terça-feira, 6 de março de 2012

Os Empobrecidos, segundo o livro de Jó


Milton Schwantes é um mestre. Sempre ensinou com gosto. Com isso, ajudou muita gente a ter gosto pelo estudo, em especial pelo estudo da Bíblia. Ele abriu os olhos de muita gente para a beleza, a profundidade e a radicalidade da palavra de Deus. Com isso foi sinalizando caminhos, nos quais ele mesmo trilhava como alguém que busca, que experimenta, que percebe, mas também retrocede para poder recomeçar. O seu trabalho com os textos nunca foi pela via dogmática, das certezas absolutas, das coisas prontas. Era um aproximar-se deste Sagrado travestido em palavras, com temor e tremor, mas em alegria e firmeza. Por estes caminhos muita gente continuou a caminhar, por vezes reforçando o caminho, tantas vezes descobrindo novos atalhos ou desvios ou até descortinando caminhos novos. Eu me sinto parte destes caminhantes na leitura da Bíblia.
O trabalho bíblico, exegético e teológico do mestre Milton tem muitas facetas. Há um colorido de perspectivas. Uma, porém, sempre foi a perspectiva dominante: ler o texto bíblico desde a perspectiva do pobre, do empobrecido, do humilde – homens e mulheres e também crianças – com um direito inalienável à vida. A sua tese de doutorado foi programática neste sentido: O direito dos pobres. Este trabalho descortinou uma perspectiva que, na maioria das vezes, não é levada à sério neste campo da pesquisa acadêmica: o lugar social da gente empobrecida nos tempos bíblicos e os seus direitos próprios. Neste trabalho, Milton destacou especialmente o lugar e o direito dos pobres no contexto da literatura legal e profética do Antigo Testamento. Nesta obra paradigmática, ele mesmo indica que, por motivos de tempo e espaço, não prescrutaria o tema no contexto da literatura sapiencial e no saltério. O presente texto se inscreve como uma continuação desta lacuna, embora o próprio autor tenha trabalhado isso em textos posteriores. Constitui, pois, alegria e honra poder homenagear o mestre com o presente texto sobre o direito dos pobres em Jó e sobre a trajetória de um empobrecido que se tornou sujeito e até o final se manteve sujeito frente ao sistema.
I. Problemática e arquitetura da obra
O livro de Jó é um texto intrigante dentro do colorido do cânon bíblico. É sabido que com este livro se expressa dentro do desenvolvimento da literatura bíblica a chamada ‘crise da sabedoria’. Esta ‘crise’ consiste basicamente no fato de que o sistema de retribuição como mecanismo regulador da ordem social, pressuposto nos textos sapienciais mais antigos, como expressos em Pv 10-29, não funcionava mais. A ‘crise’ brota da experiência, do cotidiano, da vida. No nível existencial, o justo não mais recebe a sua devida recompensa, enquanto que ímpios prosperam. Aquilo que pelo sistema deveria ser um direito do justo se torna a causa da queixa e do protesto do personagem Jó. Com o protesto, o próprio sistema é colocado em xeque.
O livro de Jó é uma obra aberta; a partir de seus textos as mais diferentes questões podem ser discutidas. Fundamentalmente, porém, destacam-se dois temas na trama do livro. Na descendente e ascendente trajetória do personagem Jó discute-se o caso de Jó, isto é, levanta-se a pergunta pelo destino existencial e pela solução da pobreza e do sofrimento de pessoas que como Jó caíram em desgraça social, tornando-se pobres. Por outro lado, o livro discute o problema de Jó, isto é, a questão teórica e teológica acerca do sofrimento inocente e da ação de Deus no mundo face à questão. Nessa discussão da teodicéia, trata-se de perscrutar o silêncio de Deus e o adequado falar de Deus a partir do sofrimento inocente. O livro trata, pois, de existência e de doutrina.
Sabidamente, a discussão da crise da sabedoria também se expressa em outras partes literárias da Bíblia hebraica, como no livro de Eclesiastes ou Coélet, em alguns salmos (Sl 49; 73), bem como nas obras dêutero-canônicas de Sirácida e Sabedoria. O livro de Jó não constitui uma ruptura completa com o pensamento sapiencial clássico. Ele evidencia descontinuidades e continuidades. Reflete a transição e as adequações necessárias no pensamento sapiencial e teológico no antigo Israel a partir das novas demandas e das necessárias adequações no modo de pensar.
O surgimento do livro de Jó como obra, muito provavelmente, deve ser situado no período persa, portanto na época do pós-exílio. É neste contexto que o acúmulo de experiências de sofrimento e de empobrecimento, causadas pelos vários exílios, deportações e derrotas do povo de Israel, do norte e do sul, puderam ser melhor discutidas, não por último à luz e em diálogo com textos da chamada ‘teodicéia babilônica’. O autor do livro costuma ser alocado entre círculos aristocráticos do período do pós-exílio, embora se deva distinguir mais concretamente entre esses grupos da elite judaíta, assumindo que, provavelmente, o autor do livro de Jó faça parte de um círculo de justos piedosos materialmente bem situados, mas que decaíram socialmente no contexto de profundas e mui rápidas transformações sociais no período.
A arquitetura do livro evidencia uma trama literária complexa, mas muito bem construída. Pode-se falar de uma polifonia, na medida em que o livro é constituído de várias camadas e vários níveis de significação, com várias vozes teológicas, que se delimitam, corrigem e complementam, procurando, assim, fazer juz ao problema central.Estilisticamente costuma-se diferenciar duas partes importantes do livro: as partes em prosa, dominante nas partes inicial (cap. 1-2) e final (42,7-17) e as partes em poesia, dominantes na parte central (cap. 3-41). Alguns denominam estas partes de moldura prosaica de “porta de entrada” e “porta de saída”. Dentro desta polifonia é possível isolar várias vozes e analisá-las dentro de sua intencionalidade e limitação imaginária próprias. Assim temos, por exemplo, as vozes de Jó (na parte inicial, nos diálogos da parte central e na resposta final), a voz da mulher de Jó (2,9), a voz dos amigos (4-27), a voz de Eliú (32-37) e a voz de Deus na teofania (38-41). Cada uma dessas vozes, com sutilidades teológicas próprias poderia se analisada separadamente e com bons resultados. Pode-se ainda perceber as ‘costuras’ literárias na imbricação das partes, o que também expressa uma intencionalidade própria. O importante, contudo, é perceber a trama da obra como um todo, para dentro da qual confluíram diversas camadas, tradições e releituras constituindo justamente uma obra polifônica.
No intento de perceber esta trama da obra, convém ter sempre em mente a discussão de um duplo problema: o caso de Jó e o problema de Jó. O personagem Jó interliga as duas questões. Ao longo da trajetória existencial deste personagem literário discutem-se as várias possibilidades teológicas de explicar o sofrimento e ação de Deus , bem como a própria possibilidade de transformação de quem, como Jó, através da rebeldia, se coloca em busca de conhecimento mais profundo, que ultrapassa os limites da tradição e bebe na fonte da experiência com o próprio Sagrado. Na trama, o personagem Jó passa por dois movimentos fundamentais: da riqueza para a condição periférica de pobre e da pobreza para o bem-estar físico, material e social. Na condição periférica, isto é, “sentado em cinzas” (2,8; cf. 42,6), Jó realiza o intenso processo de discussão com os amigos, o que, após uma terceira opinião, e encontro com Deus, culmina num discernimento mais profundo, que parece ser um dos objetivos do livro de Jó.
Com o intuito da discussão da teoria ou doutrina da retribuição mecânica, que pressupõe uma relação bipolar entre duas grandezas (ser humano X ser humano ou ser humano X Deus), o autor da obra situa Jó em condição social e econômica quase lendária: o cabra é podre de rico (1,3)! Jó é também um tipo multicultural, pois sendo da terra de Uz representa um personagem de fora de Israel (1,1). Com a quádrupla caracterização inicial como “íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal” (1,1), Jó está na linha de um tipo ideal do justo proposto na profecia (Mq 6,8), e também pressuposto como o protótipo da nova humanidade na figura de Noé (Gn 6,9). Jó é mantido e mantém-se como sujeito nesta caracterização até o final da obra. Na parte inicial ressalta-se a constante preocupação de Jó e fazer o que social e culticamente é correto. É um tipo preocupado em agir corretamente perante as pessoas, e especialmente diante de Deus.
Na moldura inicial já há uma problematização da doutrina, isto é do problema de Jó, através da inserção do personagem Satã (1,6), que ainda não é o diabo crescido e amadurecido do dualismo teológico no século I, mas representa uma grandeza criada (por Deus), que age com relativa autonomia, mas que está fora de Deus e fora do ser humano. Satã é o tentador, o sacaneador por excelência, que toca num problema fundamental da doutrina teológica da época: quem vive na abastança pode louvar Deus de boca cheia, mas será que a mesma confiança inabalável se manterá na penúria da pobreza? Esta é a aposta! O prognóstico ‘satânico’ é pelo não; e Deus espera para ver. As sacanagens de Satã reduzem o lendário rico Jó a um sujeito pobre, que passa a viver na condição de marginalidade social. Jó tornou-se um empobrecido, mas em seus diálogos ainda mantém o jeito patriarcal de pensar. Com isso talvez o personagem corporifique setores da classe social abastada do antigo Israel que, sob os impulsos das transformações sociais, passaram e passam por processos de empobrecimento. Aqui se pode pensar nos tradicionais proprietários livres de Israel, muitos dos quais, durante o século VIII aC passaram por um processo de empobrecimento, tão arduamente defendidos por profetas como Amós, Isaías e Miquéias, e que estão na iminência de perder ou que já perderam sua terra e com isso sua liberdade jurídica e cúltica. Deve tratar-se da classe dos cidadãos livres, talvez do ‘povo da terra’, sustentadores da reforma de Josias e da legislação deuteronômica.
As investidas deste Satã contra Jó apontam para a complexização da relação da pessoa com Deus. Na trama da obra, para os ouvintes e leitores estava já claro que há uma outra força atuante no mundo, além de Deus e do ser humano, capaz de provocar desgraças e sofrimento através do seu agir. Para Jó, contudo, isso permanece oculto, sendo desvendado somente no final da obra, nos discursos de Deus para Jó e com a apresentação das figuras de Leviatã e Beemot. Os três personagens mítico-teológicos indicam para um incipiente dualismo na cultura teológica de Israel no período do pós-exílio, acolhendo parcialmente imports teológicos da Pérsia e rompendo, assim, parcialmente com o monismo teológico, que atribuía tanto o bem quanto o mal a Deus. Toda a criação permanece sendo obra e espaço de cuidado de Deus, mas a criação se tornou um complexo espaço-planetário. Dentro desta trama literária, se dá o processo de discernimento de Jó.
II. Sentado em cinzas e sem a luz da bênção
Na condição de pobreza e marginalidade, isto é, “sentado em cinzas” (2,8), o personagem Jó começa seu itinerário de discussões em busca de uma explicação para sua desgraça. As falas de Jó na parte poética do livro, isto é, a partir do cap. 3 são uma coletânea de acusações contra Deus e de defesas diante dos três amigos, os quais procuram enquadrar o sofrimento de Jó nos limites da teologia retributiva tradicional. No resfolegar de sua angústia, Jó chega a amaldiçoar o dia do seu nascimento (3,3-8). Sua crítica principal é a de que a criação estaria nas mãos de um gerente incompetente. Na sua visão, o mundo saiu dos eixos. Essa crítica é renovada ao longo dos diálogos com os amigos, especialmente no cap. 9, sendo também ratificada no monólogo de defesa nos cap. 29-31. “A terra está na mão de um perverso; os rostos dos juízes dela ele cobre; se não é ele [= Deus], quem será?”. Pessoas pobres e sofredoras se sentem como se estivessem em trabalhos forçados. Jó responsabiliza o próprio Deus por tais acontecimentos. O critério para o seu julgamento e para suas duras críticas a Deus é o próprio destino existencial. Na pena e na trama do autor, a desgraça pessoal de um rico empobrecido se torna a âncora para a crítica a Deus e ao sistema dominante da época.
Nas três rodadas de discussão dos cap. 4-27, os três amigos Elifaz, Bildade e Zofar articulam várias vezes seus pontos de vistas. Eles defendem Deus; são porta-vozes da tradicional teodicéia. Segundo eles, Deus é justo em seu agir no mundo, pois “ele frustra as maquinações dos astutos, para que as suas mãos não possam realizar seus projetos;
Ele apanha os sábios na sua própria astúcia; e o conselho dos que trama se precipita (...) Deus salva da espada que lhes sai da boca, salva o necessitado da mão do poderoso.
Assim há esperança para o pobre, e a iniqüidade tapa a sua boca” (5,13-16).
Estes amigos, como representantes da teologia oficial, tem toda uma fineza na argumentação teológica. Podem até estar existencialmente preocupados em consolar o amigo em sofrimento, mas o fazem nos limites da sua teologia, sem a experiência do sofrimento.
Tanto os amigos quanto este Jó dos diálogos (3-27) e da defesa final (29-31) necessitam rever suas posições. Por mais críticas que Jó expresse em suas falas, a busca de seus direitos ainda se inscreve nos parâmetros da retribuição mecânica. Nesse jeito de pensar, quem é justo, isto é, quem se comporta conforme as normas da legalidade da justiça comunitária, tem o direito de receber a sua devida recompensa. Este Jó empobrecido ainda pensa nos moldes de uma ética patriarcal como é recomendada nos vários códigos de leis da Torá, especialmente no Código Deuteronômico (Dt 12-26). No seu discurso de defesa nos cap. 29-31, Jó faz eco a várias leis deuteronômicas, algo similar também se dá no cap. 24. Desta forma, Jó personifica toda uma classe social dos proprietários livres (e em parte ainda ricos) em Israel, que constituiu o grupo de suporte para a legislação de base na Torá, no final do período da monarquia. Essa gente deve ter desenvolvido uma espiritualidade ou uma filosofia de vida em conformidade com a própria Torá.
A caracterização de Jó com o sinal ‘justo’ deriva provavelmente da justiça ou da legalidade na prática dos preceitos das leis deuteronômicas. Isso se torna especialmente evidente no seu playdoier nos cap. 29-31. Logo no início do cap. 29 encontra-se a referência à dimensão da circularidade da bênção, tão característica do código deuteronômico. Jó se sente como alguém que outrora, nos bons tempos, vivia sob a bênção de YHWH e, agraciado com terra e liberdade, deveria estender adiante o manto da graça aos empobrecidos, até para manter a circularidade da bênção recebida. Nesta condição de pater famílias, isto é, sujeito jurídico das leis, ele estendia a bênção recebida aos grupos de pobres e empobrecidos no antigo Israel. As três categorias das personae miserae são citadas neste contexto: “porque eu livrava os pobres (‘anî = oprimidos) que clamavam e também o órfão que não tinha quem o socorresse” (29,12); “eu fazia rejubilar-se o coração da viúva” (29,13); “eu me fazia de olhos para o cego e de pés para o coxo” (29,15); “dos necessitados (‘ebyonim) era pai” (29.16). Essa justiça de Jó deriva da Torá, e as leis sociais da tradição hebraica, por sua vez, derivam da pregação e da defesa dos pobres na profecia do século VIII aC.
Jó é assim um típico “tu” da lei deuteronômica. No âmbito das relações micro-físicas do poder familiar-clânico, ele deve fazer valer a lei tornada oficial. É o pater famílias, que, nesta condição, gozando do estatuto de cidadão livre e proprietário de terra, pode cultivar uma ética patriarcal. Essa ética patriarcal tem o seu lugar próprio em boa medida circunscrito ao âmbito do exercício do poder na unidade familiar de produção e reprodução. Mas é uma ética que tem suas limitações. Ela não serve para descrever o comportamento dos israelitas que há muito estão em condição de pobreza, ou aqueles e aquelas que nunca tiveram ou puderam ter expectativa de uma vida melhor, estando em condição de servos temporários, estrangeiros, dependentes da ordem e da estrutura patriarcal reinante. A ética de Jó revela um tipo de justificação legal. Perante os preceitos da Torá, Jó é um justo, mas, no exercício desta ética, esquece-se a perspectiva dos que sempre foram pobres. Neste sentido, o Jó que observa o direito dos pobres, reivindicado e compromissado nas leis da Torá, e que quase ‘farisaicamente’ vangloria-se perante Deus da observância dos direitos dos pobres, ainda necessita de revisão na sua perspectiva.
Com a demonstração de sua eticidade legal, Jó desafia Deus para um diálogo face a face. Juridicamente, trata-se de um desafio para um pleito em espaço público: “quem me dará que se me escute? Tomara que Shaday me responda. E um libelo escreva o homem do meu processo” (31,35). Na sua disputa com Deus, Jó se articula nos espaços e formas do direito clânico no portão da cidade. Ainda após haver desafiado Deus para a disputa jurídica, Jó reforça sua inocência e legalidade, agregando o argumento de sua postura ecologicamente correta no cultivo da terra: “se a minha terra clamar contra mim, se os seus sulcos juntamente chorarem...” (31,37). Colateralmente transparece aqui um lampejo de consciência ecológica na lide com os bens da criação.
Antes, porém, de Deus responder, o poeta compositor do livro de Jó introduz uma nova voz na polifonia. Trata-se do discurso de Eliú nos cap. 32-37. Em geral, estes trechos são considerados uma interpolação dentro da obra, talvez a mais antigas das inserções. Este amigo com nome tipicamente hebraico não é mencionado nem no prólogo nem no epílogo e também as falas de Deus para os amigos em 42,7-9 não fazem referência a ele. Mesmo se tratando de um elemento textual inserido no conjunto, provocando um efeito retardante da resposta de Deus a Jó, o discurso de Eliú apresenta mais uma opinião no conjunto das explicações possíveis sobre a relação de Deus com o sofrimento de um justo. Sua fala parece a de um jovem, que por respeito só tardiamente se intromete na discussão. Mas ele fala como alguém convencido de uma (nova) verdade. Aparentemente, o desejo de Eliú não é consolar Jó, mas “ensinar e julgar”: “ninguém de vós conseguiu refutar a Jó e responder aos seus argumentos” (32,12). O que ele pretende não é “esquadrinhar tanto de onde e por que vem o sofrimento, mas o para quê, sua finalidade dentro da providência divina”. Segundo sua opinião, deve haver na vida sempre uma abertura para a dimensão inescrutável dos desígnios de Deus. Deus tem seu senhorio garantido na criação; isso é textualmente reforçado especialmente através do poema “o soberano das estações” (36,26-37,24). Na opinião de Eliú, o sofrimento pode ter uma função pedagógica. Sofrer faz parte da pedagogia divina! Esta é a contribuição mais duradoura destas palavras e talvez uma das posições de maior recepção na vida pastoral das igrejas. Com todo o cuidado teológico, as falas Eliú servem para evitar qualquer tipo de protesto dos pobres e injustiçados; a posição mais adequada deveria ser buscar compreender a vontade de Deus no sofrimento. Neste tipo de teologia, os pobres não chegam a ter seus direitos respeitados e garantidos.
Com essa resposta interpolativa, o problema de Jó recebeu uma luz teológica a mais, mas o caso de Jó, que representa o sofrimento de real de pessoas supostamente boas e justas, em nada foi alterado. Na pena do redator, deve haver um discernimento mais profundo e isso deveria dar-se através de uma fala direta de Deus. Assim, após o desafio para um processo jurídico, o redator usa do artifício literário de uma teofania para a busca deste sentido mais profundo da vida dos pobres sofrentes e dos seus direitos. Em termos fenomenológicos, trata-se da busca de uma nova experiência com o Sagrado.
III. De dentro da tempestade: a complexa criação e o lugar do humano (pobre)
Finalmente, o próprio YHWH responde para Jó. Com isso, a obra alcança um pretendido ponto alto. É preciso estar lembrado que a queixa principal de Jó era que o seu direito enquanto justo não estava sendo devidamente observado por Deus. Por isso, suas rebeldes queixas e protestos se dirigem ao próprio Deus, acusando-o de ser um gerente incompetente do cosmos. A situação e o destino particular tornam-se, pois, o critério para o julgamento da ordem da criação.
YHWH responde de dentro da tempestade. Já o lugar assignado para estas falas é sintomático. Com a roupagem de uma teofania, os conteúdos aqui expressos se colocam na linha e ao lado de manifestações de YHWH para Moisés no Horebe (Ex 3), no Monte Sinai (Ex 19), a revelação para Elias (1Rs 19). Característico em todas elas é que aquilo que é dito traz novidade para o viver e o compreender da ação de Deus no mundo. A manifestação do Sagrado é fonte de novidade!
Na pesquisa, as respostas de YHWH para Jó foram entendidas de modo muito diverso. Há opiniões no sentido de que aqui YHWH falaria do céu como um faraó. Outros dizem que as respostas são escassas e vazias e que o seu conteúdo é inadequado, pois não respondem aos anseios existenciais do Jó empobrecido e sofredor. Discute-se se o mais importante é o fato de Deus responder ou o conteúdo de suas respostas. O grande exegeta alemão Gerhard Von Rad foi bastante categórico na apreciação da questão, dizendo: “todos os intérpretes entendem a fala de Deus chocante, na medida em que ela passa ao largo do anseio específico de Jó e YHWH de modo algum se manifesta no sentido de possibilitar uma clara interpretação de si mesmo”. Essas respostas, pois, constituem um nó interpretativo.
Quem ajudou a desatar este nó foi o exegeta católico suíço Othmar Keel, numa obra de 1978, em que ele buscou entender as falas de YHWH sob o pano de fundo da iconografia do antigo Oriente e do antigo Egito. Segundo ele, nesta teofania, após uma censura inicial em relação a Jó sobre quem, sem entendimento (hebr. da´at ) estaria obscurecendo o seu plano na gerência do mundo, Deus se expressa na forma de dois poemas, nos quais é mostrada toda a criação em seus traços cosmológicos. Cada poema é secundado por um interlúdio responsivo da parte de Jó.
No primeiro poema, “YHWH, o senhor da criação” (38,4-38), apresenta-se a Jó uma série de questionamentos relacionados a diversos âmbitos dos cosmos e dos quais Jó não poderia ter conhecimento com base em sua experiência e seu horizonte de vida: 38,4-7 – fundação e fundamento da terra; 38,8-11 – domesticação e cuidado do mar; 38,12-15 – origem e cuidado do amanhecer e da luz; 38,16-21 – ironia e sarcasmo em relação ao interrogante humano; 38,22-30 – neve, granizo, chuva e orvalho são atribuições divinas; 38,31-38 – constelações, céu e clima. O Deus que se revela aqui a Jó, ou que é representado nestas falas, descreve-se ou é descrito como um Deus criador com tarefas cotidianas que de longe suplantam as preocupações humanas num esquema de retribuição. No todo, percebe-se que Deus se apresenta (e é apresentado) como uma divindade criadora e mantenedora, isto é, que reúne em si as dimensões de criador e aquele que mantém uma relação de cuidado para com estes âmbitos da natureza ou criação, cuja complexidade escapa à imediata percepção humana e sua adequada avaliação.
No segundo poema, “YHWH, o senhor dos animais (não domesticados” (38,39-39,30), são apresentadas idiossincrasias de um conjunto de dez animais: 38,39-41 – a presa das leoas e dos corvos; 39,1-4 – o parto das camurças e das corças; 39,5-12 – a liberdade do asno selvagem e a inservidão do touro selvagem; 39,13-25 – a despreocupação da avestruz e a coragem do cavalo; 39,26-30 – a percepção do falcão e a distância do urubu. Keel mostrou muito bem que a inter-relação destes dez animais consiste em que cada um a seu modo representa um espaço, que se caracteriza pela sua não-funcionalidade em relação às necessidades humanas. Estes animais e espaços testemunham uma “espécie de contra-mundo ao mundo humano”. Em cada uma das particularidades dos animais apresentados, há elementos não-antropocêntricos.
Após este longo discurso de YHWH, e justamente no seu final (40,1-2), a divindade desafia Jó a uma resposta. Este, por sua vez, responde de modo breve (40, 3-5), afirmando que ele, na verdade, é de uma categoria “leve demais”. Na linguagem da luta de boxe, Jó seria o “peso pena” em confronto com o “peso pesado” Deus.
A segunda parte da resposta de Deus a Jó é constituída de três seções distintas, porém interligadas: 40,6-14: censura interrogante de Jó; 40,15-24: Beemot; 40,25-41,34: Leviatã.
O trecho de Jó 40, 6-14 parece ser aquela parte da longa resposta de Javé que mais se aproxima das preocupações existenciais de Jó no âmbito de suas discussões com os amigos no esquema de uma teologia retributiva que trabalha com uma relação de causa e de efeito. Olhando-se o todo da resposta de Deus, poder-se-ia dizer que este trecho constitui uma espécie de centro do todo. Afinal, aparece emoldurado por dois discursos maiores. Mas, mesmo neste trecho, a resposta divina não opera na lógica da simples retribuição. Jó é dasafiado pelo criador a ser um valente como ele próprio, capaz de “travejar com voz semelhante” (ao criador) (40,9) e ornar-se com “glória e majestade” como o próprio Deus (40,10). Travestido para este papel, Jó é desafiado a fazer o difícil discernimento entre o justo e o ímpio e, uma vez discernidos ou identificados os ímpios, Jó é desafiado a humilhá-los, a esmagá-los e a enterrá-los na prisão (v.12-13). Após tal trabalho hercúleo e divino, cessaria por si mesmo o problema central que aflige a Jó e os israelitas justos e sofredores que perguntam pelo seu quinhão de bênção. Havendo feito tal trabalho, o próprio Deus louvaria o humano Jó, pois teria este realizado uma tarefa que mesmo ao criador parece complexa. É inevitável perceber as pitadas de ironia e de sarcasmo colocadas nas palavras de YHWH!
Em Jó 40,15-24, descreve-se a figura de Beemot. O nome é uma simples transliteração do substantivo plural feminino de behemâ, que pode ter o significado de “conjunto indiferenciado de animais”. Desde o século XVI, este termo é entendido como um animal identificado como o hipopótamo. Na Antiguidade, sobretudo no Egito, este animal era tido como um monstro mitológico, que representa não somente o espaço distante dos humanos, mas o mundo inimigo e adversário como tal. Assim, Beemot representa o monstro do caos, que disputa a soberania da criação com o próprio Deus criador. Este monstro mitológico-real deveria ser caçado ritualmente pelo rei para, assim, assegurar a ordem e a manutenção do cosmo. Mais tarde, a ameaça imaginada e vivenciada no fortíssimo hipopótomo não mais é vencida pelo rei, mas pelo deus Horus. Pressupondo o teor mitológico importado do Egito ou talvez até do saber comum em
Israel, nas formulações teofânicas do texto, agora é o próprio Javé quem assume a função de caçador e domador de Beemot. Isso acrescenta mais uma pitada de ironia e sarcasmo em relação ao personagem Jó. Como alguém, que nem de longe teria forças para agarrar esse bicho de frente ou atravessar-lhe o focinho com um gancho (40,24), poderia pretender questionar YHWH? Outro dado é que o texto transfere um elemento divino típico do deus egípcio Horus para o Deus hebraico YHWH, tratando-se, pois, de um exemplo a mais de sincretismo na história da fé monoteísta no contexto do antigo Oriente próximo.
Há um detalhe no texto que deve ser ressaltado. É a afirmação inicial em 40,15, na boca de YHWH: “Vê o Beemot, que eu criei contigo”. A expressão hebraica ‘im com o sufixo da segunda pessoa masculina singular deve ser entendida no sentido de “com” (= contigo) e não “como”, conforme traduz a Bíblia de Jerusalém. Na fala de Deus, o próprio monstro mitológico-real Beemot-hipopótamo é uma criatura de YHWH, que por mais adversa que seja à soberania do criador, faz parte da complexidade da criação divina. YHWH, além de suas tantas outras atribuições, deve também se ocupar com monstros como estes que complicam enormemente qualquer pretensão de harmonia na criação. Assim, pois, em termos teológicos, esse trecho afirma o monumental poder de YHWH e simultaneamente a dimensão não-antropocêntrica desta tarefa do criador.
O trecho dedicado a Leviatã (Jó 40,25-41-34) é mais longo. Isso provavelmente já indica um acúmulo de tradições. Também Leviatã era concebido como sendo um monstro mitológico, representado no mundo zoológico pelo crocodilo. O termo hebraico livyatan significa algo como uma grandeza que se move e se vira. Em Is 27,1, Leviatã é apresentado como “serpente escorregadia” (Bíblia de Jerusalém). No Sl 104,26, o mar ou ambiente aquático é apresentado como o habitat de Leviatã. A isso se junta uma tradição que o concebe como o “dragão do caos”. A própria Septuaginta, neste ponto, traduz o termo hebraico por drakon, conectando provavelmente tradições distintas e distantes. Leviatã, descrito como um crocodilo monumental e monstruoso, também indica essa dimensão não-antropocêntrica da criação. Ele inclusive é afirmado como a “obra-prima” do criador YHWH (40,19). Tal monstro representa espaços de profunda hostilidade a uma vida tranqüila dos seres humanos, não estando, assim, de modo algum em função deles. Pelo contrário, Leviatã sempre representará espaço e poder de ameaça (Jó 40,27-28). Mesmo assim, o texto afirma que YHWH pode “brincar” com ele ou fisgá-lo sem dificuldades (40,29), o que Jó ou seus semelhantes jamais poderiam fazer. Novamente há transferência de atributos divinos do mundo egípcio para YHWH. Este monstro terrível, para o qual não há igual na terra e que foi feito para não ter medo (41,25), é parte integrante da criação de YHWH. Novamente se evidencia a dimensão do poder de Javé e simultaneamente a dimensão da complexidade e conflitividade desta criação.
Estes discursos de YHWH para Jó não respondem diretamente aos anseios deste por seu quinhão de recompensa dentro do esquema retributivo tradicional. Pelo contrário, os conteúdos destas falas, devidamente entendidos, são para Jó [e ouvintes] um convite para abertura a um “outro horizonte novo muito mais amplo que sua atual estreiteza” dentro do esquema retributivo. No caminho do discernimento mais profundo, o redator da obra leva o personagem Jó, no encontro [literário] com o Sagrado, YHWH, a perceber uma amplidão maior da criação divina. YHWH é aquele que, vencendo as forças caóticas, cuida para que a criação não se torne um caos. Essa visão de Deus é dinâmica. Deus, a cada dia, de forma nova, cuida de toda a criação.
Para o problema de Jó, isto é, para a questão da teodicéia, agrega-se agora mais uma perspectiva teológica, a de um Deus, cujo ‘bom governo’ “vela pela vida de todos os povos da terra e pelo direito de cada criatura a existir em toda a sua variedade e complexidade”. Há, assim, a afirmação de uma perspectiva não antropocêntrica da criação.
Mas o que significa isso para os direitos do Jó empobrecido?
IV. Pobre-sujeito
No caso de Jó, essa visão não-antropocêntrica do agir de Deus provoca um deslocamento a mais: além de fazer o caminho da descida social da riqueza para a pobreza, Jó deve agora se reconhecer como um elemento dentro de uma criação mais complexa, que não está unicamente direcionada ou funcionalizada para suas necessidades humanas.
Nesta nova concepção, o esquema retributivo, que está sistemicamente orientado, não pode mais funcionar. A relação direta com a divindade não é mais possível, pois em toda relação pode haver perturbações externas a Deus e ao indivíduo. Estas perturbações externas estão simbolizadas na figuras míticas de Beemot e Leviatã, que, embora em última instância estejam sujeitas a Deus, representam “as forças caóticas fora de Deus e do ser humano”, constituindo um dualismo incipiente na teologia israelita da época persa.
Dentro desta nova concepção da complexidade do mundo criado há que se definir o lugar de Jó como pessoa empobrecida. É bem verdade, como já afirmou Crüsemann, que nas respostas de Deus a Jó se dá um distanciamento de Deus em relação às causas sociais e humanas. Deus e seu agir parecem ser algo imperscrutável.
No início da segunda resposta a Jó (40,5-14), em tom irônico, YHWH desafia Jó a ser sujeito de ações promotoras do suposto e esperado equilíbrio nas relações sociais entre ricos e pobres, opressores e oprimidos, justos e ímpios. Jó é desafiado a agir historicamente como Deus e assumir os atributos divinos. A metáfora do braço de Deus (40,9) é uma indicação sutil para a ação de Deus no êxodo. Também o trovejar da voz de Deus remete para a teofania do Sinai (Ex 19 - e também do Horebe – Ex 3), indicando um sentido libertador. Jó deveria agir como YHWH.
Esse desafio para ser sujeito de transformações históricas continua na passagem 40,10-14. Novamente há ironia e ceticismo nas formulações. Jó é desafiado a rebaixar as coisas altas, abater todo soberbo, humilhar todo ímpio e encerrar todos eles no pó da terra. Agindo assim historicamente, os problemas sociais deixariam de ter sua razão e um sujeito como Jó poderia ser reconhecido em atributos divinos. A ironia das formulações não significa que isso seja impossível, mas evidencia a dificuldade do empreendimento por mãos humanas. Parece-me ser assim que, através desta atribuição cética a Jó somo sujeito de transformações sociais, expressa-se perigos e temores inerentes a movimentos sociais como o messianismo e a posterior apocalíptica. Dentro do novo quadro não retributivo da complexa criação, Jó tem limitadas suas possibilidades de ser sujeito.
O livro de Jó, contudo, acrescenta ou atribui a Jó um novo direito: o direito de ser sujeito questionador frente ao sistema social e teológico estabelecido. Esse direito é conferido a Jó desde o momento em que em 3,1 abre a boca para maldizer o dia de seu nascimento e iniciar uma jornada de busca por discernimento mais profundo do sentido da vida e de Deus e, especialmente, questionando e acusando YHWH de ser o promotor ou o legitimador do sofrimento inocente no mundo. O autor do livro deixa Jó exercer esse direito ao longo de toda a parte poética da obra, chegando às raias da blasfêmia contra o próprio Deus.
Esse direito de sujeito frente ao sistema não é revogado nem mesmo após o encontro de YHWH com Jó (cap. 38-41). Face às inúmeras perguntas de Deus a Jó, este reconhece plenamente o poderio e a superioridade de YHWH no manejo da criação, dizendo, por exemplo: “bem sei que tudo podes” (42,2). Jó até se coloca como aprendiz e capaz de aprender coisas novas (42,4). O encontro com o Sagrado trouxe nova luz ao conhecimento e à experiência. Do ouvir-dizer, Jó chega à visão de Deus. Isso não significa uma completa relativização ou mesmo superação da tradição teológica de Israel, mas dá início a uma nova perspectiva. Esta somente é possível por meio de um intenso diálogo com as tradições herdadas, e ainda presentes, no imaginário do povo na época.
Deve haver um cuidado especial na interpretação do último versículo da resposta final de Jó a YHWH. Usualmente, traduz-se aqui algo no sentido de expressar um arrependimento de Jó e algum tipo de ritual de humilhação perante o Sagrado. A tradução de Almeida é sintomática neste sentido: “me abomino e me arrependo”. Muitas outras traduções vão no mesmo sentido de dar a entender que aqui o pobre Jó tem a sua subjetividade relativizada. As interpretações nos comentários sobre o livro de Jó acentuam isso de modo bastante nítido e forte. Há autores que falam de “sujeição formal” e de retração de conteúdo. Georg Fohrer afirma que Jó “não somente silencia (40,4s), mas revoga e se arrepende de tudo o que dissera anteriormente” e que a postura adequada de uma pessoa crente é “o silêncio humilde e de entrega perante Deus”. Um outro comentador diz que Jó capitula por completo, incondicionalmente e só lhe resta arrepender-se de sua rebeldia, martirizando-se em pó e cinza. Mais outro ainda acrescenta que na autonomia de Jó perante Deus resplandeceria a hybris do pecado original (Gn 3).
Essas afirmações na tradição interpretativa desfazem por completo o ser-sujeito de Jó. Retiram-lhe, na verdade, um direito que o poeta autor do livro atribui a seu personagem principal. Deve-se, pois, observar melhor o campo semântico e o significado dos dois verbos. O verbo nhm na forma Nifal não expressa tanto um sentimento interno de arrependimento, mas, com base em Gn 6,6 e Jn 3,9s, pode ser entendido no sentido de “um distanciamento de um agir e de uma concepção e uma tendência rumo a uma nova postura e um novo agir”. Trata-se, pois, de um passo no processo cognitivo. Algo similar pode ser afirmado como relação ao verbo ma’as. Com base em usos do verbo no próprio livro de Jó (5,17; 7,16; 8,20; 9,21; 10,3; 19,18; 31,13, 34,33, 36,5) e também no Sl 118,22 e Is 7,15, pode-se entender o verbo no sentido de rejeitar uma concepção anterior acerca de Deus e de si mesmo. Isso significa que Jó não é levado a arrepender-se no sentido de revogar o exercício do direito de ser sujeito frente ao sistema social e religioso, mas o personagem reconhece a complexidade do mundo que lhe apresentado por YHWH nos seus discursos teofânicos.
Interpretação similar vale para a última expressão ‘al ‘afar wa’efer (42,6b). Aqui não se trata da indicação de um ritual de penitência nem do reconhecimento do ser-criatura de Deus por Jó, mas muito provavelmente é a indicação do lugar social real em que Jó realiza este discernimento mais profundo. Cabe lembrar que Jó está sentado em pó e cinzas desde 2,8 e todas as discussões com os amigos são travadas a partir deste lugar social, isto é, a partir da condição de marginalidade social, de empobrecimento. Nesta condição periférica, na discussão com os amigos, Jó ainda desfilava a sua anterior forma de pensar aristocrática, em conformidade com a filosofia de vida sapiencial tradicional dos proprietários livres de Israel e em conformidade com os seus direitos de recompensa face à observância dos preceitos da Torá. Agora, a partir do seu sofrimento em condição marginal, porém, ele percebe que dentro da dinâmica ecocêntrica de um mundo complexo, perpassado por espaços e poderes hostis, com gozo de liberdade, não se pode pensar as relações com os outros e com Deus dentro de um esquema diretametne retributivo. O ser humano permanece interlocutor primeiro e preferencial de Deus, mas é um elo dentro de uma tessitura cósmica maior. E dentro deste amplo e complexo espaço planetário, Jó tem o seu direito de ser sujeito frente ao sistema plenamente resguardado. Jó é um pobre-sujeito!
Este ser sujeito do Jó empobrecido é ratificado na moldura narrativa final. Em 42,7-8, o autor da obra faz o próprio YHWH censurar a postura de intransigente defesa do sistema por parte dos amigos e, simultaneamente, afirmar que a postura de Jó em suas falas e em suas profundas e sofridas buscas pelo sentido da vida e pelo agir de Deus no mundo eram retas (hebr.: nekonah) perante Deus. Este ser-sujeito de Jó no questionamento do sistema é plenamente mantido!
V. Concluindo
As várias vozes dentro da polifonia do livro de Jó buscaram expressar opiniões sobre o problema de Jó, isto é, a questão da teodicéia. Várias opiniões foram expressas, com acertos e desacertos. Um dos objetivos da obra na referida ‘crise da sabedoria’ era buscar a superação da teologia retributiva. Neste sentido, o autor da obra acrescenta às várias vozes, a opinião de certa forma dominante de que o mundo como criação divina é um espaço complexo, perpassado de elementos e poderes hostis, no qual, porém, cada elemento pode gozar de liberdade. Dentro desta nova concepção de Deus e de sua complexa criação, o personagem Jó é desafiado a encontrar o seu lugar próprio. De sujeito da Torá, após seus questionamentos a Deus, Jó é desafiado ironicamente a ser sujeito de transformações sociais, um empreendimento difícil, mas não impossível. Na sua condição de empobrecido, embora ainda desfraldando ética e postura patriarcal, Jó exercita um novo direito: o direito de ser sujeito frente ao sistema. Esse direito é resguardado ao personagem até o final.
Assim, o problema de Jó recebe várias soluções possíveis, porém não as soluções últimas, pois enquanto houver gente no mundo que sofre de modo inocente deverá haver sempre de novo o exercício do direito da subjetividade e da autonomia humanas frente ao sistema. Na ótica e na pena do poeta-autor da obra, porém, também o caso de Jó, isto é, o caso de um justo sofredor recebe uma solução. Ao exercitar a intercessão pelos amigos (42,10), Jó teve sua condição de bem-estar restituída. Na descrição dessa nova mudança, o texto se move no mesmo nível do lendário da parte inicial. Jó volta a ser novamente um cabra muito rico. Essa pode não ser a melhor solução para o caso; talvez bastasse a descrição de um bem-estar razoável, sem os artifícios da riqueza lendária. Advogo, porém, em favor de que não se interprete esta nova mudança da condição de Jó como um reenquadramento dentro do superado sistema de retribuição. Considero mais adequado interpretar este final como uma resposta exagerada, mas acertada de que um empobrecido voltou a viver em plenitude! É um outro Jó! É um Jó que se sente livre em relação à obrigação do sistema retributivo! Ele pode acompanhar, agora, mesmo que com temor, as andanças de seus novos filhos e novas filhas. Ele sabe agora que a vida em liberdade frente ao sistema e dentro da complexidade da criação traz perigos intrínsecos, mas que ele não pode nem prever nem prevenir plenamente. Por isso, este Jó pôde morrer “velho e farto de dias” (42,17). Esta é a história de Jó: um pobre-sujeito!

Agradecimentos a Haroldo Reimer

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O Conceito de profecia e glossolalia no entendimento de Paulo e da comunidade de Corinto no I século

Estudo sobre o fenômeno da profecia e glossolalia no cristianismo primitivo a partir da primeira Carta aos Coríntios. O movimento cristão emergiu como uma seita judaica, mas amadureceu em um contexto greco-romano, sendo profundamente alterado pela cultura e tradições ocidentais. Por um lado, sofreu as influências das antigas tradições israelitas e do judaísmo do período do Segundo Templo, sendo herdeiro tanto das diversas manifestações revelatórias extáticas, apocalípticas, escatológicas e sapienciais, quanto da inteligibilidade e da autoridade como critérios de verificação da profecia. Por outro lado, sofreu também as influências das tradições greco-romanas. O interessante é compreender estruturalmente, a partir de 1Co 14.1-19, o conceito de profecia e glossolalia no entendimento de Paulo e da comunidade de Corinto no primeiro século, em um contexto greco-romano e judaico. Uma análise cuidadosa dessas compreensões permitirá afirmar a existência ou não de uma ligação entre os fenômenos da glossolalia e profecia cristãs e a fala inspirada e as tradições proféticas e oraculares greco-romanas, que produza paralelos convincentes tanto no que diz respeito aos fenômenos quanto aos conceitos teológicos. Considerando também os aspectos antropológico e sociológico da pesquisa sobre os fenômenos, abordarei questões mais amplas como, por exemplo, se a profecia e a glossolalia em 1Co 14 estão estruturalmente ligadas ao conceito de estado de consciência alterado, defendido por antropólogos, ou se há uma associação do êxtase e da possessão com os contextos sociais dos coríntios.

Definir a natureza do dom da profecia e da glossolalia no Novo Testamento e o modo como eram praticados pelas comunidades cristãs no tempo da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios torna-se um desafio. Observei que muitas são as evidências da profecia cristã primitiva dentro do Novo Testamento, mas poucas as fontes diretas. Tomei como referência para pesquisa a perícope de 1Co 14.1-19, dentro do bloco dos capítulos 12 a 14. Apesar de ser marcado pelo propósito e pelo vocabulário paulino, dele puode deduzir conceitos e práticas da profecia e glossolalia nas comunidades cristãs do primeiro século, especialmente em Corinto.

A leitura preliminar de 1Co 14.1-19 az depreender uma divergência entre a concepção de Paulo acerca de profecia e fala inspirada e a compreensão dos coríntios. Uma das justificativas para tal divergência encontra-se na própria gênese do movimento cristão. Começando sua existência na Palestina Judaica, imersa por séculos nas tradições israelita judaicas, cujo centro são as Escrituras, o movimento cristão emergiu como uma seita judaica, mas amadureceu em um contexto greco-romano, sendo profundamente alterado pela cultura e tradição ocidentais. Em pouco tempo, atraiu ele gentios de tal forma que, no fim do primeiro século, era em grande parte não-judaico.

Pelo fato de nossa mais explícita fonte de informação sobre a profecia e a glossolalia no cristianismo primitivo (1Co 12-14) vir, predominantemente, de um ambiente helenístico, torna-se imprescindível conhecer distintamente as tradições proféticas e oraculares Greco-romanas.

Mas, também, por reconhecermos que o cristianismo primitivo começou na Palestina judaica, sendo herdeiro por séculos da tradição profético-revelatória israelita judaica, é necessário aprofundar o conhecimento dessa influência, que parece ter sido enfaticamente teológica e não histórica, dado que o judaísmo experimentou uma aguda helenização durante os três primeiros séculos anteriores ao nascimento de Jesus e à religião cristã. Neste sentido, o movimento bíblico-teológico, particularmente encorajado pela descoberta dos manuscritos do Mar Morto em 1947, contribuiu para valorizar a herança israelita-judaica do cristianismo primitivo.

Uma vez que o profeta cristão primitivo é alguém que medeia uma mensagem oral ou escrita recebida de fontes sobrenaturais, necessário se faz adentrarmos nas noções de transe de possessão e.transe de visão, ou, como é chamado no contexto religioso, êxtase. Para analisar os conceitos antropológicos modernos de estados alterados de consciência e os contextos sociais em que florescem o êxtase e a possessão, tomamos como referência, além de vários artigos sobre o assunto, a obra de Felicitas Goodman, Speaking in tongues, e a de Ioan Lewis, Êxtase religioso: um estudo antropológico da possessão por espírito e do xamanismo. Tais contribuições fornecem subsídios para o estudo e ajudam a compreender, em parte, o fenômeno da glossolalia hoje.

Assim, para analisar o fenômeno da profecia e da glossolalia no cristianismo primitivo, por um lado, aprofundarei o estudo sobre a influência do Antigo Testamento, das tradições judaicas do primeiro século e da cultura greco-romana na concepção profética de Paulo e da comunidade cristã de Corinto. Por outro, abordarei os conceitos de profecia e glossolalia a partir da Antropologia e da Sociologia.

Tomando por base os estudos da pesquisa recente, algumas questões são levantadas em relação à profecia e à glossolalia na Primeira Carta aos Coríntios, tais como: até que ponto a concepção paulina de profecia em Corinto representa uma continuidade ou uma ruptura com a tradição profética judaica exílica e pós-exílica? De que maneira o conceito helenístico

de inspiração, enquanto fenômeno estritamente religioso, influencia a compreensão e a prática da profecia e da fala inspirada na comunidade paulina do primeiro século? A primazia da profecia sobre a glossolalia e o critério distintivo da edificação da assembléia em Corinto constituem marcas exclusivamente paulinas ou fazem parte do ambiente da profecia nas comunidades cristãs do primeiro século? Do ponto de vista antropológico, a profecia e a glossolalia em 1Co 14 podem ser entendidas segundo o conceito de estado alterado de consciência.? Do ponto de vista sociológico, procurando relacionar a incidência do êxtase com a ordem social, poderíamos aplicar-lhes as noções deinstituição centralizada e cultos periféricos?

Para descrever o fenômeno da profecia e da glossolalia e estabelecer o seu background, utilizarei fontes literárias canônicas e não canônicas, teses de mestrado, de doutorado e artigos publicados em jornais e periódicos especializados.

A profecia israelita antiga

Lindblom, depois de uma acurada pesquisa sobre experiência profética em várias religiões e culturas, diz que um aspecto que caracteriza toda profecia é a crença em algum tipo de revelação originária do mundo divino. Entre todos os desígnios, reais ou ilusórios, históricos ou místicos, de relacionar o divino com o humano, tem um lugar próprio a experiência profética. A profecia implica uma relação entre a eternidade e o tempo, um diálogo entre Deus e o homem, conclui Neher.

Para Neher, a profecia não pode contentar-se com uma revelação que, lúcida e misteriosamente, permaneça íntima e oculta. A profecia não pode limitar-se a descobrir a voz divina, o seu silêncio, na natureza exterior e em seus espetáculos, nem sequer na natureza interior e em suas emoções; não é contemplação nem oração. Superando o marco de uma comunhão pessoal, a experiência profética atravessa o ser humano para dar-se aos demais. Isto é o que caracteriza a profecia entre os demais modos de revelação.

Segundo David Aune, para os judeus palestinos do último período do Segundo Templo, que se concluiu com a tomada de Jerusalém pelos romanos em 70 d.C., a profecia era um fenômeno que pertencia ou ao passado distante ou ao futuro escatológico. Mas uma vez que os grupos apocalípticos e as seitas acreditavam que o fim dos tempos era iminente, para eles, a profecia poderia fazer parte da experiência presente.

Com a canonização das Escrituras Hebraicas no século I a.C., a profecia israelita clássica ou escrita (que aflorou durante a crise assíria na metade do oitavo século e desapareceu pouco depois da dissolução da monarquia judaica no sexto século) adquiriu o status de única, sacrossanta e paradigmática. Isto criou uma descontinuidade entre a profecia canônica e as formas subseqüentes de revelação profética que emergiram durante o período do Segundo Templo (516 a.C. 70 d.C.), impedindo ambas as formas de fala profética de serem cumpridas satisfatoriamente.

Dentre as muitas diferentes formas de revelação praticadas no Israel Antigo, destaca-se a profecia inspirada. Sua busca, no mundo antigo, devia-se ao anseio de minimizar a imprevisibilidade e a falta de controle absoluto inerentes à vida do ser humano.

No Israel Antigo e na Grécia, profecia inspirada e adivinhação oracular consistiam em mensagens verbais compreensíveis, cujo conteúdo não derivava da mente humana, mas do mundo sobrenatural, trazido através de canais inspirados que podiam ser designados como um profeta. Tanto a profecia quanto a adivinhação podiam ser solicitadas ou não. O oráculo profético proclama o desejo e o conselho do deus em resposta a questões gerais ou em referência a uma particular situação de uma das pessoas que buscava conselho.

A freqüência das condenações nos textos bíblicos à adivinhação aponta para o fato de que era largamente praticada ao longo de toda a história de Israel. A religião popular do antigo Israel é raramente refletida nas Escrituras Judaicas e, quando aparecem, são em contexto condenatório de práticas proibidas.

Segundo Aune, o primeiro profeta israelita apareceu em nossas fontes no século XI a.C. Esse tipo de profeta, exemplificado por figuras tais como Samuel, Elias e Eliseu, apresenta as características de homem santo, sábio, operador de milagres e prognosticador (1Sm 9; Rs 17; 2Rs 1.2-17; 6.1-7, 8-10; 13.14-21; 20.1-11). Eles estavam associados a lugares santos e rituais religiosos e podiam combinar os papéis de sacerdote e profeta, como Samuel. Itinerantes, moviam-se com certa liberdade, aparentemente vivendo das ofertas que lhes eram oferecidas por aqueles a quem serviam. Profetas seniors recebiam o título de pai e presidiam grupos proféticos cujos membros eram chamados de filhos dos profetas. Tanto Samuel quanto Elias presidiram associações desse tipo. Tais profetas freqüentemente profetizavam em grupo. Tinham uma vestimenta distintiva de pele de ovelha e um manto.

As atividades oraculares dos profetas israelitas antigos do tipo xamanístico eram associadas de forma próxima, mas não inseparável, dos lugares santos e rituais religiosos. Como Samuel, os últimos profetas, Ezequiel e Jeremias, eram associados ao sacerdócio. Sacerdotes e profetas eram sempre mencionados juntos, como se dividissem uma esfera comum de atividade. Esta associação, contudo, é atestada somente para a região de Judá e a cidade de Jerusalém. Muitos salmos, que eram certamente parte do ritual do templo, parecem ter uma origem profética (Sl 20; 21; 50; 60; 72; 75; 82; 85.8-13; 89.19-37; 108; 110; 132.11-18). Além disso, alguns profetas clássicos, como Joel, Naum, Habacuque e Zacarias, parecem ter usado formas litúrgicas como um veículo literário para as suas profecias.

Com base nessas evidências, parece provável que existisse, no período pré-exílico, um relacionamento formal entre alguns profetas e o culto do templo de Jerusalém. Alguns profetas eram, sem dúvida, membros assalariados do quadro de pessoal do templo, sob a autoridade direta dos sacerdotes. O templo também provia um centro para profetas não formalmente associados ao culto exercitarem seus dons, como no caso de Jeremias. É largamente sustentado que os cantores no templo pós-exílico foram os sucessores das associações proféticas do templo pré-exílico. Entretanto, nenhuma associação profética estava ativa no templo pós-exílico.

Há muitas referências a profetas israelitas que transportam mensagens divinas de Javé para os monarcas. Numerosos exemplos nas cartas de Mari ilustram a importância no pensamento do Oriente Próximo de envio de mensagens oraculares aos reis. Particularmente em tempos de guerra ou antes de iminentes batalhas, profetas eram comissionados para entregar aos reis israelitas oráculos não solicitados, embora na maioria das vezes fossem inquiridos pelos governantes. Grande grupo de profetas de Baal era consultado permanentemente por Acabe e Jezabel (1Rs 18.19; 2Rs 3.13).

O fenômeno da profecia livre, em contraste com as profecias dos templos e das cortes, desenvolveu-se dramaticamente durante a metade do oitavo século a.C., especialmente com a atividade dos profetas Amós e Oséias em Israel e Miquéias e Isaías em Judá. Profetas livres não faziam parte do quadro dos funcionários da corte nem do templo. A função das autoridades reais e cúlticas era manter e preservar os tradicionais valores e costumes sociais e religiosos de Israel. Os profetas livres, entretanto, à margem das instituições da sociedade israelita, tentavam provocar tanto mudanças sociais quanto religiosas.

O movimento profético que havia florescido de várias formas desde o início da monarquia israelita parece ter chegado ao fim no período seguinte, com o exílio babilônico. Seus últimos representantes, segundo David Hill, foram Ageu, Zacarias e a figura indistinta de Malaquias.

Na verdade, difundiu-se uma opinião de que a profecia havia cessado no judaísmo durante o quinto século que antecedeu a vinda de Cristo, retornando com a ascensão do cristianismo. A razão para essa compreensão pode ter sua raiz no conceito deuteronomista de profecia que veio dominar o pensamento religioso no início do período pós-exílico. De acordo com a posição deuteronomista, diz Robert Wilson, verdadeiros profetas eram aqueles cujos oráculos eram eficazes e cujas predições se verificavam. Este princípio tinha inicialmente aumentado a autoridade de profetas deuteronomistas, como Jeremias, cujas advertências de catástrofe haviam se cumprido.

Nesses estudo, ao contrário, adotei a posição de David Aune, segundo a qual a profecia israelita não desapareceu. Em vez disso, como todas as instituições sociais e religiosas, sofreu várias mudanças radicais durante o período do Segundo Templo (516 a.C . 70 d.C). Definida como mensagens inteligíveis de Deus em linguagem humana através da mediunidade humana inspirada, profecia, segundo Aune, pode assumir uma larga variedade de formas: apocalíptica, escatológica, clerical e sapiencial.

A conclusão a que cheguei nesse estudo é que a literatura apocalíptica é um dos vários meios de revelação do judaísmo antigo, assim como a profecia clássica do Antigo Testamento também o é. Consideramos a apocalíptica uma continuidade da profecia israelita ao lado de tantas outras manifestações revelatórias.

O fenômeno oracular

Os oráculos desempenham um papel significativo na religião dos gregos e romanos. Os gregos não costumavam colecionar revelações divinas em formas escritas, como selo de autoridade e permanência. Na visão greco-romana, ao contrário da compreensão de alguns segmentos do judaísmo antigo, afirma Aune, a revelação divina não era usualmente limitada ao passado, mas um meio regular e contínuo para determinar a vontade dos deuses em quase todas as questões concebíveis.

Oráculos, na definição de Aune, são mensagens ou declarações dos deuses em linguagem humana, geralmente em resposta a perguntas. O termo oráculo é também usado para o local onde tais mensagens são requeridas e recebidas. As predições oraculares eram recebidas de várias formas, segundo Helmut Koester por meio de sonhos (característica dos santuários de Asclépio); médiuns humanos (como Pítia em Delfos e as sibilas); animais

(como as pombas de Zeus na árvore sagrada de Dodona); jornada aos mundos subterrâneos (como nos oráculo dos Mortos em Éfira e no oráculo de Trofônio em Lebadéia); ou alguma manipulação, como o lançamento de sortes. Embora Apolo se tornasse a divindade mais importante dos oráculos, muitos outros deuses eram consultados.

O termo mantis era o mais usual entre os gregos para designar os praticantes de adivinhação, e pode ser traduzido por adivinhador, prognosticador, visionário ou menos apropriadamente, segundo Aune, profeta.

Durante o período helenístico (350 a.C.50 d.C.), os grandes santuários oraculares experimentaram um moderado, mas contínuo declínio, alcançando sua maior queda no início do período romano (50 a.C.). Isso aconteceu especialmente com Delfos, que era o centro político e religioso da anfictionia dos Estados Gregos e lugar para onde as delegações eram enviadas a fim de receber a confirmação de planos de fundação de novas colônias ou a aprovação de novas constituições estaduais, conforme Koester. Mais tarde (século II d.C.), quando os santuários oraculares locais alcançaram nova importância, poucos daqueles que foram locais famosos no passado ainda funcionavam. E os oráculos passaram a operar não mais para delegações de várias cidades greco-romanas, mas para pessoas com preocupações individuais e problemas privados. Mesmo assim, os oráculos não perderam sua importância diante dos reis helenísticos e mais tarde dos imperadores romanos, que se voltaram mais para a regulamentação de assuntos sagrados, legais e pessoais, até mesmo como fiadores de transações legais.

Existe uma fundamental diferença de significado entre o termo profhte,ia (profecia), utilizado na terminologia cristã primitiva e o mesmo termo utilizado no vasto mundo greco-romano. Para o cristianismo primitivo, profecia era uma manifestação padrão de recepção do Espírito e a habilidade de transmitir as mensagens recebidas via inspiração, ou seja, era a fala inspirada de pregadores carismáticos. No mundo helenístico, tal habilidade era denominada mantikh. Segundo Forbes, a profecia era uma posição oficial na hierarquia dos centros oraculares, e nada tinha a ver com a fala inspirada. Há, portanto, uma diferença significativa na compreensão de profecia entre a cultura cristã e a helenística. De acordo com esta última, o termo profhth,j equivalia apenas a um comunicador, que nada tinha a ver com o processo oracular.

Segundo Ashton, o conceito de oráculo acrescenta ao conceito de profecia o que os alemães chamam de Sitz im Leben, isto é, um lugar cultural. Na Grécia pré-clássica e clássica, e também na era helenística, o santuário oracular era um lugar sagrado no qual todas as pessoas buscavam conselhos e palavras reconfortantes do deus que acreditava-se – ali habitava. Era um centro social e político muito importante. O que deu autoridade aos .profetas que ministram nesses santuários foi o status de que falavam em nome da divindade.

A profecia cristã primitiva

Algumas das mais antigas e importantes evidências da profecia cristã primitiva são as cartas de Paulo. Hill se pergunta se Paulo pode ser apropriadamente chamado de profeta. Para o autor, Paulo é um profeta baseado no fato de que ele recebeu revelações, sentiu-se sob a compulsão divina para proclamar em palavras ou cartas o que recebeu. Ele não chamou a si mesmo de profeta, possivelmente, porque a função de apóstolo do Novo Testamento equivalia à do profeta do Antigo Testamento.

Para Grudem, um leitor casual também podia associar naturalmente os profetas do Novo Testamento aos do Antigo Testamento, inclusive na questão da autoridade. Contudo, para o autor, aqueles que são vistos como mensageiros divinamente autorizados no Novo Testamento são mais freqüentemente chamados de .apóstolos, e não de .profetas. Isto é relevante na medida em que, se os apóstolos do Novo Testamento são equivalentes aos profetas do Antigo Testamento, então os profetas do Novo Testamento podem, freqüentemente, ser alguma coisa bastante diferente.

No que diz respeito à afirmação de que Paulo nunca se autodenominou profeta, Sandnes apresenta três argumentos que nos impediriam de considerá-lo um profeta. 1. O primeiro e mais importante é que o evangelho de Paulo foi um cumprimento de promessas proféticas do Antigo Testamento. Em Rm 1.1-2, mostra-se a compreensão de Paulo a respeito de si mesmo e dos profetas veterotestamentários: os profetas pré-disseram o que ele agora proclama. 2. O apostolado de Paulo foi definitivamente de base cristológica, ou seja, seu comissionamento advém de uma revelação de Cristo. 3. Tal comissionamento foi destinado às nações, portanto, além do limite do povo da aliança. Disto se conclui que o ministério apostólico de Paulo, em sua totalidade, não pode ser suficientemente descrito apenas a partir de categorias pré-moldadas ou de funções oficiais, nem mesmo aquelas atribuídas aos profetas.

Quanto à relação entre o apostolado e a profecia, Sandnes afirma que Paulo queria que os coríntios reconhecessem as similaridades, mas também as diferenças entre os primeiros profetas cristãos e o mistério pregado por Paulo. Tanto o apóstolo quanto os primeiros profetas cristãos tiveram a tradição de avpoka,luyij (revelação) na base das suas pregações, mas a natureza de suas revelações diferia. Avpoka,luyij em Paulo era a revelação de Cristo, que o chamou a uma dedicação total à pregação do evangelho. Já os primeiros profetas cristãos contavam com uma pontual, mas contínua recepção de revelações. O caráter fundamental do mistério revelado a Paulo foi fundamental para a edificação da Igreja. Por isso, o seu comissionamento fez dele um missionário itinerante, enquanto os profetas cristãos primitivos exerciam seus carismas principalmente nas liturgias cristãs, entre cristãos convertidos. Mesmo Ágabo, descrito por Lucas como um profeta itinerante (At 11.27-28; 21.10-14), valeu-se de uma comunidade cristã já existente como núcleo principal da audiência de seus oráculos. A discussão do tema da profecia em 1Co 12-14 nos faz supor que este era também o caso dos profetas nas congregações paulinas.

Esses pontos de diferença entre Paulo e os primeiros profetas cristãos sugerem, segundo o autor, que existem dois tipos diferentes de profecia no Novo Testamento: a do apóstolo-profeta e a dos primeiros profetas cristãos. O apóstolo-profeta seria, de certa maneira, o sucessor dos profetas canônicos vetero-testamentários, enquanto os primeiros profetas cristãos estariam incluídos no vasto fluxo da profecia israelita do Antigo Testamento, do judaísmo e do mundo greco-romano.

A profecia tem uma característica inegável: é pública. Os casos de revelações individuais não são considerados profecia, como também não o é o compartilhar visões. Para Paulo, profecia é uma revelação pública de uma experiência revelatória normalmente imediatamente inspirada e, em circunstâncias normais, publicamente proclamada.

Quanto ao caráter de predição da profecia, tanto Paulo quanto Lucas concordam nesse aspecto. Embora isto não apareça de forma clara na Primeira Carta aos Coríntios, há textos em que a predição é compreendida por Paulo como uma das funções da profecia, por exemplo, em Rm 1.2; 9.25ss e 1Co 15.4,54. David Aune defende que Paulo predisse tanto eventos terrenos quanto escatológicos. No contexto de Gl 5.21b, a palavra predição é apropriadamente expressa pelo termo grego prole,gw. Também de particular interesse é o fato de que Paulo reivindica ter profetizado enquanto estava com eles. Paulo usa os termos prole,gw e proeipei/n para predição em 1 Ts 3.4; 4.6 e Gl 5.21, dando assim forte evidência de que ele via a predição como parte da função de seu próprio apostolado.

O que distingue a profecia de outros tipos de discurso, tanto para Hill quanto para Grudem, são as suas respectivas funções. Profecia tem a ver com revelação, não com desenvolvimento humano de prévia revelação ou outro material.

O êxtase

Muitos termos relativos ao fenômeno da profecia e da glossolalia não são definidos com precisão. Aplicados a idéias ou coisas distintas, geram mal-entendidos e incompreensão. O termo êxtase é um dessas palavras sobrecarregadas, afirma Guillaume. Alguns o utilizam para designar estados e ações que mudam e evoluem constantemente, violentas agitações do corpo, canto, dança, frenesi controlado ou não, inspiração, arrebatamentos inefáveis, visões e alucinações. Todas essas manifestações do sentimento e da emoção humana foram reunidas sob a denominação geral de êxtase, cuja etimologia significa propriamente estar fora de si ou fora de seus sentidos, em geral aplicada aos estados de espírito exaltados ou de alegria. Robert Wilson também concorda com a posição de Guillaume quando afirma que os estudiosos têm sido imprecisos no uso do termo êxtase. Embora prevaleça a indefinição do termo em suas obras, muitos parecem compreender o êxtase como o meio pelo qual a comunicação divino-humana opera.

Os antropólogos raramente utilizam o termo êxtase em suas obras ao falar de intermediários divino-humanos, observa Wilson. E quando o termo é empregado, ele é usualmente visto como uma forma de transe religioso. Transe é a palavra usada pelos antropólogos e psicólogos para descrever o estado fisiológico e psicológico, tipicamente marcado pela sensibilidade reduzida ao estímulo, perda ou alteração do conhecimento do que está acontecendo e substituição da atividade voluntária pela automática. Na verdade, o termo entre os antropólogos abarca aquilo que se refere ao tipo de comportamento, e não o processo pelo qual acontece a comunicação entre o mundo humano e divino.

Lindblom usa o termo êxtase .quando a inspiração cresceu tão forte que a pessoa inspirada perdeu totalmente o controle de si mesmo. A corrente normal da vida mental é interrompida. As faculdades mentais comum, e algumas vezes as forças físicas são colocadas fora de função. O autor descreve muitos diferentes graus e tipos de êxtase e de experiência revelatória, o que também é confirmado por David Aune que oferece uma tipologia de estados alterados de consciência, além das simples alternativas de extáticos e não-extáticos.

Grudem acrescenta algo importante em relação ao êxtase. Segundo seu entendimento, o fato de alguém profetizar em um estado excitado, ou falando com uma emoção forte, ou tendo um alto nível de concentração ou consciência do sentido de suas palavras, ou ainda tendo uma percepção forte da presença e trabalho de Deus em sua mente, não se considera ser estados suficientemente anormais para requerer o uso do termo êxtase.

Felicitas Goodman, estudando as condições nas quais o glossolalista se coloca, adverte quanto à necessidade de se proceder a uma conceituação e exploração sistemática da atividade mental para se chegar a uma definição adequada dos termos. Segundo a pesquisadora, quando uma pessoa foi removida da consciência da realidade comum que a circunda, ela está em um estado mental alterado. O estado do glossolalista, na sua concepção, é um estado alterado de consciência.

Ioan Lewis, por sua vez, ressalta que, apesar da influência da autoridade eclesiástica estabelecida, o êxtase religioso sempre exerceu forte atração dentro e à margem do cristianismo. Do ponto de vista sociológico, o autor aborda o fenômeno do êxtase como o

mais decisivo e profundo de todos os dramas religiosos; em sua opinião, a tomada do homem pela divindade é fato de alguma forma encorajado em todas as religiões, variando conforme as condições sociais particulares.

Lewis classifica os cultos de possessão em centrais ou periféricos. Os cultos centrais tendem a fortalecer e legitimar por meio do êxtase a autoridade dos líderes religiosos que anseiam pelo poder e estabelecer a moralidade pública. Os cultos periféricos, ao contrário, não desempenham nenhum papel na sustentação do código moral das sociedades. Nesses cultos, os espíritos tendem a .possuir. preferencialmente as mulheres, que, como minorias jurídicas, ocupam, em certo sentido, posição periférica na sociedade, funcionando, assim, como auxílio aos fracos e oprimidos que, de outra forma, contam com poucos meios efetivos para atender seus interesses e reivindicações por atenção e resposta.

Glossolalia, inspiração e entusiasmo helenísticos

Uma das formas de expressão da glossolalia é o balbuciar de palavras ou sons sem interconexão ou sentido. Vários paralelos deste fenômeno são encontrados em diferentes períodos e lugares da história das religiões. O dom de línguas, a glossolalia, pode facilmente encontrar paralelo no mundo religioso popular Helenístico.

As artes mânticas, desde a adivinhação técnica até a adivinhação inspirada, assim como os oráculos, foram características integrais da vida religiosa e social em todo o período Greco-romano. O conhecimento do futuro era indispensável para reduzir os riscos inerentes em uma grande variedade de atividades humanas.

Uma das formas de recepção desses oráculos era a comunicação da divindade por meio de um médium humano, como Pítia em Delfos e as Sibilas. Pítia foi uma sacerdotisa (mantij) que, sobre o tripé de Apolo (que representava o trono divino), entrava em transe e, neste estado, proclamava seus oráculos em uma linguagem que parecia uma mistura de um grego truncado e incoerente e uma vocalização ininteligível, relata Forbes. A fala de Pítia era .interpretada. pelo profh,thj, que a transmitia ao interrogador em forma oracular hexamétrica e, se requerido, podia levar uma cópia escrita.

Parke e Wormell relatam que Pítia, antes de o perguntador entrar, já estava em estado alterado ou êxtase, sob a influência de Apolo. O profeta, então, fazia a pergunta do inquiridor verbalmente ou por escrito. A resposta de Pítia podia variar em grau de coerência e inteligibilidade. O profeta transmitia a resposta de forma reduzida, e ditava para o inquiridor escrever, se desejasse.

Forbes destaca a importância de se distinguir claramente entre um tipo de balbucio incoerente, fenômeno ininteligível no nível lingüístico, e a obscuridade dos pronunciamentos oraculares de Pítia. Tal obscuridade, segundo o autor, não é, de forma alguma, uma questão de inteligibilidade lingüística, mas simplesmente o fato de que seus oráculos eram formulados em termos enigmáticos de um tipo de alusão literária e metáfora.

Se estabelecermos um paralelo com a glossolalia cristã, veremos também que não é fácil descrever o conteúdo liberado por aqueles que falam em línguas. Goodman, ao tentar transcrever as gravações em áudio do material coletado em sua pesquisa de campo, concluiu que a glossolalia é uma língua desconhecida, que lembra o som de instrumentos musicais tocados sem harmonia.

David Aune se mostra crítico às opiniões que consideram o entusiasmo de Pítia uma possessão demoníaca. O transe de possessão é considerado um estado no qual um espírito estrangeiro invade a personalidade do intermediário. Quando os oráculos são apresentados como discurso direto de uma divindade oracular, o estado físico-psicológico do transe de possessão é pressuposto. Uma forma popular antiga de compreensão que está nas origens das habilidades oraculares de Pítia era a de que um deus ou um demônio tomava posse de seu órgão de fala para fornecer respostas oraculares. O mundo dos antigos era povoado por uma multidão de deuses e demônios, e acreditava-se que os seres sobrenaturais exerciam influência sobre os humanos de várias maneiras, por exemplo, por meio de visões e transes. Contudo, raramente encontramos nos escritores gregos, anteriores a Cristo, expressões claras de que um demônio tenha entrado num profeta ou adivinhador e falado através de seus órgãos. A idéia de que Pítia era possuída por um demônio ao pronunciar os oráculos de Apolo aparece pela primeira vez em Plutarco, que, em base a argumentos racionalistas, rejeita a sacerdotisa afirmando ser um canal indigno da comunicação divina.

As religiões mistéricas também constituem uma fonte importante para a compreensão do fenômeno da glossolalia praticada na comunidade de Corinto no tempo de Paulo. Forbes, citando Eurípedes (Bacchae), descreve uma fala extática com violentas manifestações físicas, típicas das celebrações dionisíacas, como gritos dos adoradores em frenesi, danças enérgicas, balançar frenético da cabeça e cabelos em desordem. O ritmo é marcado ao som de tambores, címbalos e flautas. Os gritos invocatórios representam títulos alternativos para a divindade. Aclamado como o deus dos oráculos, a profecia é parte regular do ritual.

Dentre os gritos de adoração popular a Dioniso, um que se apresenta com aparência extática e é entendido como fenômeno da glossolalia é o Bacchic tongues [Línguas Báquicas], que se dirige àqueles que não têm parte nos ritos báquicos. Os coros são chamados satíricos e destinados a expulsar todos aqueles que não são iniciados nos mistérios da comédia, que constituem parte do festival de Dioniso.

A adoração a Cibele também é caracterizada por festivais com adoração orgiástica, frenesi, danças ao ritmo de tambores, címbalos e flautas e cabelos desfeitos. Esses rituais não enfatizam necessariamente o estado alterado de consciência, como acontece com os participantes dos rituais de Dionísio.

Segundo Forbes, Fílon permanece como uma exceção na compreensão de inspiração no mundo helenístico. Para o autor, a natureza da inspiração e do entusiasmo em Fílon deve ser entendida a partir de duas categorias. A primeira evidência está no próprio Fílon, que atesta ter sido tomado pelo frenesi, manifestando os sintomas visíveis da inspiração. A segunda advém da sua visão idiossincrática acerca da natureza do frenesi filosófico, que ele considera uma inspiração divina.

Os primeiros sintomas de inspiração, segundo Fílon, são mentais, e localizadas dentro do indivíduo. Mas transbordam para um reino visível, onde são comumente incompreendidos.

Para ele, a inspiração dá acesso a formas de conhecimento antes indisponíveis. Fílon usa o termo possessão divina. não para descrever experiências psicológicas, mas para indicar o que ele mesmo vivenciou e chama de experiência profética. Neste sentido, a experiência profética de possessão do filósofo não é acompanhada por gritos e danças violentas ou outros movimentos; o que é considerado inspiração é a contemplação, não o frenesi.

Fílon regularmente associa a verdadeira sabedoria do filósofo à possessão do Espírito divino, que está, por sua vez, ligado à profecia. Segundo Forbes, para Fílon, o Espírito divino repousa apenas brevemente sobre a cabeça dos homens comuns, mas, sobre o verdadeiro sábio, menos dominado pela carne, o Espírito repousa por muito tempo. Baseados numa teologia similar a esta, os elitistas de Corinto pareciam reivindicar a sabedoria e a maturidade não disponíveis aos menos talentosos.

Em obra recente, Paulo Nogueira diz que o fenômeno do falar em línguas é apenas parte do complexo do êxtase cultural cristão primitivo. Está no contexto do culto, embora não se reduza a ele, como é comum em muitas abordagens.

Hoje, pesquisas de campo como a de Goodman afirmam que a glossolalia não é um comportamento diário comum, mas um estado alterado de consciência. Baseada no contexto cúltico de sua pesquisa de campo em comunidades pentecostais, a autora afirma que o fenômeno é compreendido como um dom do Espírito, e os membros que falam em línguas sentem-se arrebatados, exaltados e gozam, a seguir, de uma forte sensação de prazer e bem estar. Algumas pessoas sentem como se sua língua fosse tomada; têm o impulso para falar, mas não compreendem o que falam; ouvem as suas palavras, mas não as distinguem; outras cantam em línguas, vêem uma grande luz ou dançam; as manifestações do Espírito são, pois, diferentes. Dessa forma, o batismo no Espírito vem sobre a pessoa e o Espírito a toma como habitação, como seu tabernáculo. Trata-se, segundo os fiéis, de uma inspiração divina, de uma possessão por um ser sobrenatural.

Quanto às formas de se alcançar o estado mental alterado, existem três possibilidades, segundo Goodman: algumas pessoas podem alcançar a dissociação espontaneamente; outras aprendem. a entrar em transe; e ainda há aquelas que são induzidas por meio de determinadas estratégias: o jejum e o uso de drogas, por exemplo, ajudam a preparar a mente e o corpo da pessoa para o estado de transe.

No momento crucial de romper em vocalização, informa Goodman, toda energia é drenada para alcançar esse estado extremamente difícil. A vocalização continua muito vigorosa por um breve momento e em seguida menos energia é absorvida; o excedente pode ser utilizado novamente para o comportamento cinético previamente adquirido. Gradual ou precipitadamente a energia disponível torna-se reduzida, a dissociação enfraquece, a pessoa suspira, abre os olhos e reverte à linguagem corrente.

A profecia e a glossolalia na comunidade paulina de Corinto: a questão dos paralelos

A ênfase de David Aune em considerar não só as tradições revelatórias e proféticas israelita-judaicas, mas também as tradições proféticas e oraculares greco-romanas para entender o fenômeno da profecia cristã primitiva justifica o nosso cuidado em abordar a profecia em Corinto no século I a partir de seu quadro estrutural, e não isoladamente.

O fato de nossa principal fonte de informação sobre a profecia cristã no primeiro século (1Co 12-14) vir de um contexto predominantemente helenístico leva muitos a afirmarem que as influências da cultura greco-romana são determinantes. Aqueles que defendem esta posição argumentam que Paulo, em 1Co 12-14, define a natureza da profecia e da glossolalia para distingui-las das experiências religiosas pré-cristãs da congregação de Corinto.

A pesquisa feita tem revelado que não são muitos os paralelos existentes entre a profecia cristã e o mundo helenista. No que diz respeito à adivinhação, por exemplo, no cristianismo primitivo, ela dependia predominantemente da inspiração, enquanto no mundo greco-romano, ela era predominantemente técnica. Há pouca ou quase nenhuma informação sobre o papel dos adivinhadores no spiritual underworld (submundo espiritual) do período helenístico para que se faça uma comparação proveitosa e, como vimos, o manticismo tem apresentado mais contrastes do que semelhanças entre as duas culturas, o que mostra a distância entre a profecia cristã e seu contexto helenístico.

John Penney também concorda que a tentativa de encontrar um substrato helenístico para profecia do Novo Testamento enfrenta sérias dificuldades. O autor argumenta que o uso dos termos profh,thj (profeta) e profhtei,a (profecia) no Novo Testamento é distinto de seu uso no mundo helenístico: neste prevalece não o conceito de inspiração, e sim o de um conjunto de serviços religiosos e civis. O termo helenístico ma,ntij é usado, no primeiro século, para descrever a adivinhação inspirada, mas sobretudo a técnica, enquanto a profecia do Novo Testamento dependia quase exclusivamente da inspiração. Geralmente, profecia inspirada e oráculos espontâneos eram considerados pelo mundo helenístico como práticas de um passado distante, e a adivinhação técnica, típica do período em estudo, era quase que totalmente evitada pela comunidade cristã. Por fim, conclui o autor, a profecia greco-romana era fortemente institucionalizada em estruturas sociais abrangentes, enquanto a profecia cristã era menos estruturada, mais espontânea e pouco integrada à comunidade.

Para Penney, as tradições greco-romanas não servem para entender nem a profecia cristã em geral, nem a situação de Corinto em particular, pois são muitas as diferenças. A profecia cristã é herdeira da profecia judaica, afirma o autor, e o problema de Corinto é o elitismo espiritual de alguns coríntios, conclui o mesmo.

O propósito e o efeito da profecia autêntica, em Paulo, é edificar a comunidade como um todo (1Co 14. 4,5,17), exortá-la, confortá-la (vv. 3,31) e encorajá-la (v. 31). Para Thiselton, Paulo insiste que profetizar é realizar atos de fala inteligível, articulada e comunicativa, os quais têm um efeito positivo nos outros, transformando a comunidade inteira. A profecia, segundo o autor, equivale à pregação, proclamação e ensino, a fim de que se promova pastoralmente a apropriação da verdade do evangelho e de suas promessas em contextos específicos para ajudar os outros.

Grudem considera a profecia do Novo Testamento um fenômeno plural. Aponta diferenças, por exemplo, entre a profecia nas igrejas paulinas e a profecia nos círculos cristãos palestinenses. Reconhece a particularidade da profecia de Tessalônica e distingue pregadores missionários proféticos, profetas itinerantes (At 11.21 e Didaquê), comunidades proféticas (epístolas paulinas e Apocalipse), profetas profissionais e ocasionais e outros tipos. Mas destaca dois tipos principais de profecia. O primeiro é chamado de palavras verdadeiras com autoridade divina, por exemplo, Mt 10.19-20 (e paralelos), Ef 2.20; 3.5, Apocalipse, Didaquê 11.7 e talvez At 13.2. O segundo, de menor autoridade do que o primeiro tipo, verifica-se em comunidades como a de Corinto, a dos discípulos em Tiro (At 21.4), a dos Tessalonicenses (1Ts 5.19-21), provavelmente a dos discípulos em Éfeso (At 19.6), e talvez a de Ágabo (At 11.28 ). Para o autor, a profecia de Ágabo em At 21.10-11 exemplifica os dois tipos de profecia.

Grudem ressalta a importância de distinguir entre a avaliação subjetiva do profeta acerca de sua própria autoridade e as avaliações de sua autoridade feitas por outros. A diferença entre essas avaliações pode resultar num conflito de autoridade. Segundo o autor, o manto da atividade profética havia sido transferido dos profetas canônicos para os apóstolos. Muitos aspectos da consciência apostólica de Paulo estão presentes nos profetas do Antigo Testamento, afirma Max Turner. Em 1Ts 5.20-21, por exemplo, Paulo teria sugerido a separação do joio do trigo: Não desprezeis as profecias; julgai todas as coisas, retende o que é bom.. Parece que Paulo fazia distinção entre a qualidade dos diversos oráculos proféticos do cristianismo primitivo. Se for assim, o apóstolo, desta maneira, estaria relativizando a autoridade dos profetas de Corinto, subordinando-os a si (1Co 14.37-38).

Há indícios de que, pelo menos na visão de Paulo, os profetas em Corinto não falavam com autoridade divina comparável a dos profetas canônicos do Antigo Testamento, uma vez que suas palavras não eram exatas, nem havia reconhecimento de tal autoridade por parte dos demais membros. E por atribuir à profecia a função de edificar, exortar e confortar a assembléia (1Co 14.3), por submetê-la a julgamento (1Co 14.29) e afirmar que .os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. (1Co 14.32), parece que, na compreensão de Paulo, a profecia pode acontecer fora de um estado dissociativo ou extático.

Lewis, ao discorrer sobre possessão pela divindade da parte do ma,ntij no mundo helenístico ou do profh,thj ou profh/tij no Novo Testamento, distingue a possessão periférica da possessão central. Ele afirma que o xamã, no início de sua carreira, possui pelo menos um espírito que o permite controlar outros espíritos, ou ter conhecimento dos mesmos. Paulo revela em suas cartas ser possuído por um único espírito, o Espírito Santo.

Quando alude à possibilidade da existência de um espírito diferente, enviado por um diferente evangelho. (2Co 11.14), segundo Ashton, ele está ironizando.

Lewis identifica dois aspectos na vocação do xamã: uma luta longa e dolorosa e um chamado visionário. Ashton compara certos aspectos da vida de Paulo com o fenômeno do xamanismo. O autor procura semelhanças entre a gênese da vocação de Paulo e a dos antigos xamãs. Sua conclusão é a de que tais semelhanças são meras coincidências, mas tal estudo é valioso na medida em que traz novas luzes à pesquisa sobre a história do cristianismo primitivo e sobre a carreira de Paulo, revelando aspectos freqüentemente ignorados.

Wilson, à semelhança de Lewis, emprega as categorias intermediário central e intermediário periférico no estudo das religiões. A primeira categoria desempenha seu papel no culto central, é considerada oficial e está ligada ao mundo sobrenatural, ao contrário da segunda. Ambas as categorias, contudo, exibem padrões estereotípicos de fala e comportamento, sugerindo que tais padrões são culturalmente aprendidos. A mediação periférica tem várias funções:

1. obter um status social; 2. trazer mudança social; 3. manter a estabilidade social. Os intermediários centrais são primariamente responsáveis por manter a ordem social e promover o bem estar da comunidade.

Na opinião de Lewis, os cultos periféricos estão apenas a alguns passos de distância das religiões moralistas e centralizadoras que surgem em circunstâncias de aguda dilaceração social e que freqüentemente empregam a possessão como experiência religiosa suprema. A possessão pela divindade torna-se então o objetivo explícito e os membros são abertamente encorajados a atingir a comunhão extática. É também a expressão por meio da qual aqueles que aspiram à posição de liderança religiosa competem pelo poder e autoridade.

Mas até que ponto a preferência pelo êxtase (no caso, pela glossolalia) não revelaria, dentro da comunidade de Corinto, a disputa interna, entre pelo menos dois grupos, por status social? Podemos supor que o grupo dos espirituais, refletindo a posição filosófica de Fílon, transmitida por Apolo, ansiava pelo êxtase (manifesto na glossolalia) como afirmação de sua sabedoria superior e expressão da predileção divina para legitimar uma posição privilegiada do grupo e a autoridade sobre os demais. Ou seja, os dons espirituais seriam alvo da disputa entre membros do próprio grupo periférico. Essa situação não estava presente nos grupos observados por Lewis.

Goodman concebe a glossolalia como um estado de dissociação. Segundo a pesquisadora, há pessoas que, com a ajuda de várias técnicas, dissociam-se da realidade ordinária que as rodeia. A saída do mundo da consciência representa um padrão de comportamento humano observável em várias regiões e que se manifesta em maior ou menor grau de acordo com as condições pessoais, varia de uma sociedade para outra e pode servir como base para algumas atividades, como a dança e o canto. Neste estado de consciência alterada, algumas pessoas têm visões, outras falam.

Ignorando a literatura etnográfica, a maioria dos teólogos cristãos está convencida da exclusividade do comportamento da glossolalia na Igreja Cristã, afirma Goodman. Forbes diz que tais interpretações freqüentemente baseiam-se em estudos de casos pessoais. Para o autor, o uso de paralelos culturais possibilita investigar não apenas a ligação entre o cristianismo primitivo e seu contexto, mas também os fatores que o diferenciam de seu contexto. Investigando os paralelos do mundo helenístico, Forbes conclui que, exceto no caso de Fílon de Alexandria, o fenômeno da religião popular helenística não constitui uma fonte de inspiração para o cristianismo. O autor argumenta que, no Novo Testamento, e em nosso estudo sobre a comunidade paulina de Coríntios, não há uma única indicação de que a glossolalia tenha sido induzida artificialmente, como nas religiões pagãs, seja por bebidas alcoólicas, narcóticos, danças em frenesi, fórmulas de repetição rítmicas ou automutilação. Os gritos nos cultos de Dioniso, por exemplo, são causa ou elemento motivador do êxtase, e não seu efeito. No Novo Testamento, ao contrário, o êxtase é anterior à fala glossolálica; ou seja, a glossolalia é um sinal externo de uma condição interna.

Outro aspecto a ser discutido é o da semelhança ou não entre a glossolalia e a linguagem comum falada ou as linguagens angelicais (1Co 13.1). Paulo Nogueira, referindo-se à experiência descrita no livro dos Atos dos Apóstolos, diz que as línguas, no cristianismo paulino, não tinham a finalidade de ser uma proclamação pública do Evangelho, e muito menos se referiam ao falar de línguas estrangeiras. Em 1Co 13.1, por exemplo, ao se referir explicitamente à língua dos anjos, o apóstolo Paulo o faria a partir do contexto religioso da apocalíptica judaica e da descrição do culto celestial como paralelo ao culto terreno.

Tanto Paulo Nogueira quanto Max Turner concordam ao reconhecer em 1Co 13.1 uma referência à glossolalia como língua angelical, no entanto, Turner concebe as línguas também como xenolalia, supondo que Paulo provavelmente teve algum contato com o tipo de tradição encontrada em Atos 2.

Para Fee, Paulo e os coríntios concebiam o dom das línguas como linguagens dos anjos por dois motivos. Primeiro, porque há fontes judaicas que levam a acreditar que os anjos possuíam linguagens próprias (ou dialetos) e que, por meio do Espírito, poder-se-ia falar esses dialetos (Test. de Jó 48-50). Segundo, porque o sentido de espiritualidade da comunidade de Corinto a levava a acreditar que já haviam experimentado algo da existência angelical, o que se pode perceber, por exemplo, a partir de expressões que ordenam ou rejeitam a vida sexual (1Co 7.1-7; 11.2-16), ou que recusam uma futura existência corporal (1Co 15.12,35).

Forbes, no que diz respeito às línguas angelicais, diz que, para alguns, 1Co 13.1 somente será entendido como um paralelo de 1Co 14.7-8, no que se refere às coisas inanimadas que emitem sons, como a flauta e a harpa. Este caso tenta convencer com referência à crença em línguas divinas no mundo helenístico, ou à crença de línguas angelicais expressas em algumas obras intertestamentárias judaicas. Eles acreditam que o Testamento de Jó e o Apocalipse de Sofonias fornecem o paralelo substancial mais próximo para a glossolalia no cristianismo primitivo e reivindicam que o conceito de línguas divinas ou angelicais é um importante link que une os vários fenômenos. Aqueles que desejam argumentar que Paulo pretende que seus leitores compreendam somente as linguagens angelicais são forçados a ignorar, em 1Co 13.1, .as línguas dos homens.. Aqueles que desejam argumentar em favor da linguagem humana defendem que a expressão as línguas dos anjos, no mesmo versículo, é apenas uma hipérbole.

Para Paulo Nogueira, o contexto mais próximo da glossolalia no cristianismo primitivo é o misticismo apocalíptico. É no âmbito religioso que o elemento extático se desenvolve no judaísmo do período, por exemplo, as línguas dos anjos citadas nos manuscritos do Mar Morto. O conteúdo dos louvores dos cânticos para o sacrifício do sábado apresenta uma linguagem densa, o que parece ser indício dos limites da linguagem humana para expressar as coisas celestiais. A referência às línguas dos anjos. (também chamadas línguas de conhecimento.) contrapõe-se à língua humana (língua do pó.) em 4 Q400 frag. 2,7-11. Mas, segundo o autor, a presença da glossolalia aqui não é dada como certa.

Referindo-se ao Apocalipse de Paulo, datado do século II d.C., Nogueira aponta para a referência explícita de um paralelismo entre o culto terreno e o celestial, tal como um é feito no céu, da mesma forma o outro na terra., e para um testemunho raro de descrição da língua divina e angelical como uma espécie de .hebraico celestial este como mistificação da língua divina, falada por Jesus e pelos profetas, língua da Torá, além do seu aspecto misterioso de língua oriental, conclui o autor.

Goodman declara que não há dados suficientes na literatura sobre o assunto que possam assegurar que a glossolalia é semelhante ou não à linguagem comum falada. Ela insiste que a glossolalia é um padrão de vocalização, um automatismo de fala produzido no substrato de uma dissociação de ultra-excitação (hyperarousal), reflexo direto de processos neurofisiológicos observados em pessoas com estado mental alterado. Para a autora, parece tratar-se de uma necessidade psicológica equiparar vocalização e fala: os humanos têm uma necessidade urgente de compreender o que experimentam, de explicar novos fenômenos em termos do que já conhecem. Assim, estão convencidos de que, ao escutarem uma língua, viva ou morta, ela pode ser compreendida caso haja alguém que a conheça (xenoglossia). O fato de a glossolalia não apresentar a estrutura de superfície de um código simbólico e lingüístico de uma estrutura lingüística profunda, mas sim um artefato de dissociação super ativada (hyperarousal), confirma, segundo a pesquisadora, a hipótese de que a glossolalia tem em sua estrutura profunda uma dissociação super ativada.

Devido à rejeição quase universal da parte dos pentecostais e carismáticos quanto à afirmação de que o dom das línguas supõe o êxtase ou transe, foram feitos testes do nível de consciência e da habilidade de desempenhar tarefas mentais durante a glossolalia. A conclusão foi a de que o glossolalista é receptivo às informações externas e capaz de processá-las e reagir a elas durante os encontros de glossolalia. O falar em línguas pode acompanhar o transe, mas certamente não requer um estado de consciência alterado significativo ou uma dissociação (além daquela envolvida, por exemplo, em dirigir um carro e pensar sobre qual restaurante escolher).

Mark Cartledge oferece-nos um artigo que traz um debate entre Goodman e William J. SamarIn: Samarin aponta os limites da pesquisa de Goodman, uma vez que ela não considerou a literatura do movimento pentecostal, mas somente os estudos da ciência comportamental. Caso o fizesse, diz o autor, ela teria percebido que a dissociação algumas vezes pode acompanhar a glossolalia, mas não pode ser considerada causa do falar em línguas. Algumas pessoas falam em línguas sem entrar em êxtase.

Cartledge cita outros autores que discordam da tese de Goodman, por exemplo, N. P. Spanos, E.C. Hewitt, W. K. Bartlett e T. Moyle. Em geral, tais autores argumentam que os estados alterados de consciência nem sempre acompanham a glossolalia, ainda que um dado intercultural favoreça tal afirmação. Além disso, o estudo de Goodman não seria propriamente sobre a glossolalia, mas sobre como casos de dissociação ou estados alterados de consciência se relacionam com a glossolalia. A maioria dos pesquisadores concorda com as afirmações de SamarIn: Intrigante é o relato do testemunho da conversão de uma mulher na cidade do México, apresentado por Goodman, o que sugere que nem sempre a glossolalia está ligada à dissociação:

Comigo, eu ajoelho para orar, eu sinto o contato e eu falo em línguas, eu posso estar lavando louça, se eu estou sozinha ou com os outros. Isto pode acontecer comigo no supermercado, ou caminhando na estrada, onde quer que seja, não importa, pois é a mesma bênção que o Senhor me dá aqui e na Igreja.

No caso da comunidade de Corinto, em 1Co 14.18, Paulo agradece a Deus por falar em línguas mais do que todos os coríntios. Parece-nos que, para Paulo, a glossolalia era uma rica experiência espiritual e uma prática constante, o que nos leva a questionar sobre a presença de um fenômeno dissociativo. Possivelmente, Paulo falava em línguas em grande parte do seu tempo para a sua edificação, o que supõe que a glossolalia nem sempre é caracterizada como um estado alterado de consciência.