terça-feira, 23 de novembro de 2010

Richard Bauckham, Raymond Brown e a pluralidade do movimento cristão

Há um texto chave no Evangelho de João a partir do qual podemos refletir sobre a pluralidade do movimento cristão nascente entre segmentos religiosos da região de onde emergiu. Ele ganha maiores cores quando o examinamos à luz de outras importantes passagens sobre o nascimento da igreja cristã.
João 4.1-42. A passagem por Samaria, o diálogo com a Samaritana e a imagem da colheita.

Antes, gostaria de expor uma questão ridícula por parte de alguns eruditos. Costuma-se apontar que nesta época do ano tal poço ( cujo termo empregado pegé também designa “nascente”) - que se alega ter sido objeto de descoberta arqueológica [1]- deveria estar transbordando, o que seria um sinal inequívoco, senão cômico, da não-historicidade do relato. J.P. Méier é um que, infelizmente, comete tal temeridade [2].

Sabe-se que, para um poço transbordar não basta haver chuva em uma determinada época. Condições agroecológicas determinantes da capacidade de infiltração de água, retenção de água no solo, capilaridade do solo, profundidade do solo, que estão interligados com a fitofisionomia do local; isso sem contar que variações no índice pluviométrico ocorrem, pode haver anos em que determinado índice de determinado mês sofra grandes variações, ainda mais extrapolando vários séculos. Por isso considero no mínimo irresponsavelmente precipitado alguém querer ser tão seguro numa afirmação como essa. [ Nota de acréscimo: segundo o professor D.A.Carson, o poço teria pelo menos 30 metros de profundidade, e Jesus teria se encontrado lá à hora sexta, ou meio-dia [3]].

Esta passagem de João nos remete a diversas alusões para com o Antigo Testamento e expectativas messiânicas, com implicações para grupos e povos como os Samaritanos, vizinhos mas repudiados pelos judeus, em que se estabelece a importância da tradição ser guardada, memorizada e relatada pela sua significação por um ambiente de grupos oriundos, ou compostos significativamente por pessoas ligadas a eles. A começar pela passagem da Judéia para a Galiléia por Samaria; habitualmente seguia-se o vale do Jordão. Poderia remeter à profecia de Isaías 11.12:, em que O Espírito de Deus “reagrupará os banidos de Israel e reunirá os dispersos de Judá”. Confira Os. 2.2; Ez.37.16-24. A referência aos maridos da samaritana remete a II Reis 17.24-41 [4], a respeito das divindades das 5 tribos babilônicas que se estabeleceram em Samaria após a conquista do Reino do Norte. Josefo, em Antiguidades Judaicas, IX, 14,3, dedica uma menção e reflexão a respeito. Nesta passagem de Reis, de forma mais aproximada, implica na verdade que teriam sido 7 divindades, pois duas das tribos levaram duas divindades, passando a adorar YHWH igualmente.

A perspectiva "messiânica" samaritana tinha ênfase no papel deste como profeta e sacerdote, como o prometido em Dt.18.15, o profeta semelhante a Moisés. Não advogamos aí as injunções forçadas quanto ao “Messias Filho de José” para com o evangelho. Embora possamos refletir paralelamente uma figura remetida por muitos judeus cristãos a Jesus, à qual a comunidade de Samaria iria se opor- o ‘Filho de Davi”, que seria a vindicação dos judeus ante os gentios e samaritanos, inclusive em questões territoriais. Jesus parece ter tido uma relação quase ambivalente com essa perspectiva, assumindo partes dela e também negando outros aspectos. Quando no encontro com a mulher siro-fenícia [Mt. 15.21-28], Jesus ironiza-a clamando por ele como “Filho de Davi”, pois pela lógica ela teria era medo e/ou ojeriza com essa figura, que seria perigosa para ela e seu povo. Como muitas outras vezes, Jesus não é condescendente com quem pode se aproximar dele com dubiedade, dissimulação. Tal figura seria um adversário para ela, alguém que poderia lhes ( i.e., ela e seu povo) expulsar da terra...estaria ela sendo dissimulada apenas para obter o que queria, ou manifestava uma fé sincera? O restante da história mostra que não era o caso, que para ela a aflição de sua filha era mais importante do que os conflitos.

Podemos visualizar a imagem da "água viva", e a referência antecedente a “dom de Deus”, na ótica da esperança do "messias" sacerdotal. À luz da passagem da leitura messiânica de Dt. 18.18, o "messias" seria o Profeta à semelhança de Moisés, um libertador; João retrata que alguns dos discípulos mais chegados de Jesus compartilhavam de tal expectativa, vide a menção a “aquele que Moisés escreveu na Lei” (1,45), no convite de André para Natanael em João 1.45. Raymond Brown [5] assevera sobre a fala da personagem da mulher samaritana: “Em nenhuma parte mais Jesus é chamado ‘Salvador’ durante o ministério público. Contudo, o mais que se pode provar de Jo 4,4-42 é que os samaritanos usam um título que não é tradicionalmente messiânico – não há nenhuma alusão à preexistência”.

Samaritanos esperavam o “Taeb” [6], uma figura "messiânica" de menos vulto (tanto que não se vê de forma comum referências a ela como Messias), de caráter sacerdotal. Aqueles que buscam afirmar que o evangelho joanino apregoaria que Jesus se identificara como o enviado divino da perspectiva samaritana necessitam crer que as diversas partes em que se recusa a se auto-identificar tanto com as reivindicações samaritanas quanto as dos judeus, foram uma inserção posterior corretiva...pois invocando a imagem do Ruah – em pneumati kai aletheia – transpassaria-se as conotações de disputas políticas e territoriais em seu messianato... Estaria significando “não sou o messias da política de aspiração de poder judaica nem a samaritana”, transcendendo os dois ideários. Nesse ponto, podemos entender o que, no ponto de vista de seus opositores, teria sido um insulto a Jesus ao lhe dirigirem a pergunta retórica “Você é um samaritano?”(Jo.8.48). O autor do evangelho, na passagem que temos referente ao versículo 22 neste mesmo capítulo 4, deixa claro que não estava usando Jesus para uma apologia do movimento samaritano contra o judaico.

Alguns exegetas ingenuamente acabam partilhando do ponto de vista dos interlocutores e concluem que de fato Jesus se identificara com o partido Samaritano. Lamentamos tamanha ingenuidade. Pois com pouco esforço de raciocínio nos lembramos que um grupo extremista, que se afirma pelo contraste com outro grupo, tende a pensar das posições não-alinhadas como tomar partido com os outros. Recentemente, não o vimos tais declarações por parte de autoridades estadunidenses em sua guerra unilateral contra o “Terror”? Não eram assim também ambos os lados da Guerra Fria? Novamente lembramos que não basta buscarmos apenas lançar mão de dados para ter erudição, senão caímos na falácia estatística das “imagens semi-aderentes”; é importante antes o bom concatenar lógico das proposições. Coerentemente, teriam que especular se Jesus teria mesmo parte com o demônio...

O cenário didático da colheita é corrente em Jesus. Por exemplo, confira-se Mt. 9.37. A semeadura ocorria em outubro/novembro e a colheita-março/abril. Se estabelece aí um contraste entre os campos literais verdes, ainda longe do tempo da colheita. “Levantai e vede”: grupos samaritanos vindo de Sicar. Os campos da missão dão os sinais de que estão no ponto de colheita. Então, já haviam sido semeados anteriormente! Era para os discípulos participarem da alegria dos trabalhadores anteriores, e não serem recalcitrantes por não terem sido eles– vs. 36-37. Afinal, como a fala no evangelho de Marcos, “Aquele que não está contra nós é a nosso favor” - Tradução Bíblica Ecumênica. Quem semeara? Terá sido por isso que Jesus “necessitou passar por Samaria?” Vs. 38 – o trabalho dos cultivadores será proveitoso para a comunidade cristã, para a Igreja. Interessante essa imagem. Se o Cristo é o semeador, e os apóstolos os colhedores, os outros então cultivaram a partir do trabalho de Cristo, e não por conta própria.

Podemos perceber que neste evangelho poderia estar contido[7], de forma embutida ou mais clara para aqueles do seu contexto, uma resposta a questionamentos sobre o papel de samaritanos e grupos ligados a eles na igreja cristã; os que supostamente promoviam este questionamento podiam se apegar a Mateus 10.5, considerando, como no apontado por Bauckham [8] , que é um erro considerar os evangelhos como destinados apenas às comunidades locais, e sim que a partir delas eles tinham a perspectiva da difusão entre as igrejas e delas para a evangelização. Especificamente quanto ao ambiente da comunidade joanina, acompanhamos Raymond Brown [9]: “longe de ser um cristianismo de isolamento, ele foi um confronto em plena corrente com as sinagogas e outras igrejas, e que apesar de tendências sectárias, ele orava pela unidade com os outros cristãos. Mas era um cristianismo desafiadoramente diferente e volátil – tão volátil que estava destinado a ser absorvido nos movimentos cristãos mais amplos (de direita e de esquerda) que surgiam no primeiro século".

Esse motivo no evangelho, de buscar apontar a legitimidade das missões a partir de Samaria, pode mostrar as ligações precoces logo no início da atividade missionária da igreja, dentre os conversos samaritanos e helenistas, e que estaria também ligado também à polêmicas cristológicas, envolvendo a alta cristologia da perspectiva do evangelho joanino. Assim, desconstruiria-se os argumentos de que encontrar indícios de pensamento helenista, ou de âmbitos culturais além de estritamente judaicos, em textos neotestamentários - especialmente evangelhos - é certeza de que seja desenvolvimento tardio. Não adoto aqui a perspectiva radical de que o evangelho joanino é uma costura de diversas tradições independentes e criadas em épocas diferentes, sendo o “discípulo amado” narrador uma figura simbólica ou um “rosto coletivo”, a personificação do grupo [10].

Podemos saltar para, bem mais à frente, um episódio crucial para a expansão do movimento cristão. Em Atos, o discurso de Estevão parece trabalhar em cima da Torá Samaritana. Vemos isso analisando-se à luaz de temas quanto à idade de Terach implicada como 145, não 205 anos. Abraão sepultado em Sh'kem. Filo de Alexandria, em “De Migratione Abrahami”[11], coloca que Abraão deixou Haran depois da morte de Terach. Também no seu discurso há influência do livro de “Jubileus”, no enterro dos ossos dos irmãos de José em Heron – Jb 1.27-29; 2.1.

O caráter indissiocrático das idéias de Estêvão, comparadas com o evangelho lucano e com Atos – destacando os demais discursos onde se apresenta ideias coerentes com o que se mostra ser a do compilador do livro- atesta para a fonte independente do discurso [12], sem dúvida de origem dos “helenistas” cristãos [13], ou como especulamos mais aqui, dos conversos samaritanos, acrescentando a importância dada ao patriarca José característica do imaginário efraimita. O livro o apresenta como “denunciado” pelos judeus da dispersão que eram ex-escravos (At 6.9).

Os helenistas foram a Samaria com a perseguição. Não acredito que apenas a oposição ao culto do Templo serviria como elo tão forte. Importante: eles não tinham comprometimento apologético nem com o Templo, tampouco com o Monte Gerazim, tal como Jesus. Para o evangelista, eles tinham contemplado a Shekinah, ou seja, Jesus era lócus do culto. Ele “habitou entre nós”, retoma a idéia do Tabernáculo, ou da resposta de Deus a Davi-Salomão, de que ia de tenda em tenda.

Os Sete, incluindo Felipe, que era dotado de desenvoltura para pregar entre gentios e samaritanos (At 8.4-13 e 26-40) – terão sido um grupo-referência, não contando com o status dos Doze mas sendo também um referencial alternativo? Os helenistas encontraram acolhida em Samaria porque ali poderia já existir um grupo coeso, importante? Então, tal grupo já vinha dos tempos da atividade de Jesus. Isso possibilitou a missão saída da perseguição desencadeada após o martírio de Estêvão, e daí Pedro e João foram enviados lá a partir das notícias – Atos 8.14, expressando o quadro desenhado em Jo. 4.38. Serviram então ali como uma ponte, um referencial maior entre os dois grupos, o mais identitariamente judaico e o nem tanto. Tiago passara a ser o Bispo de Jerusalém, no lugar de Pedro...este, é encostado na parede por Paulo por se intimidar pelo “partido judaizante”, tendo passado por uma saia justa em um momento que tinha que tomar uma posição(Gl. 2.11-14). E João (além da grande probabilidade de fundar/ dirigir comunidades na Ásia Menor, especialmente Éfeso)?..
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Referências:

[1] BROWN, Raymond E. The Gospel According to John I-XII [2] MEIER, J.P. Um Judeu Marginal.[3] CARSON, D.A. The Gospel According to John.[4] CULLMAN, Oscar. Das origens do Evangelho à formação da teologia cristã. [5] BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado[6] SCARDELAI, D. Movimentos Messiânicos no tempo de Jesus: Jesus e outros messias.[7] CULLMAN, Oscar. Early Christian Worship[8] BAUCKHAM, Richard. The Gospels for All Christians: Rethinking the Gospel Audiences[9] BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado [10] - BAUCKHAM, Richard. Testimony of the Beloved Disciple, The: Narrative, History, and Theology in the Gospel of John - HENGEL, Martin. Johannine Question - MOLONEY, Francis J., HARRINGTON, Daniel J., The Gospel of John[11] ALEXANDRIA, Philon. De Migratione Abrahami.[12] BLOMBERG, Craig. From Pentecost to Patmos: An Introduction to Acts Through Revelation [13] HENGEL, Martin. Acts and the History of Earliest Christianity

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