segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A Busca pelo poder no Cristianismo Primitivo

A corrida pelo poder no cristianismo primitivo: A função política das aparições do Jesus ressurreto.

"[...] ao examinarmos o efeito prático, paradoxal, no movimento cristão, podemos ver como a doutrina da ressurreição do corpo também serve a uma função política essencial: legitima a autoridade de certos homens que reivindicam o exercício da liderança sobre as igrejas como sucessores do apóstolo Pedro. Desde o século II, a doutrina serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos; base, até hoje, da autoridade papal" - Elaine Pagels Ph.D, professora de religião na Universidade de Princeton.

A crença cristã da ressurreição de Jesus de Nazaré, assim como na morte redentora de Cristo, constitui-se o núcleo da fé querigmática cristã apresentadas nas comunidades paulinas, e sua antiguidade é bem atestada. Essa crença começou a ser espalhada nas origens cristãs pelas comunidades do "querigma da morte" mediante o relato de experiências epifânicas em que os discípulos alegaram terem presenciado aparições de Jesus.

Na sua primeira epístola aos Coríntios (15.3-11), Paulo nos apresenta a relação dessas aparições com outros fatores que se combinaram para formar a fé cristã primitiva:

"Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez [...]. Posteriormente, apareceu a Tiago, e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo. [...] tanto eu como eles, eis o que proclamamos. Eis também o que acreditastes".

Esses anúncios de aparições ajudaram a fundamentar a crença de que Jesus havia ressuscitado dos mortos. Desse modo, o cristianismo, como qualquer outra religião, tem início com um acontecimento mítico e sobrenatural.

No entanto, há uma outra questão implícita dentro das alegações de aparições sobrenaturais de Jesus ressuscitado. Era uma questão política, ligada ao poder dentro da igreja primitiva. De acordo com Pagels (2006, p. 7), logo nos primórdios do cristianismo, muitos cristãos compreenderam as possíveis conseqüências políticas de terem "visto o Senhor ressuscitado".

Pedro (Cefas), de acordo com a tradição paulina (1Co 15.5) e com a tradição lucana (Lc 24.34), foi o primeiro discípulo a experimentar uma epifania de Jesus ressuscitado – o que lhe daria o direito de ser o "líder".

Várias igrejas católicas e algumas igrejas protestantes ainda conservam a tradição de que foi Pedro "a primeira testemunha da ressurreição", e por isso o líder de direito da igreja. De fato, logo após a morte de Jesus, foi Pedro quem assumiu o grupo como líder e porta-voz. Segundo João, ele recebera autoridade da única fonte reconhecida pelo grupo – do próprio Jesus, falando agora além do túmulo.

Deve-se ter em mente que a questão da "liderança petrina" insere-se em um contexto mais amplo, numa época em que floresciam diversas formas de cristianismo, já nos primeiros anos do movimento cristão. Nesse contexto, centenas de pregadores rivais reivindicavam, todos, pregar a "verdadeira doutrina do Cristo" e denunciavam uns aos outros como impostores. Os cristãos dispersos em igrejas da Ásia Menor à Grécia, Jerusalém e Roma dividiam-se em facções, disputando a liderança da igreja. Todos pleiteavam representar "a autêntica tradição".

Como Pedro, Paulo também era um desses pregadores que reivindicavam pregar a "verdadeira doutrina do Cristo".

Pagels (ibid., p. 6) assinala o fato de que as supostas aparições de Cristo ressuscitado possuem mais implicações políticas do que verídicas, e que se os cristãos alegavam que Jesus realmente havia ressuscitado é porque eles possuíam motivos bastantes políticos para isso.

Um desses motivos seria que, se o Cristo Ressuscitado poderia delegar a liderança do movimento a este ou aquele discípulo. No Evangelho de Lucas se diz que os discípulos ouviram que "O Senhor ressuscitou, de fato, e apareceu a Simão [Pedro]!" (Lc 24:34). O que ele disse a Pedro? O relato de Lucas sugere aos cristãos das gerações posteriores que ele nomeou Pedro seu sucessor, outorgando-lhe a liderança. O Evangelho de Mateus diz que, durante a vida, Jesus já havia decidido que Pedro, a "pedra", seria o fundador de sua futura instituição. Evangelho de João, por sua vez, sustenta que o Cristo ressuscitado teria dito a Pedro que ele deveria tomar o lugar de Jesus como "pastor" do seu rebanho.

Paulo, por sua vez, era apenas um representante de uma facção diferente – aquela que certamente "venceu" todas as demais mais tarde.

Paulo, um dos grandes líderes cristãos dos primórdios, nos fala de pelo menos três grandes "líderes" na igreja primitiva: Pedro, Tiago e João (Gl 2.9). De acordo com a tradição, estes três grandes líderes na igreja primitiva, ao contrário de Paulo, haviam sido discípulos diretos de Jesus, juntamente com o grupo denominado "Os Doze" e outros discípulos. No entanto, existe algo que tanto Paulo como esses outros líderes cristãos e discípulos de Jesus tinham em comum: todos haviam visto Jesus Cristo ressuscitado, ou alegavam tê-lo visto (1Co 15.3-7).

Paulo, ao disputar autoridade com diversos outros "líderes" das comunidades cristãs primitivas, chega a indagar: "Não sou apóstolo? Não vi Jesus nosso Senhor?" (1Co 9.1).
Paulo havia sido o último a receber a visão do "nosso Senhor ressuscitado". De acordo com Vermes (ibid., p. 80), o calcanhar-de-aquiles de Paulo era a natureza questionável do seu status como apóstolo. Ele estava convencido de que era um "apóstolo de Jesus Cristo".

Paulo, em 1Coríntios 15, versículo 10, alega que trabalhou "muito mais do que todos eles", ou seja, do que todos a quem o Jesus ressurrecto havia aparecido. Por essa e outras razões, Paulo se considerava apóstolo tal ou até mais do que Pedro, Tiago e os demais.

Vermes (ibid., p. 82) também afirma que, como resultado da visão de Jesus ressuscitado, Paulo sentiu-se plenamente autorizado por Jesus, sem precisar de nomeação. De fato, um vínculo entre "autoridade apostólica" e "visão de Jesus ressuscitado" começa a se tornar explícita dentro desse contexto, não apenas para Paulo, mas de modo geral.

No contexto religioso-político das primeiras comunidades cristãs querigmáticas, o melhor modo dos cristãos primitivos resolverem as diversas disputas teológicas, estabelecerem a ortodoxia dos ensinamentos sobre os "heréticos" e firmarem sua autoridade era através de alegações sobre aparições em que o Jesus ressuscitado, aquele que foi a "única autoridade reconhecida por todos", delegava o poder (ibid., p. 6).

Foi isso que Paulo fez. Paulo contesta a autoridade dos "Três Pilares", alegando que o Jesus ressuscitado havia "aparecido" para si e lhe dado revelações específicas.

Paulo enfatiza tais aparições não para ressaltar o aspecto sobrenatural da religião cristã, mas para se designar como alguém chamado e escolhido por Deus e por Jesus para tomar um papel de liderança na igreja primitiva.

Por isso, Crossan (1995, p. 237) afirma que Paulo precisou, em 1Coríntios 15.1-11, igualar sua própria experiência com aquela dos apóstolos precedentes – igualar, a sua validade e legitimidade, mas não necessariamente o seu modo ou maneira.

Pagels (op.cit. p. 9-10) afirma que o círculo de liderança se restringe a um pequeno grupo de pessoas cujos membros estão em posição de autoridade incontestável. Desse modo, apenas os apóstolos têm direito a ordenar futuros líderes como sucessores.

Ou seja: Jesus, após morrer e ressuscitar no terceiro dia aparece para um número limitado de discípulos, sendo que primeiro aparece a Pedro. Logo após essas aparições, a tradição evangélica nos conta que Jesus foi elevado ao céu. Sua elevação ao céu fecharia o leque de aparições a um número limitado de discípulos após a ressurreição. Desse modo, a autoridade eclesiástica fornecida pela aparição de Jesus se concentrava nas mãos de poucos indivíduos.

A estratégia de Paulo para alcançar poder dentro das comunidades cristãs primitivas não foi apenas alegar que Jesus havia aparecido para ele também – vários anos depois das aparições pós-pascais –, mas também tentar equiparar sua experiência epifânica com a dos demais apóstolos e, da mesma forma, tentar minar a autoridade do número reduzido de discípulos que tiveram experiências de aparição pós-pascal alegando que um número bastante ampliado de pessoas ("mais de quinhentos irmãos", segundo 1Co 15.6) também haviam tido experiências epifânicas com o Jesus ressuscitado. De fato, este era um excelente argumento a favor Paulo para tornar a situação política mais favorável para si mesmo. 1Co 15.5-9 não deixa implícito que tais aparições tenham ocorrido nos dias posteriores a alegada ressurreição de Jesus ou se ocorreram bem mais tarde, como a sua própria. Essa indefinição também exerceu importante papel na busca de Paulo pelo poder.
Não apenas Paulo contesta o poder de Pedro e dos demais apóstolos; também o faz o autor do Evangelho de Marcos e o autor do Evangelho de João décadas depois.

Enquanto Pedro se firmava como autoridade na igreja primitiva por causa da primazia na ressurreição, Tiago tentava enfatizar a sua importância por causa de sua revelação e de seu laço de sangue com Jesus, e Paulo corria atrás da mesma autoridade ao afirmar que o "Senhor" havia aparecido a ele também. Marcos, por sua vez, de acordo com Crossan (1995), era um "crítico ferrenho de Pedro, João e Tiago" (este último incorporado, em seu evangelho, como "filho de Zebedeu" e não como o "Irmão do Senhor"), e por isso tenta minar essa autoridade destacando mulheres no sepulcro e omitindo por completo as aparições.

De forma alguma Marcos nega a ressurreição. Para deixar isso explicito, ele coloca um "jovem" no sepulcro quando ocorre a visita das três mulheres. O que Marcos, implicitamente, nega é a autoridade dos apóstolos, a qual foi concebida nas comunidades cristãs primitivas por meio das aparições. Marcos, de fato, percebe a "jogada política" existente do uso de alegadas "aparições de Jesus".
Pagels (2006, p. 7) afirma que existiam, em contrapartida, outras tradições cristãs primitivas que tentavam minar a autoridade e primazia de Pedro ao colocar outro personagem como a primeira testemunha da ressurreição: os evangelhos de Marcos e de João nomeiam ambos Maria Madalena, e não Pedro, como a primeira testemunha da ressurreição.

Meier (1998, p. 199), afirma que, de acordo com Hengel, a menção as três mulheres em Mc 16,1 e Lc 24,10 é uma justaposição aos três homens considerados líderes das comunidades cristãs primitivas: Pedro, Tiago e João. Esses eram conhecidos como os "três pilares" da comunidade de Jerusalém em Gl 2,9. Nesse sentido, Hengel sugere que a lista de três mulheres, sempre encabeçada por Maria Madalena, indica autoridade ou prestígio na primitiva comunidade cristã.

Crossan (2004, 582) também nota esse paralelo incomum, ao afirmar que, enquanto a tradição pré-paulina fala de Pedro e os Doze e de Tiago e os apóstolos, os textos evangélicos canônicos enfatizam muito mais o papel de Maria e as mulheres.

Colocar Maria Madalena e outras mulheres – figuras sem papel de liderança na igreja primitiva – como sendo as primeiras testemunhas da ressurreição, de fato, contrariaria o poder de Pedro no cristianismo primitivo.

De acordo com Crossan (1995, p. 242), as aparições de Jesus a determinados indivíduos relatadas nos evangelhos nada têm a ver, absoltamente, com as experiências em êxtase ou revelações em transe. São questões de autoridade que estão sob discussão nessas passagens. Há um grupo de liderança dentro da comunidade? Deverá haver alguém encarregado da comunidade e do grupo? Que tipo de pessoa deve ser? Quem deverá ser? As respostas vêm do que o Jesus ressuscitado diz e, especialmente, para quem o Jesus ressuscitado fala.

Lucas 24.12 narra que Pedro correu até o túmulo de Jesus e, olhando para dentro, o viu vazio, apenas com os lençóis. E depois "voltou pra casa, admirado do que acontecera".

Lucas 24.33-35 nos diz que "O Senhor ressuscitou de verdade e apareceu a Simão [Pedro]". Lucas, apesar de não narrar essa aparição, mas somente a alude de forma vaga na boca dos discípulos, coloca Pedro como o primeiro a ver o "Senhor".

Crossan (ibid., p. 240) afirma que um membro de outra comunidade ou tradição cristã, que conhecesse muito bem aquela ênfase na liderança de Pedro, mas que desejasse se opor a ela em favor do seu próprio líder específico, deveria criar um relato alternativo sobre uma aparição de Jesus ressuscitado, ao alterar e/ou acrescentar detalhes que coloquem em primazia determinado personagem.

Desse modo, Crossan (ibid., loc. cit.) ressalta que a corrida para o túmulo tornou-se um duelo de autoridade. O autor do Evangelho de João faz Pedro entrar primeiro, conforme Lucas 24:12 exige. Mas diz que o Discípulo Amado acredita. Ele não diz que Pedro acredita ou não acredita, mas enfatiza que o Discípulo Amado o fez.

De fato, a seguinte pergunta é bastante pertinente: "como poderiam aqueles que preferiam a liderança de Pedro reagir contra essa narrativa?" (ibid., loc. cit.). A reação, naturalmente, foi contra-atacar. Tal como fizeram com o Evangelho de Marcos, cristãos posteriores acrescentaram no Evangelho de João, que terminada no capítulo 20, um capítulo a mais. O capítulo inteiro é sobre a aparição do Jesus ressurrecto no mar de Tiberíades. Pedro é o personagem principal desse capítulo. De fato, Pedro é colocado acima do Discípulo Amado.

Da mesma forma como Pedro nega Jesus três vezes em João 18.15-18,25-27, no capitulo 21 – versículos 9,15-17 do evangelho de João, mais uma vez diante de uma "fogueira", – ele reafirma Jesus três vezes. Pedro, então, é encarregado de "apascentar" os cordeiros e as ovelhas de Jesus, isto é, a comunidade geral e o grupo de liderança da igreja. De fato, podemos perceber disputas políticas influenciando até mesmo na confecção dos evangelhos! A mesma disputa que Paulo já praticava nos anos 50, é a mesma que aparece nos anos 80-90 (Lucas), em João (100-110) e nos séculos seguintes (Capítulo 21 de João).

Em todo o caso, tais alusões sobre aparições post-morten de Jesus aos seus discípulos, encontradas em várias camadas da tradição evangélica e paulina, a despeito de suas conseqüências políticas, sugerem o quanto revelações sobrenaturais, visões, epifanias, e outras experiências semelhantes eram importantes para a comunidade cristã primitiva.

Desde o início, o cristianismo buscou orientação sobrenatural em sua missão, sendo que a intensa reverência cristã aos eventos carismáticos constitui uma boa indicação disso. O fato é que essas revelações de caráter supostamente divino abriram espaço para novas concepções, idéias e interpretações, motivando a formação das lendas que atualmente sustentam o imaginário e o dogma da fé cristã.
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Bibliografia
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Nova edição, revista e ampliada. 4ª impressão. São Paulo: Ed. Paulus, 2006.
CROSSAN, John Dominic. Quem matou Jesus? As raízes do anti-semitismo na história evangélica da morte de Jesus. Tradução: Nádia Lamas. Rio de Janeiro: Imago ed., 1995.
______________________. O nascimento do Cristianismo: o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004.
MEIER, John P. Um judeu marginal: Repensando o Jesus Histórico: Milagres. Rio de Janeiro: Imago, 1998. Vol. II, livro III.
PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.
VERMES, Geza. As várias Faces de Jesus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
(Obs.: O presente artigo faz parte de um trabalho publicado com direitos autorais. O uso indevido desse material por terceiros, sem a autorização do autor, acarretará em punição legal).

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