O estudo histórico de Jesus de Nazaré e de seus primeiros seguidores apresenta já larga trajetória no âmbito mundial. Durante muitos séculos, Jesus e o Cristianismo foram objeto de reflexões teológicas, a partir de denominações confessionais cristãs. Com o período moderno, tanto o catolicismo como as igrejas reformadas debruçaram-se sobre tais temas, fundamentais para as querelas entre as diferentes correntes religiosas. Eram tempos de guerras de religião, com a Europa dilacerada por conflitos sangrentos. Com o avanço do Iluminismo, em suas diversas facetas, surgiram novas preocupações, menos afeitas às contendas religiosas. Iniciava-se a busca pela historicidade. Nessa longa caminhada, o positivismo, com sua ênfase na reconstrução do que realmente aconteceu, marcou um momento importante de inflexão. A intervenção de Deus, de forma direta, nos afazeres humanos foi descartada, em benefício das explicações que fizessem redundar em causas racionais e mundanas. O século XIX testemunhou, nesse afã, um florescimento crescente da literatura científica que buscava explicar os movimentos religiosos, em geral, e o cristianismo, em particular, à luz da objetividade.
Nem por isso Jesus e o cristianismo deixaram de ser objeto preferencial daqueles dedicados à religião. A História, como disciplina nascente, voltou-se para os grandes temas, relevantes para os estados nacionais e impérios nascentes, com sua ênfase na política, nas guerras e nos estados. Os influxos da Filosofia, da Sociologia e da Antropologia, nas primeiras décadas do século XX, viriam a criar novas perspectivas e interesses no campo propriamente historiográfico. Marc Bloch, com seus reis taumaturgos, mostrava que as representações culturais, também de caráter religioso, eram tanto ou mais relevantes do que as visões tradicionais, do ponto de vista da ciência histórica. Abertas as portas das mentalidades, as religiosidades adquiriam novos estatutos também no âmbito da historiografia. Multiplicaram-se os estudos sobre os sentimentos e representações religiosas não apenas das elites, como das pessoas comuns, em sua imensa diversidade e variedade.
O Jesus histórico e a historicidade do movimento em torno do Galileu tornaram-se objeto pleno iure da historiografia. Multiplicaram-se as vertentes interpretativas, caracterizadas tanto por sua diversidade, como não poderia deixar de ser, como por seu rigor metodológico. As ferramentas básicas da pesquisa historiográfica, a partir do estudo das fontes, foram desenvolvidas de forma acurada. A tradição literária foi esmiuçada, de modo a buscar nos textos oriundos da ortodoxia todo o seu universo de composição, datação, autoria e muito mais. As pesquisas arqueológicas foram, também, essenciais para redimensionar o estudo das fontes históricas. As investigações pela Arqueologia produziram uma pletora de novos documentos, na forma de sítios arqueológicos, edifícios, artefatos de uso quotidiano, mas também inscrições. A paleografia foi, neste âmbito, de relevância particular, pela diversidade de documentos que ajudaram a iluminar a vida à época de Jesus e de seus seguidores. O estudo do Jesus Histórico e do cristianismo dos primeiros tempos tornou-se um campo historiográfico consolidado.
No âmbito internacional, publicações recentes atestam essa vitalidade, como a produção recente de John Dominic Crossan traduzida e publicada no Brasil, como BORG, Marcus J.; CROSSAN, John Dominic. O Primeiro Natal, o que podemos aprender com o nascimento de Jesus. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008, Tradução de Vera Ribeiro. Primeiro, convém tratarmos da abordagem adotada pelos autores. Eles a definem com duas características ou aspectos: em termos históricos e parabólicos. A abordagem histórica das narrativas trata de situar as antigas simbologias em seu contexto do século I d.C.: são textos antigos em um contexto antigo. A historicidade está na imersão nas concepções de mundo que são outras, diferentes das nossas, filhas do Iluminismo e do Positivismo dos últimos dois séculos. Em seguida, e como resultado dessa busca pelas circunstâncias culturais e simbólicas antigas, a abordagem parabólica procura superar a dicotomia iluminista entre fato e fábula, acontecimentos e invenções. Parábolas, como os mitos, apresentam estruturas arquetípicas e representam não fatos, com sua irrelevância, mas mensagens perenes. A morte de uma pessoa é apenas a extinção de uma vida. O nascimento de um bebê não passa do início. O Natal e a Ressurreição, como metáforas do nascimento e do renascimento, revestem-se de relevância por sua significação não como fato irrepetível, mas como presença na reinterpretação constante do ciclo da vida.
A partir destas premissas teóricas, descortinam as especificidades de Mateus e Lucas. Este enfatiza, em seu relato, as mulheres, os marginalizados e o Espírito Santo. São Maria e Isabel, assim como, no decorrer da vida de Jesus, muitas que são mencionadas, algumas nomeadas, outras não. Dentre os marginalizados, estão os pastores já no nascimento e, depois, os pobres, os néscios, os aleijados, os coxos, os cegos. Por fim, o Espírito Santo, que caracteriza o relato da trajetória dos seguidores de Jesus após sua morte, nos Atos dos Apóstolos do mesmo Lucas. Já Mateus apresenta uma narrativa fundada na referência, sempre simbólica, às escrituras hebraicas, como na ênfase em cinco elementos, como no Sermão da Montanha, que retoma, por assim dizer, os cinco livros do Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio): concepção virginal de Maria, Belém como local de nascimento de Jesus, Sagrada Família parte do Egito, após o infanticídio de Herodes em Belém e sobre Nazaré.
Mateus e Lucas compartilham, segundo Borg e Crossan, da uma contraposição bem marcada entre o reino da violência do Império Romano e o Reino de Deus, fundado na justiça e na igualdade. Propõem que a simbologia da fé cristã e do Natal, em particular, seja uma contraposição ao poder imperial. Os epítetos teológicos do imperador são transpostos para Jesus: se o imperador é chamado de senhor, divino, filho de Deus, Deus, Deus de Deus, Redentor, Libertador, também Jesus, assim também com as expressões Salvador, Evangelho, Paz, todas usadas para se referirem ao governante romano. O nascimento divino de Augusto, reportado por Suetônio (Augusto, 94,4) não podia deixar de servir de parâmetro, ou de ponto de partida, em negativo, para o relato dos primeiros seguidores de Jesus. Eles não sabiam muito sobre o tema e nem se preocupavam com isso, pois consideravam sua vinda ao mundo como uma dádiva divina, oposta à opressão imperial romana, este o argumento central de Borg e Crossan. Outro grande elemento de inspiração parabólico está na leitura metafórica dos livros da Bíblia hebraica. Assim, Jesus aparece como novo Moisés em seqüências triádicas: separação, revelação, reunião; sonho/revelação, temor e interpretação.
O volume apresenta, de forma muito clara e didática, como a narrativa dos Evangelhos estava preocupada com dois aspectos: a crítica social e a luta pela justiça terra, por meio de uma apresentação metafórica desses objetivos. Consideram, portanto, o movimento dos primeiros seguidores de Jesus como parte de uma ampla e variada resistência ao domínio romano. Neste aspecto, os autores inserem-se entre as múltiplas tomadas de posição recentes, por parte da historiografia sobre o mundo romano, interessadas em estudar o mundo romano em sua diversidade e contradições. Em seguida, a leitura metafórica do relato bíblico está bem envolvida nas interpretações da História da Cultura como um campo de representações sociais. Em ambos os aspectos, portanto, os autores fazem parte de movimentos muito mais amplos e que alguns designam como pós-modernos e outros preferem chamar apenas crítica cultural. Haveria aqueles que se queixariam da pouca ênfase, nas abordagens de ambos os autores, na experiência religiosa, com seus aspectos variados, que vão dos contatos com o mundo espiritual – a apocalíptica, mas também outras sensações e interações metafísicas.
Outra obra importante merece ser mencionada: Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, A Última Semana. Um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro, Ediouro, 2010, tradução de Alves Calado. A Semana Santa é o ápice do calendário cristão, toda a fé está fundada nos dias finais de Jesus, que culminam no Domingo de Páscoa. Como disse Paulo de Tarso, se Jesus não ressuscitou, não há salvação cristã (I Cor. 15:14: “Se Cristo não ressuscitou, nossa proclamação e a fé de vocês foram em vão”). Os estudiosos do cristianismo inicial Borg e Crossan procuram, neste belo volume, explicar o caráter simbólico do relato da vida de Jesus e, em particular, dos seus últimos dias, como sumário de sua trajetória terrena. Não estão nem um pouco interessados em estabelecer, restabelecer, o que efetivamente aconteceu, buscar distinguir fato de ficção. Ao contrário, mostram, de maneira magistral, como apenas uma leitura alegórica, ou parabólica, como eles preferem designar, permite entender a lógica e profundidade do relato de Marcos sobre os dias finais de Jesus. Convém explicar o que eles entendem por parábola e como ela se diferencia da concepção moderna de verdade. Contrapõem a verdade positivista de algo que ocorreu e todos podem constatar de forma objetiva à subjetividade que está subjacente a uma narrativa verossímil, possível. A parábola do filho pródigo é, nesta perspectiva, prenhe de verdade, por conter uma lição: o filho gastador se afasta, gasta tudo e, quando volta para casa, é recebido pelo pai com júbilo.
Ninguém se pergunta se existiu um filho chamado tal, que tenha vivido em tal cidade, em tal época: o que importa é seu caráter universal. O mesmo é aplicado pelos autores a todos os relatos do Evangelho de Marcos e, em particular, no que se refere à sua entrada em Jerusalém, no Domingo de Ramos, até sua ressurreição no Domingo de Páscoa.
Seus argumentos são simples e claros. O relato de Marcos é grande parábola, não precisa ter nenhuma relação muito direta com os acontecimentos que uma câmera de gravação teria podido captar, se isso fosse possível àquela época. Interpretam toda a semana como uma contraposição de dois mundos, ou de duas concepções de mundo: a imperialista romana, baseada na força, e a messiânica hebraica, fundada no amor, na paz e na justiça na terra. A primeira representa a sociedade de classes, opressora, por oposição à visão camponesa da comunidade que tudo compartilha. Jesus entra montado num burrico, numa contra-parada, em relação à entrada de Pilatos e suas tropas, no Domingo de Ramos. Há dois reinos de deus em disputa: o de Roma, do imperador, aclamado como deus e filho de deus, fundado na paz resultante da violência e da dominação. E há outro reino de Deus, também nesta terra, com Jesus como Deus e filho de Deus, um caminho para a paz resultante do amor pelo próximo.
Em Marcos, nada busca descrever o que aconteceu. Tudo que se menciona tem um propósito simbólico. Assim, na terça-feira santa, Jesus, perguntado sobre o primeiro dos mandamentos, responde que “amarás o teu próximo como a ti mesmo” está junto com o amor a Deus, na frente de todos. Borg e Crossan não dizem que Jesus disse isso na terça: pouco importa. Ressoa o ensinamento de Jesus, de toda sua vida, tal como entendida por volta de 70 d.C., quando da redação do Evangelho de Marcos. E acrescentam: “amar o próximo significa recusar-se a aceitar as divisões entre respeitados e marginalizados, justos e pecadores, ricos e pobres, amigos e inimigos, judeus e gentios”.
A Páscoa, nesta leitura simbólica, representa que Jesus vive: não está entre os mortos, e sim entre os vivos. Jesus é o Senhor deste mundo e, portanto, os senhores deste mundo não o são. A Páscoa mostra que os sistemas de dominação deste mundo, como o romano e o americano, nos dias de hoje, não são obras de Deus e não persistirão. Nem todos os leitores compartilharão dessa perspectiva geral do volume, que interpreta as narrativas do Evangelho de Marcos e a vida de Jesus como entendida por seus seguidores iniciais como uma contestação da dominação de classe. No entanto, há um aspecto muito importante, bem explorado pelos autores: as diferenças de concepção do mundo dos antigos, sempre atentos à magia do mundo e alheios à noção moderna de fatos empíricos e de verdades objetivas que não dependam do observador. Os antigos, tanto gregos, romanos com hebreus, consideravam o mundo embebido em espiritualidade. O Salvador do mundo, com poderes divinos, podia ser o imperador ou Jesus, mas ambas as concepções eram religiosas e simbólicas. Por isso mesmo, a ressurreição de Jesus era tão crível quanto a ascensão do imperador morto ao mundo dos deuses. Por outro lado, a mensagem dos autores vai contra a leitura literal da Bíblia por fundamentalistas, uma leitura positivista, como eles afirmam, que busca apenas comprovar que tudo ocorreu como descrito, a despeito das contradições e divergências nos próprios textos antigos.
No Brasil, o estudo da Antiguidade tardou para desenvolver-se de forma profissional. A Universidade brasileira é tardia. Enquanto a América hispânica teve suas universidades em período colonial inicial, a universidade brasileira data do século XX e apenas começou a generalizar-se depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os cursos de História surgiram aos poucos, com ênfase na História do Brasil, ainda que a História Antiga tenha constado dos currículos desde o início. A pesquisa só viria a consolidar-se aos poucos, com os cursos de mestrado e doutoramento, a partir da década de 1970. A História Antiga iniciou-se pela garra de aficionados que se interessavam pelo tema, mas que não tiveram, em grande parte, a oportunidade de conhecer a documentação antiga no original. A partir da década de 1980, o estudo histórico da Antiguidade torna-se mais profissional, com a crescente capacitação dos estudiosos, tanto no conhecimento dos idiomas antigos, como das outras fontes, em particular arqueológicas. O contato com a ciência internacional e a inserção na pesquisa mundial torna-se mais corrente, em especial a partir da década de 1990.
Nesta perspectiva, entende-se a trajetória dos estudos sobre a historicidade do cristianismo, no âmbito historiográfico brasileiro. Amadureceram as condições para o florescimento de pesquisas originais e isto por alguns motivos muito particulares. Por um lado, desde o período militar (1964-1985) as denominações cristãs passaram a ter uma influência crucial nos movimentos sociais. Multiplicaram-se as comunidades eclesiais de base, assim como as associações religiosas cristãs independentes. A alfabetização crescente dos segmentos populares, assim como as religiosidade emergentes, levaram à maior difusão não apenas da Bíblia, como de variada literatura espiritual. Com o restabelecimento das liberdades e do estado de direito, tudo isso levou à consolidação de um ambiente caracterizado pela diversidade religiosa, embora sempre em sua imensa maioria no espectro do cristianismo.
Estas mudanças formam o pano de fundo para o aumento exponencial de interesse, em seus diversos aspectos, por Jesus, os apóstolos e o cristianismo em geral. Surgiram produções brasileiras, tanto televisivas, como cinematográficas, voltadas para a vida de Jesus e seus seguidores, assim como programas radiofônicos, livros, revistas, CDs, DVDs, e muito mais. Marchas por Jesus, jogadores de futebol com camisetas cristãs, rezas em estádios, como nunca antes o cristianismo tornou-se tema não apenas de fé ou tradição, como de busca espiritual e de conhecimento. Tudo isto pode parecer distante da seara acadêmica, mas não convém esquecer que a ciência se faz a partir das ruas, das inquietações e dos movimentos sociais. Uma história da ciência que ultrapasse a História das Idéias, de cunho internalista, reconhece que o cerne das interpretações e compreensões científicas surge como resultante dos embates sociais. Costuma-se chamar a esta perspectiva de externalista, pois coloca a ênfase nas transformações científicas na sociedade, não no interior da ciência mesma, como se as idéias tivessem uma vida própria.
Assim, entende-se que a historiografia brasileira tenha se voltado, cada vez mais, para a religiosidade, de períodos mais recentes e mais distantes. A área de História Antiga, ao consolidar-se como campo de investigação especializado, não escapou a essa tendência. O reconhecimento da diversidade como valor, tanto no mundo como no Brasil, contribuiu, também, para que o estudo da religiosidade antiga ganhasse reconhecimento. O tempo das escolas monolíticas, das ortodoxias interpretativas e dos temas canônicos passara. Com isso, floresceram as pesquisas historiográficas sobre identidades, sentimentos, emoções, representações. O cristianismo antigo encontrou, neste ambiente, condições particularmente favoráveis. O interesse dos estudiosos pôde ser direcionado para a pesquisa acadêmica, ao corrente da literatura internacional, equipada com o comando do instrumental acadêmico, a partir do domínio da documentação escrita, material e iconográfica e das questões teóricas e metodológicas. Multiplicaram-se os centros de pesquisa historiográfica dedicados a estudos da temática cristã antiga.
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