quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O Evangelho de Tomé

O Evangelho de Tomé, preservado em versão completa num manuscrito copta em Nag Hammadi, é uma lista de 114 ditos atribuídos a Jesus. Alguns são semelhantes aos dos evangelhos canônicos de Mateus, Marcos, Lucas e João, mas outros eram desconhecidos até a descoberta desse manuscrito em 1945. Tomé não explora, como os demais, a forma narrativa, apenas cita - de forma não estruturada - as frases, os ditos ou diálogos breves de Jesus a seus discípulos, contados a Tomé o Gêmeo, sem incluí-los em qualquer narrativa, nem apresentá-los em contexto filosófico ou retórico. Duas características marcantes do Evangelho de Tomé, que o diferenciam dos canônicos, são a recomendação de Jesus para que ninguém faça aquilo que não deseja ou não gosta e a ênfase não na fé, mas a descoberta de si mesmo.

Uma boa discussão, em língua portuguesa, sobre esse evangelho encontra-se no livro "Além de Toda Crença: O Evangelho Desconhecido de Tomé", da historiadora Elaine Pagels, que defende a tese de que o Evangelho de João teria sido escrito para refutar o de Tomé. Obtém-se nesse livro proveitosa aula sobre o início do Cristianismo e entende-se melhor a escolha dos evangelhos canônicos e a posterior rejeição aos demais, tratados como "heréticos".

O escritor brasileiro Isaque de Borba Corrêa defende uma interessante tese baseada em antigas cartas de jesuítas, nas quais se relata a presença desse apóstolo na América. Segundo Corrêa, mais de vinte jesuítas peregrinaram pelas Américas em busca das informações que o santo teria legado a seus sucessores. Isaque advoga a tese de que São Tomé teria não apenas viajado até a Índia, como teria estendido seu périplo às "Índias Ocidentais", atual América.

Segundo a tradição, São Tomé teria partido para as Índias acompanhado de João Crisóstomo. O escritor Panteno, segundo Eusébio, também esteve na Índia e conversou com Crisóstomo, mas não comentou sobre Tomé. O Padre Simón, na Colômbia, foi conduzido por um índio até uma gravura em pedra, na qual estavam gravadas as imagens de três homens, cada um contendo uma inscrição que Simón não teria conseguido traduzir. O ingênuo nativo traduziu-as para o jesuíta, explicando que as inscrições eram os nomes de cada um deles: João Crisóstomo, Tomé e Engélico. Eram figuras humanas que usavam barba, batina e sandálias. A figura central, Tomé, trazia na mão algo parecido com um livro. Isaque afirma que as pesquisas acerca da estada desse santo na América não prosperaram em virtude de um decreto emitido pelo Papa Urbano VIII, que considerou tal propósito uma heresia. Temendo um processo inquisicional por parte do Tribunal do Santo Ofício, os jesuítas recuaram em seu propósito e abandonaram as pesquisas.

Texto Gnóstico encontrado em Nag Hammadi, Egipto

Estas são as palavras secretas que Jesus o Vivo proferiu e que Dídimo Judas Tomé escreve:

(1) E ele disse: "Quem descobrir o significado interior destes ensinamentos não provará a morte."

(2) Jesus disse: "Aquele que busca continue buscando até encontrar. Quando encontrar, ele se perturbará. Ao se perturbar, ficará maravilhado e reinará sobre o Todo."

(3) Jesus disse: "Se aqueles que vos guiam disserem, ‘Olhem, o reino está no céu,’ então, os pássaros do céu vos precederão, se vos disserem que está no mar, então, os peixes vos precederão. Pois bem, o reino está dentro de vós, e também está em vosso exterior. Quando conseguirdes conhecer a vós mesmos, então, sereis conhecidos e compreendereis que sois filhos do Pai vivo. Mas, se não vos conhecerdes, vivereis na pobreza e sereis essa pobreza."

(4) Jesus disse: "O homem idoso não hesitará em perguntar a uma criancinha de sete dias sobre o lugar da vida, e ele viverá. Pois muitos dos primeiros serão os últimos e se tornarão um só."

(5) Jesus disse: "Reconheça o que está diante de teus olhos, e o que está oculto a ti será desvelado. Pois não há nada oculto que não venha ser manifestado."

(6) Seus discípulos o interrogaram dizendo: "Queres que jejuemos? Como devemos orar? Devemos dar esmolas? Que dieta devemos observar?"

Jesus disse: "Não mintais e não façais aquilo que detestais, pois todas as coisas são desveladas aos olhos do céu. Pois não há nada escondido que não se torne manifesto, e nada oculto que não seja desvelado."

(7) Jesus disse: "Bem-aventurado o leão que se torna homem quando consumido pelo homem; maldito o homem que o leão consome, e o leão torna-se homem."

(8) E ele disse: "O homem é como pescador sábio que lança sua rede ao mar e a retira cheia de peixinhos. O pescador sábio encontra entre eles um peixe grande e excelente. Joga todos os peixinhos de volta ao mar e escolhe o peixe grande sem dificuldade. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(9) Jesus disse: "Eis que o semeador saiu, encheu sua mão e semeou. Algumas sementes caíram na estrada; os pássaros vieram e as recolheram. Algumas caíram sobre rochas, não criaram raízes no solo e não produziram espigas. Outras caíram em meio a um espinheiro, que sufocou as sementes e os vermes as comeram. E outras caíram em solo fértil e produziram bons frutos; renderam sessenta por uma e cento e vinte por uma."

(10) Jesus disse: "Eu lancei fogo sobre o mundo, e eis que estou cuidando dele até que queime."

(11) Jesus disse: "Este céu passará, e aquele acima dele passará. Os mortos não estão vivos e os vivos não morrerão. Nos dias em que consumistes o que estava morto, vós o tornastes vivo. Quando estiverdes morando na luz, o que fareis? No dia em que éreis um vos tornastes dois. Mas quando vos tornardes dois, o que fareis?"

(12) Os discípulos disseram a Jesus: "Sabemos que tu nos deixarás. Quem será nosso líder?"

Jesus disse-lhes: "Não importa onde estiverdes, devereis dirigir-vos a Tiago, o justo, para quem o céu e a terra foram feitos."

(13) Jesus disse a seus discípulos: "Comparai-me com alguém e dizei-me com quem me assemelho."

Simão Pedro disse-lhe: "Tu és semelhante a um anjo justo."

Mateus lhe disse: "Tu te assemelhas a um filósofo sábio."

Tomé lhe disse: "Mestre, minha boca é inteiramente incapaz de dizer com quem te assemelhas."

Jesus disse: "Não sou teu Mestre. Porque bebeste na fonte borbulhante que fiz brotar, tornaste-te ébrio. (128) E, pegando-o, retirou-se e disse-lhe três coisas. Quando Tomé retornou a seus companheiros, eles lhe perguntaram: "O que te disse Jesus?"

Tomé respondeu: "Se eu vos disser uma só das coisas que ele me disse, apanhareis pedras e as atirareis em mim, e um fogo brotará das pedras e vos queimará."

(14) Jesus disse-lhes: "Se jejuardes, gerareis pecado para vós; se orardes, sereis condenados; se derdes esmolas, fareis mal a vossos espíritos. Quando entrardes em qualquer país e caminhardes por qualquer lugar, se fordes recebidos, comei o que vos for oferecido e curai os enfermos entre eles. Pois o que entrar em vossa boca não vos maculará, mas o que sair de vossa boca – é isso que vos maculará."

(15) Jesus disse: "Quando virdes aquele que não foi nascido de uma mulher, prostrai-vos com a face no chão e adorai-o: é ele o vosso Pai."

(16) Jesus disse: "Talvez os homens pensem que vim lançar a paz sobre o mundo. Não sabem que é a discórdia que vim espalhar sobre a Terra: fogo, espada e disputa. Com efeito, havendo cinco numa casa, três estarão contra dois e dois contra três: o pai contra o filho e o filho contra o pai. E eles permanecerão solitários."

(17) Jesus disse: "Eu vos darei o que os olhos não viram, o que os ouvidos não ouviram, o que as mão não tocaram e o que nunca ocorreu à mente do homem."

(18) Os discípulos disseram a Jesus: "Dizei-nos como será o nosso fim."

Jesus disse: "Haveis, então, discernido o princípio, para que estejais procurando o fim? Pois onde estiver o princípio ali estará o fim. Feliz daquele que tomar seu lugar no princípio: ele conhecerá o fim e não provará a morte."

(19) Jesus disse: "Feliz o que já era antes de surgir. Se vos tornardes meus discípulos e ouvirdes minhas palavras, estas pedras estarão a vosso serviço. Com efeito, há cinco árvores para vós no Paraíso que permanecem inalteradas Inverno e Verão, e cujas folhas não caem. Aquele que as conhecer não provará a morte."

(20) Os discípulos disseram a Jesus: "Dizei-nos a que se assemelha o reino do céu."

Ele lhes disse: "Ele se assemelha a uma semente de mostarda, a menor de todas as sementes. Mas, quando cai em terra cultivada, produz uma grande planta e torna-se um refúgio para as aves do céu."

(21) Maria disse a Jesus: "A quem se assemelham teus discípulos?"

Ele disse: "Eles se parecem com crianças que se instalaram num campo que não lhes pertence. Quando os donos do campo vierem, dirão: “Entregai nosso campo”. Elas se despirão diante deles para que eles possam receber o campo de volta e para entregá-lo a eles. Por isso digo: se o dono da casa souber que virá um ladrão, velará antes que ele chegue e não deixará que ele penetre na casa de seu domínio para levar seus bens. Vós, portanto, permanecei atentos contra o mundo. Armai-vos com todo poder para que os ladrões não consigam encontrar um caminho para chegar a vós, pois a dificuldade que temeis certamente ocorrerá. Que possa haver entre vós um homem prudente. Quando a safra estiver madura, ele virá rapidamente com sua foice em mãos para colhe-la. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(22) Jesus viu crianças sendo amamentadas. Ele disse a seus discípulos: "Esses pequeninos que mamam são como aqueles que entram no Reino." Eles lhe disseram: Nós também, como crianças, entraremos no Reino?" Jesus lhes disse: "Quando fizerdes do dois um e quando fizerdes o interior como o exterior, o exterior como o interior, o acima como o em baixo e quando fizerdes do macho e da fêmea uma só coisa, de forma que o macho não seja mais macho nem a fêmea seja mais fêmea, e quando formardes olhos em lugar de um olho, uma mão em lugar de uma mão, um pé em lugar de um pé e uma imagem em lugar de uma imagem, então, entrareis (no Reino).

(23) Jesus disse: Escolherei dentre vós, um entre mil e dois entre dez mil, e eles permanecerão como um só."

(24) Seus discípulos disseram-lhe: "Mostra-nos o lugar onde estás, pois precisamos procurá-lo."

Ele disse-lhes: "Aquele que tem ouvidos, ouça! Há luz no interior do homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro. Se ele não brilha, ele é escuridão."

(25) Jesus disse: "Ama teu irmão como à tua alma, protege-o como a pupila de teus olhos."

(26) Jesus disse: "Tu vês o cisco no olho de teu irmão, mas não vês a trave em teu próprio olho. Quando retirares a trave de teu olho, então verás claramente e poderás retirar o cisco do olho de teu irmão."

(27) Jesus disse: "Se não jejuardes com relação ao mundo, não encontrareis o Reino. Se não observardes o sábado como um sábado, não vereis o Pai."

(28) Jesus disse: "Assumi meu lugar no mundo e revelei-me a eles na carne. Encontrei todos embriagados. Não encontrei nenhum sedento, e minha alma ficou aflita pelos filhos dos homens, porque estão cegos em seus corações e não têm visão. Pois vazios vieram ao mundo e vazios procuram deixar o mundo. Mas no momento eles estão embriagados. Quando superarem a embriaguez, então mudarão sua maneira de pensar."

(29) Jesus disse: "Seria uma maravilha se a carne tivesse surgido por causa do espírito. Mas seria a maior das maravilhas se o espírito tivesse surgido por causa do corpo. Estou realmente surpreso pela forma como essa grande riqueza fez morada nessa pobreza."

(30) Jesus disse: "Onde há três deuses, eles são deuses. Onde há dois ou um, estou com ele."

(31) Jesus disse: "Nenhum profeta é aceito em sua cidade; nenhum médico cura aqueles que o conhecem."

(32) Jesus disse: "Uma cidade construída e fortificada sobre uma montanha elevada não pode cair nem pode ser escondida."

(33) Jesus disse: "Proclamai sobre os telhados aquilo que ouvirdes com vosso próprio ouvido. Pois ninguém acende uma lâmpada e coloca-a debaixo de um cesto, tampouco coloca-a num lugar escondido, mas num candelabro, para que todos que venham a entrar e sair vejam sua luz."

(34) Jesus disse: "Se um cego guia outro cego, ambos cairão numa vala."

(35) Jesus disse: "Não é possível que alguém entre na casa de um homem forte e tome-a à força, a menos que lhe ate as mãos; então será capaz de saquear sua casa."

(36) Jesus disse: "Não vos preocupeis de manhã até a noite e de noite até a manhã com o que vestireis."

(37) Seus discípulos disseram: "Quando tu te revelarás a nós e quando te veremos?"

Jesus disse: "Quando vos despirdes sem vos envergonhardes e tomardes vossas vestes e, colocando-as sobre vossos pés, pisardes sobre elas como criancinhas, então (vereis) o filho daquele que vive e não tereis medo."

(38) Jesus disse: "Muitas vezes haveis desejado ouvir essas palavras que vos digo, e não tendes outro de quem ouvi-las. Pois virão dias em que me procurareis e não me encontrareis."

(39) Jesus disse: "Os fariseus e os escribas tomaram as chaves da gnosis. Eles não entraram nem deixaram entrar aqueles que queriam entrar. Vós, no entanto, sede sábios como as serpentes e mansos como as pombas."

(40) Jesus disse: "Uma parreira foi plantada fora do Pai, porém, não sendo saudável, ela será arrancada pela raiz e destruída."

(41) Jesus disse: "Quem tiver algo em sua mão receberá mais, e quem não tiver nada perderá até mesmo o pouco que tem."

(42) Jesus disse: "Tornai-vos passantes."

(43) Seus discípulos disseram-lhe: "Quem és tu para dizer-nos tais coisas?"

[Jesus disse-lhes:] "Não percebeis quem sou eu pelo que vos digo, mas vos tornastes como os judeus! Com efeito, eles amam a árvore e odeiam seus frutos ou amam os frutos, mas odeiam a árvore."

(44) Jesus disse: "Quem blasfemar contra o Pai será perdoado e quem blasfemar contra o Filho será perdoado, mas quem blasfemar contra o Espírito Santo não será perdoado nem na terra nem no céu."

(45) Jesus disse: "Não se colhe uvas dos espinheiros nem figos dos cardos, pois eles não dão frutos. O homem bom retira o bem do seu tesouro; o malvado retira o mal de seu tesouro malévolo, que está em seu coração, e diz maldade. Pois da abundância do coração ele retira coisas más."

(46) Jesus disse: "Dentre os que nasceram da mulher, desde Adão até João, o Batista, não há ninguém superior a João, para que não abaixe os olhos [diante dele]. Mas eu digo, aquele dentre vós que se tornar uma criança conhecerá o Reino e se tornará superior a João."

(47) Jesus disse: "É impossível para um homem montar dois cavalos ou retesar dois arcos. E é impossível que um servo sirva a dois senhores, pois ele honra um e ofende o outro. Ninguém bebe vinho velho e logo em seguida deseja beber vinho novo. E não se coloca vinho novo em odres velhos, para que não arrebentem; nem se coloca vinho velho em odres novos, para que não o estraguem. E não se cose pano velho em veste nova, porque ela está arriscada a rasgar."

(48) Jesus disse: "Se os dois fizerem as pazes nesta casa, eles dirão a montanha: ‘Move-te!’ e ela se moverá."

(49) Jesus disse: "Bem aventurados os solitários e os eleitos, pois encontrareis o Reino. Pois, viestes dele e para ele retornareis."

(50) Jesus disse: "Se vos perguntarem: ‘De onde vindes?’ respondei: ‘Viemos da luz, do lugar onde a luz nasceu dela mesma, estabeleceu-se e tornou-se manifesta por meio de suas imagens’. Se vos perguntarem: ‘Vós sois isto?’ digam: ‘Nós somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivo’. Se vos perguntarem: ‘Qual é o sinal de vosso Pai em vós?’, digam a eles: ‘É movimento e repouso’."

(51) Seus discípulos disseram-lhe: "Quando ocorrerá o repouso dos mortos e quando virá o novo mundo?"

Ele disse-lhes: "Aquilo que esperais já chegou, mas não o reconheceis."

(52) Seus discípulos disseram-lhe: "Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram de ti."

Ele disse-lhes: "Omitistes aquele que vive em vossa presença e falastes dos mortos."

(53) Seus discípulos disseram-lhe: "A circuncisão é benéfica ou não?"

Ele disse-lhes: "Se ela fosse benéfica, os pais gerariam filhos já circuncisos de sua mãe. Mas a verdadeira circuncisão, a espiritual, tornou-se inteiramente proveitosa."

(54) Jesus disse: "Bem-aventurados os pobres, pois vosso é o Reino do céu."

(55) Jesus disse: "Aquele que não odiar (2) seu pai e sua mãe não poderá se tornar meu discípulo. E quem não odiar seus irmãos e irmãs e tomar sua cruz, como eu, não será digno de mim."

(56) Jesus disse: "Aquele que conseguiu compreender o mundo encontrou (somente) um cadáver, e quem encontrou um cadáver é superior ao mundo."

(57) Jesus disse: "O Reino do Pai é semelhante ao homem que tem [boa] semente. Seu inimigo veio durante a noite e semeou joio por cima da boa semente. O homem não deixou que arrancassem o joio, dizendo: ‘temo que acabeis arrancando o joio e também o trigo junto com ele. No dia da colheita as ervas daninhas estarão bem visíveis e serão, então, arrancadas e queimadas."

(58) Jesus disse: "Bem-aventurado o homem que sofreu e encontrou a vida."

(59) Jesus disse: "Prestai atenção àquele que vive enquanto estais vivos, para que, ao morrerdes, não fiqueis procurando vê-lo sem conseguir."

(60) Eles viram um samaritano carregando um cordeiro a caminho da Judéia. Ele disse a seus discípulos: "Por que o homem está carregando o cordeiro?"

Eles disseram-lhe: "Para matá-lo e comê-lo."

Ele disse-lhes: "Enquanto o cordeiro estiver vivo, ele não o comerá, mas somente depois que o tiver matado e que o cordeiro se tornar um cadáver."

Eles disseram-lhe: "Ele não poderia fazer de outro modo."

Ele disse-lhes: "Vós, também, buscai um lugar para vós no repouso, a fim de que não vos torneis um cadáver e sejais devorados."

(61) Jesus disse: "Dois repousarão sobre um leito: um morrerá, o outro viverá."

Salomé disse: "Quem és tu homem, e de quem és filho? Tu te acomodaste em meu banco e comeste à minha mesa?"

Jesus disse-lhe: "Eu sou aquele que existe a partir do indivisível. Recebi coisas de meu pai."

[...] "Eu sou seu discípulo."

[...] "Por isso digo que, se for destruído, ele estará pleno de luz, mas, se ele estiver dividido, estará pleno de trevas."

(62) Jesus disse: "Eu digo meus mistérios aos [que são dignos de meus] mistérios. Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita."

(63) Jesus disse: "Havia um rico que tinha muito dinheiro. Ele disse: ‘Empregarei meu dinheiro para semear, colher, plantar e encher meu celeiro com o fruto da colheita, para que não me venha a faltar nada’. Essas eram suas intenções, mas naquela mesma noite ele morreu. Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça."

(64) Jesus disse: "Um homem tinha convidados. E quando a ceia estava pronta, mandou seu servo chamar os convidados. O servo foi ao primeiro e disse-lhe: ‘Meu mestre te convida’. O outro respondeu: ‘Tenho dinheiro aplicado com alguns comerciantes. Eles virão me procurar esta noite para que eu lhes dê minhas instruções. Apresento minhas desculpas por não ir à ceia. O servo foi até outro e disse: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe: ‘Acabo de comprar uma casa e precisam de mim hoje. Não terei tempo’. O servo foi a outro e disse-lhe: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe: ‘Um amigo vai se casar e coube-me preparar o banquete. Não poderei ir à ceia, peço ser desculpado. O servo foi a outro ainda e disse-lhe: ‘Meu senhor está te convidando’. Este disse-lhe: ‘Acabo de comprar uma fazenda e estou saindo para buscar o rendimento. Não poderei ir, por isso me desculpo’. O servo retornou e disse a seu senhor: ‘Os que convidaste para a ceia mandam pedir desculpas’. (134) O senhor disse ao servo: ‘Vai lá fora pelos caminhos e traze os que encontrares para que possam ceiar. Os homens de negócios e mercadores não entrarão no recinto de meu Pai’."

(65) Ele disse: "Um homem de bem tinha uma vinha. Ele a alugou a camponeses para que cuidassem dela e pagassem-lhe com uma parte da produção. Ele enviou seu servo para que os arrendatários entregassem-lhe o fruto da vinha. Eles pegaram seu servo e o espancaram, deixando-o à beira da morte. O servo voltou e contou a seu senhor o ocorrido. O senhor disse: ‘Talvez não o tenham reconhecido’. Ele enviou outro servo. Os camponeses também o espancaram. Então o proprietário enviou seu filho e disse: ‘Talvez eles tenham respeito por meu filho’. Como os camponeses sabiam que aquele era o herdeiro da vinha, pegaram-no e mataram-no. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça."

(66) Jesus disse: "Mostrai-me a pedra que os construtores rejeitaram; ela é a pedra angular."

(67) Jesus disse: "Se alguém que conhece o todo ainda sente uma deficiência pessoal, ele é completamente deficiente."

(68) Jesus disse: "Bem-aventurados os que são odiados e perseguidos. Mas os que vos perseguirem não encontrarão lugar."

(69) Jesus disse: "Bem-aventurados aqueles que foram perseguidos em seu interior. São eles que realmente conheceram o pai. Bem-aventurados os famintos, porque se encherá o ventre de quem tem desejo."

(70) Jesus disse: "Aquilo que tendes vos salvará se o manifestardes. Aquilo que não tendes em vosso interior vos matará se não o tiverdes dentro de vós."

(71) Jesus disse: "Destruirei esta casa e ninguém será capaz de reconstruí-la [...]"

(72) [Um homem disse-lhe]: "Dizeis a meus irmãos para que partilhem os bens de meu pai comigo."

Ele lhe disse: "Ó, homem, quem me institui partilhador?"

Voltando-se para seus discípulos, disse-lhes: "Eu não sou um partilhador, sou?"

(73) Jesus disse: "A colheita é grande mas os operários são poucos. Portanto, implorai ao senhor para que envie operários para a colheita."

(74) Ele disse: "Ó senhor, há muitas pessoas ao redor do bebedouro, mas não há nada na cisterna."

(75) Jesus disse: "Muitos estão aguardando à porta, mas são os solitários que entrarão na câmara nupcial."

(76) O Reino do pai é semelhante ao comerciante que tinha uma consignação de mercadorias e nelas descobriu uma pérola. Esse comerciante era astuto. Ele vendeu as mercadorias e adquiriu a pérola maravilhosa para si. Vós também deveis buscar esse tesouro indestrutível e duradouro, que nenhuma traça pode devorar nem o verme destruir."

(77) Jesus disse: "Eu sou a luz que está sobre todos eles. Eu sou o todo. De mim surgiu o todo e de mim o todo se estendeu. Rachai um pedaço de madeira, e eu estou lá. Levantai a pedra e me encontrareis lá."

(78) Jesus disse: "Por que viestes ao deserto? Para ver um caniço agitado pelo vento? E para ver um homem vestido com roupas finas como vosso rei e vossos homens importantes? Esses usam roupas finas, mas são incapazes de discernir a verdade."

(79) Uma mulher na multidão disse-lhe: "Bem-aventurado o ventre que te portou e os seios que te nutriram."

Ele disse-lhe: "Bem-aventurados os que ouviram a palavra do Pai e que realmente a guardaram. Pois virão dias em que direis: "Bem-aventurado o ventre que não concebeu, e os seios que não amamentaram."

(80) Jesus disse: "Aquele que reconheceu o mundo encontrou o corpo, mas aquele que encontrou o corpo é superior ao mundo."

(81) Quem enriqueceu, torne-se rei, mas quem tem poder que possa renunciar a ele."

(82) Jesus disse: "Aquele que está perto de mim está perto do fogo, e aquele que está longe de mim está longe do Reino."

(83) Jesus disse: "As imagens manifestam-se ao homem, mas a luz que está nelas permanece oculta na imagem da luz do Pai. Ele tornar-se-á manifesto, mas sua imagem permanecerá velada por sua luz."

(84) Jesus disse: "Quando vedes vossa semelhança, vós vos rejubilais. Mas, quando virdes vossas imagens que surgiram antes de vós, e que não morrem nem se manifestam, quanto tereis de suportar!"

(85) Jesus disse: "Adão surgiu de um grande poder e de uma grande riqueza, mas ele não se tornou digno de vós. Pois, se tivesse sido digno, não teria experimentado a morte."

(86) Jesus disse: "[As raposas têm suas tocas] e as aves têm seus ninhos, mas o filho do homem não tem nenhum lugar para pousar sua cabeça e descansar."

(87) Jesus disse: "Miserável do corpo que depende de um corpo e da alma que depende desses dois."

(88) Jesus disse: "Os anjos e os profetas virão a vós e darão aquelas coisas que já tendes. E dai vós também a eles as coisas que tendes e dizei a vós mesmos: ‘Quando virão tomar o que é deles?’"

(89) Jesus disse: "Por que lavais o exterior da taça? Não compreendeis que aquele que fez o interior é o mesmo que fez o exterior?"

(90) Jesus disse: "Vinde a mim, pois meu jugo é fácil e meu domínio é suave, e encontrareis repouso para vós."

(91) Eles disseram-lhe: "Dizei-nos quem tu és, para que possamos crer em ti."

Ele disse-lhes: "Vós decifrastes a face to céu e da terra, mas não reconhecestes aquele que está diante de vós e não soubestes perceber este momento."

(92) Jesus disse: "Buscai e encontrareis. No entanto, aquilo que me perguntastes anteriormente e que não vos respondi então, agora desejo vos dizer mas vós não me perguntais sobre aquilo."

(93) [Jesus disse]: "Não deis aos cães o que é sagrado, para que eles não o joguem no lixo. Não atireis pérolas aos porcos, para que eles..."

(94) Jesus [disse]: "Quem busca, encontrará, e [quem bate] terá permissão para entrar."

(95) [Jesus disse]: "Se tendes dinheiro, não o empresteis a juro, mas dai-o àquele de quem não o recebereis de volta."

(96) Jesus disse: "O Reino do Pai é como [uma certa] mulher. Ela tomou um pouco de fermento, [escondeu-o] na massa, e fez com ela grandes pães. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!"

(97) Jesus disse: "O Reino do Pai é como uma certa mulher que estava carregando um cântaro cheio de farinha. Enquanto estava caminhando pela estrada, ainda distante de casa, a alça do cântaro partiu-se e a farinha foi caindo pelo caminho atrás dela. Ela não se deu conta, pois não tinha percebido o acidente. Quando chegou em casa, colocou o cântaro no chão e percebeu que ele estava vazio."

(98) Jesus disse: "O Reino do Pai é como um certo homem que queria matar um homem poderoso. Em sua própria casa ele desembainhou a espada e enfiou-a na parede para saber se sua mão poderia realizar a tarefa. Então ele matou o homem poderoso."

(99) Os discípulos disseram-lhe: "Teus irmãos e tua mãe estão aguardando lá fora."

Ele disse-lhes: "Estes que estão aqui que fazem a vontade de meu Pai são meus irmãos e minha mãe. São eles que entrarão no Reino de meu Pai."

(100) Eles mostraram uma moeda de ouro a Jesus e disseram-lhe: "Os homens de César exigem-nos tributos."

Ele disse-lhes: "Dai a César o que é de César, dai a Deus o que é de Deus, e dai a mim o que é meu."

(101) [Jesus disse]: "Quem não odeia (3) seu [pai] e sua mãe como eu não pode se tornar meu [discípulo]. E quem não ama seu [pai e] sua mãe como eu não pode se tornar meu [discípulo]. Porque minha mãe [...], mas [minha] verdadeira [mãe] deu-me a vida."

(102) Jesus disse: "Ai dos fariseus, porque eles são como um cachorro dormindo na manjedoura dos bois, pois eles não comem nem permitem que os bois comam."

(103) Jesus disse: "Feliz do homem que sabe por onde os ladrões vão entrar, porque dessa forma [ele] pode se levantar, passar em revista seu domínio e armar-se antes deles invadirem."

(104) Eles disseram a Jesus: "Vem, oremos e jejuemos hoje."

Jesus disse: "Qual foi o pecado que cometi ou em que fui vencido? Porém, quando o noivo deixar a câmara nupcial, então que eles jejuem e orem."

(105) Jesus disse: "Quem conhece o pai e a mãe será chamado filho de prostituta."

(106) Jesus disse: "Quando fizerdes de dois, um, vos tornareis filhos do homem, e quando disserdes: ‘Montanha, move-te!’, ela se moverá."

(107) Jesus disse: "O Reino é como um pastor que tinha cem ovelhas. Uma delas, a maior de todas, extraviou-se. Ele deixou as noventa e nove e foi procurá-la, até encontrá-la. Depois de ter passado por todo esse incômodo, ele disse à ovelha: ‘Eu me interesso por ti mais do que pelas noventa e nove’."

(108) Jesus disse: "Quem beber de minha boca tornar-se-á como eu. Eu mesmo me tornarei ele, e as coisas que estão ocultas ser-lhe-ão reveladas."

(109) Jesus disse: "O Reino é como o homem que tinha um tesouro [escondido] em seu campo sem saber. Após sua morte, deixou o campo para seu [filho]. O filho não sabia [a respeito do tesouro]. Ele herdou o campo e o vendeu. O comprador ao arar o campo encontrou o tesouro. Começou então a emprestar dinheiro a juros a quem queria."

(110) Jesus disse: "Quem encontrou o mundo e tornou-se rico, que renuncie ao mundo."

(111) Jesus disse: "Os céus e a terra se dobrarão diante de vós. E aquele que vive do Vivo não conhecerá a morte. Jesus não disse: ‘Quem se encontra é superior ao mundo?’

(112) Jesus disse: "Ai da carne que depende da alma; ai da alma que depende da carne."

(113) Seus discípulos disseram-lhe: "Quando virá o Reino?"

[Jesus disse]: "Ele não virá porque é esperado. Não é uma questão de dizer: ‘eis que ele está aqui’ ou ‘eis que está ali’. Na verdade, o Reino do Pai está espalhado pela terra e os homens não o vêem."

(114) Simão Pedro disse-lhes: "Que Maria saia de nosso meio, pois as mulheres não são dignas da vida."

Jesus disse: "Eu mesmo vou guiá-la para torná-la macho, para que ela também possa tornar-se um espírito vivo semelhante a vós machos. Porque toda mulher que se tornar macho entrará no Reino do Céu."

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A presença do Diabo no ciclo da vida das comunidades judaicas medievais



O Diabo foi tema de vasta literatura no período medieval. Desde a patrística grega e latina, e por todas as crônicas e relatos do mundo medieval, o Diabo era onipresente e exercia uma influência notável, no mundo dos vivos sendo referenciado como atuante e proselitista. Um aceso debate ocorria entre teólogos e pensadores da Igreja que, ao mesmo tempo, tratavam de delinear os limites de seu poder, para evitar que o Cristianismo adotasse doutrinas dualistas, já que a onipotência divina, não podia ser igualada pelo exército satânico e, por outro, lado faziam uso cotidiano de sua presença e malignidade em prédicas, cultos e exorcismos, de todos os tipos.

Como a História se relacionou com este tema nos últimos séculos?


A historiografia de influência iluminista adotou uma postura cética e de estrito racionalismo. A escola metódica enfocando temas de conteúdo político, diplomático e militar, envidou poucos esforços em abordar tal tema. Grassava certo repúdio por um tema obscuro, que era impregnado de crendices tolas e superstições. Tais temas não seriam dignos de estudo. O Romantismo, por sua vez, retomou o interesse pelo medievo e pelos temas religiosos. Em meados do séc. XIX reaparece esta temática. A primeira obra digna de menção foi de autoria de Michelet, que em seu clássico livro La sorciére1 retomou de maneira pioneira o interesse, da história nos estudos do sobrenatural e das relações entre o mundo natural e o sobrenatural.

No século XX, vemos uma retomada lenta do interesse no estudo do sobrenatural e em particular no Diabo. Em seu livro clássico O Declínio da Idade Média, editado pela primeira vez em 1919, o celebrado autor Johan Huizinga dedica algumas palavras e referências, à presença marcante do Demônio ou Diabo no cotidiano medieval. O autor em diversos aspectos seria um dos “ancestrais” do gênero histórico

denominado como História das Mentalidades ou dos Comportamentos, que floresceu na segunda metade do século passado. Huizinga percebeu que o Demônio estava muito “vivo” no cotidiano das pessoas que viveram e descrevem os séculos XIV e XV.

Na seqüência, já em meados do séc. XX, houve contribuições interessantes neste tema, mas somente na terceira geração da escola de Annales é que os estudos se ampliaram e aprofundaram. Temos algumas obras de expressão: Delumeau, Áries, Duby, Le Goff, Richards, entre muitos mais. Essa tendência se espalhou e gerou obras diversas.

No Brasil podemos citar a obra de Carlos Roberto Nogueira, tanto sobre as bruxas e feiticeiras, quanto sobre o Diabo.

O Diabo e Deus: dilemas do monoteísmo

Como as religiões monoteístas se colocavam diante da temática do Diabo? A posição da Igreja é contraditória, mas, apesar de criticar certos exageros, é uma instituição que aceitou e utilizou-se de conceitos ligados ao Diabo. Desde a Antiguidade Tardia, os autores da Patrística, que definiram e conceituaram a teologia clássica cristã, debateram e advertiram sobre o Diabo. S. Jerônimo é uma das mais fortes referências. João Crisóstomo em Antioquia advertia seus paroquianos sobre os riscos do Diabo.

Isidoro de Sevilha falava intensamente e extensamente sobre o Diabo. Agostinho não tem dúvidas, na sua ótica neo-platônica e cristã, de que o Diabo transita no mundo inferior, na Cidade dos homens. Cria-se o conceito de que se travava uma batalha entre as forças do Bem e do mal. Nas palavras de Nogueira: “[...] os cristãos concordavam em que a queda do homem não foi mais que um episódio na história de um prodigioso combate cósmico, iniciado antes da Criação [...]”. A queda do homem teria sido precedida por uma revolta de algumas das falanges celestiais contra Deus e estes haviam sido precipitados do céu por Deus. Portanto, transitavam na terra e seduziam os humanos para obter adeptos a seu partido.

Até mesmo gente culta como os teólogos e pensadores S. Tomás de Aquino, fundamentado e autorizado por Santo Agostinho, determina que: “Omnes quae visibiliter fiunt in hoc mundo possunt fieri per daemones”. Muitos dos autores e pensadores medievais demonstram certa dose de crítica a esta postura da Igreja, mas nunca negam a existência e a presença do Diabo. Os opositores mais ferrenhos da Igreja, no medievo, foram os heréticos dualistas também denominados maniqueus. Foram sendo reprimidos através do tempo e do espaço: maniqueísmo, mazdeísmo, os paulicianos, os bogomilos e os albigenses. Acreditavam na existência de dois poderes antagônicos e contradiziam o monoteísmo trinitário. Isso era a negação de dogmas fundamentais da Cristandade e sugeria a necessidade de repressão. Eram, portanto, mais adeptos de presença do mal, como entidade independente, do que a própria Igreja que criticavam.

A construção e a manutenção das crenças do imaginário se dão num processo de longa duração. O imaginário se constrói dentro e em função de um determinado contexto social. O Diabo surge no Cristianismo primitivo como uma faceta do intenso dualismo que marca a luta da Igreja para se afirmar nos séculos III e IV. O medievo é uma sucessão de confrontos entre o bem (encarnado pela Igreja) e o mal (encarnado pelo Diabo e seus aliados).

O belicismo, o simbolismo e o contratualismo vigentes neste período são facetas do confronto contínuo entre Deus e a Igreja que o representa contra o Diabo. No dizer de autores como Hilário Franco Jr. o que predominava era “[...] a visão sobrenatural que se tinha do Universo”. O “sobrenatural se mostrando no natural” era um fato cotidiano e corriqueiro, já que a hierofania (manifestações do sagrado no profano) era parte da crença aceita. Até os inimigos da Igreja têm esta visão dualista. Mesmo sendo críticos da Igreja, muitos grupos heréticos tinham uma visão dualista do mundo e enxergavam o confronto entre o espírito e a matéria, entre o bem e o mal, Deus e o Diabo, no cotidiano e dentro de uma visão hierofânica. Isso pode ser visto entre as heresias dualistas e maniqueístas tais como os bogomílios, os albigenses, e os cátaros de uma maneira ampla, como já frisamos antes. O que muda é que a Igreja passa ser a encarnação do mal e que deve ser combatida. Os dualistas foram severamente perseguidos.

Para a Igreja católica, o Diabo não podia ser nivelado no mesmo patamar que Deus. Sendo essa premissa teológica respeitada, o Diabo tinha “salvo conduto”, para atuar entre os humanos e tentá-los. Sua atuação no cotidiano cristão medieval é completa. Está em tudo e em todos os lugares e situações. Seus seguidores são numerosos e ativos.

A Igreja com todo o seu poder político, religioso e social era a maior formadora de opinião, apesar da crítica das heresias e da contestação social vigente na baixa Idade Média. A Igreja comanda a luta contra o mal e seu líder: Satã. A ordem de Cluny comanda a luta a partir do século X. A Inquisição medieval encabeçada pelos dominicanos se tornará a vanguarda da luta contra o mal encarnado nas heresias, já no século XIII. Grande número de textos foram escritos sobre o assunto. A Igreja autorizou a publicação e deu divulgação através da ordem dos dominicanos de uma obra clássica do tema da bruxaria e da demonologia, o assim chamado Malleus Maleficarum, também popularmente conhecido como O Manual da Caça as Bruxas, que foi editado no final do século XV, por dois freis dominicanos, Heinrich Kramer e Jacob Sprenger. O seu uso declarado era para servir como guia aos Inquisidores que interrogavam e torturavam bruxas e seguidores de heresias satanistas. Exorcismos e formas de identificar bruxas e demônios povoam suas páginas.

Além de bruxos e feiticeiras, uma minoria era tradicionalmente discriminada e perseguida em épocas de crise durante a Idade Média européia: a minoria judaica.

A sociedade medieval cristã associava os judeus ao Demônio. Discriminava os judeus, excluía-os de determinadas ramos da produção econômica e marcava-os como perigosamente envolvidos com a magia e o poder satânico. A Igreja decretou inúmeras leis e regras para isolar os judeus do mundo cristão. As mais famosas regras foram determinadas, por Inocêncio III em 1215, no quarto concílio de Latrão. O objetivo era separar e isolar os judeus do mundo cristão. Os judeus deviam portar a “marca infame” nas suas roupas e habitar em bairros segregados para evitar que contaminassem os cristãos. Percebemos que se trata do mesmo concílio que colocou o maior empenho na guerra contra a heresia maniqueísta. Os judeus também eram considerados um perigo e deviam ser separados da sociedade cristã de maneira radical.

O Diabo no imaginário judaico

Contudo, essa separação não impediu os contatos entre judeus e cristãos. Apesar desta discriminação havia trocas entre o mundo cristão e a minoria judaica. O professor Joshua Trachtenberg, num trabalho pioneiro e pouco divulgado, percebeu em seus estudos o relacionamento e a influência mútua entre o Judaísmo e o Cristianismo no período medieval. Em ambas o imaginário coletivo era muito fértil no que tange ao mundo satânico. Trachtenberg mostra a aparição de uma religião popular (Folk Religion) que aparece paralelamente a religião judaica oficial, com todo o seu legalismo, regras e normas da Halachá (lei judaica). Permitimo-nos ampliar sua reflexão. O Judaísmo “oficial’ era erudito e se fundamentava em estudos metódicos e constantes que exigiam um elevado nível material, para se dedicar de maneira intensa aos profundos e demorados estudos talmúdicos”. Em locais e períodos nos quais havia estabilidade e plena tolerância aos judeus por parte da Igreja e das autoridades seculares, os judeus podiam fundar suas academias talmúdicas (ieshivot). Assim se deu na Espanha muçulmana na Idade de Ouro (séc. IX a XI); na Espanha cristã na Idade de Prata (séc. XII e XIII); em Ashkenaz (séc. X e XI) e na Polônia moderna (séc. XVI e XVII) em certos períodos isolados. No geral havia períodos de crise e perseguição, nos quais a religiosidade popular predominava no seio da população judaica: uma intersecção de religiosidade erudita na superfície e na liderança religiosa, lado a lado com crendices e religiosidade popular no seio da massa judaica, que se via diante de perseguições e preconceito. Certa “circularidade das idéias e da cultura” do topo à base e desta ao topo.

Nesta religião popular ocorrem influências do meio circundante, mesmo se este seja hostil ao Judaísmo. Os judeus influenciam e são influenciados pelo mundo cristão: contaminados com as crenças e crendices, com os mitos e superstições existentes no mundo medieval, como um todo. Trachtenberg distingue entre o cotidiano judaico e a forma pelas quais os grandes sábios e rabinos se opunham às superstições vigentes na sociedade judaica. Os rabinos tentavam manter a racionalidade do judaísmo e “esconder” as crendices. O pesquisador deve usar uma leitura crítica dos textos rabínicos. É óbvio que não se pode escrever história do imaginário, fazendo-se apenas uma leitura superficial dos escritos dos rabinos e sábios. Estes usaram pelo menos dois recursos bem definidos para combater as crendices. Num primeiro estágio as combatiam e condenavam. Numa segunda etapa, ao dar-se conta de que não podiam vencê-las, tratavam de dar-lhes uma vestimenta “mais racional e culta”, e encontraram explicações belas e diferentes para as diversas reações que a sociedade judaica criava na luta contra os demônios e espíritos malignos.

Utilizando nossa experiência no projeto “Heranças e Lembranças”, realizado no Rio de Janeiro, do qual participamos, constatamos a enorme quantidade de amuletos e objetos usados no combate a Satã, mesmo quando a religião judaica o ignore ou dê ao mesmo pouca importância. A religião popular sobrevive às pressões e a tentativa de torná-la culta e racional. No âmbito externo, os judeus que vivem isolados e discriminados, no seio da sociedade cristã (por exemplo) e são acusados de serem aliados do demônio, também acreditam no seu poder maligno. Os “aliados do demônio” (judeus) também o temem e se protegem dele com amuletos, exorcismos, rezas e proteções.

A partir daqui nos propomos a descrever a aparição do tema do demônio e dos espíritos malignos tal com aparece nos séculos XII a XV, entre os judeus da Europa Ocidental (denominada Ashkenaz = Alemanha). O tema também é válido e deve aparecer na Península Ibérica (Sefarad), no norte da África e na Europa Oriental (Polônia). Centralizaremos nossas observações do ciclo da vida judaico e a aparição do elemento satânico em Ashkenaz, mas quando pudermos ofereceremos exemplos de outras regiões a título de ampliação do foco. A guerra contra o mundo satânico e suas ferramentas, será nosso tema daqui por diante. Dividiremos o ciclo da vida em nascimento, casamento e morte, não dando importância à maioridade religiosa (Bar Mitzvá) por não ser um rito de passagem, todavia consolidado na Baixa Idade Média (até o séc. XV).

O nascimento

a) O período anterior ao parto

A mulher que estava grávida era um ser sensível e inspirava cuidados e atenções especiais. Cuidava-se de forma meticulosa da parturiente através de rezas, amuletos cabalísticos com textos mágicos. Escreviam-se nomes de anjos, fórmulas mágicas e orações. Usavam-se freqüentemente objetos metálicos como a chave da sinagoga e até da Igreja e facas, pois se acreditava que os metais tinham a capacidade de distanciar os maus espíritos. Um ser, em especial, era temido: a primeira mulher criada junto com o homem no sexto dia – Lilith. Esta mulher continha poderes malignos e competia com as descendentes de Eva, a primeira mulher. Há diversos amuletos que a exorcizam e rituais se sucedem para mantê-la afastada.

b) O período posterior ao parto e anterior à circuncisão

Acreditava-se que a criança depois de circuncidada e tendo ingressado no pacto de Abraão estaria “imunizada” diante da ameaça dos espíritos malignos. O mesmo é válido, apenas como comparação, na sociedade cristã, na qual o batismo “salvava a alma” e impedia sua queda nas mãos do maligno. Desta maneira a comunidade judaica se mobilizava e todo o arsenal anti-satânico era mobilizado também. Velas acesas dia e noite, o uso de objetos metálicos, textos e amuletos cabalísticos, rezas e vigílias que eram utilizadas na semana que separa o nascimento do menino da sua circuncisão. Em Ashkenaz (Alemanha) existe um costume neste período denominado Wachnacht. Seria uma noite de vigília total na qual não se deixava a mãe, tampouco o recém nascido por nem um segundo desacompanhados, durante a noite que antecede a circuncisão (Brit Milá). Um costume semelhante ocorre entre os judeus marroquinos que trazem cinco meninos já alfabetizados que escrevem uma carta cada um, com um texto que distancia a figura de Lilith que pretende roubar o futuro homem que acabou de nascer. Isso é semelhante aos judeus de origem sefaradita (Espanha), entre os quais o mohel (pessoa que realiza a circuncisão) traz um amuleto metálico e o coloca sob o travesseiro do recém nascido. Outro hábito comum em muitas comunidades judaicas medievais e que observamos em Ashkenaz é a mulher trocar de roupas com seu esposo durante a semana anterior a circuncisão, para que o Diabo e seus servidores se confundissem e pensassem que se trata de um homem e não da parturiente. Isso apesar do mandamento bíblico que proíbe mulheres de vestir roupas de homens e vice versa. Em Ashkenaz havia também a cerimônia de concessão do nome não judaico do recém nascido. O nome judaico era dado no oitavo dia, já o nome alemão era dado no trigésimo dia de vida. O nome da cerimônia era Hollekreisch. Os pesquisadores não entram em acordo sobre a explicação deste costume, mas concordam que deve estar relacionado com as questões dos perigos oriundos do Satã e seus aliados. Alguns dizem se tratar da Frau Holle ou senhora Holle, uma espécie de raptora de bebês que os leva para o interior da Terra.

Em alguns locais em Ashkenaz, se colocavam presentes para a “estrela da criança”, numa clara expressão de presentes para as almas e divindades. O mesmo hábito da achnacht aparece entre os judeus marroquinos, de forma semelhante, durante sete noites de vigília ao bebê e a parturiente para evitar “olho ruim” (semelhante ao popular olho gordo, usado no Brasil). O costume se denomina Tahdid. O uso de velas, muita luz, orações, metais, amuletos servem para espantar os demônios e almas, se assemelhando nos dois casos e mostrando que o hábito era comum em muitas comunidades. A convocação do profeta Elias (Eliahu Hanavi) era, e é, todavia comum a muitas comunidades judaicas. Ele seria um defensor da fé, dos oprimidos e também dos recém nascidos, visto a presença de uma cadeira especial para Elias nas cerimônias de circuncisão. A crença medieval era que Elias realmente se sentava nela, invisível aos mortais comuns. Conta-se que o rabi Iehudá Hachassid, renomado místico ashkenazi, cancelou uma cerimônia de circuncisão por não ter vislumbrado o profeta no seu local tradicional.

O casamento

Num célebre artigo, publicado pela primeira vez em 1925, Jacob Lauterbach levantou enorme polêmica ao afirmar que a quebra do copo no casamento tinha um significado original diferente, da “vestimenta racional” colocada nele pelos rabinos. Usa-se dizer que a quebra do copo, simboliza a destruição e as ruínas do Templo de Jerusalém e a esperança messiânica de reconstruí-lo. Há outras explicações racionais e cultas, tais como a necessidade de não se destruir, visto a impossibilidade de refazer as ruínas de um copo.

Lauterbach demonstra que o sentido medieval era outro, remontando a trechos talmúdicos e a hábitos medievais. Trata-se de mais uma arma anti-satânica. Os rabinos “vestiram” de forma culta, tal costume popular. As técnicas do combate seriam através de três caminhos: a) lutar contra os demônios; b) suborná-los com presentes; c) enganálos fazendo-os crer que as pessoas que aparentavam ser felizes, eram na verdade infelizes e não precisavam ser invejadas.

A quebra do copo durante a cerimônia do casamento não seria por recordação das ruínas do Templo de Jerusalém, mas sim um método de espantar ou até melhor desviar a atenção dos demônios. São frisados como métodos para afastar os demônios do casamento, o uso de tochas, ruídos, pitadas de sal, de pedaços de metal, alguns métodos semelhantes aos já citados no nascimento e muitos deles também usados pelos cristãos.

Havia também presentes ou subornos aos demônios e almas na forma de grãos de trigo, amêndoas, peixe e carne secos. O terceiro e último caso seria enganar ou iludir os demônios e almas. Além da quebra do copo, havia a troca de roupas entre o noivo e noiva, o uso do véu pela noiva com métodos de iludir. Havia é claro o uso do círculo mágico, através do qual se isolava o casal de influências maléficas. Entre outras comunidades, podemos citar a tradição que persiste até hoje entre os judeus de origem marroquina e algumas comunidades orientais de usar o tingimento de cabelos e/ou dedos com hena e o uso de amuletos em forma de uma mão com trechos cabalísticos (a denominada hamsa).

É comum usar a hamsa em outras ocasiões, mas o seu uso é sempre no sentido de proteger seus portadores do mau olhado e de espíritos malignos.

A morte e o sepultamento

É bastante conhecida dos estudiosos da Idade Média a dança macabra (França) ou a dança dos mortos (Inglaterra). O tema foi vastamente descrito através de textos, pinturas e músicas, em especial nos séculos que seguiram a Peste Negra (1348). Em todas as formas de expressão artística a ênfase era na luta do homem para viver diante das doenças, espíritos malignos, o demônio e a morte.

É evidente que o temor dos demônios e almas cresce quando se aproxima o tema da morte. As mesmas armas que vimos nos casos anteriores eram utilizadas para cuidar do corpo do falecido: profusão de velas e luzes, vigílias e orações sem cessar, pedaços de metal com ou sem inscrições, abundância de sal sobre o cadáver.

Quando a pessoa aparentava estar agonizando, ocorria uma reunião de todos os parentes próximos junto ao seu leito, muitos de seus melhores amigos e conhecidos, e ocorria uma cerimônia repleta de etiqueta e regras. Isso foi mais acentuado nos séculos XIV e XV. Entre estes se instituiu a extrema unção (Vidui), bastante assemelhado a mesma cerimônia existente no Cristianismo. O objetivo era salvar a alma do moribundo antes que este perdesse sua consciência e blasfemasse ou fizesse alguma afirmativa contrária à salvação de sua alma, que talvez pudesse ser colocada no seu ouvido por algum demônio ou alma penada.

O uso de orações tais como o Ana Becoach na qual existe um acróstico com os nomes de Deus era considerado muito útil para a salvação do moribundo.

Acostumava-se jogar fora toda a água armazenada na casa do falecido. Havia muitas explicações. Numa diziam que o Anjo da Morte limpara sua espada na água. Outras explicações salientam a utilização da água por demônios e espíritos e a possível permanência de alguns deles nesta água. As rezas se prolongavam até o sepultamento. O féretro era feito sob um ritual minucioso de estações e orações com o objetivo de defender o defunto dos demônios e almas. A crença dizia que o caixão deveria sair antes do que qualquer ser vivo de dentro da casa do defunto ou do local aonde se encontrava para evitar que por engano, os demônios se precipitassem sobre alguém vivo e o vitimassem.

Algumas comunidades do Norte da África costumavam atirar moedas de ouro para todas as direções a fim de afastar o Satã do caixão e do morto, pois o maligno é profundamente ambicioso e deseja riquezas e materialismo. Na Europa Ocidental (Ashkenaz) imitaram os cristãos, ao tomar de porções de terra e grama e atirá-los por detrás dos ombros, proferindo dizeres para espantar e confundir os demônios.

O tradicional costume judaico de lavar as mãos depois de um enterro ao sair do cemitério e/ou ao entrar na sua casa novamente é explicado como sendo um ato de purificação ritual ou como um símbolo de sermos inocentes diante desta morte. Há contudo, quem relacione com demônios e almas.

Conclusões

A imagem do judeu no período medieval era bastante manipulada pela Igreja que construiu uma “mídia” bastante ostensiva contra os “assassinos” de Cristo e aliados do Demônio. A relação Diabo-Judeu é um tema de muita reflexão. Por seu lado, o judaísmo era rigidamente monoteísta e não poderia permitir em seu seio a presença de entidades satânicas que existissem à revelia da vontade divina. Trata-se de uma contradição que acreditamos seja fruto do meio circundante: tanto a Cristandade, quanto o Islã aceitavam e apontavam para existência de hostes do mal e dos riscos de ser seduzido pelos seus representantes. O Judaísmo não era imune a estas idéias e foi fortemente influenciado por elas ainda no período do segundo Templo (entre 530 a.C. e 70 d.C.), quando se escreveram alguns dos livros canônicos, que tratam da existência do Mal. O mais marcante é o livro de Jó, no qual Satã é um servo da corte de Deus. Uma espécie de promotor do reino celeste, que fustiga a humanidade com acusações e reprimendas.

Nos livros externos (apócrifos), não incorporados ao cânone judaico, tampouco ao cristão, se configura a figura do Mal. E há uma interpretação de diversos textos canônicos sob uma ótica mais dualista, que acaba formatando a malignidade através de seres diversos encabeçados pelo Diabo ou Lúcifer, o anjo decaído.

Josh McDowell e Thomas Paine e a eterna polêmica sobre O Messias no AT e NT

O Velho Testamento... contém várias centenas de referências ao Messias. Todas se cumpriram em Cristo e estabelecem uma confirmação sólida das suas credenciais como o Messias.

Josh McDowell

Examinei todas as passagens do Novo Testamento que são citações do Velho [Testamento], e as assim chamadas profecias a respeito de Jesus Cristo, e não encontro qualquer profecia a respeito de tal pessoa, e nego que [essas profecias] existam.

Thomas Paine

Estas duas citações expressam pontos de vista diametralmente opostos sobre a questão de saber se a vida de Jesus conforme é descrita nos evangelhos do Novo Testamento cumpre profecias do Messias judeu que se encontram nas escrituras hebraicas. O ponto de vista de Josh McDowell é o ponto de vista padrão dos missionários, que encontramos em inúmeras obras apologéticas cristãs. Contudo, o ponto de vista expresso por Thomas Paine é muito menos conhecido. É pena que assim seja, pois Paine está certo. Todo o caso de alegado cumprimento de profecias messiânicas sofre de um dos seguintes defeitos:

(1) a alegada profecia nas Escrituras Hebraicas não é uma profecia messiânica ou nem sequer é uma profecia de todo;

(2) a profecia não foi cumprida por Jesus;

(3) ou a profecia é tão vaga a ponto de não ser convincente na sua aplicação a Jesus.

O Significado das Profecias Messiânicas

Antes de examinar alegações específicas de profecias messiânicas cumpridas, devem ser feitas algumas observações sobre o seu significado. O cumprimento de profecias bíblicas é um pilar central nos argumentos apologéticos missionários que pretendem provar a verdade e a exatidão da Bíblia. A Bíblia contém muitas declarações sobre eventos futuros que pretendem ser proféticos — os livros dos profetas, como os de Isaías e Jeremias, estão cheios desse tipo de declarações, no entanto muitas destas declarações são sobre eventos históricos reais do passado. Tendo em consideração o nosso conhecimento atual da cronologia da escrita da Bíblia, contudo, na maioria dos casos não pode ser demonstrado que as declarações proféticas não são posteriores aos eventos "preditos". No caso das profecias das Escrituras Hebraicas a respeito do Messias, porém, temos documentos (por exemplo, os Rolos do Mar Morto) que realmente são anteriores ao tempo em que se acredita que o Jesus histórico tenha vivido. Se encontrássemos nas Escrituras Hebraicas profecias numerosas e específicas condizentes com a vida do Jesus histórico, isto providenciaria considerável evidência em apoio da fé cristã. É exatamente isto que os missionários tentam fazer.

Por outro lado, se descobrirmos que não existem tais profecias específicas cumpridas por Jesus, ou que existem profecias messiânicas específicas que não foram cumpridas por Jesus, isto seria evidência contra a veracidade do Cristianismo. Como o Cristianismo alega exatidão e verdade tanto das Escrituras Hebraicas como do Novo Testamento, está vinculado aos padrões bíblicos para um profeta verdadeiro de D'us delineados nas escrituras hebraicas. O livro de Deuteronomio apresenta estes padrões quando diz que Moisés, falando em representação de D'us no capítulo 18 versículo 22, proclamou que "Quando um profeta fala no nome do Senhor, se a coisa não suceder nem se realizar, essa é a coisa que o Senhor não falou. O profeta falou-a presunçosamente; não terás medo dele." No versículo 20, ele diz que: "... o profeta que falar presunçosamente em meu nome uma palavra que não lhe ordenei, ou que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá." Por outras palavras, qualquer profecia de D'us é necessariamente exata, e qualquer profecia que não seja de D'us mas dada em seu nome resultará na morte do profeta.

Embora estes padrões requeiram que profecias de D'us sejam exatas, a verdade de uma profecia não garante que vem de D'us. Deuteronómio 13:1-5 indica que falsos profetas também podem ser exatos, mas profetas verdadeiros nunca desencaminharão os judeus da sua religião, sob pena de morte. 1

Conforme vamos mostrar, existem profecias messiânicas que não foram cumpridas por Jesus (e que não serão cumpridas no futuro, pois segunda vinda não é um padrão das Escrituras Hebraicas), então estes padrões têm como consequência que ou Jesus não foi o Messias, ou as profecias em questão não foram feitas por um verdadeiro profeta de D'us. Ambos os extremos do dilema têm a consequência de que é falsa qualquer forma de Cristianismo que mantenha a infalibilidade da Bíblia.

Profecias Relacionadas com o Nascimento

Existem várias alegadas profecias messiânicas sobre o nascimento de Jesus: profecias sobre o local, modo e tempo do seu nascimento, sobre a sua genealogia, e sobre eventos que deviam ocorrer no momento do seu nascimento.

Nascido de uma virgem

Provavelmente a profecia mais famosa de entre estas é aquela que diz que Jesus nasceria de uma virgem. Os evangelhos de Mateus (1:18-25) e Lucas (1:26-35) alegam que Jesus nasceu de uma virgem, mas só Mateus (1:23) apela para as escrituras hebraicas como explicação para a razão por que isto devia acontecer. O versículo invocado é Isaías 7:14, que diz: "Por isso, o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a Virgem concebeu e dá à luz um filho, e o chama Emanuel." (Bíblia Missionários Capuchinhos)

Existem várias dificuldades nesta passagem. Conforme muitos observaram, a palavra hebraica traduzida por "virgem" neste versículo é "almah", que é traduzida de forma mais exata simplesmente como "jovem mulher". A palavra hebraica "bethulah" significa "virgem". No livro de Isaías, "bethulah" aparece quatro vezes (23:12, 37:22, 47:1, 62:5) sempre dando sentido de "jovem mulher", portanto o autor desse livro conhecia a palavra "almah" e seu significado. Na tradução da Bíblia New American Standard Translation, todas as outras ocorrências de "almah" são traduzidas simplesmente como "moça", "menina" ou "donzela" (a saber, Gênesis 24:43, Êxodo 2:8, Salmos 68:25, Provérbios 30:19, Cântico de Salomão 1:3, 6:8). Assim, o alegado cumprimento acrescenta uma condição biologicamente impossível que nem sequer está presente na profecia original. 2

Outro problema é que em nenhum lado no Novo Testamento Maria, a mãe de Jesus, se lhe refere como "Emanuel". Portanto não temos evidência de que uma das condições da profecia se tenha alguma vez cumprido.

Mas o problema mais sério desta alegada profecia messiânica é que foi tirada fora do contexto. Analisando por inteiro o sétimo capítulo de Isaías, torna-se claro que a criança em questão nasceria como um sinal para Acaz, Rei de Judá, garantindo que ele não seria derrotado em batalha por Rezim, Rei da Síria, e Peca, filho do Rei de Israel. O nascimento de Jesus não podia ser esse sinal pois veio com sete séculos de atraso. Em Isaías 8:3-4, uma profetisa dá à luz um filho — Maer-Salal-Hás-Baz — que é claramente descrito como o cumprimento da profecia de Isaías 7:14. 3

J. Edward Barrett apresenta evidência em como os Cristãos primitivos rejeitavam o nascimento virginal. Um elemento da evidência de Barrett é que em 1 Timóteo 1:3-4, o escritor (que pode ou não ter sido o apóstolo Paulo) aconselha a sua audiência a "impedir que certas pessoas ensinassem doutrinas estranhas, e se interessassem por fábulas e genealogias intermináveis que ocasionam disputas em lugar de promoverem a obra de D'us que se baseia na fé." (MC) O evangelho mais antigo, Marcos, não tem um relato do nascimento de Jesus, tal como João, o evangelho mais tardio, também não tem. O nascimento virginal é muito relevante para a genealogia, e tanto Mateus como Lucas apresentam a genealogia de Jesus próxima da história [do nascimento virginal].

Nascimento em Belém

Uma segunda alegada profecia relacionada com o nascimento é que Jesus nasceria na cidade de Belém, citada nos evangelhos de Mateus (2:1-6), Lucas (2:4-7) e João (7:42). Destes, Mateus e João referem-se a uma profecia nas escrituras hebraicas. A passagem mencionada é Miquéias 5:2, que diz: "E tu, Belém Efrata, pequena demais para chegar a estar entre os milhares de Judá, de ti me sairá aquele que há de tornar-se governante em Israel, cuja origem é desde os tempos primitivos, desde os dias do tempo indefinido." (Tradução do Novo Mundo) "Efrata" é o antigo nome de Belém (Gênesis 35:19, Rute 4:11) mas a situação é mais confusa pois "Belém Efrata" também é o nome de uma pessoa: Belém o filho (ou neto) de Efrata (1 Crônicas 4:4, 2:50-51). Portanto esta profecia podia-se referir tanto a um nativo da cidade como a um descendente de uma pessoa. Se for este último caso, Jesus não se qualifica, pois nenhuma das suas alegadas genealogias (informação adicional sobre este assunto será apresentada mais adiante) inclui Belém ou Efrata. Se o primeiro caso for verdadeiro (o que é mais provável, visto que Belém foi o local onde nasceu o Rei Davi, de quem o Messias será descendente), então Jesus qualifica-se por local de nascimento 4 mas falha a verificação da condição de ser "governante em Israel". Os missionários alegam que esta é uma profecia que se cumprirá numa segunda vinda.

Genealogias

Existem várias profecias genealógicas sobre os ancestrais do Messias. As profecias sobre os ancestrais do Messias dizem que ele seria da tribo de Judá (Gênesis 49:10, Miquéias 5:2), da família de Jessé (Isaías 11:1, 10), e da casa de Davi (Jeremias 23:5, 2 Samuel 7:12-16, Salmos 132:11). Algumas destas profecias messiânicas parecem simplesmente referir-se a reis futuros. Todos estes versículos se referem a reis — e por isso nenhum deles foi cumprido por Jesus, que não foi rei de reino algum.

Mas os problemas destas profecias são ainda maiores. Será que Jesus é realmente da tribo de Judá, da família de Jessé, e da casa de Davi? A única evidência para isto são os dois conjuntos de genealogias de Jesus, em Mateus 1:1-17 e Lucas 3:23-38. Ambos traçam a linhagem de Jesus através do seu pai, José. Se a história do nascimento virginal for levada a sério, então Jesus não tem os ancestrais próprios. Por outro lado, se a genealogia de Mateus for levada a sério, então Jesus tem um ancestral chamado Jeconias (Mateus 1:12), sobre o qual o profeta Jeremias disse: "Inscrevei este homem como sem filhos, como varão vigoroso que não terá bom êxito nos seus dias; pois, dentre a sua descendência, nem um único será bem sucedido, sentado no trono de Davi e governando ainda em Judá." (Jeremias 22:30, TNM) A genealogia de Lucas sofre do mesmo problema, pois inclui Sealtiel e Zorobabel, que são descendentes de Jeconias.

Por fim, um problema muitas vezes notado é que as genealogias de Mateus e Lucas se contradizem mutuamente e contradizem as escrituras hebraicas. O avô paterno de Jesus foi Jacó (Mateus 1:16) ou Eli (Lucas 3:23)? O pai de Sealtiel foi Jeconias (1 Crônicas 3:17, Mateus 1:12) ou Néri (Lucas 3:27)? Mateus 1:11 omite Jeoiaquim (que em Jeremias 36:29-30 recebe uma maldição similar à do seu filho Jeconias) entre Josias e Jeconias (1 Crônicas 3:15) e Mateus 1:4 omite Admin entre Rão [ou Arni] e Aminadabe (Lucas 3:33, MC). Finalmente, Mateus 1:13 diz que Abiúde é filho de Zorobabel, Lucas 3:27 diz que Resa é filho de Zorobabel, mas 1 Crônicas 3:19-20 não menciona qualquer deles como sendo filhos de Zorobabel. 5

A matança das crianças

Outra profecia relacionada com o nascimento de Jesus é a alegação de que o Messias nasceria numa altura em que o Rei Herodes mataria crianças. Só o evangelho de Mateus (2:16-18) alega isso, citando uma profecia de Jeremias (31:15, TNM) que diz que "Ouve-se uma voz em Ramá, lamentação e choro amargo; Raquel chorando por seus filhos. Negou-se a ser consolada por causa dos seus filhos, porque eles já não existem." Existem dois problemas com esta alegada profecia messiânica: não é uma profecia sobre matança de crianças e é duvidoso que alguma vez tenha existido tal matança de inocentes por Herodes. "Raquel chorando por seus filhos" refere-se à mãe de José e Benjamim (e esposa de Jacó) chorando pelos seus filhos levados cativos para o Egito. No contexto, este versículo refere-se ao cativeiro Babilônico, que o seu autor testemunhou. Versículos subsequentes falam do regresso das crianças, e portanto referem-se ao cativeiro em vez de assassinato. A matança feita por Herodes também é duvidosa pois o escritor de Mateus é a única pessoa que menciona esse evento. O historiador Flávio Josefo, que relatou cuidadosamente os abusos de Herodes, não o menciona.

Levado para o Egito

Mateus prossegue dizendo que para fugir aos assassinos de Herodes, Jesus foi levado enquanto criança para o Egito. Isto é feito, segundo Mateus 2:15 (TNM), "para que se cumprisse o que fora falado por Jeová por intermédio do seu profeta, dizendo: Do Egito chamei o meu filho." Isto é uma referência a Oséias 11:1, que não é de modo nenhum uma profecia. É uma referência ao Êxodo dos Judeus do Egito.

"Será chamado Nazareno"

No fim do mesmo capítulo de Mateus (2:23, TNM), o seu autor escreve que Maria, José e a criança Jesus estabeleceram-se em Nazaré "para que se cumprisse o que fora falado por intermédio dos profetas: Ele será chamado Nazareno." Não existe tal profecia nas escrituras Hebraicas, embora alguns aleguem que isto se refere a Juizes 13:5. Este versículo descreve um anjo a falar com a mãe de Sansão, dizendo-lhe que o filho dela "se tornará nazireu". Não só isto não é uma profecia messiânica como também não pode ser aquilo a que Mateus se referia. Um nazireu é muito diferente de um Nazareno. Um Nazareno é um habitante de Nazaré, ao passo que um nazireu é um Judeu que tomou votos especiais para se abster de todo o vinho e uvas, não cortar o cabelo e realizar sacrifícios especiais (veja Levítico 6:1-21). Jesus bebeu vinho (Mateus 26:29, Marcos 14:25, Lucas 22:18), portanto não pode ter sido um nazireu.

Profecias sobre o ministério

Alegadas profecias sobre a vida e o ministério de Jesus dizem que ele seria precedido por um mensageiro (isto é, João Baptista), que ele teria um ministério na Galileia, que ele realizaria milagres, e que teria uma entrada triunfal na cidade de Jerusalém, montado num jumento.

Precedido por um mensageiro

A primeira destas, que ele seria precedido por um mensageiro, refere Isaías 40:3, que reza: "Uma voz grita: Abri no deserto um caminho para o Senhor, aplanai na solidão as veredas para o nosso Deus." (MC) Este versículo não fala de um mensageiro do Messias, fala dos Judeus sendo libertados do cativeiro Babilônico. Outro versículo que se diz apresentar a mesma profecia é Malaquias 3:1, que diz: "Eis que vou mandar o Meu mensageiro, o qual preparará o Meu caminho diante de Mim...." (MC) Esta pode ser tomada plausivelmente como uma profecia messiânica. Mas será que João Baptista realmente 'preparou o caminho' como mensageiro para Jesus? O historiador Flávio Josefo escreve sobre João Baptista mas não relaciona o seu nome com o de Jesus (Antiquities of the Jews 18.5.2; Josefo (1985), p. 382). Os escritos cristãos mais antigos, as cartas de Paulo, não fazem qualquer referência a João Baptista. Os evangelhos (e o livro de Atos, escrito pelo autor de Lucas) são a única evidência real de um elo [entre João Baptista e Jesus]. Mas a evidencia dos evangelhos não é consistente. O evangelho de João mostra João Baptista reconhecendo explicitamente Jesus como o Messias (João 1:25-34) antes de ser lançado na prisão por Herodes (João 3:23-24). Mas os evangelhos de Mateus (11:2-3) e Lucas (7:18-22) descrevem João Baptista, na prisão, enviando os seus discípulos a Jesus para perguntar se ele alega ser o Messias. Se a história de João fosse verdadeira, João Baptista não teria razão para fazer aquela pergunta.

Ministério na Galileia

Missionários alegam que o ministério de Jesus na Galileia é profetizado em Isaías 9:1, que diz: "... no tempo passado humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali, no futuro cobrirá de glória o caminho do mar, a Transjordânia e a Galileia das nações." (MC) A única coisa que este versículo diz é que D'us fará a área "gloriosa" — não diz nada sobre o ministério do Messias. Os versículos seguintes (Isaías 9:6-7) falam de uma criança que nasceria no futuro e que seria rei, "o qual se chamará Conselheiro admirável, Deus forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz." A tradição judaica diz que isto se refere ao Rei Ezequias, não ao Messias. Isaías 9:7, se aplicado a Jesus, não se cumpriu, pois fala do seu reino.

Milagres

Profecias sobre as curas milagrosas de Jesus são supostamente encontradas em Isaías 35:5-6 e Isaías 32:3-4. Este texto não menciona curas, mas diz que "Os olhos dos que vêem não se ofuscarão, e os ouvidos dos que ouvem estarão atentos. Os espíritos dos insensatos entenderão a ciência, e a língua dos tartamudos exprimir-se-á com prontidão e clareza." (MC) Diz-se ainda que isto ocorrerá durante o reinado de um rei (Isaías 32:1), o que não ocorreu em Israel durante o ministério de Jesus. O outro texto, por outro lado, descreve pessoas sendo curadas ("Então se abrirão os olhos do cego, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos", MC) mas também, nos versículos 7 e 8, descreve a terra como sendo "curada". Não existe aqui qualquer indicação clara de que estas curas tenham algo que ver com o Messias, em vez disso, é o próprio D'us que faz as curas. Os evangelhos não contêm qualquer relato de Jesus curando a terra.

Entrada triunfal em Jerusalém, montado num jumento

Uma última profecia relacionada com a vida e o ministério de Jesus é Zacarias 9:9, que diz: "Eis que o teu Rei vem a ti... humilde, montado num jumento, no potrinho de uma jumenta." (MC) Novamente, Jesus não era rei, portanto esse aspecto da profecia continua sem cumprimento. O alegado cumprimento desta profecia também é problemático. Segundo Marcos (10:11-19), Lucas (19:28-38) e João (12:12-19), Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento. Mas Mateus 21:1-11 apresenta Jesus montado tanto num jumento como num potro, o que indica que ele se equivocou com a profecia.

Profecias sobre a traição

Várias das alegadas profecias estão relacionadas com a traição de Jesus por Judas. Estas incluem profecias de que Jesus seria traído por um amigo por trinta moedas de prata e que este dinheiro seria lançado no templo e usado para comprar um campo de um oleiro. Dois versículos que são tomados como profecias de traição por um amigo são Salmos 41:9 e Salmos 55:12-14, o último dos quais diz: "Mesmo o meu amigo próximo, em quem eu confiava, que comia o meu pão, levantou o seu calcanhar contra mim." Ambos são salmos que falam de sentimentos de dor por ter sido traído por um amigo próximo em quem se confiava. Mas Jesus já tinha presciência da sua traição por Judas (João 13:21-26), e por isso não deve ter confiado nele. Quando o evangelho de João (13:18) cita o Salmo 41:9, admite tacitamente este problema ao omitir a expressão "em quem eu confiava". Nenhum destes versículos das escrituras hebraicas dá qualquer indicação de ter sido originalmente escrito com intenções proféticas.

Mateus 26:14-15 declara que foram pagas a Judas Iscariotes trinta moedas de prata pelos sacerdotes Judeus como pagamento pela sua traição. Mateus 27:9-10 alega que isto é feito para cumprir uma profecia de Jeremias:

"Cumpriu-se, assim, o que fora dito pelo profeta Jeremias: Tomaram as trinta moedas de prata, preço em que foi avaliado Aquele que os filhos de Israel avaliaram, e deram-nas pelo campo do oleiro, como o Senhor me havia ordenado."

O problema aqui é que o versículo citado não aparece em nenhuma parte do livro de Jeremias. Existe um versículo que é muito similar no livro de Zacarias, mas ali o profeta Zacarias está a falar de si mesmo e não está envolvida qualquer traição. O missionário Gleason Archer (1982, p. 345) tenta resolver este problema citando vários versículos em Jeremias que se referem ao "profeta comprando um campo em Anatot por um certo número de siclos" (32:6-9), "o profeta vendo um oleiro modelando vasos de barro na sua casa" (18:2), "um oleiro perto do templo" (19:2), e D'us dizendo: "Quebrarei este povo e esta cidade como se parte um vaso de oleiro" (19:11). Porque é que Archer escreve "um certo número de siclos" em vez de dar o número especificado em Jeremias? Porque Jeremias 32:9 diz dezessete siclos, não diz trinta. O que Archer fez aqui foi simplesmente procurar as palavras "oleiro", "siclo" e "campo", numa tentativa de argumentar que Mateus estava realmente a referir-se a Jeremias em vez de Zacarias. Mas realmente não há dúvida que Mateus se queria referir a Zacarias em vez de Jeremias. Compare com Zacarias 11:12-13:

"Eu disse-lhes: Se vos parece bem, dai-me o meu salário; se não, guardai-o. Eles pagaram-me pelo meu salário trinta moedas de prata. O Senhor disse-me: Arroja esse dinheiro no tesouro, essa bela soma pela qual avaliaram os teus serviços. Tomei as trinta moedas de prata e lancei-as no tesouro da casa do Senhor."

Novamente, isto é Zacarias falando da sua própria experiência em vez de ser uma profecia messiânica. Mas Mateus 27:5-7 tenta cumprir esta não-profecia contando uma história de Judas Iscariotes lançando o seu pagamento no templo antes de cometer suicídio, depois do que os sacerdotes usam o dinheiro para comprar um campo de um oleiro. Esta história não aparece nos outros evangelhos (embora Atos 1:18-19 diga que foi o próprio Judas, em vez de serem os sacerdotes, quem comprou o campo com o dinheiro (cuja quantidade não é especificada) ganho com a sua traição.

Outro problema com esta alegada profecia é que os manuscritos mais antigos (Siríaco) de Zacarias versículo 13 nem sequer contêm a palavra "oleiro" — em vez disso, têm "tesouro", que faz mais sentido mas prejudica ainda mais a sua credibilidade como profecia. (A Revised Standard Version apresenta o versículo como "Lancei-o no tesouro", com a tradução "para o oleiro" relegada para uma nota de rodapé.)

Profecias sobre a crucificação

Os missionários talvez estejam muito impressionados com várias alegadas profecias relacionadas com a crucificação de Jesus. Eles alegam que as escrituras hebraicas contêm profecias de que Jesus seria crucificado, que as suas vestimentas seriam divididas através do lançamento de sortes, que lhe dariam vinho misturado com fel ou mirra, que ele gritaria sobre ser abandonado, e que nenhum dos seus ossos se quebraria.

Seria crucificado

Existem vários versículos que são encarados como referindo-se à crucificação: Salmos 22:16, Zacarias 12:10, e Zacarias 13:6 são exemplos típicos. Salmos 22:16 diz: "Sou rodeado pelos cães; envolvido por um bando de malfeitores; trespassaram as minhas mãos e os meus pés". Este é um salmo de Davi que não dá indicação de ser profético e que se descreve a si mesmo sendo caçado e morto em vez de ser crucificado. Gerald Sigal argumenta que a palavra hebraica traduzida aqui por "trespassaram" significa "leão", e portanto uma tradução mais exata seria "como um leão [eles estão a morder] as minhas mãos e os meus pés." [N. do T.: a tradução Missionários Capuchinhos (católica) diz, numa nota de rodapé: "O hebraico] diz: «como um leão, as minhas mãos e os meus pés». O targum explica: «eles morderam como um leão»."] Gleason Archer, contudo, argumenta que "eles trespassaram" está correto, baseado na tradução Septuaginta e noutras considerações.

Zacarias 12:10 (MC) diz "... eles voltarão os seus olhos para Mim. Quanto àquele que traspassaram, chorá-lo-ão como se chora um filho único; chorá-lo-ão amargamente como se chora um primogénito." O evangelho de João (19:37) encara isto como sendo uma profecia cumprida na crucificação de Jesus, mas não há indicação de que Zacarias fale de crucificação. Além disso, o 'ele' sendo lamentado não é o 'eu' que está sendo traspassado. A interpretação Judaica deste versículo é que D'us está a falar do povo de Israel sendo "traspassado" ou atacado.

Zacarias 13:6 (MC) diz: "Que ferimentos são esses nas tuas mãos [a RSV diz "entre os teus braços"]?", referindo-se a alguém que afirma não ser profeta e que foi vendido como escravo na sua juventude (Zacarias 13:5). Ferimentos entre os braços não são característicos de crucificação e Jesus nem foi vendido como escravo nem afirmou que não era profeta.

Lançadas sortes sobre as vestimentas

Apenas o evangelho de João fala das vestimentas de Jesus sendo divididas entre os soldados e o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:23-24), e ele cita Salmos 22:18 como a profecia que é cumprida dessa forma. Este último versículo diz: "repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre elas." Este versículo conta um evento — roupas sendo divididas através do lançamento de sortes. Mas João transforma-o em dois eventos: primeiro a divisão da roupa de Jesus sem incluir a túnica (João 19:23) e depois o lançamento de sortes sobre a sua túnica (João 19:24). Parece que João criou uma história numa tentativa de providenciar um cumprimento para a sua compreensão equivocada de um versículo que não dá qualquer indicação de ter sido originalmente uma profecia.

Vinho misturado com fel ou mirra para beber

Mateus (27:34) fala de terem dado a beber a Jesus "vinho misturado com fel" e Marcos (15:23) diz que lhe ofereceram "vinho misturado com mirra". Ambos os versículos são encarados como referências a Salmos 69:21, que diz "Por alimento servem-me veneno, por bebida contra a minha sede, dão-me vinagre." A palavra hebraica traduzida aqui por "veneno" é "rosh", que significa veneno ou fel, e refere-se a alguma planta venenosa. O versículo diz que veneno está sendo colocado na comida, o que não se aplica à crucificação. Mirra, que não é venenosa, é referida pela palavra hebraica "mor", que não aparece em Salmos 69:21. Este salmo, que fala repetidamente de águas de uma inundação, não dá qualquer indicação de ser profético nem de se aplicar a Jesus.

"Por que me abandonaste?"

Os evangelhos de Mateus (27:46) e Marcos (15:34) dizem que as últimas palavras de Jesus foram: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?", uma citação do Salmo 22:1. Lucas (23:46) diz que as últimas palavras de Jesus foram "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito", enquanto João (19:30) apresenta Jesus a dizer: "Acabou-se." Só a primeira destas frases é alegadamente um cumprimento de profecia, no entanto dificilmente se poderá dizer que é miraculoso ter Jesus feito tal declaração. Presumivelmente Jesus estava familiarizado com as escrituras hebraicas. Tal observação, contudo, é inconsistente com a teologia cristã. Por que é que Jesus, que é supostamente D'us encarnado, falaria de ser abandonado por si mesmo em qualquer circunstância, quanto mais na culminação do seu plano para a salvação humana? Também não é evidente que Salmos 22 quer seja profético, quer aplicável a Jesus.

Nenhum dos seus ossos seria quebrado

Uma última profecia que desejo examinar, relacionada com a crucificação de Jesus, é que os ossos dele não seriam quebrados. Só o evangelho de João (19:32-36) afirma isso, dizendo que os soldados quebravam as pernas das vítimas da crucificação para apressar as suas mortes, no entanto pouparam Jesus pois ele já estava morto. João 19:36 cita Salmos 34:20: "Ele guarda cada um dos Seus ossos, nem um só será quebrado", como sendo a profecia que é cumprida dessa forma. Não há qualquer indicação de que Salmos 34 tenha sido escrito com intenções proféticas, nem que se aplique a Jesus. A intenção do evangelho de João é representar Jesus como um sacrifício, correspondendo especificamente ao cordeiro pascal (por exemplo, João 1:29, 36). Um requerimento do cordeiro pascal é que nenhum dos seus ossos seja quebrado (Êxodo 12:46, Números 9:12). Mas esta analogia falha por várias razões: o cordeiro pascal não era para expiação de pecado, e requeria-se que os sacrifícios judeus estivessem completamente sem deformidades físicas, chagas ou ferimentos (Levítico 22:20-25) ao passo que Jesus foi açoitado [chicoteado] e mutilado (João 19:1).

Conclusão

Este exame mostra que nenhuma delas é uma predição específica, detalhada e exata de um evento que tenha ocorrido na vida de Jesus. Em vez disso, as supostas profecias parecem ser o resultado de tentativas deliberadas por parte dos escritores dos evangelhos para encontrar similaridades entre eventos descritos no Novo Testamento e nas escrituras hebraicas.

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Notas

1 - Poderia argumentar-se (e é o que têm feito Judeus desde o terceiro século) que Jesus desencaminhou os Judeus da sua religião e por isso era um falso profeta. Veja Sanhedrin 43a no Talmude Babilônico.

2 - Deve-se notar que alguns missionários alegam que o sentido pretendido é "virgem" porque os tradutores judeus do Velho Testamento para o grego (a Septuaginta) usaram a palavra grega "parthenos" ("virgem") para "almah" ao traduzirem este versículo. Isto provavelmente indica, em vez disso, que Mateus usou a Septuaginta. Gerald Sigal indica um caso (Gênesis 34:3) em que a Septuaginta usa "parthenos" para a palavra hebraica quando a mulher em questão não é de modo nenhum uma virgem (veja Gênesis 34:2). também indica que traduções posteriores de Isaías, por Aquila, Theodocion, Lucian e outros não usaram "parthenos" ao traduzir "almah" em Isaías 7:14.

3 - A resposta missionária usual é invocar a doutrina do "duplo cumprimento" das profecias. Note que isto, combinado com a opinião cristã de que "almah" significa "virgem", implica que o Cristão tem de aceitar dois nascimentos virginais.

4 - O evangelho de João não diz nada sobre Jesus ser de Belém, mas em vez disso diz que ele é de Nazaré, na Galileia. Veja João 1:45-46 e 7:41-42, 52.

5 - Existem duas tentativas que costumam ser feitas para resolver estas contradições. A mais comum entre os missionários é alegar que a genealogia de Lucas é a de Maria, não a de José. Isto não explica a repetida convergência seguida de divergência que notamos à medida que analisamos as duas genealogias. Também não explica por que é que a genealogia de Lucas contém quase duas vezes mais ancestrais do que Mateus no mesmo período de tempo. Ainda outro problema é que essa explicação entra em conflito com a tradição católica que diz que os pais de Maria foram Joaquim e Ana. Uma segunda explicação, preferida pelos católicos, é que cada caso de divergência é o resultado de casamento de Levirato. Isto é, os pais discrepantes são irmãos uns dos outros, e quando um deles morreu, o outro casou com a esposa do seu irmão (veja Deuteronómio 25:5). Esta explicação também não explica a diferença no número de ancestrais.

6 - Miquéias 5:2 (nascido em Belém), Malaquias 3:1 (precedido por um mensageiro), Zacarias 9:9 (entra em Jerusalém montado num jumento), Zacarias 13:6 (traído por um amigo, ferido nas mãos), Zacarias 11:12 (traído por trinta moedas de prata), Zacarias 11:13 (prata lançada no templo e usada para comprar campo de oleiro), Isaías 53:7 (fica silencioso perante acusadores) e Salmos 22:16 (mãos e pés traspassados). Todos estes, exceto o versículo de Isaías, foram examinados acima.


segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Christopher D. Stanley, Catherine Hezser, e o letramento das sociedades nos estudos históricos do judaísmo de Jesus

O baixo nível de letramento das sociedades mediterrâneas dos primeiros séculos, em geral, e das comunidades rurais, em particular, não era levado em consideração nos estudos históricos do judaísmo de Jesus e sua continuação, o cristianismo primitivo. O estudo antropológico comparado de culturas, antigas e modernas, em que a comunicação é marcadamente oral trouxe novas luzes para a compreensão da transmissão primitiva das tradições de e sobre Jesus.

Não se encontra em parte alguma do material cristão, intra ou extracanônico, qualquer recomendação por parte do Jesus histórico (ou que a ele tenha sido atribuído) para que seus seguidores registrassem por escrito seus ditos e feitos para a posteridade. Antes, o que se observa, em vários ditos de diferentes seções do cristianismo, são menções explícitas a um programa de disseminação de uma mensagem, atrelada à interiorização e à exemplificação de um estilo de vida cujo meio primordial de transmissão seria a palavra falada. Implica dizer, a comunicação face a face, coletivamente repartida.

É inegável, porém, que os homens e mulheres que aderiram ao programa político-religioso do Reino de Deus, no espaço de algumas décadas, legaram substancial corpo de textos das mais variadas espécies e gêneros. Como declara Harry Gamble, “nenhum grupo religioso greco-romano produziu, usou ou deu valor a textos em escala comparável ao Judaísmo e ao Cristianismo, de tal modo que, excetuando a literatura judaica, não há um corpo apreciável de escritos religiosos com que a literatura cristã primitiva possa ser proveitosamente comparada.”

Com efeito, houve um espaço de tempo, aqui considerado como a transição do Jesus histórico ao cristianismo mais primitivo, em que as memórias dos feitos e ditos do milagreiro de Nazaré, mais ou menos afetadas por fatores emocionais, foram recordadas, criadas, desenvolvidas, alteradas, melhoradas, expandidas, abreviadas, contestadas e também esquecidas.

Essas memórias, não obstante esses fatores, circulavam e eram transportadas pelos seguidores que permaneceram ligados ao grupo de Jesus, ainda que não exclusivamente, mas essencialmente, tal qual projetada e vivenciada pelo próprio Jesus durante seu ministério público: por peregrinos em movimento no curso de pregações comunitárias.

Esse estágio intermediário, portanto, requer uma abordagem que leve em conta o mundo social das primeiras comunidades de judeus e gentios que se cristianizaram, ou seja, considerando: (a) o não-letramento massivo da população e (b) o papel desempenhado pela comunicação oral em todas as camadas sociais que caracterizam a época em que as tradições primitivas de e sobre Jesus eram transmitidas.

Nesse sentido, Christopher D. Stanley pondera que, virtualmente, todos os pesquisadores do Novo Testamento parecem divisar um mundo em que os autores cristãos escreviam para congregações letradas que cultivavam o hábito de ler, estudar e discutir entre si acerca das escrituras judaicas e os escritos das lideranças cristãs. Com efeito, embora vários estudiosos reconheçam que os baixos níveis de letramento estavam entre um dos fatores que contribuíram para a transmissão oral das tradições de e sobre Jesus antes de sua composição na forma de evangelhos, eles têm pouco a dizer sobre como esse baixo letramento poderia ter afetado o uso dos evangelhos nas comunidades primitivas após eles terem sido escritos. Ou seja, a maioria dos estudiosos contemporâneos trabalha com um modelo social que pressupõe níveis de letramento no interior das primeiras comunidades cristãs que variam de médio a alto.

Entretanto, quão realista é esse modelo? É evidente que estimar a extensão do letramento dentro das comunidades judaico-cristãs do primeiro século constitui-se num empreendimento incerto, embora alguns estudiosos concordem que pelo simples fato de que os evangelhos foram escritos e preservados implica um substancial conhecimento da escrita à medida que não faria sentido para seus autores compor textos para pessoas que não os pudessem ler. O problema dessa posição é que ela admite aquilo que precisa provar, ou seja, que os textos eram escritos para ser lidos e estudados por judeus cristãos comuns.

Outros acadêmicos argumentam que o aparecimento freqüente de citações e alusões bíblicas nos escritos cristãos indicaria um substancial grau de letramento nas comunidades primitivas. Por trás desse argumento jaz a crença de que os autores neo-testamentários esperavam que suas audiências fossem capazes de identificar todas as referências explícitas e muitas de suas alusões implícitas às escrituras judaicas. O que os pesquisadores não provam é como os primeiros seguidores obtiveram tão alto nível de letramento bíblico.

Segundo Stanley, uma porção de estudos recentes questionou se o letramento entre os judeus da antiguidade era, de fato, tão alto quanto anteriormente se pensava. Uma inspeção mais detida das evidências persuadiu muitos pesquisadores de que os textos utilizados como argumentos a favor de um letramento judaico amplamente disseminado estavam, em verdade, falando acerca de subgrupos especiais situados no interior da comunidade judaica. Catherine Hezser concluiu, após exaustivo levantamento de evidências literárias e epigráficas na Palestina romana, que pouquíssimos judeus eram capazes de ler textos simples e assinar seus próprios nomes durante a era imperial.

A autora descreve o letramento entre os judeus por meio da imagem de círculos concêntricos no qual o círculo central seria ocupado por um número muito pequeno de pessoas altamente letradas que podia ler textos em hebraico/aramaico e em grego. O círculo seguinte seria composto por pessoas que podiam ler textos em hebraico/aramaico ou em grego. Em torno desses dois círculos, haveria um terceiro, formado por pessoas que não conseguiriam ler textos literários, mas seriam capazes de ler somente listas ou cartas. Uma proporção bem mais ampla da população conseguiria identificar letras, nomes e rótulos e, finalmente, a vasta maioria da população que tinha acesso a textos apenas por meio de intermediários.

Ao mesmo tempo, vem crescendo uma consciência, como assegura Richard Horsley , que as comunicações na Galileia, assim “como em outras partes do império romano, eram em grande parte orais, mesmo entre os letrados. A escrita tinha pouca importância, a não ser para certas funções da elite”. Percepção bastante similar à oferecida por Eric Havelock, segundo a qual, “dos egípcios e sumérios aos fenícios e hebreus (para não mencionar os indianos e os chineses), a escrita nas sociedades onde era praticada restringiu-se às elites clericais ou comerciais, que se davam ao trabalho de aprendê-la”.

Por conseguinte, Horsley sugere que três fatores sejam reconhecidos: (1) no mundo antigo, pouquíssimas pessoas tinham as habilidades mínimas para ler; (2) a escrita estava a serviço, principalmente, da comunicação oral e (3) dadas as disponibilidades limitadas e a utilização proibitiva de rolos escritos tais como os das Escrituras Judaicas, o cultivo das tradições culturais israelitas se dava através da memória e da comunicação oral.

WERNER KELBER E AS LIMITAÇÕES DA CRÍTICA DAS FORMAS

Nos anos recentes, o campo dos estudos bíblicos histórico-críticos deparou-se com inovações em três áreas inter-relacionadas que apresentaram desafios fundamentais às suposições padrão até então predominantes: (a) na década de 70, alguns intérpretes começaram a ler os evangelhos intracanônicos como narrativas globais e não com o olhar centrado sobre alguns ditos e passagens; (b) na década de 80, começaram a despontar explorações sobre a comunicação oral que era predominante no mundo antigo e suas conseqüências para os materiais evangélicos e (c) nos anos 90, a memória cultural chamou a atenção de pelo menos alguns intérpretes como um fator central na composição e apropriação da literatura bíblica, em especial no que tange aos evangelhos.

Nessas três áreas inter-relacionadas, Werner Kelber foi um dos pioneiros em todas. Ele foi um dos primeiros a explorar o evangelho de Marcos como uma narrativa com um enredo central e não como uma espécie de “rosário”, no sentido de uma série de pequenos episódios e situações interligados por acidentes geográficos. Ele foi um dos primeiros a reconhecer que os evangelhos foram compostos e recebidos em um mundo dominado pela comunicação oral. Em conseqüência desses insights, Kelber demonstrou que as narrativas evangélicas foram produzidas por e a partir da memória cultural. Suas incisivas investigações nessas áreas conduziram a mudanças decisivas na abordagem e no entendimento do evangelho de Marcos. No entanto, como pondera Richard Horsley, nos estudos bíblicos “a inovação nem sempre é bem-vinda e é, às vezes, suspeita”.

Assim, uma das principais premissas que fundamentam toda a pesquisa de Kelber consiste na percepção de que a “consciência humana é estruturada em pensamentos pelas formas de comunicação disponíveis”. Por conseguinte, “o meio oral, em que as palavras são dirigidas da boca para o ouvido, manuseia a informação diferentemente do meio escrito, que liga os olhos a visíveis, porém silenciosas, letras sobre páginas e páginas”.

Porém, ele prossegue, a atual pesquisa bíblica acadêmica é, num grau elevado, um produto das forças interdependentes da lógica e da cultura impressa. A lógica, como é sabido, foi formalizada com a ajuda da escrita.

O surgimento do alfabeto converteu a linguagem falada em artefatos que facilitaram a indexação de sons em um número limitado de símbolos. Um triunfo da lógica em si mesmo, a alfabetização da linguagem veio a servir, de maneira crescente, como um catalisador na formação e implementação do pensamento abstrato. Mais tarde, a impressão despersonalizou as palavras e transformou a cultura manuscrita, fortalecendo a linguagem com um senso de objetivação desconhecido até então.

No entanto, fora dos estudos bíblicos observa-se uma ampliação da consciência que os padrões de regularidade linguística e as noções de propriedade verbal fixa não são empregáveis em culturas quirográficas e inaplicáveis para o discurso oral. Nesse sentido, reitera Kelber, “a reificação e neutralização de textos, embora altamente análogo ao processamento tipográfico da linguagem, fez-nos esquecer que as quirografias antigas nasceram, tanto pelo ângulo da composição quanto do ângulo da recepção, em um meio saturado por sensibilidades orais”.

Precisamente porque documentos escritos a mão não eram percebidos como sendo entidades estritamente autônomas com fronteiras impermeáveis, eles interagiam, em parte e no todo, com o discurso oral. Isso é excessivamente difícil para nós entendermos porque os métodos que empregamos nos estudos bíblicos instilaram em nós a idéia de entidades textuais autônomas, que cresceram de textos, ligaram-se diretamente a outros textos e, por sua vez, geraram outros textos.

Kelber assinala que os cristãos primitivos viviam em um mundo que não era estranho ao letramento, mas um sentido de dominação por textos e da primazia das palavras escritas é uma experiência do mundo que ocorre somente depois de Johannes Gutenberg. Por toda a antiguidade, ele prossegue, a escrita estava nas mãos de uma elite de especialistas treinados e a leitura exigia uma educação avançada disponível somente para poucos. Em função da vasta maioria das pessoas estarem habituadas à palavra falada, muito do que era escrito destinava-se à recitação e à escuta. A prática da escrita, ele considera, não transformou o letramento num novo modelo de comportamento linguístico, nem foram as formas e hábitos do discurso oral sumariamente extintos pela literatura.

Em seu ponto de vista, a escrita era, na antiguidade, essencialmente, um produto da urbanização e de povoados compactos, enquanto nas áreas rurais a linguagem era quase inteiramente confinada a comunicação face a face. À medida que o movimento liderado pelo Jesus histórico nasceu em e disseminou-se por ambientes rurais, Kelber considera que a fala era a norma das comunicações mais do que a circulação de textos.

Não sobram dúvidas que todos os evangelhos canônicos sustentam um retrato geral de Jesus como um proclamador de autorizadas e freqüentemente perturbadoras palavras, mas jamais como um leitor, escritor ou líder de uma escola. À proporção que ele é caracterizado como um orador profético e um mestre escatológico, deslocando-se de um lugar para outro, rodeado de ouvintes e envolvido em uma série de debates, os evangelhos terão retido um aspecto genuíno de um pregador oral. Consoante Kelber, “sua mensagem e sua pessoa estão ligadas, inextricavelmente, à palavra falada, não a textos”.

Por conseguinte, ele declara, “diferente de Sócrates, Jesus não tinha um herdeiro letrado que colecionasse e interpretasse sua mensagem. Ele pregou e recrutou mais entre a população rural da Galileia do que entre a classe média urbana”. Convém ressaltar que as palavras de Jesus, segundo Kelber, não estavam destinadas a serem memorizadas pelas autoridades, mas para serem lembradas pelas pessoas comuns e seus seguidores mais próximos. Mais que isso, Kelber também lança dúvidas se o Jesus histórico, “narrador de parábolas e proclamador de aforismos”, e os primitivos “escribas e recitadores” que mais adiante aderiram ao movimento, estavam comprometidos, como nós estamos, com um “ethos de pura formalidade, linearização do pensamento, compartimentação da linguagem, causalidade estratigráfica”.

Nesse sentido, o historiador moderno, persuadido da natureza literário-teológica dos evangelhos e resolvido a lidar com a mensagem de Jesus vê-se confrontado com a questão da fala. Por conseguinte, o primeiro evangelho canônico – Marcos – traria em si sua dívida para com a vida oral e a consciência não-letrada. Se primeiro veio à fala e se ela ajustou os padrões linguísticos para a tradição sinótica, uma importação de aspectos orais para esse evangelho deve ser admitida. Consoante seus argumentos, “a menos que se veja o texto [o texto de Marcos] como um corpo errante caído do céu, é razoável esperar conexões com o que precedeu sua existência”.

Em suma, Kelber destaca a formação de um paradigma que resultou das análises da Crítica das Formas inteiramente inconsistente com as realidades sociais da época e do meio em que a tradição sinótica entrou em circulação. De fato, ele sublinha, o letramento está tão profundamente implantado em todos os acadêmicos que estudam os textos bíblicos que é imensamente difícil evitar tomá-lo como o meio de comunicação normal e como a única medida da linguagem.

OUVINDO MARCOS E Q COMO PERFORMANCES ORAIS

Rompendo com o paradigma constituído pela Crítica das Formas, Kelber também chamou a atenção que qualquer investigação das dinâmicas da tradição e da cultura deve iniciar com uma abordagem sobre o papel da linguagem nas comunidades.

De acordo com Jonathan Draper, a linguagem é moldada pela interação humana, mas também molda essa interação, tanto pela ampliação quanto pela limitação, das possibilidades de comunicação. A linguagem, ele prossegue, também nos socializa dentro de hierarquias e classes sociais e marca nosso status social em termos da linguagem que falamos. Por conseguinte, a comunicação é uma interação entre sistema linguístico, cultura e estrutura/classe social.

Entre esses fatores, a estrutura/classe social afeta a comunicação de duas maneiras fundamentais. Em primeiro lugar, o dialeto é um aspecto importante de estrutura e classe. Apesar de diferentes dialetos se desenvolverem, normalmente, em diferentes espaços geográficos, eles tornam-se implicados na manutenção do status social. Assim, o dialeto de uma região dominante passa a ser a linguagem falada e escrita padrão do centro de poder em uma dada sociedade. Em segundo lugar, a comunicação também é afetada por um código socialmente determinado. Pesquisas empíricas nessa área mostram que crianças, originárias da classe média e da classe operária, são socializadas diferentemente por seus pais no que tange ao uso da linguagem, de modo que, pela linguagem empregada, pode-se presumir a classe social da criança.

Assim, à medida que as teorias linguísticas modernas têm enfatizado o quão importante é reconhecer o papel que a classe/estrutura social exerce sobre a comunicação, convém atentar para dois aspectos: (a) Jesus e seus companheiros provinham das classes menos favorecidas da sociedade de Israel. Como as narrativas intracanônicas fornecem indicações claras, eles eram pescadores, camponeses, pequenos agricultores; (b) embora só apareça em Mateus (26:73), encontra-se uma referência ao fato de os companheiros de Jesus possuírem um dialeto ou sotaque distintivo: “Pouco depois, os que lá estavam disseram a Pedro: „De fato, também tu és um deles; pois o teu dialeto te denuncia.”

Portanto, à luz das teorias sócio-linguísticas, a origem social dos missionários judeus cristãos pode ter afetado mais do que simplesmente o conteúdo de seu ensino; deve ter determinado e canalizado o processo comunicativo como um todo.

Implica dizer, o iletramento, a estrutura/classe social e o dialeto dos primeiros seguidores de Jesus que se dedicaram à disseminação do “evangelho” afetaram, substancialmente, a performance da mensagem. Não no sentido de empobrecimento, mas no de distingui-lo das performances executadas por sujeitos letrados.

Ademais, John Milles Foley defende o argumento que o contexto oral de uma performance oral fixada em um texto escrito pode ser reconstruído, visto que ela sobrevive em forma retórica. Essa reconstrução foca sua atenção sobre os indicadores chaves da performance oral na literatura que são aliterações, assonâncias, rimas, repetições, paralelismos e ritmos. Com efeito, todos esses indicadores são auxiliares da memória e artifícios para a fluência da declamação das histórias orais diante de audiências. Cumpre ressaltar que linguagem arcaica, fórmulas, imagens e linguagem simbólica são todas também encontradas em “textos” orais, como aspectos metonímicos. Outras ajudas à composição oral, a maior parte das quais são perdidas na transmissão escrita, são as canções, entonações da voz, acompanhamento por instrumentos musicais, diálogos e resposta da audiência.

Com efeito, se for possível deduzir que várias dessas características da comunicação oral se mostram presentes em Marcos e/ou Q, ficará evidenciada a natureza oral daqueles escritos. Assim, mais do que mapear textos da antiguidade, sublinhando indicadores chaves de performances orais, cabe, tal como buscado em relação à memória, atentar para uma teoria, com base empírica, que fundamente a suposição de que Marcos e/ou Q são transcrições de comunicações orais.

Conforme o antropólogo Dell Hymes, que propõe a teoria dos versos rítmicos, as narrativas do povo Chinookan – índios norte-americanos nativos do Óregon – estão organizadas em termos de linhas, versos, estrofes, cenas e no que se poderia chamar de atos. Um conjunto de aspectos dos discursos diferenciam as narrativas dentro de versos. No interior desses versos, é possível observar a diferenciação de linhas por meio de verbos. Os versos, por sua vez, são comumente reunidos em grupos de três e cinco. Esses versos agrupados constituem estrofes e, onde a elaboração das estrofes é tal que exige algum tipo de distinção, elas viram cenas. E, em narrativas mais longas, as próprias cenas são organizadas em termos de uma série de atos.

Essas conclusões, Hymes obteve após analisar “textos” orais de quatro povos Chinookan, coletados por diversos antropólogos e por ele mesmo, desde o fim do século XIX até os primeiros anos da década de 70. Ele admite, porém, que, em seu primeiro paper sobre as narrativas daqueles povos nativos dos EUA, vários detalhes passaram despercebidos, mas, após acompanhar outros pesquisadores e suas hipóteses e teorias, resolveu reescrever seu trabalho com o objetivo de comentar a relevância desse tipo de análise para outras abordagens da literatura oral.

Enfim, Hymes constata que a descoberta de tal organização nas narrativas americanas nativas parecem de importância fundamental à proporção que podem fornecer os rudimentos de, ao menos, uma teoria da estrutura do discurso literário na cultura em questão.

Portanto, consoante essa teoria, cabe afirmar: (1) uma estrutura consistente existe na literatura oral que pode ser identificada por uma análise cuidadosa e (2) a estrutura pode ser vista em co-variações de forma e significado. É certo que essa teoria, admitidamente, consiste de dificuldades e incertezas, pois infere uma padronização extremamente genérica para todos os exemplares de comunicação oral do mundo.

As performances orais da Boa Nova, por carismáticos itinerantes, foram, em algum momento, registradas por escrito. Isso parece ser uma conclusão óbvia. Igualmente, parece evidenciado, que o registro escrito das performances, relevando as possíveis interferências dos escribas, assumiu contornos específicos e peculiares a cada um dos presumidos profetas, ou grupos deles, que disseminavam as tradições de e sobre Jesus.

Não obstante, há uma categoria de ditos de Jesus que, embora os discursos não sejam paralelos em Marcos e em Q, podem ser analisados comparativamente. Kelber os denomina estórias didáticas e cobrem uma variedade de diálogos de controvérsias e contos biográficos cujo cume é sempre um dito de Jesus aparentemente exarado para ficar retido na memória do orador e sua audiência. Definido dessa maneira há seis exemplos que fornecem evidências claras de uma formulação pré-textual: Jesus à mesa de Levi (2:15-17), Debate sobre o jejum (2:18-19), Arrancar espigas de milho no sábado (2:23-28), Discussão sobre o divórcio (10:2-9), Questão sobre as posses (10:17-22) e Pagamento de impostos a César (12:13-17). Segundo Kelber, todas assumem a mesma forma padrão, com uma variação ou outra.