segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O Mito de Abraão e Isaac segundo Søren Kierkegaard e José Saramago


Com a faca afiada colada a seu pescoço, prestes a ser degolado, o que passava pela mente do pequeno Isaac? Com o coração apavorado, golpeando com violência as paredes do tórax, que tipo de opinião sobre a fé e sobre a paternidade podem ter ocorrido ao garoto ao perceber-se na posição de ovelha-de-sacrifício? Eis algumas questões intrigantes que me ocorrem ao fim da leitura de Temor e Tremor, de Søren Kierkegaard (1813-1855), obra de tom altamente interrogativo, mas que pode ser complementada pelo leitor com uma multiplicação de novos pontos de interrogação.

Na pintura de Caravaggio, que retrata o momento em que Abraão vai sacrificar Isaac mas é impedido por uma intervenção angélica, enxergo uma cena de tortura. Na pintura, foquemos o olhar sobre o rosto de Isaac, contorcido pela angústia extrema, oprimido pela violência das mãos viris de Abraão: o que nos contam estes olhos infantis aterrorizados pela lâmina da faca ameaçadora? Diante deste quadro, é quase como se desse para ouvir o grito de Isaac, um berro quase Munchiano, reação visceral de uma criança incapaz de compreender o desatino do mundo encarnado na loucura de seu pai. Eu diria, Camusianamente, que Isaac está aí representado em pleno confronto com o Absurdo. Pois Abraão encarna nesta cena o famoso creio pois é absurdo.

Edvard Munch, “O Grito”


No prelúdio de seu livro, Kierkegaard pinta com palavras o retrato de Isaac abraçado aos joelhos de Abraão, caído aos pés do pai, implorando por sua jovem vida. Mas é algo bem diferente da misericórdia ou da ternura o que o filho descobre na atitude, a um só tempo intransigente e resignada, de Abraão-da-faca-na-mão. Este é um dos momentos cruciais desta narrativa mítica que nos mostra uma figura que, embriagada pela fé, acaba por suspender a ética: o velho está prestes a cometer um crime hediondo, o assassinato de seu próprio filho, pois acredita que os céus o ordenaram. A fé é uma das forças psíquicas capazes de varrer do quadro as mais básicas das atitudes éticas: não matar cessa de valer quando o crente acredita-se requisitado por seu deus a assassinar o ímpio ou a sacrificar a vítima apontada pelo dedo invisível do divino.

Diante de Abraão, não há como evitar a questão: estamos diante de um santo ou de um louco? Eis um herói a ser celebrado, ou então um psicopata perigoso digno de ser metido no hospício? Devemos louvar esta heróica demonstração de obediência à vontade divina, ou lamentar a psicopatologia que levou este demente senil às beiras de cometer um ato grotesco? Devemos imitar o exemplo desta obediência pia e estrita aos ditames de um deus suposto, ou devemos ler esta narrativa como um símbolo dos perigos que há nestes vícios (humanos, demasiado humanos!) da idolatria e do fanatismo?

Nossa tendência é lidar com a história de Abraão e Isaac, narrada no Gênesis, com a tranquilidade daqueles que já conhecem seu “final feliz”: sabemos que tudo não passou de um teste, de um julgamento, uma espécie de “trote” divino. Ufa, tudo não passou de um blefe! Sabemos que Abraão não consuma seu ato sacrificial sangrento e que só pode ser acusado de um quase-assassinato. Além do mais, a tradição judaico-cristã inteira posteriormente tratou de desenhar auras de santidade sobre a cabeça do “Pai da Fé”: somos todos convidados a imitá-lo como modelo, já que nada apraz mais ao deus único, criador ex nihilo de tudo, do que uma criatura que sacrifica a autonomia de seu intelecto para tornar-se plenamente obediente aos ditames do céu…

O que mais me emociona no prelúdio de Temor e Tremor é o modo como Kierkegaard pinta a perspectiva da vítima: voltando para casa depois do quase-sacrifício, pai e filho, rumando ao reencontro com a mãe Sarah, estão caminhando lado a lado, mas separados por um intransponível abismo. Isaac, escreve Kierkegaard, “tinha perdido a fé.” [1] Para Isaac, não houve final feliz coisa nenhuma, apenas a vivência traumática de uma tortura absurda; para Isaac, o episódio com certeza fez com que se rompesse a confiança que um filho deposita na boa vontade de seu pai, e é de se suspeitar que nunca mais, depois daquilo, Isaac conseguirá permanecer na presença de Abraão sem o temor e tremor que sente alguém diante de um psicopata perigoso.

Rembrandt, Sacrifício de Isaac, 1635

Temor e Tremor, é claro, não é um livro sobre a perda da fé, mas muito mais um tratado psicológico que se debruça sobre Abraão, descrito como o “cavaleiro da fé” [the knight of faith, na tradução inglesa], tão crente que está disposto a extinguir a vida do próprio filho amado se Deus assim ordenar. Kierkegaard escreve mais como poeta do que como pregador, questionando mais do que dogmatizando, ainda que no geral o tom seja de elogio e admiração à figura de Abraão. Tanto é assim que o segundo capítulo é umpanegírico onde o leitor é convidado a empatizar com o sofrer de Abraão, que tanto havia ansiado por um filho, que conquistou somente em sua velhice, e que descobre-se ameaçado de perder o rebento que ama tão intensamente pois a divindade exige seu sacrifício.

Alguns dos trechos mais belos do livro são aqueles em que Kierkegaard, ainda que timidamente, ousa questionar os supostos ditames do criador, perguntando: que diabos de deus é este capaz de exigir que um homem, já com os cabelos brancos, aniquile aquilo que mais ama neste mundo, seu filho único? “Não há compaixão alguma pelo venerável idoso, nenhuma pela criança inocente?” [2] Interrogações como estas, porém, são raras em Temor e Tremor, obra que não chega a questionar seriamente a existência deste deus que Abraão supõe como ordenante do sacrifício. Leitores ateus, agnósticos e céticos podem perguntar-se: e se tudo não passa de um delírio subjetivo de Abraão? E se a “voz de Deus” não for nada além de uma ilusão psíquica que acomete o cérebro senil do patriarca? Se Deus não existe, há qualquer possibilidade de sustentar que Abraão agiu de modo “heróico”? Ou ele foi nada mais do que um fanático que só não tornou-se assassino por um triz?

Na tragédia grega, podemos encontrar um caso semelhante ao de Abraão e Isaac: em Ifigênia em Áulis, Eurípides narra as ocorrências que precederam o início da Guerra de Tróia. Os exércitos chefiados por Agamemnon já estão a postos, preparados, ansiosos por embarcar para a carnificina. Mas as intempéries impedem as naus de navegar a contento rumo às terras de Príamo, onde Helena encontra-se após ser sequestrada (ou seduzida?) por Páris. Apesar das diferenças consideráveis entre o politeísmo grego e o monoteísmo judaico-cristão, há um certo paralelismo: tanto Ifigênia quanto Isaac são escolhidos como vítimas sacrificiais pois acredita-se que assim ordena o divino. A maior diferença entre Agamemnon e Abraão não é tanto entre um crente politeísta e um crente monoteísta, mas entre um homicida consumado e um quase-homicida. Ifigênia, a filha mais velha de Agamemnon e Clitemnestra, irmã de Orestes e Electra, não tem a sorte de Isaac: ela não escapa da faca. É um episódio que o poeta-filósofo Lucrécio descreve, em seu Da Natureza, com o horror que sente o homem lúcido diante das atrocidades cometidas por mentes transtornadas pela superstição:

Giovanni Battista Tiepolo (1696-1770), O Sacrifício de Ifigênia

“Na maior parte das vezes foi exatamente a religião que produziu feitos criminosos e ímpios. Foi assim que em Áulis os melhores chefes gregos, escol de varões, macularam vergonhosamente com o sangue de Ifigênia o altar… E em nada podia valer à infeliz, em tal momento, ter sido a primeira a dar ao rei o nome de pai. Foi levantada pelas mãos dos homens e arrastada para os altares, toda a tremer, não para que pudesse, cumpridos os ritos sagrados, ser acompanhada por claro himeneu, mas para, criminosamente virgem, no tempo em que deveria casar-se, sucumbir, triste vítima imolada pelo pai, a fim de garantir à frota uma largada feliz e fausta. A tão grandes males pode a religião persuadir.” LUCRÉCIO. Da Natureza das Coisas. [3]

A tragédia grega mostra o ato de Agamemnon em todo seu horror, como violação de um preceito ético fundamental, e as consequências dele para este família serão desastrosas: como narrado na trilogia de Ésquilo, Oréstia, a mãe de Ifigênia, Clitemnestra, transtornada pelo luto e pela ira, tratará de vingar-se de seu marido, o assassino da primogênita do casal. Assim que ele retornar de Tróia, triunfante na guerra porém esquecido de que deixou em casa alguém que o odeia intensamente, Agamemnon será por sua vez trespassado pelo punhal da vendeta. O ciclo de violências multiplica-se: a vingança de Clitemnestra contra Agamemnon alimenta a fúria de Orestes, que encaminha-se então para o matricídio… O theatrum mundi inunda-se de sangue.

Em Temor e Tremor, Kierkegaard não ousa penetrar tão fundo na sondagem das relações entre fé e violência: no livro, quase não aparecem palavras como “superstição” e “fanatismo”, tão aptas a descrever o tipo de demônio que traz Abraão sob seu domínio. Em sua Expectoração Preliminar, porém, faz esta interessante reflexão: alguém que ouvisse, na missa de Domingo, um padre a narrar o mito de Abraão e Isaac, poderia sair dali convencido de que não há melhor prova de amor à Deus do que sacrificar na terra a pessoa que mais ama. Impelido pelo sermão, levantaria o punhal contra o próprio filho e depois diria à polícia, enquanto é conduzido ao presídio ou ao hospício, que agiu sob a influência da edificante parábola que ouviu na igreja. Se a imitação de Abraão se transformasse em algo epidêmico, em que mundo viveríamos? Não é perigoso acreditar que a fé tem o direito de suspender a ética? Que sociedade resulta da disseminação da crença em uma divindade transcendente faminta por sacrifícios e imolações?

O que Kierkegaard destaca de modo recorrente é o paradoxo que se manifesta no mito de Abraão e Isaac, em que Deus exige o crime e atentação consiste em agir eticamente. É nesse contexto que Kierkegaard mobiliza o conceito de absurdo, tão caro aos pensadores existencialistas, especialmente Albert Camus: há um paradoxo incontornável em um deus que exige do devoto que corte a goela do filho que adora, já que então revela-se como um deus anti-ético. Ora, se este deus é compreendido como tendo como atributos a justiça, a bondade e o amor, como compreender que exija de Abraão algo de tão absurdo quanto a violação explícita do preceito evangélico não matarás? Um deus que exige beber o sangue das crianças será mesmo um deus autêntico ou somente um demônio disfarçado?

A multiplicação de tais dúvidas teológicas só nos conduz ao exacerbamento da sensação de absurdo e de paradoxo – e talvez não haja saída deste labirinto a não ser pela via do ateísmo: um deus malvado é uma contradição, um paradoxo, uma impossibilidade, e desta aporia só escapamos ao concluir que este deus das carnificinas nunca existiu fora das imaginações humanas. É um argumento sintetizado belamente por José Saramago, em artigo publicado logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001: “Os deuses, acho eu, só existem no cérebro humano, prosperam ou definham dentro do mesmo universo que os inventou.” [4] Em um de seus últimos romances, o autor português faz seu Caim sintetizar uma posição atéia, de rebeldia contra o deus bíblico que é tão frequentemente um genocida, praticante do assassinato em massa pela via dos dilúvios e das hecatombes, deixando vivos só um punhado de eleitos:


“A vida deram-ma meu pai e minha mãe, juntaram a carne à carne e eu nasci, não consta que deus estivesse presente no acto”, sustenta Caim, que quando confrontado com a tese de que “Deus está em todo o lado”, replica: “Uma só criança das que morreram feitas tições em Sodoma bastaria para o condenar sem remissão.” [5] Se evoco aqui a obra literária e o pensamento anti-teísta do Prêmio Nobel de Literatura lusitano é para melhor ilustrar o “tremendo paradoxo da fé” que Kierkegaard explora em Temor e Tremor: como é possível a transformação do homicídio em um ato sacro? Só por ser cometido com fé, o homicídio deixa de ser um pecado para tornar-se uma prática santa que agrada aos céus?


A ética, sustenta Kierkegaard, é universal, aplica-se a todo mundo, o tempo todo: não há época histórica ou localização geográfica onde não seja uma atrocidade, do ponto de vista ético, o homicídio dos inocentes – como aquele que perpetra Medéia contra suas crianças. Em outras palavras: a ética prescreve, como mandamento universal, o dever maternal e paternal que proíbe tratar os filhos como sacrificáveis. O problema, portanto, está na reputação cheia de honra e glória de que goza Abraão, como pai da fé e patriarca do monoteísmo, quando o mesmo Abraão é um violador da ética, já que ergueu a lâmina para assassinar Isaac. Eis o paradoxo e o absurdo: a divindade demanda a suspensão da ética; deus é o mandante de um crime; a fé é o heroísmo maluco e a loucura sagrada através do qual alguém peca contra o universal.

Se Abraão simboliza tão bem o que significa ter fé, é pois leva ao extremo a fidelidade cega e a obediência absoluta à divindade (ou ao que supõe ser a “vontade do deus”). Sua submissão é tão total que ele está pronto a obedecer a um deus que ordena assassinatos ao invés de rebelar-se contra ordens que ofendem radicalmente a consciência moral. Recusar-se a cumprir o sacrifício do primogênito seria uma atitude bastante razoável de qualquer pai apegado ao filho de sua carne e motivado pela chama do amor paternal. Abraão só tornou-se tão célebre por seu extremismo, por sua intransigência, por esta extraordinária teimosia na fé e que merece ser chamada, apesar de Kierkegaard não fazê-lo jamais, de fanatismo. 

A absurdidade do mito consiste nisto: a divindade, que se presume o princípio criador do Bom, do Belo e do Justo, exige do homem-de-fé que cometa um ato hediondo, horrendo e injusto. Se este deus é amor, como é possível que exija, como prova de fé, um ato que é transgressão obscena do amor? A tentação, para Abraão, é justamente a ética: respeitar o dever universal, que exige de um pai a proteção e o cuidado para com seu(s) filho(s), equivale neste caso à desrespeitar o mandamento divino. O que falta em Temor e Tremor é justamente um questionamento mais amplo e sistemático da possibilidade de que Abraão esteja alucinando, que tudo não passe de um delírio senil, que o absurdo está na cabeça de um velho e não no ser das coisas. Para ser bem rude com a obra de Kierkegaard, eu perguntaria: para que gastar tanta palavra de interpretação teológica deste mito, se em algumas páginas seria possível argumentar que este deus em que Abraão crê não passa de um déspota imaginário fabricado pela fantasia de um velho crédulo?

É uma interrogação inescapável: aquilo que se chama de “amor à deus” é realmente a maior de todas as virtudes e deve ser colocado acima de todo e qualquer dever ético? O Novo Testamento fornece-nos também razões de sobra para desconfiar que um paradoxo pernicioso, prenhe de consequências sangrentas, está alojado e embrenhado na ideologia religiosa de nossa tradição judaico-cristã: em Lucas (14: 26 e 33), Jesus de Nazaré exige: “Se alguém vier a mim, e não odiar a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. […] Qualquer de vós, que não renuncia a tudo quanto tem, não pode ser meu discípulo.” [6]

É essa a religião que querem nos vender como amorável e caridosa? É este o profeta que devemos honrar de joelhos nas igrejas? Kierkegaard viu bem que estamos lidando com um conceito de deus que requer um amor absoluto que se expressa através da renúncia a amar pessoas de carne-e-osso. Eis um deus que exige ser amado mais que tudo, na exclusão de tudo, e que como prova de fé demanda que o amor entre pai-e-filho seja aniquilado em um altar. A um deus destes eu me recuso a tirar meu chapéu. Não acho que mereça minha devoção. E mais: bateria boca com Kierkegaard, que quer pintar auréolas sobre Abraão e dizer que a fé é a mais elevada das paixões humanas. Aquele que é capaz de levantar a lâmina fatal contra o próprio filho não me parece um herói a ser celebrado, mas um caso clínico; não um adorável modelo de conduta mas um nocivo psicopata; não a ilustração dos caminhos que o sábio deve seguir mas o contra-exemplo que nos conta daquilo que faremos bem em evitar: o fanatismo, a obediência cega, a fé que dá licença à suspensão da ética e ao cortejo das atrocidades.



“…o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac… atou o filho e colocou-o no altar, deitado sobre a lenha. Acto contínuo, empunhou a faca para sacrificar o pobre rapaz e já se dispunha a cortar-lhe a garganta quando sentiu que alguém lhe segurava o braço, ao mesmo tempo que uma voz gritava, Que vai você fazer, velho malvado, matar o seu próprio filho, queimá-lo, é outra vez a mesma história, começa-se por um cordeiro e acaba-se por assassinar aquele a quem mais se deveria amar… Sou Caim, sou o anjo que salvou a vida de isaac… e não compreendo como irão ser abençoados todos os povos do mundo só porque abraão obedeceu a uma ordem estúpida.” [7]

Um dos méritos maiores da obra de Saramago está na coragem quase punk em que ele escancara os absurdos da fé com sua sagaz mordacidade atéia, desfazendo alguns dos mais arraigados preconceitos ainda hegemônicos em nosso mundo, como por exemplo a ideia de que crimes obscenos e horrendos são realizados por gente “sem fé no coração”. Tais comentários ateofóbicos que pretendem explicar os ímpetos criminosos a partir de um déficit de fé em Deus caem por terra quando atentamos para o fato de que a fé é com frequência a justificativa e a motivação para atos criminosos – e não somente no âmbito mítico, como vimos nos casos de Abraão e Agamemnon.

Para retornar ao tema do artigo saramaguiano publicado logo após o 11 de Setembro de 2001, é explícito neste caso o quanto os atentados terroristas foram realizados por homens cheios de fé, e que se imolaram nos ataques camicase na esperança de que Alá os aplaudiria e já preparava para eles um paraíso de delícias e privilégios no Além. De modo bastante similar, a resposta militar dos EUA e seus aliados, na invasão do Afeganistão e do Iraque, baseou-se largamente em justificativas teológicas, com o uso e abuso da noção maniqueísta de um Eixo do Mal (islâmico) a ser derrotado pelas forças do Bem (cristãs) – como se os bombardeios genocidas e as torturas institucionalizadas nas prisões (como Abu Ghraib e Guantánamo) fossem suspensões da ética completamente válidas, já que seus praticantes estavam a serviço do Deus verdadeiro (além de favorecendo com suas bombas e matanças um outro deus… a Mão Invisível do Mercado, que não funciona jamais sem seu aliado, o punho-de-ferro das violências coercitivas e da pilhagem do petróleo alheio…). “Se Deus não existisse”, sugere um personagem de Dostoiévski, “tudo seria permitido”; ora, a experiência histórica nos conduz a pensar, ao contrário, que na verdade são aqueles para quem Deus existe indubitavelmente, os cavaleiros da fé que jamais duvida de si, que agem na base do “tudo é permitido”.

Em suma: a versão oficial do mito de Abraão e Isaac nos conta de uma intervenção divina que, na hora H (a hora do Homicídio), salva Isaac da faca, salvando ao mesmo tempo Abraão de transformar-se em assassino e salvando o deus em que ele crê de virar um mandante de um crime hediondo. Para encerrar este texto, repleto de blasfêmias sadias e heresias essenciais, eu sugeriria uma interpretação mais realista do mito: não foi uma angélica aparição o que impediu Abraão de consumar o sacrifício, mas um lampejo súbito de bom senso, um clarão salvífico de dúvida, uma hesitação providencial de último instante, um insight da absurdidade daquilo que ele estava prestes a cometer. Se a fé de Abraão tivesse sido de fato imperturbável, irremovível, intransigente, Isaac teria sido transformado de criança em cadáver. No último instante, porém, Abraão deve ter duvidado de deus e de si: e se eu estiver louco? E se meu deus não for senão delírio? E se eu tiver compreendido mal seus ditames? E se não houver ninguém nos céus mas apenas um desarranjo e um desatino nos meus miolos?

A fé teria assassinado Isaac; a dúvida acabou por salvá-lo.

(Vídeo) Paciência - Pe. Fábio de Melo

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Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para

Enquanto o tempo
Acelera e pede pressa
Eu me recuso, faço hora
Vou na valsa
A vida é tão rara

Enquanto todo mundo
Espera a cura do mal
E a loucura finge
Que isso tudo é normal
Eu finjo ter paciência

O mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência

Será que é tempo
Que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo
Pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara

Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida não para
A vida não para não

Será que é tempo
Que lhe falta pra perceber?
Será que temos esse tempo
Pra perder?
E quem quer saber?
A vida é tão rara
Tão rara

Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
Eu sei, a vida é tão rara
A vida não para não

A vida é tão rara

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O Sagrado: Rudolf Otto, Carl Gustav Jung e Victor White


Explicitar-se-á a ideia de numinoso proposta por Otto (1917/2007), uma série de efeitos e sentimentos que podem ocorrer na psique como um elemento irracional do sagrado, no sentido de como essa experiência é, para Otto, a matriz e força mantenedora da vivência religiosa e de seus produtos. E de como, a partir de sentimentos primevos com relação ao numinoso, deu-se toda a evolução histórica da instituição religiosa. Neste sentido, será considerada também a exposição desse autor sobre o modo como a racionalização e a moralização podem anular a natureza religiosa de um fenômeno.

Em seguida, a apropriação que Carl Gustav Jung faz do termo numinoso a partir de seu entendimento sobre os efeitos deste sobre a psique que, para ele, não configuram somente a manifestação comumente identificada como religiosa. O numinoso seria também fundamental para a compreensão de neuroses e psicoses, além de produções e manifestações etnográficas e movimentos sociais. Será considerado o entendimento de Jung sobre a religião como sendo uma posição de observação da consciência subjetiva do eu em relação ao numinoso, da atitude religiosa refletindo a integração dos elementos racionais e irracionais.

Em terceiro lugar, a figura de Victor White e a importância de sua participação nessa interlocução, expondo suas críticas à identificação da experiência religiosa com o aspecto irracional. Será de particular importância sua crítica às posições de Otto e Jung, em relação à religião, de serem unilaterais, por considerarem apenas o caráter primitivo desta.

A proposta deste texto é trazer reflexões para a discussão sobre o fenômeno religioso presente em todo contexto humano e entabular uma discussão sobre a psicologia e a teologia moderna em torno da temática religiosa. Isto, a partir de uma discussão teórica que toma por base a interlocução entre os autores citados, referida a textos que abordam diretamente essa questão nas obras de White e Jung.

O numinoso em Rudolf Otto

No seu livro O Sagrado, Rudolf Otto (1917/2007) propõe um termo para a apreensão de aspectos considerados divinos. Esses aspectos formam um conjunto de experiências que, em si mesmas, são a expressão de algo que escapa ao domínio do intelectual. Conclui que a atribuição de aspectos morais e racionais ao sagrado (heilige) corresponderia a uma fuga da sua profundidade, do que chamou de "religião mais profunda" ou do "totalmente outro" (Otto, 1917/2007, p.62). Para ele é mortificador considerar somente o aspecto racional e moral, perdendo de vista o seu fundamento do "totalmente outro" (p.62).

A ortodoxia, os argumentos teológicos e filosóficos do intelecto estão longe de abarcar as características e o ser do divino, como convém à teologia tradicional cristã, segundo Otto (1917/2007). O termo que esse autor usa para observar o sagrado, retirando o aspecto petrificante do dogma, dos sistemas filosóficos e da especulação objetiva, é o numinoso, que significaria o caráter do irracional e do incognoscível da religião.

Ainda segundo Otto (1917/2007), o cerne e matriz de toda religião reside nesse numinoso, seu caráter de incontrolável, de impronunciável, do que se mostra impossível de ser conceituado, portanto, seu caráter irracional. Enquanto nume, o sagrado se faz presente por seus efeitos psíquicos e pela categoria de interpretação e valoração em si mesmo; não pode ser observado ou apreendido diretamente, mas sua presença pode ser experimentada a partir de sentimentos afins e contrastantes, além das expressões simbólicas (Otto, 1917/2007). Nesse sentido, Otto afirma que o numinoso não "é ensinável em sentido estrito, mas apenas estimulável, despertável (...)" (p. 39), chegando a alegar que só pode estudar a ciência da religião aquele que já experimentou tais sentimentos.

Na observação dos efeitos do numinoso e suas categorias de sentimentos e valoração, Otto (1917/2007) destacou seis aspectos: o sentimento de criatura; o mysterium tremendum; os hinos numinosos; o aspecto fascinante; o assombroso; e o augustum. A partir das observações dos sentimentos de devoção e arrebatamento que o levam a considerar a existência de um sentimento mais profundo, sentimento de que existe algo maior em relação a si mesmo e a uma presença avassaladora, Otto (1917/2007) determina o caráter do numinoso. Como reflexo ou consequência disso surge o que chama de um "efeito colateral ou subjetivo" (Otto, 1917/2007, p. 42): receio de algo, de um objeto acima, fora e maior. Se existe a presença de algo maior, de algo ao qual se está sujeito, então isso seria o reflexo da sensação de um "objeto na autopercepção", um sentimento de criatura, que remete à nulidade de si; e que "(...) somente pela aplicação da categoria do numinoso a um objeto real ou imaginário é que o sentimento de criatura pode surgir como reflexo na psique" (Otto, 1917/2007, p. 42).

O sentimento de criatura desvela, porém, outro sentimento mais profundo, um efeito primordial, como uma excitação ou pressentimento de algo "oculto, ou seja, o nãoevidente, não-apreendido, não-entendido, não-cotidiano nem familiar" (Otto, 1917/2007, p. 45). Otto usa uma série de analogias buscando tatear essa excitação em relação à presença do desconhecido e do irracional. Para tanto, utiliza o temor, o santificado, o arrepiante, a comoção anímica, mas entendendo que se trata de um sentimento singular e genuíno que qualifica também de suprapessoal ou sobrenatural. Utilizando a palavra natural sempre entre aspas, remetendo ao que é habitual e familiar (Otto, 1917/2007).

Otto considera a qualidade de não ser o aspecto negativo, o indefinido e misterioso, e suas singularidades qualitativas, o aspecto positivo, como o sentimento de receio, nomeando-o mysterium tremendum ou mistério arrepiante. Há também, em sua observação do numinoso, um efeito de assombro não relacionado aos acontecimentos mundanos, mas uma espécie de reflexo psíquico frente à força ou ira desse mistério. Essa ira, que reconhece principalmente no Antigo Testamento e nos textos e hinos judaicos, quando coberta pelo manto da razão leva à ideia de uma justiça divina (Otto, 1917/2007). Reconhece, ainda, um potencial energético inerente ao misterioso, utilizando para tanto, a expressão "força natural oculta" (Otto, 1917/2007, p. 50). Observa-se um potencial dinâmico e evidente pela comoção e impulso com que uma psique é tomada em direções imprevisíveis, como um capricho arbitrário do totalmente outro, do mysterium. Essa força, ou poder, levou Otto a considerar um aspecto do domínio inerente ao numinoso, que nomeou majestas, reiterando o sentimento de criatura e destacando a humildade religiosa.

Para Otto (1917/2007) há uma presença indefinida, um totalmente outro que pode dominar e guiar as representações, emoções e ações da psique. Usa para essa presença o substantivo mysterium que em si carrega um aspecto arrepiante, além do adjetivo tremendum. Nesse momento, Otto (1917/2007) tece duas críticas à consideração do racionalismo sobre Deus: a) A primeira é que, tratando-se da pequenez da criatura em relação ao que venha a ser experimentado em face do totalmente outro, não se trata de uma ideia racional de causalidade, de um causador primeiro e de seu condicionamento. Trata-se de uma superioridade do numinoso em relação ao sujeito que o experimenta; de um elemento irracional que convida a um aniquilamento desse sujeito; e, b) A segunda crítica remete ao próprio caráter da majestade do numinoso, ao seu poder detomar a pessoa, que define como sendo "aquele aspecto irracional da ideia de Deus que sempre foi o mais forte motivo para se contestar o Deus 'filosófico' de especulação e definição meramente racionais" (Otto, 1917/2007, p. 55).

Esses dois aspectos, o mysterium tremendum e o totalmente outro não acontecem necessariamente na mesma psique, sendo o último caracterizado por três níveis: o da estranheza, o do paradoxo e das antinomias. Por ser "inefável" (Otto, 1917/2007, p. 62), esse ser, ente ou algo, não é nada enquanto é; quando excluímos todas as definições chegamos ao nada, porém no divino tudo cabe e pertence, noção encontrada nos místicos ocidentais e em filosofias orientais, como o budismo. O terceiro nível é o das antinomias, pois tudo é inerente a ele, incluindo elementos que se anulam, se contrapõem ou se contradizem.

Com relação aos hinos numinosos, Otto (1917/2007) se refere às expressões poéticas e cânticos sobre a questão religiosa. Embora reconheça que alguns desses materiais se encontram mais próximos do aspecto racional, com belas especulações sobre a realidade divina, afirma que há outros que remetem aos aspectos do numinoso explicitados acima. O autor usa como ilustração os hinos que reconhecem o irracional, presentes principalmente em versos judaicos.

Em sentido oposto ao tremendum, Otto formula o sentimento beatífico do fascinante, o mysterium fascinans(Otto, 1917/2007). Enquanto o primeiro se define como algo análogo ao tremor e ao receio, o segundo se aproxima de sentimentos de alívio, salvação, atração e encanto, demonstrando assim um duplo caráter donume. O fascinante, "além de desconcertante, é cativante, arrebatador, encantador, muitas vezes levando ao delírio e ao inebriamento - o elemento dionisíaco entre os efeitos do nume" (Otto, 1917/2007, p. 68). Nesse reflexo psíquico do numinoso, transparece a sensação de "algo mais" (Otto, 1917/2007, p. 73).

A roupagem subjetiva racional com a qual o aspecto fascinante aparece no mito cristão é a redenção da culpa, a servidão do pecado, a graça e o renascimento. Otto (1917/2007) sublinha, fazendo referência ao filósofo Schleiermacher, que o numinoso:
(...) jamais poderá ocorrer realmente por si só, sem estar associado a, e permeado por elementos racionais. Mesmo nesse caso, as razões para tanto são diferentes das alegadas por Schleiermacher; por outro lado, pode estar presente em grau maior ou menor, levando ocasionalmente a estados dehësychia [tranquilidade] tanto quanto de encantamento, quando chega a ocupar quase sozinho o momento da alma (p. 74).

Dessa forma, Otto conclui que "por trás da nossa natureza racional está oculto algo último e supremo na nossa natureza, que não é satisfeito ao se suprirem e saciarem as necessidades das nossas pulsões e desejos físicos, psíquicos e intelectuais" (Otto, 1917/2007, p. 75). Explorando os reflexos do nume a partir da, e na psique, Otto apreende outro aspecto: o assombroso. Esse aspecto corresponde à tentativa de imaginar ou formular o tamanho, extensão e qualidades do divino que, por ser numinoso acaba se mostrando inimaginável. Sendo inconcebível, se caracteriza pela imensidão que "ultrapassa nossa capacidade de imaginação espacial" (Otto, 1917/2007, p. 80).

Como um último aspecto, Otto explora o sentimento de veneração, de reconhecimento do valor mais alto, do "mais sagrado valor" (Otto, 1917/2007, p. 92). O numinoso reflete na psique o sentimento de beatitude, que também é uma forma de reconhecimento de certo valor; porém, um valor subjetivo. Ao se referir ao aspectosanto ou augusto do nume, refere-se à questão objetiva, ao inconcebivelmente valioso. A partir desse sentimento tem-se a noção do sagrado e do profano, pois o conjunto que configura todo o valor objetivo do nume torna-se a forma de proximidade com este. Do contrário, o que incita ou produz o sentimento de afastamento, como a própria condição de ser humano, caracteriza-se como profano ou "desvalor numinoso" (Otto, 1917/2007, p. 93).

As noções de salvação, reparação ou remissão inerentes a todas as manifestações religiosas surgiram do sentido do sagrado e do profano, da união ou separação em relação ao nume. Otto (1917/2007) afirma que a especulação racional e dogmática está longe do sentimento de augusto, pois resume aquilo que é imediato e vivo em conceitos estáticos. Atuar dentro dos parâmetros desse valor santo, como na imitação de Cristo, leva a pessoa a ter proteção contra o profano e à conquista dos "meios da graça" concedidos pelo nume, como uma anulação do "desvalor separador" (Otto, 1917/2007, p. 94). O cristianismo seria uma forma de espiritualidade superior para lidar com esse dado religioso por meio da ideia de actuspurus, do ato em comunhão com a divindade, conquistado pelo "Verbo, pelo 'Espírito', pela 'promessa' e a própria pessoa de Cristo" (Otto, 1917, 2007, p. 95).

Acompanhando-se as reflexões e conclusões de Rudolf Otto, percebe-se que a religião carrega tanto aspectos racionais quanto irracionais. Porém, seu fundamento, ou seu "pano de fundo" (Otto, 1917/2007, p.100), encontra-se no irracional, aspecto que caracterizaria o campo religioso. O numinoso seria, pois, algo inconcebível, passível de apreensão apenas por sentimentos singulares que a ele fazem referência ou por sentimentos análogos. Isto, porque "(...) ao redor desse âmbito de clareza conceitual existe uma esfera misteriosa e obscura que foge não ao nosso sentir, mas ao nosso pensar conceitual, e que por isso chamamos de 'o irracional'" (Otto, 1917/2007, p. 98). Esse elemento inconcebível, incontrolável, maior e irracional seria a matriz para a manifestação religiosa, sentimental, racional e moral. Se, após o desenvolvimento de sistemas de explicação e relação com o divino, os aspectos numinosos forem ofuscados ou não estiverem mais presentes, então para Otto (1917/2007) não se trata mais de religião; pelo menos não de religião viva, daquela religião que ainda possui como fundamento o nume.

A apreensão do numinoso por C. G. Jung

Em 1937, Jung proferiu três palestras na Universidade de Yale, as Terry Lectures, encontros que ocorriam desde 1905 em Yale, promovendo uma forma de aproximação entre religião, filosofia e ciência, que foram posteriormente publicadas com o título de Psychology and Religion pela Universidade de Yale. Esses textos, revisados em 1939, se tornaram a primeira parte do volume XI das Obras Coletadas, sob o título Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, onde se encontra o seguinte trecho:
Antes de falar de religião, devo explicar o que entendo por este termo. Religião é como diz o vocábulo latino religere - uma acurada e conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de "numinoso', isto é, uma existência ou efeito dinâmico não causados por um ato arbitrário. (...) Qualquer que seja a sua causa, o numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade. (...) O numinoso pode ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível, que produzem uma modificação especial na consciência (Jung, 1939/1980, p. 6).

Ainda no mesmo texto:
Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego originário do termo: "religio", poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como "potências": espíritos, demônios, deuses, leis, idéias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados (Jung, 1939/1980, p. 8).

Prossegue afirmando que "o termo 'religião' designa a atitude particular de uma consciência transformada pela experiência do numinoso" (Jung, 1939/1980, p. 9).

Nessa fala, Jung faz referência ao que denomina conteúdos psíquicos autônomos, em parte inconscientes, diferentes do ego, como o centro da consciência, que possuem uma carga afetiva própria. Alguns desses conteúdos exercem forte influência sobre a consciência sob a forma de emoções e afetos, como o fascínio ou o assombro, que podem ser observadas nas manias e em outras formas de neurose. Nas palavras do autor:
Abandonamos, no entanto, apenas os aspectos verbais, não os fatos psíquicos responsáveis pelo nascimento dos deuses. Ainda estamos tão possuídos pelos conteúdos psíquicos autônomos, como se estes fossem deuses. Atualmente eles são chamados: fobias, obsessões, e assim por diante; numa palavra, sintomas neuróticos (Jung, 1929/1983, p. 50. Grifos no original).

Mas, o que são estes conteúdos autônomos? Antes de responder essa pergunta é interessante notar uma nítida diferença entre Otto e Jung, que se verifica na citação acima. Ao contrário de Otto, Jung considera que o movimento, ou ação, ou na trilha de Otto, os efeitos do numinoso, não se configuram apenas no que é particularmente definido como religião. Como exposto, Jung entende que os efeitos do numinoso podem ser observados nas neuroses, pois, para ele, estas são a expressão de algo que foge ao poder da consciência, ocorrendo, na verdade, uma sujeição desta, o sentimento de criatura, a esse algo.

A partir da diferença entre o termo proposto por Otto e a sua apropriação por Jung, há outra distinção. Otto reconhece que o natural e o sobrenatural não indicam coisas similares, em razão de o numinoso ser referido a fenômenos específicos do que se identifica comumente como religião. O natural é um predicado positivo para as coisas mundanas da vida e o psiquismo humano, enquanto que o sobrenatural é um predicado negativo no mesmo sentido (o totalmente outro), indicando sentimentos numinosos ainda não racionalizados (Otto, 1917/2007). Para Jung, não há suprarrealidade ou algo sobrenatural; para ele, qualquer efeito ou acontecimento experimentado está dentro do âmbito do psíquico, sendo a realidade psíquica a única experimentável. A psique é um postulado com o intuito de compreensão e observação de uma série de processos e fenômenos naturais não esgotados. Sub-realidade ou suprarrealidade são apenas nomenclatura para segmentar uma mesma realidade, definitivamente natural (Jung, 1933/2009).

Jung reconhece que não apenas as neuroses expressam algo além do eu, mas a natureza dos ditos conteúdos autônomos seria mais proeminente nas psicoses, pois estas não estão restritas à esfera subjetiva, fazendo-se presentes também em estados e representações arcaicas e coletivas. Esses conteúdos "assumem, (... ) um caráter arcaico e mitológico e, consequentemente, também certa numinosidade, como se pode ver, sem dificuldade, nas dissociações esquizofrências" (Jung, 1946/2009, p. 383). Embora a experiência dos conteúdos autônomos sempre se dê em relação a uma consciência, individual ou coletiva, Jung observou, em concordância com outros estudiosos, que elas possuem um aspecto objetivo (Shamdasami, 2005).

Além de padrões observados nas psicopatologias, assim como nas representações, imaginação e ação das pessoas, Jung observa os mesmo padrões nos mitos, na literatura e em outras formas etnográficas, concluindo que:
(...) existem certas condições coletivas inconscientes que atuam como reguladoras e como estimuladoras da atividade criadora da fantasia e provocam as configurações correspondentes, utilizando-se do material consciente já existente para este fim. (...) A existência destes reguladores inconscientes (...) me parece tão importante, que baseei sobre eles minha hipótese de uminconsciente coletivo, dito impessoal (Jung, 1946/2009, p.403).

Com a noção de uma psique objetiva ou de um inconsciente coletivo, Jung reconhece uma porção psíquica impossível de ser mensurada em sua extensão total, algo que apresenta também uma orientação própria. Assim como o corpo humano tem sua estrutura, composição e articulação, possibilitando, por exemplo, a existência de uma anatomia comparada, a psique também possui um aspecto que é do humano, não somente de um humano; e, assim como o corpo, componentes anteriores ao humano. Os conteúdos autônomos que compõem o inconsciente coletivo exercem certo poder ou domínio (majestas) sobre a consciência.

Jung supôs, entre outras coisas, a possibilidade de um modelo energético para o sistema psíquico, entendendo a psique como um sistema energético relativamente fechado (Jung, 1928/1980). A psique, dessa forma, possuiria certa intensidade ou carga distribuída entre seus componentes, estando sujeita à conservação de energia eperturbação do sistema devido à diferença de orientação entre quatro instâncias: a consciência pessoal (remete à orientação volitiva do eu e seus modos de funcionamentos), o inconsciente pessoal (referido aos conteúdos pessoais reprimidos durante o desenvolvimento consciente ou que não chegaram a se tornar conscientes, apresentando modos de funcionamento arcaicos ou inferiores), a consciência coletiva (inclui os objetos físicos e culturais exteriores e sua influência no modo de funcionar da consciência e o do inconsciente pessoal) e o inconsciente coletivo (imagens que expressam núcleos míticos ou universais com forte carga afetiva, o que inclui o numinoso).

Cada conteúdo psíquico, incluindo o eu, tem em maior ou menor grau, em uma espécie de amálgama, a participação das quatro instâncias apontadas acima, numa relação compensatória. Quanto mais a consciência investe energia na direção de um objeto exterior ou imagem oriunda do inconsciente, tanto mais conteúdos psíquicos contrários a tal orientação são desviados ou excluídos de seu campo e curso. Dessa forma, o eu fica em meio à tensão provocada pela potencialização da consciência coletiva e do inconsciente coletivo (Jung, 1946/2009, p. 423).

Em relação à atuação dos conteúdos autônomos, não somente as neuroses e as psicoses trazem problemas para a cultura e o indivíduo, mas também a identificação das massas com algum componente psíquico da esfera coletiva. Sobre isso, nos diz Jung:
(...) sobretudo ali onde florescem os "ismos" que não passam de substitutivos sofisticados do elo perdido de ligação com a realidade psíquica. A massificação da psique daí resultante, infalivelmente destrói o sentido do indivíduo e, consequentemente, também a cultura em geral (Jung, 1946/2009, p. 427).

Tendo em visa a discussão sobre o diferencial de potência entre os componentes psíquicos e a tensão que daí resulta, observa-se a razão subjugando o irracional e sendo por este subjugada. A consciência moral e racional exclui de seu campo os elementos humanos e naturais que não condizem com seu curso e orientação. Fora do limiar consciente, esses elementos são potencializados chegando a um nível tal que ocorre uma transposição desse limiar por parte dos conteúdos inconscientes. Assim, quanto mais a consciência mantém aquilo que não condiz com sua posição e movimento, normalmente o irracional e amoral, fora de sua realidade, mais é inundada por sua presença.

O excedente de energia possuído pelo material inconsciente interfere no curso consciente com a produção espontânea de fantasias, sonhos e sintomas. Se observada, essa porção misteriosa, desconhecida e irracional produz uma formação simbólica que conjuga a consciência e o inconsciente, possibilitando que grande parte desse excesso de energia seja direcionada numa produção ou atividade cultural e ética. Nas palavras de Jung:
(...) a libido (energia psíquica) se acha distribuída, naturalmente, entre os diversos sistemas funcionais aos quais não pode se subtrair inteiramente. A libido está investida nestas funções como uma força específica que não pode ser transformada. Só onde o símbolo oferece uma diferença de potencial maior do que a da natureza é possível canalizar a libido para outras formas. (...) São processos religiosos cuja natureza é essencialmente simbólica. Sob a forma abstrata, os símbolos são idéias religiosas; sob a forma de ação, são ritos ou cerimônias. São manifestações e expressões do excedente da libido (Jung, 1928/1980, p. 91).

Embora Rudolf Otto (1917/2007) reconheça que a instituição religiosa carregue elementos racionais e irracionais, a matriz e fundamento são de natureza irracional, como ele mesmo afirmou:
É preciso admitir que, no início da evolução histórico-religiosa, há certas coisas esquisitas que muito pouco se parecem com "religião" como a entendemos hoje. Elas a precedem como que uma ante-sala e depois continuam influindo profundamente sobre ela (...). Todas essas coisas, por mais que difiram entre si e por mais distantes que estejam da religião autêntica, já estão palpavelmente assombradas por um elemento comum, que é o numinoso, razão pela qual (e somente por esta), elas constituem uma ante-sala da religião (Otto, 1917/2007, p. 155).

Já para Jung, a matriz da religião é sua função de canalização do excedente de energia. Assim, para ele, qualquer manifestação individual ou coletiva nesse sentido acontece pela integração entre as porções racionais e irracionais da experiência humana: "As organizações ou sistemas são símbolos (...) que capacitam o homem a estabelecer uma posição espiritual que se contrapõe à natureza instintiva original, uma atitude cultural em face da mera instintividade. Esta tem sido a função de todas as religiões" (Jung, 1928/1980, p. 111). Portanto, a observação do numinoso, no entendimento de Jung, propicia uma transformação da personalidade, pois seu centro passa não somente a abranger os valores e orientações conscientes como também os inconscientes: "A integração de conteúdos inconscientes na consciência, (... ) é justamente uma dessas alterações de princípio, porque elimina a supremacia da consciência subjetiva do eu, confrontando-a com os conteúdos coletivos inconscientes" (Jung, 1946/2009, p. 423).

Jung entendeu o numinoso como o efeito dos conteúdos autônomos da psique, além do eu, que chamou decomplexos. Quando próximo do limiar consciente, esses complexos tendem a serem racionalizados, do contrário manteriam uma natureza arcaica e mítica (Jung, 1946/2009, p. 365). Sua relativa independência em relação ao eu demonstra que em si ele possui uma carga energética própria, provinda de um possível núcleo, que por carregar um montante de energia, é, além de fonte de perturbação, um manancial criativo. Sobre isso escreve Otto:
Finalmente os aspectos tremendum e majestas ainda compreendem um terceiro, que eu chamaria de energia do numinoso. Pode-se senti-lo vivamente sobre tudo na orge [ira], expressando-se simbolicamente na vivacidade, paixão, natureza emotiva, vontade, força, comoção, excitação, atividade, gana. (...). Trata-se daquele aspecto do nume que, ao ser experimentado, aciona a psique da pessoa, nela desperta o zelo [Eifer] (Otto, 1917/2007, p. 55).

Ao que Jung acrescenta que seria omissão, "(...) ignorar o valor afetivo do arquétipo. Este é extremamente importante do ponto de vista prático como do ponto de vista teórico" (Jung, 1946/2009, p. 411). O núcleo do complexo apresenta padrões funcionais coletivos de reação e representação que, na experiência consciente, formam arbitrariamente classes de comportamento, de valoração, de conceituação e percepção. Jung chamou esses núcleos que compõem a psique objetiva de arquétipos, que podem ser mensurados e observados pela experiência da consciência, como fato psicológico.

Crítica de White a Otto e Jung

As relações entre Jung e Victor White, padre dominicano inglês, foram intensas. Tiveram início em agosto de 1945, quando White enviou para Jung uma carta, parabenizando-o por seu septuagésimo aniversário. Junto à carta, White encaminha quatro ensaios seus, nos quais tece aproximações entre a teologia católica e a psicologia de Jung, o que o deixa surpreso pela profundidade de conhecimento psicológico demonstrado por aquele padre. A partir disso, inicia-se uma colaboração epistemológica e uma amizade que durariam quinze anos, até 1960, ano que White faleceu. Em 1955, todavia, essa relação é abalada devido à publicação, em inglês, do livro de Jung, Resposta a Jó, momento em que White sente-se traído como católico (Lammers& Cunningham, 2007).

No ensaio de 1942, White reconhece limitações na argumentação científica de Jung. Para sanar essa limitação, vislumbra a teologia cristã como de possível ajuda: White destaca que o ensinamento cristão poderia fornecer um "complemento metafísico para a teoria e prática de Jung" (White, 1942, p. 15). Essas mesmas limitações são confirmadas por Jung em sua segunda carta para White, onde argumenta:
Como cientista, devo guardar distância dos dogmáticos e metafísicos, pois não é tarefa do cientista pregar o evangelho. Mas é isto precisamente que o teólogo deve dizer: que o dogma é por enquanto a resposta mais perfeita aos quesitos mais relevantes da psique objetiva e sua melhor formulação, e que Deus operou tudo isso na alma humana. O cientista, porém, não pode provar semelhante afirmação; pode apenas tentar o melhor em seu campo limitado (Jung, citado por Lammers& Cunningham, 2007, p. 7).

O que se mostra importante para este artigo aparece em uma revisão e ampliação que White fez sobre seu escrito comentado no parágrafo acima, os capítulos IV e V do seu livro Deus e o Inconsciente, publicado pela primeira vez em 1952, e prefaciado por Jung (White, 1952/1982). O capítulo IV recebe o título de Freud, Jung e Deus; e o quinto capítulo recebe o mesmo título do escrito de 1942, As Fronteiras da Teologia e da Psicologia, no qual se encontra a questão de interesse para o presente artigo. Nesse capítulo, o autor alegou que:
A psicologia de Jung se desenvolveu a partir da psicopatologia, e embora hoje ela tenha se tornado muito mais do que isto, a influência de sua preocupação com o anormal e o errático é ainda muito marcada. Isso não deve ser esquecido pelo leitor do trabalho de Jung que ficara perplexo pelo que parece ser para ele (especialmente se ele for um Católico) o também excessivo interesse de Jung nas, e simpatia pelas, mais erráticas e excêntricas manifestações religiosas (White, 1959, p. 65).

White seguiu afirmando que, embora os resultados e observações de Jung viessem acompanhados de um ponto de vista empírico, apresentavam certa unilateralidade com relação ao destaque dado ao elemento irracional. Faz, com isso, uma referência à passagem em que Jung, em A Autonomia do Inconsciente, esclarece sua definição de religião como uma acurada observação do numinoso. Para White, a experiência do numinoso, ou sua observação, seria ainda algo cru e disforme do que viria a ser religião, reconhecendo que esse aspecto havia até então sido negligenciado como a "(... ) raiz psicológica de toda essa questão, ainda que isto possa dar uma visão muito desequilibrada da religião humana enquanto totalidade, como ela se apresenta em si mesma tanto para a inspeção psicológica factual, quanto para o inquérito antropológico" (White, 1952/1982, p. 66). como demonstraria uma falta de balanço nesta.

Como assinala Hans Schaer (1999), White considerou que, para caracterizar a manifestação religiosa, seria necessário englobar, além da experiência do numinoso, a participação psicológica ativa da pessoa. Nessa participação ativa seriam intrínsecas a razão e a decisão voluntárias, características, sob esse ponto de vista, das chamadas "religiões desenvolvidas" (White, 1959, p. 66), que o próprio White destaca como sendo característica distintiva da religião cristã.

É interessante notar que em seu texto de 1942 White reconhece em Jung o mérito inédito de pontuar as explanações do filósofo cartaginês Tertuliano (c.150-c.220 d.C.), importante autor das primeiras fases do Cristianismo, onde as bases da crença cristã eram algo naturais e primordiais na alma, que brotavam dela de forma simples e espontânea. Ele argumenta:
Dito em termos modernos, este trabalho (De TestimonioAnimae, de Tertuliano) é precisamente um apelo ao testemunho das expressões espontâneas do inconsciente em favor das crenças Cristãs básicas (em Deus, demônios, imortalidade, céu, inferno, etc.) contra as sofisticações anti-religiosas do ego-consciência "educado" (White, 1942, p. 26).

Em 1959, White publica o livro Alma e Psique contendo um capítulo chamado A Aproximação Junguiana em Relação à Religião, onde aprofunda suas questões sobre as limitações de se considerar a experiência religiosa apenas por sua natureza irracional. Ele aponta que entender a religião somente sob a luz da noção denuminoso, seria se ocupar apenas com "as fases infantis, primitivas, irracionais e imaturas da religião" (White, 1959, p. 54). White compreendeu que Jung e seus seguidores teriam feito "alguma pré-seleção de 'fatos' ou 'eventos' a serem observados" (White, 1959, p. 55), em função do fato destes influenciarem diretamente as emoções, além de sua grande importância na vida do próprio Jung.

White concordou que a experiência do numinoso anularia, em certa medida, a volição do eu, tendo como efeito a série de analogias e aproximações constatadas por Otto, demonstrando seu caráter irracional. Ficou evidente também, para White, que esses efeitos demonstrariam a presença de um complexo inconsciente, chamado por Jung de complexo-Deus ou imagem de Deus, mas que eles não necessariamente seriam a experiência subjetiva de uma experiência fundamentalmente irracional. Nesse ponto White ressalta uma confusão no que considera como o empirismo de Jung, pois este identifica a experiência religiosa com o numinoso. White coloca que:
Na medida em que eles (Junguianos) podem tender a identificar religião com a "experiência numinosa", ou ao menos considerar isto como critério no qual outros fenômenos religiosos devem ser avaliados, faz-se necessário para nós apontar que sua estrutura repousa sobre observações empíricas inadequadas -e que é dificilmente possível conectar-nos satisfatoriamente com isto - até outros fatos serem reconhecidos, incorporados e permitindo a devida importância (White, 1959, p. 58-59).

Lembrando as observações de Jung de que a experiência numinosa não é somente fonte das manifestações religiosas, mas também da "magia, superstição, arte, poesia e ainda de neuroses e especialmente de psicoses" (White, 1959, p. 57), White pontuou que o numinoso não poderia ser identificado com o religioso. A vivência religiosa, nesse sentido, pode ser "acompanhada por completa secura ou aridez emocional" (White, 1959, p. 57-58), citando, por exemplo, que a "Yoga Oriental e técnicas relacionadas visam precisamente à interrupção davrittis, como São João da Cruz, a transcendência de todas as imagens e sentimentos" (White, 1959, p. 58). Vale ressaltar que essas mesmas técnicas e experiências místicas são apontadas por Otto como sendo reflexos de aspectos do numinoso, do totalmente outro e do mirum, que sendo indefinível, apresenta um vazio conceitual e valorativo (sentimento) em sim mesmo (Otto, 1917/2007).

No sentido de uma apreensão racional do divino, White alega que não somente por meio da observação empírica é possível fazer constatações a respeito de tal realidade, mas que essa pode também ser aproximada pela dedução e pela inferência. Em suas palavras:
Observação empírica e correlação não podem nunca provar a não-existência de qualquer outro método de conhecimento - ainda mais enxergando poder provar a nãoexistência do ouvir e do cheirar. É logicamente impossível provar uma proposição negativa de qualquer número de premissas afirmativas. Mas o psicólogo empírico pode dificilmente falhar em notar o fato psicológico de que muitos homens acreditam conhecer outras formas, e.g. por dedução ou por estrita inferência a partir dos eventos para as causas que não são empiricamente verificáveis (White, 1959, p. 269, nota 22).

White segue afirmando que a transcendência de Deus e seu mistério podem ser entendidos a partir de um "procedimento lógico consciente e rigoroso" (White, 1959, p. 60), chegando às noções de onipotência, omnisciência e eternidade. White questiona:
Isto certamente não está dentro da competência profissional de psicólogos empíricos que julgam a verdade das correspondentes reivindicações por Iahweh, Alá, Zeus e o resto. Mas não podem deixar de notar que, mesmo enquanto fenômeno, que estes não possuem significado idêntico, e a fidelidade ao seu empirismo demanda que deveriam observar suas diferenças não menos que suas características aparentemente comuns (White, 1959, p. 60).

Para White, as ideias, imagens e experiências sobre Deus são diversas, na medida em que se leva em consideração a diversidade da subjetividade humana. Logicamente é visível que a noção de Deus segue alguns padrões que permeiam todas as formas singulares de apreensão, mas dizer que se trata da mesma coisa é confundir ou negar a objetividade empírica, na opinião de White.

Considerações Finais

Verificou -se as controvérsias em torno da questão do divino e das experiências humanas ligadas a ele. No pensamento de Rudolf Otto, tais experiências demonstram algo genuíno e sobrenatural, algo que carrega em si a impossibilidade de uma apreensão e definição intelectual, algo aproximado pelos seus efeitos.

Jung segue um caminho similar, mas ainda assim, diferente de Otto. Para Jung, há algo, como hipótese, que toma a consciência subjetiva do eu, causando toda a sorte de efeitos, factuais, como comprova a psicopatologia, sendo passível de definição racional apenas em parte. Porém, esse algo não tem sua exclusividade somente no que comumente se entende por religião, seus efeitos também podem ser observados nas neuroses ou nas psicoses, nos ismos, nas fantasias, sonhos e produções etnográficas. Também para Jung tais efeitos parecem demonstrar ou estar em relação com um funcionamento compensatório energético inerente à psique.

Segundo White há um reconhecimento da possibilidade de apreensão do divino por parte do aspecto humano racional a partir da dedução e da inferência. Ele propõe um complemento lógico-dedutivo e metafísico para a ciência psicológica.

O que é posto em questão aqui, por meio da discussão sobre o numinoso não é a questão institucional da religião, mas a experiência psíquica do que seria a experiência desse numinoso. Em Rudolf Otto, essa experiência está intimamente ligada à natureza e matriz da religião, relacionada com o que não é mundano. Já em Jung, considerando seu entendimento do que seria religião, a experiência do numinoso abrange também a vida cotidiana e natural, expressando-se não apenas no que é comumente chamado de religião, mas também nos movimentos sociais e na experiência individual como, por exemplo, num transtorno mental ou numa inspiração criativa. Em White, o numinoso aparece como um dos aspectos do que seria a religião, que há de ter um caráter afetivo e um caráter irracional, que relaciona com a fé, mas também há de ter o caráter racional, que se refere ao conhecer. Na carta de primeiro de junho de 1948, que envia para Jung, White afirma que buscar a Deus é "somente ser capaz de coordenar Pistis (fé) e Gnosis (conhecimento), ou - digamos - 'Acredito porque é impossível' (Credo quia impossibile) e 'Indago sobre o impossível' (Quaero quod impossibile)"(Lammers & Cunningham, 2007, p. 125).

A postulação do numinoso por Otto, a apropriação desse conceito por Jung e a crítica de White constroem-se sobre seus alicerces subjetivos e suas formações epistemológicas. Há ainda na base dessa discussão sobre o numinoso reflexos dos movimentos românticos do século XIX que reconheciam uma experiência subjetiva sobre a natureza e mesmo sobre Deus, e que reconheciam ainda a atuação de um inconsciente ou uma força para além do eu. Os reflexos desses movimentos influenciaram escritores cristãos dentro e fora da igreja Católica, onde eles apontavam para tal experiência subjetiva sobre Deus, como uma força criativa, cega ou inconsciente. Porém, tais argumentos iam de encontro à filosofia católica de que o intelecto humano é um dom divino que possibilita a apreensão de Deus e da Natureza como ela é realmente. A formação intelectual e filosófica de Otto e Jung se dá nesse contexto.

Os movimentos românticos e as ideias de Kant, o reconhecimento da física e da psicologia modernas de que a apreensão do mundo está sujeita à subjetividade do observador, desencadearam também reflexos na Igreja Católica. Como esta sustenta uma tradição que identifica a realidade da obra de Deus com aquilo que se percebe dela, ou seja, de que é possível conhecer a natureza e Deus em si pela razão, ela se posicionou contra tais tendências de pensamento. Assim, a Igreja iniciou um movimento anti-modernista, desconsiderando tais apontamentos sobre uma experiência subjetiva e essa experiência subjetiva como o próprio objeto, a natureza e Deus. Tais fatos tiveram influência direta sobre a posição intelectual e política de White, que respondia por essa instituição.


Constatramos algumas reflexões a partir desse diálogo sobre a experiência do numinoso: existiriam diferenças na natureza da vontade inconsciente quando falamos de religião, ciência, arte, ou de movimentos sociais e mudanças culturais, ou ainda de fenômenos de massa, de transtornos mentais e de estados corporais e cognitivos; ficando a experiência numinosa restrita à questão religiosa? Ou essa vontade é um dinamismo natural e objetivo que reflete e se expressa na vivência subjetiva de indivíduos e grupos? Essa vivência configurará o caráter qualitativo, indicando uma esfera humana, religião, ciência, arte, etc., assim como o que é normal e anormal, saudável ou patológico? Estas são questões que as filosofias, as teologias e as ciências vêm se ocupando nos últimos séculos, e a reflexão sobre elas trazem apontamentos diretos sobre a medicina, a política, a economia, ao judicial, ao social, ao consumo, enfim, sobre o cotidiano das pessoas em um contexto micro ou macro.