A desmitificação da ficção moderna que trata o teólogo profissional como heroico defensor de objetividade científica consta entre as contribuições positivas da teoria pós-moderna aos estudos contemporâneos das Sagradas Escrituras. Como N.T. Wright mostrou há vinte anos, muitos métodos “críticos”, alegadamente “neutros”, “encapsulam posições filosóficas inteiras, que em si, são altamente questionáveis” (Wright 1992: 54). Inevitavelmente, todo exegeta realiza a tarefa exegética a partir de alguma agenda, seja ele consciente, parcialmente consciente, ou inteiramente inconsciente disso. Ninguém é “neutro”.
Por outro lado, e, diga-se de passagem, mais um ponto em favor da teoria pós-moderna, ninguém precisa ser neutro. Entretanto, a não ser que lancemos mão de algum método radical, a exegese bíblica se preocupa em extrair do texto seu verdadeiro sentido entendido em termos da intencionalidade autoral. Com esta finalidade, aquilo que se espera do exegeta é que ele identifique, conheça e examine sua própria agenda e — dentro do possível — questione no âmbito metodológico se o texto controla a agenda ou se a agenda controla o texto (daí a questão do “controle exegético”). Eisegese suplanta exegese quando o intérprete perde de vista aquele duplo preceito particularmente querido da teologia reformada, a saber, a autoridade da Escritura Sagrada e a submissão do cristão diante dela (cf. Throup 2009: 83-94).
Este ensaio procura ilustrar os perigos inerentes da exegese cegamente controlada pela agenda do crítico. Tanto especialistas como pregadores são capazes de incorrer neste erro, aqui me incluo nas duas categorias. Reconheço, pois, que minha agenda é potencialmente capaz de ditar qual seria a leitura natural do texto, quando a leitura natural do texto deve informar e, caso necessário, modificar ou corrigir a minha agenda. Portanto, aqui não se trata de um exercício de caça-bruxas. Tampouco será torcer pelo retorno daquela ilusória objetividade moderna. Está claro que as agendas não são necessariamente problemáticas em si: vira problema quando impõem sentido ao texto que faz pouco sentido, ou que ofusca o sentido mais provável do texto sagrado.
(i). Jesus e “Legião”: crítica literária a partir de Marcos 5.1
Após a tempestuosa travessia do mar (Mc 4.35-41), Jesus desembarca em território gentio, deparando-se com a cena depravante e desesperadora de um homem endemoninhado, indomável e autodestrutivo (Mc 5.1-5). Lançando-se aos pés de Jesus, o homem anuncia, “Que é que tenho eu com você — Jesus, filho do Deus Altíssimo? Imploro-lhe perante Deus, não me torture!” (Mc 5.7). Em seguida, Jesus pergunta, “Qual o seu nome?” e o homem lhe responde, “Legião é meu nome, pois somos muitos” (Mc 5.9). O resto da história, com a transferência dos demônios à manada de porcos, o destino aquático dos mesmos e a instituição do primeiro missionário gentio, nos é conhecido. Por enquanto, o enfoque aqui será Mc 5.9, crux interpretum para muitos intérpretes ao comentar este texto.
O termo que chama atenção é “Legião”, palavra que pode ser entendida prima facie como nome próprio, isto é, o apelido dado ao sujeito em consequência da sua condição. Como alternativo, seguindo a velha sugestão de Wellhausen, “Legião” poderia ser apreendida como a reposta esperta e evasiva do bando de demônios que, falando genericamente em números, visa manter em sigilo seus nomes reais (in Marcus 1999: 345). A palavra “Legião” é uma espécie de latinismo ou loanword oriundo do militarismo romano, embora não seja exatamente a transliteração grega do termo latino legio. Como veremos adiante, a conotação romana da palavra se torna crucial para as interpretações sugeridas por comentaristas como Myers (1988), Marcus (1999), Horsley (2001), e Garroway (2009) em referência ao texto na íntegra. Antes de abordar a leitura destes intérpretes, é preciso considerar brevemente a questão que tange ao espectro semântico e as possíveis ressonâncias que o termo “Legião” teria na palestina do primeiro século.
Embora, a exemplo de Donahue e Harrington (2002: 166), haja quem sustente a ideia de que “Legião” seria o simples sinônimo de “muitos” (assim como a palavra “legion” no inglês hodierno), na antiguidade este uso parece ter sido incomum. Garroway (2009: 61) dá outra explicação, comparando o uso do termo “Legião” à situação atual em que a palavra inglesa “marines” (fuzileiros navais) inevitavelmente passa a imagem do invasor estrangeiro em um país como o Iraque. No primeiro século, obrigatoriamente, a palavra “Legião” conotaria a presença militar do império romano. A legião romana correspondeu à unidade de 6 mil homens, e visto que o historiador Josefo atesta a presença delas na palestina — e da Décima Legião no Decápolis (Guerra 3.233; 289) — a retórica de Garroway é irresistível neste ponto.
Resumindo, no contexto mediterrâneo do século primeiro, é inevitável que o termo “Legião” traria em si a nuance romana militar. A grande questão que passa da exegese para a hermenêutica, concerne ao sentido em que o termo é empregado em Mc 5.9, e as implicações do significado dele no âmago mais amplo. Como veremos, para certos comentaristas a menção de “Legião” em Mc 5.9 converte-se no pivô exegético da história na íntegra — e até do evangelho inteiro! Mas, Marcos teria uma agenda anti-império, ou tal anti-imperialismo seria mais o reflexo da perspectiva dos críticos atuais?
(ii). Jesus e “Legião”, agendas e a falta de “controle” exegético
No comentário de Myers (1988),2 a menção de “Legião” em Mc 5.9 possibilita a interpretação de todo o episódio relatado em Mc 5.1-20 em termos do anti-imperialismo idealizado por um reformador sócio politico (Jesus de Nazaré). Na interpretação socioliterária de Myers (1988: 193), o exorcismo é apreendido como “ação simbólica pública”, ademais, “o endemoninhado representa a ansiedade coletiva quanto ao imperialismo romano”. Na tentativa de basear esta conclusão psicanalítica no contexto marcano, Myers (1988: 194) faz referência à parábola do grão de mostarda (Mc 4.30-32): “Marcos acaba de prometer que a semente de mostarda superará a “grande árvore” de Roma”. Myers (1988: 192) argumenta que como um exército invasor, os demônios “não querem sair da região” (Mc 5.10).
A dificuldade aqui consiste na manobra de Myers que imputa ao texto bíblico aquilo que não transparece nele, assim moldando o significado textual a serviço da sua agenda anti-estabelecimento. Primeiramente, Jesus jamais afirma que a semente de mostarda “superará a ‘grande árvore’ de Roma”. Interpretar a parábola desta forma é atar a dimensão escatológica à época romana, particularizando aquilo que é de cunho geral, uma vez que “a árvore do Reino” é a maior “de todas” (Mc 4.32). É fato que antes de Mc 5.9 e o latinismo “Legião”, não há nenhuma referência explícita ao império romano. Portanto, Myers extrapola aquilo que precisa demonstrar do texto, importando-o para a discussão de Mc 5.1-20 sem justificativa. Em segundo lugar, a leitura natural de Mc 5.10 mostra Jesus lidando com demônios, e não com soldados.
Procurar algum significado alegórico e(ou) psicológico aqui é desnecessário: como espíritos impuros (Mc 5.2, 13), é natural que os demônios não queriam sair da ritualmente impura região dos túmulos. Nada necessita, pois, a inferência de que nas entrelinhas de Mc 5.10 romanos estão no lugar de demônios, ou que, digamos, os verdadeiros demônios são os romanos. A agenda de Myers parece controlar sua leitura do texto, quando, de repente, a leitura do texto deveria exercer mais controle sobre sua agenda.
Procurar algum significado alegórico e(ou) psicológico aqui é desnecessário: como espíritos impuros (Mc 5.2, 13), é natural que os demônios não queriam sair da ritualmente impura região dos túmulos. Nada necessita, pois, a inferência de que nas entrelinhas de Mc 5.10 romanos estão no lugar de demônios, ou que, digamos, os verdadeiros demônios são os romanos. A agenda de Myers parece controlar sua leitura do texto, quando, de repente, a leitura do texto deveria exercer mais controle sobre sua agenda.
Entre comentaristas que têm seguido a linha de Myers é o renomado especialista no Evangelho de Marcos, Joel Marcus (1999). Marcus combina elementos da leitura de Myers com a análise semântica de Derrett (1979) e entende que o vocabulário alegadamente militar de Mc 5.1-20 aponta — pelo menos do ponto de vista da pré-história da narrativa marcana — para uma crítica anti-imperial. Porém, Marcus absorve a análise de Derrett de forma acrítica, pois os termos gregos citados nesta conexão (ex. pempein [enviar], epitrepein [permitir; mandar], hōrman [precipitar-se]) não contêm nenhuma “nuance militar” particular (Marcus 1999: 352) como confirmam as respectivas entradas de BDAG. Levanta-se, pois, a suspeita de que a agenda subjacente esteja controlando o significado do texto que está nas mãos do crítico.
Igualmente, Gundry (2000: 390) ataca o raciocínio um tanto quanto estranho de Marcus (1999: 345) de que o desejo dos demônios de entrar nos porcos trata-se de insinuação sexual, relembrando atos de estupro perpetrados por exércitos invasores! Para Marcus (1999: 345), uma alusão ao estupro prossegue porque a palavra “porco” pode simbolizar a genitalia feminina. Porém, Marcus cita apenas uma instância em que este seria o caso, e isto em Aristofanes, satirista grego do século V a.C!
Percebemos a falta de algum preceito mais rigoroso de “controle” exegético que rega interpretações mais especulativas. Este “controle” incluiria a exigência de prover paradigmas ou exemplos textuais a fim de comprovar que a linguagem e a fraseologia utilizada pode ser empregada da forma sugerida pelo crítico. Além de comprovar que a interpretação oferecida é hipoteticamente possível, o exegeta necessita argumentar à base das evidências a fim de demonstrar a inerente probabilidade da sua leitura, visando, especialmente, considerações contextuais.
Percebemos a falta de algum preceito mais rigoroso de “controle” exegético que rega interpretações mais especulativas. Este “controle” incluiria a exigência de prover paradigmas ou exemplos textuais a fim de comprovar que a linguagem e a fraseologia utilizada pode ser empregada da forma sugerida pelo crítico. Além de comprovar que a interpretação oferecida é hipoteticamente possível, o exegeta necessita argumentar à base das evidências a fim de demonstrar a inerente probabilidade da sua leitura, visando, especialmente, considerações contextuais.
De todos aqueles influenciados por Myer, Horsley (2001) é quem realmente permite que a agenda anti-império oriente toda sua leitura do texto. Horsley tem uma agenda transparente: denunciar a “nova desordem mundial” do imperialismo norte-americano. A tese dele é fascinante, especialmente no que se refere às comparações e alegadas correspondências entre a pax romana e a “pax americana”. Todavia, agenda é uma coisa, texto é outra. Enquanto determinados aspectos da tese da “nova desordem mundial” podem ser legítimos ou parcialmente legítimos por uma série de razões, imputar sentido duvidoso às palavras do autor sagrado para legitimizar seu ideal político é ilegítimo e inválido como modus operandi exegético.
Horsley (2001: 102), parece incorrer no erro descrito acima ao afirmar categoricamente que os seguidores de Jesus, “entenderam que o significado último dos exorcismos de Jesus era a derrota do governo romano”. Para Horsley, a morte por afogamento dos porcos em Mc 5.13 relembra Ex 14.28-30 e a morte do exército egípcio (cf. Marcus 1999: 348-349). Este paralelo em conexão com a referência a “Legião”, supostamente confirma que as forças satânicas em “Marcos”, representam, na realidade, as forças do império romano. Mas, será que o alegado paralelo é capaz de suster o peso interpretativo que Horsley quer colocar nele?
O paralelo citado por Horsley está incerto pois não há correspondência exata entre o grego de Mc 5.13 e a LXX de Êx 14.28-30. Mesmo se o relato marcano pretende aludir à narrativa do Êxodo, tal alusão não necessita da conclusão alegorizante de Horsley que substitui romanos no lugar de egípcios. Além do mais, a tentativa de ler todos os exorcismos desta forma não convence: nenhum dos outros exorcismos contém qualquer sinal de uma agenda anti-romana. Mais adiante na seção (iii), examinaremos o contexto mais amplo de “Marcos”, para determinar se Mc 5.1-20 possui este “significado último” que Horsley detecta nele.
Aqui, para fechar esta lista representativa de intérpretes cujas agendas tendem a colorir o texto sagrado indevidamente, nos deparamos com Joshua Garroway. Garroway (2009) mostra-se mais sensível do que outros em relação às dificuldades com a interpretação anti-imperial. Por exemplo, Garroway (2009: 66) reconhece que termos gregos citados como evidências de atividade militar não podem ser legitimamente utilizados nesse sentido (veja acima). Por outro lado, a complexa reconstrução sugerida por Garroway — componente central da qual é a ênfase anti-imperial — carece de factualidade e evidência textual.
Garroway (2009) afirma que Mc 5.1-20 contém uma mensagem anti-imperial e que o exorcismo de “Legião” precisa ser interpretado à luz das parábolas em Marcos 4, especialmente — pegando carona em Myers — a parábola do grão de mostarda. Porém, não existe nenhuma referência explicitamente anti-romana nestas parábolas, e enquanto seria viável ler Mc 5.1-20 em paralelo ao episódio anterior (Mc 4.35-41), (ex. Watts 1997: 162), não há paralelos verbais ou conceituais vinculando Mc 4.1-34 com Mc 5.1-20. Em última análise, a noção (Garroway, 2009: 73) de que no desfecho da história, a atividade missionária de “Legião” (Mc 5.19-20) é comparável à “semente”, uma “invasão pacífica” como ato de mimesis subvertendo “ideologias padronizadas de reinado e invasão” soa como ficção erudita.
(iii). Jesus e “Legião”, linguagem anti-romana?
Na visão dos especialistas citados até este ponto, na narrativa marcana a menção do termo “Legião” acarreta claro sentido e sentimento anti-romano. Este tipo de linguagem, afirmam, configura e confirma uma agenda anti-imperialista no Evangelho de Marcos. Ora, se houvesse evidências consistentes e concretas da presença de tal agenda ao decorrer de “Marcos”, esta conclusão faria sentido e seria potencialmente convincente. Porém, uma análise mais ampla do evangelho não produz muitas evidências nesse sentido.
Por um lado, é verdade que os romanos aparecem como inimigos de Jesus no penúltimo capítulo do evangelho. Pilatos tem o poder de libertar um homem cuja inocência está patente aos seus olhos, mas, incitado pela multidão, acaba agindo de forma covarde e egoísta, sendo culpado, em parte, pela morte de Jesus (Mc 15.14-15). Igualmente, os romanos executam Jesus, tratando-o de maneira extremamente cruel (Mc 15.16-27). Portanto, Marcos não nega o fato dos romanos se levantarem contra Jesus, nem os exoneram da sua parcela de culpa na morte de Jesus.
Todavia, este retrato por si só não é sinônimo de uma agenda anti-romana. É importante frisar que em “Marcos” a morte de Jesus não ocorre somente por causa da injustiça dos senhores do império. Na verdade, como relatada por Marcos, a crucificação de Jesus é o resultado de um conjunto de fatores envolvendo diversos personagens humanos, em conformidade (em última análise) com os desígnios do próprio Deus. Se Pilatos o romano é culpado, Judas o judeu também é. Se os soldados romanos foram responsáveis pela execução de Jesus (Mc 15.21-27), a multidão (Mc 15.8-13) também foi. Além do mais, Marcos enfatiza bastante a participação das autoridades religiosas judaicas de Jerusalém como protagonistas no complô para acabar com Jesus (e.g. Mc 10.33; 14.53-64; 15.1, 14). Ao longo do evangelho, a oposição e resistência consistente e constante não é romana, antes, é aquela dos próprios judeus (e.g. Mc 2.7; 3.22-27; 6.1-6; 7.1-5; 10.2; 10.33; 11.18; 11.27ss; 12.13; 14.53-64; 15.1, 14). Enfim, a responsabilidade pela morte de Jesus é partilhada, e, estritamente falando, os romanos aparecem somente no último momento como “executores”, (v. especialmente nesta conexão Mc 10.33 e a expressão “as nações”).
Mesmo compreendido desta maneira, existe um fator mitigante. No próprio cenário da crucificação, o evangelista conclui a cena da morte de Jesus com a afirmação do centurião: “Verdadeiramente, este é o (ou um) Filho de Deus” (Mc 15.39). Independente de quaisquer considerações históricas, na ótica da narrativa marcana esta afirmação é nada menos do que uma profissão de fé em Cristo. O centurião é retratado, pois, de maneira positiva, tornando-se em um modelo positivo para os gentios. Esta noção sobremaneira positiva de conversão não condiz com a suposta agenda marcana anti-romana. Talvez simbolicamente o evangelista esteja sugerindo que o império se converterá a Cristo. Neste caso, porém, a agenda não seria explicitamente anti-romana, poderia ser visto, até, como pró-romana.
A hipótese da agenda anti-romana cai por terra quando se depara com o fato de que o único indivíduo romano mencionado pelo nome em “Marcos” é “Pilatos” (sem menção do nome próprio “Pôncio”) e que, coincidentemente, Mc 15.1 constitui a primeira menção de qualquer cidadão romano no evangelho inteiro. Isto é, antes do capítulo 15 — com a provável exceção da palavra “Legião” em Mc 5.9 — não há nenhuma referência explícita sequer ao império romano no Evangelho de Marcos. A alegada agenda anti-romana simplesmente não se encontra no texto de “Marcos”.
Retornando pois ao caso de estudo apresentado neste ensaio, como, então, poderíamos entender a referência a “Legião” em Mc 5.9, uma vez que este termo carregaria em si — quase inevitavelmente — conotações do exército imperial de Roma? Primeiramente, é importante averiguar o que, de fato, Mc 5.9 diz. Logo, vemos que a palavra ὅτι é causal, ou seja, o nome “Legião” indica, na leitura natural do texto, o grande número de demônios que possuíram o infeliz gentio: “Meu nome é Legião, pois somos muitos”. A comparação ao exército romano está relacionada, em primeiro lugar, ao número elevado de demônios que dominavam o homem. Outras implicações podem ser relevantes, mas, em primeiro lugar, gramaticalmente a comparação tem este sentido numérico.
Se a agenda marcana fosse preponderante e militantemente anti-romana — se a mera menção do termo “Legião” visa levantar uma bandeira e toda uma causa anti-romana — por que incluir a cláusula iniciada pela palavra grega ὅτι? Como o jornalista que procura representar a postura política da sua emissora, se a agenda política de Marcos fosse anti-romana, seria mais coerente relatar apenas a primeira parte da fala do demônio, “Meu nome é Legião” omitindo a explicação “pois somos muitos”. Da perspectiva da narrativa, a cláusula explicativa surte o efeito de suavizar o pronunciamento de Legião, à medida que a comparação enfatiza a dimensão numérica. Historicamente, isto pode ter sido importante para o evangelista.
Em linhas gerais, portanto, entendo que Mc 5.1-20 está relacionado principalmente à batalha que Jesus trava contra Satanás. Desde o primeiro capítulo do evangelho (Mc 1.13, 1.24), e ao decorrer do mesmo (e.g. Mc 1.23-28; 1.39; 3.11-12; 5.1-20; 6.13; 7.24-30; 9.14-29), a palavra paulina “não é contra pessoas de carne e sangue que temos de lutar, mas sim contra principados e poderios” (Ef 6.12) poderia descrever a atitude do próprio Jesus. A explanação sociopolítica do termo “Legião” é fascinante, mas tende a projetar ao texto mecanismos contemporâneos com o efeito de afastar o leitor da Sitz im Leben do primeiro século d.C., um tempo — é bom relembrar — em que Satanás era Satanás e demônios eram demônios.
É verdade que em determinados momentos a ação satânica converge com a ação humana, incitando a mesma. Basta recordar-se da declaração de Lucas a respeito daquele que traiu Jesus: “Satanás entrou em Judas” (Lc 22.3). Nas entrelinhas de “Marcos”, também existe indicações do intercâmbio e parceria de Satanás com os inimigos humanos de Jesus (tópico, de repente, para um outro artigo). Isto, porém, não seria evidência de uma ênfase anti-romana, especialmente porque tal associação diz respeito mais aos judeus (alguns dos quais eram anti-imperialistas), do que aos romanos. Em Marcos, simplesmente não existe o anti-imperialismo de uma agenda anti-romana que alguns imaginam.
(iv). Considerações finais
Nas interpretações analisadas acima, o intuito tem sido apontar para a falta de “controle” exegético que mesmo na obra de especialistas renomados tende a aparecer. Muitas vezes, há uma ausência de cuidados metodológicos, o que significa que agendas subjetivas acabam reconstruindo o sentido do texto de forma nitidamente duvidosa ou no mínimo questionável. No estudo de caso apresentado acima, vimos como intérpretes cuja agenda política é predominantemente esquerdista imputam ao texto algo das suas preocupações latentes. Evidentemente, interpretes caracterizados por outras agendas e convicções políticas são capazes de agir de maneira semelhante, aliás, qualquer intérprete tenderá a prosseguir desta forma, a não ser que haja o cuidadoso exame dos próprios pressupostos à luz do texto sagrado.
Todos chegam ao texto com alguma agenda — inclusive eu e você — mas toda agenda precisa ser avaliada examinada a partir do texto, submetendo-se ao mesmo. O texto sagrado tem de informar a nossa agenda. Caso contrário, correremos o risco de construir uma legião de conceitos ilusórios, lindos castelos no céu azul do nosso imaginário.
Agenda esquerdista? Como assim?
ResponderExcluirNão existe esquerda direita nas sagradas escrituras?
Bom dia meu amigo! É uma figura de linguagem usada para definir conceitos dos estudiosos sobre o texto. Não traz nenhuma relação com o texto narrado, embora a crítica literária esteja bem destacada dentro dos aspectos políticos e religiosos da época em questão.
ResponderExcluirAbraço!
Obrigado pelas explicações.
ResponderExcluirE que estamos vivendo dias extremamente difíceis no nosso Brasil. Tentam politizar tudo, colocam tudo em "caixinhas", ou você é uma coisa ou não.
Queria também te parabenizar pelo blog, na verdade não é um blog, é uma aula. Sou leitor assíduo a vários anos.
Amigo, boa tarde!
ResponderExcluirEu é que sou agradecido pela sua presença.
O blogger Em Busca do Jesus Histórico só tem sentido graças a Você e a todos que conseguem extrair mais de Conhecimento.
Abraço Fraterno!