em particular, minha própria pesquisa concernente à ressurreição de Jesus me convenceu mais do que nunca que isso foi um evento histórico, verificável pelas evidências. O cristão pode estar confiante de que os fundamentos históricos de sua fé permanecem seguros. Você pode apostar sua vida nisso.

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Notas finais
1 Robert Funk, "The Issue of Jesus", Forum 1 (1985): 8.
2 R. T. France, "The Gospels as Historical Sources for Jesus, the Founder of Christianity", Truth 1 (1985): 86.
3 R. W. Funk, R. W. Hoover, and the Jesus Seminar, "Introduction" a The Five Gospels (Nova Iorque: Macmillan, 1993), p. 2.
4 David Friedrich Strauß, The Life of Jesus, Critically Examined, trad. George Eliot, ed. com Introdução por Peter C. Hodgson, Lives of Jesus Series (Londres: SCM Press, 1973), p. 736.
5 Funk, et. al., "Introduction", p. 3.
6 Ibid., pp. 2–3.
7 William Lane Craig e John Dominic Crossan, Will the Real Jesus Please Stand Up?, ed. Paul Copan, com Respostas de Ben Witherington III, Craig Blomberg, Marcus Borg e Robert Miller (Grand Rapids, Mich: Baker Bookhouse, 1998).
8 Luke Timothy Johnson, The Real Jesus (São Francisco: Harper San Francisco, 1996), p. 31.
9 Howard Clark Kee, "A Century of Quests of the Culturally Compatible Jesus", Theology Today 52 (1995): 22.
10 N. T. Wright, "Taking the Text with Her Pleasure", Theology 96 (1993): 307.
11 Ben Meyer, nota crítica a The Historical Jesus, de John Dominic Crossan, Catholic Biblical Quarterly 55 (1993): 575.
12 Helmut Koester, Ancient Christian Gospels (Londres: SCM, 1990), p. 220.
13 N. T. Wright, Jesus and the Victory of God (Minneapolis: Fortress Press, 1996), p. 49.
14 John P. Meier, A Marginal Jew, vol. 2: Mentor, Message and Miracles, Anchor Bible Reference Library (Nova Iorque: Doubleday, 1994), p. 5.
15 Johnson, Real Jesus, p. 89.
16 Marcus Borg, Meeting Jesus Again for the First Time (São Francisco: Harper San Francisco, 1994), p. 14.
17 Ibid.
18 Ibid., p. 37.
19 R. Douglas Geivett, "Is Jesus the Only Way?" in Jesus under Fire, ed. J. P. Moreland e M. J. Wilkins (Grand Rapids, Mich.: Zondervan, 1995), p. 187.
20 Kee, "Century of Quests", p. 26.
21 Uma memorável caracterização, feita por George Tyrell, sobre a escola da Antiga Busca pelo Jesus Histórico, Christianity at the Crossroads (Londres: Longman, Green, & Co., 1909), p. 44.
22 Johnson, Real Jesus, pp. 4–5.
23 Howard Clark Kee, Editorial: "Controversial Jesus Seminar", Los Angeles Times, 12 March 1991, p. B6; idem, "Century of Quests," p. 28.
24 Johnson, Real Jesus, p. 6.
25 Jacob Neusner, citado por Richard N. Ostling, "Jesus Christ, Plain and Simple", Time (January 10, 1994), p. 39.
† A importância deste artigo para o cenário brasileiro não pode ser diminuída. Embora o Jesus Seminar não seja alardeado na mídia deste país – diferentemente do que ocorre nos E.U.A. –, é inegável a influência do pensamento de seus membros em diversas revistas, jornais e documentários televisivos aqui difundidos. Não bastando tal injustificada tendência popular à posição do Seminar, vêem-se seus ensinos repercutindo em ambientes acadêmicos. Este tradutor pôde ouvir, dos lábios de diretor de certo seminário pentecostal (pós- graduado em uma prestigiada instituição teológica de orientação liberal), declaração segundo a qual John Dominic Crossan – um dos decanos do Seminar – seria a autoridade contemporânea em assuntos concernentes ao Jesus histórico. Enquanto isso, importantes estudiosos que reconhecem a confiabilidade dos Evangelhos em questões históricas – como N. T. Wright, Gary Habermas, Craig Blomberg ou mesmo William Lane Craig, autor do presente artigo – são esquecidos ou sequer conhecidos. Mal se publicam suas obras em língua portuguesa; por sua vez, os textos de alguns notáveis membros do Seminar são facilmente encontrados, no vernáculo, nas livrarias nacionais. A esperança desta tradução é pôr a lume a perspectiva crítica aos (aparentemente revolucionários) críticos da visão evangélica de Cristo, propondo ao contexto brasileiro uma alternativa conservadora academicamente respeitável e razoável quanto à “busca do Jesus histórico”. (Nota do Tradutor)
‡ Em Língua Portuguesa, seria possível pensar na NVI (Nova Versão Internacional), na Bíblia de Jerusalém e nas diversas edições baseadas na tradução de João Ferreira de Almeida. (N. do T.)
© William Lane Craig