terça-feira, 23 de novembro de 2010

Richard Bauckham e a presença feminina no Cristianismo Primitivo

É algo que nos ocorre e nos deixa estupefatos quando vamos tendo pensamentos, que vão se enlevando e se encaixando com diversos insights ao ponto de iniciarmos um quadro mental, e descobrimos que houveram outros desbravadores dessa mata escura, e que podemos aproveitar os rastros e clareiras por eles deixados. Com uma fina pontada de desapontamento por não sermos os 'descobridores da América', vem uma felicidade de não sermos exóticos estranhos no ninho.

Acontecera isso comigo recentemente, ao refletir sobre a perspectiva das mulheres na igreja cristã nascente. Elas costumam ser esquecidas, e dificilmente se encaixam nos esquemas gerais traçados. Algumas vezes, o olhar feminista sobre a bíblica recai num essencialismo ululante, desprovido de realismo, ou anacronismos, o que nos enfastia. Alguns conseguem ser mais centrados e escapam dessa armadilha. Eu os busco. Encontrei um neste livro de Bauckham, ‘Gospel Women: Studies of the Named Women in the Gospels’, que tive a felicidade de ler e compartilho, das resenhas com as quais me deparei na internet, a que de forma sucinta traduzira as minhas impressões fora a da professora Dra. Robin Gallaher Branch, doutora em Estudos Hebraicos da Universidade do Texas em Austin. Fora uma Fullbright Scholar e depois Professora Associada na Universidade de Potchefstroom, África do Sul. Atualmente é professora de Bíblia e Teologia na Faculdade Crichton, em Memphis, Tennessee. Deixo aqui disponível uma tradução livre (aberta a correções) de minha parte, para compartilhar e divulgar esse trabalho extremamente relevante para os leitores de língua portuguesa, esperando contribuir para que alguma editora possa publicar no Brasil.

Bauckham, Richard
Gospel Women: Studies of the Named Women in the Gospels
Grand Rapids: Eerdmans, 2002. Pp. xxi + 343.

Richard Bauckham, professor de Estudos no Novo Testamento e Bispo Professor na Universidade de St. Andrews, na Escócia, escreveu um importante trabalho sobre algumas das mulheres nomeadas no Novo Testamento. Ao fazê-lo, ele olha entusiasticamente as histórias, fatos e sugestões no texto bíblico e em histórias na literatura extrabíblica sobre estas mulheres.

Seus temas incluem mulheres na genealogia de Jesus em Mt. 1; Elizabeth e Maria em Lucas 1; Ana da tribo de Aser em Lucas 2; as duas Salomés, uma, irmã de Jesus, e a segunda, sua xará e não referida no texto bíblico, uma discípula de Jesus (226), Joana (Lucas 8:3, 24:10), a qual, ele argumenta, é uma apóstola; Maria de Cléopas (João 19:25), e as mulheres nas histórias da ressurreição.

Ele começa por olhar para o livro de Rute, apontando que ele oferece uma chave ginocêntrica para uma leitura das Escrituras(1.16). À primeira vista isso parece pouco habitual, ainda que estabelece as bases para o seu argumento de que porções das Escrituras apresentam vozes das mulheres. Ele aponta que, embora não possamos conhecer a autoria de Rute, 'a voz com a qual o texto fala aos seus leitores é feminina' (3, ênfase original); esta voz feminina domina até os últimos versos, quando a voz masculina, sob a forma de genealogia de David retorna ao texto(4). Citando o trabalho de Carol Meyers, Bauckham observa em relance certos textos, como Rute, Cântico dos Cânticos, e possivelmente Ester, um mundo interior de mulheres, um lugar na sociedade em que suas vozes sejam ouvidas e apreciadas(9). Ele argumenta que os textos ginocêntricos não têm o papel de relativização dos textos androcêntricos, os textos predominantes em ambos os Testamentos, mas de contrabalançar ou corrigir precisamente isto: seu androcentrismo(15,16). Por conseguinte, ouvir e atentar para as vozes e perspectivas das mulheres no Novo Testamento são executados como um tema em todo o livro de Bauckham 'Gospel Women'.

Bauckham continua sua ênfase no Antigo Testamento ao olhar para as quatro mulheres citadas na genealogia de Jesus em Mateus: Tamar, Rahab, Rute, e a esposa de Urias o hitita...'Numa genealogia patriarcal deste tipo, as mulheres não têm lugar necessário', ele inicia, e então pergunta por que elas estão lá. Conduzindo seus leitores passo a passo, argumenta que genealogia de Mateus exprime o sentido universal do propósito de Deus, nomeadamente, que Jesus é o Messias judeu para os gentios(21). Que as quatro mulheres têm algum tipo de ligação por nascimento ou casamento fora de Israel 'estando de acordo com o objetivo global messiânico da genealogia'.(27).

Ele afirma que Tamar 'era, pelo menos, não mais gentia do que Sara, Rebeca, Lia, e Raquel foram'(31). Além disso, o fato de que Jesus tivera ancestrais gentios mostra o grau de abertura das pessoas de Deus para a inclusão dos gentios crentes, uma abertura que o Messias confirma e amplia(42).

A interação de Elizabete Maria em Lucas 1 apresenta uma vinheta textual proporcionando um olhar sobre o mundo das mulheres. Falta no seu capítulo sobre estas duas mulheres, no entanto, um profundo olhar para Elizabete; Bauckham concentra-se em Maria. Ele cita a prevalência do tema da mãe-filha em muitos das histórias precedentes do Antigo Testamento sobre mulheres. A seção Maria-Elizabete continua no modelo salvífico de mulheres como portadoras das pessoas de Deus. Anteriormente as mulheres portadoras que ele cita são Sifrá e Puá, as parteiras em Êxodo 1; Débora a juíza e Jael, que matou Sísera(Juizes 4-5); Ana (1 Sm. 1,2); e Ester. Juntamente com os homens, as mulheres atuam como agentes humanos da libertação de Deus para seu povo, dos seus inimigos(57). Maria e Isabel continuam esse padrão. Bauckham nota que comentadores costumam dizer que as canções de Maria e Ana celebram a salvação do Deus de Israel e permanecem separadas das próprias mulheres cantoras. Ele considera que estes comentadores tenham perdido o ponto.

Em vez disso, ele sustenta que as canções dessas alegres mulheres 'celebram a ação graciosa de Deus para a própria cantora em seu significado para todos aqueles que também estão em condições humilhantes de vários tipos e então para todos os fiéis de Deus em geral'.(6, ênfase original).

Bauckham nota que Ana da tribo de Aser é a única personagem judaica no Novo Testamento não pertencente à tribo de Levi, Judá, ou Benjamin (77). Ele sustenta convincentemente que a menção de Ana e da tribo de Aser garante que a comunidade representada na narrativa de Lucas representa Israel como um todo, tribos do norte, bem como do sul, exilados, bem como os habitantes da terra (98). A mensagem da salvação na pessoa de Jesus veio para todo Israel.

Em seu capítulo mais longo e interessante (109,202), Bauckham postula que Joana, e seu marido Cuza, capataz de Herodes, são os ‘Andrônico e Junia’ mencionados tão carinhosamente por Paulo como seus parentes e companheiros presos em Rom 16:7. Ele observa que a referência ao marido de Joana é excepcional entre todas as referências dos Evangelhos às mulheres discípulas de Jesus (119).

Bauckham observa que Joana e Cuza, como membros da aristocracia herodiana de Tiberíades, moveram-se livremente no mundo romano(161). Joana, já como uma membra da aristocracia, escolhera ser uma seguidora de Jesus e por isso, tinha feito uma incrível travessia social para se tornar uma seguidora(145). Ela atravessara ainda mais, de acordo com os argumentos de Bauckham, as desigualdades sociais, quando ela se tornou, com o seu marido Andrônico/Cuza, uma missionária itinerante. Argumenta que o nome Junia é uma versão grega de Joana, provavelmente retomado por uma judia palestina que se tornou uma missionária cristã para o mundo grego(169).

Em um conto imaginário que deve ter sido divertido escrever, Bauckham, desenhando a partir da sua investigação, inclinações, e palpites, traça um esboço histórico desta intrigante mulher e seu marido (194-98). Paulo louva-os como 'distinguidos entre os apóstolos' e crentes em Cristo antes dele ter se tornado um crente (Rm 16:7).

Outro casal missionário jovem bastante provável era Maria de Cléopas e seu marido Cléopas(198). Em seu próximo capítulo, Bauckham argumenta que a frase 'Maria de Cléopas'(João 19:25) pode significar quer que Maria é uma solteira filha de Cléopas ou a esposa de Cléopas e ele opta por esta última(207-9). Rastrear tanto a união e linha de Maria e Cléopas prova-se fascinante, pois este estudo revela a importância dos papéis que desempenharam os parentes de Jesus na Igreja primitiva(203).

Bauckham diz que Cléopas foi o irmão do pai adotivo de Jesus, José(208). Maria e Cléopas tiveram um filho muito famoso, um homem chamado Simão ou Simeão, o mais importante líder cristão na Palestina por metade de um século(209). Certamente, de acordo com textos extrabíblicos, ele foi martirizado com 120 anos, uma idade que coloca-o na mesma categoria de importância como Moisés(209). Porque Simão/Simeão foi tão bem conhecido por toda sua reputação entre as igrejas, os primeiros leitores do Quarto Evangelho, João, não teriam tido qualquer dificuldade em identificar Maria de Cléopas como a sua mãe (209).

Bauckham, continuando a sua exploração de textos extrabíblicos e a luz que eles derramaram sobre as pessoas em torno de Jesus, cita uma tradição cristã pós-canônica nomeando Maria e Salomé como as duas irmãs de Jesus(p. 226). A História Copta de José menciona que Salomé seguiu Maria, José, e Jesus na fuga para o Egito(231).

Em seu capítulo concludente Bauckham aborda cada história de ressurreição nos Evangelhos separadamente e olha para as suas personagens mulheres. Quanto a Mateus, ele diz que o comando para as mulheres 'ir e contar'(Mt 28:10) manteve aplicação durante suas vidas. Porque é inconcebível que as mulheres teriam parado de contar a todos os que foram posteriormente dispostos a ouvir, o seu testemunho não é substituído pelo dos onze, como tem sido argumentado, mas inclui a sua própria validade contínua(279).

A narrativa da ressurreição de Lucas remete para os discípulos de tal forma a tornar claro que não só os onze, mas também um grupo maior está em mente; as mulheres pertencem a este grupo maior, diz Bauckham(82). Em João, a declaração de Maria Madalena 'Eu vi o Senhor'(João 20:18) vai depor sobre a realidade do Senhor ressuscitado e é tão persuasiva como um testemunho quanto o dos outros discípulos e Tomé(285).

Bauckham manipula bem o difícil problema da maneira como o Evangelho de Marcos termina. Ele argumenta que o silêncio das mulheres diz aos leitores que, embora as mulheres passam as notícias da ressurreição de Jesus para os discípulos do sexo masculino, a proclamação do evangelho ao mundo não começa neste momento. Na verdade ele não pode começar aqui, não porque as mulheres são mulheres, mas porque a proclamação deve começar a partir de que uma aparição do Jesus ressuscitado comissiona suas testemunhas(294) [Ele sustenta que os adendos seguiram um padrão convencional nas igrejas, retratado nos outros - Nota do Tradutor] .

Bauckham, claramente um refinado e metódico professor, escreve como um acadêmico para acadêmicos. Seu estudo 'Gospel Women' inclui interessantes suplementos da sua investigação, como uma refinada seção chamada 'Mulheres Judias como Donas de Propriedades'(121,35) e notas sobre as tribos do norte no exílio em 4 Esdras 13 e no livro de Tobias (101,7).

Seu livro teria sido melhor chamado ‘Gospel Women: Estudos de (algumas das) Mulheres Nomeadas dos Evangelhos’. Uma das esperanças é que ele aplique seus conhecimentos para uma sequência, algo como Gospel Women: Estudos de (mais) Mulheres Nomeadas no Novo Testamento.

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